religião, migração e cultura imagens da fé

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Religião, migração e cultura Imagens da fé Londrina, v.12, n.18, p.11-28, jan-jul/2016 - DOI: 10.5433/2237-9126.2016v12n18p11 11 O LUGAR E OS ÍCONES NA CULTURA RELIGIOSA DOS IMIGRANTES UCRANIANOS EM CURITIBA THE PLACE AND RELIGIOUS CULTURE ICONS IN UKRAINIAN IMMIGRANTS AT CURITIBA Paulo Augusto Tamanini 1 Resumo Este artigo compreende o lugar como partícipe da arte iconográfica bizantina. O lugar não é apenas um dado geográfico neutro, até porque condiciona o modo de se pensar e escrever os ícones. Os ícones bizantinos eslavos têm uma história e faz parte do ofício do historiador ir à cata dos indícios de seu nascimento para, em um segundo momento, compreender a maneira como são assimilados nos espaços que ocupam. Para tanto, este artigo toma como referência o bairro Bigorrilho, em Curitiba-PR, onde se situa uma parte da comunidade ucraniana que trouxe consigo, desde a imigração, a maneira de se relacionar com o Sagrado através dos ícones bizantinos; toma como referencial teórico para suas análises os pensamentos do teólogo e historiador eslavo Leonid Uspenski. Palavras-chave: Ícones bizantinos. Comunidade étnica ucraniana. Leonid Uspenski. Abstract This article comprises the place as a participant of the Byzantine iconographic art. The place is not only a given geographical neutral, because conditions the way of thinking and writing icons. The Slavic Byzantine icons have a history and is part of the historian's craft go in search of evidence of his birth to, in a second step, to understand how they are assimilated in the spaces they occupy. Therefore, this article takes as a reference the Bigorrilho district of Curitiba-PR, where is a part of the Ukrainian community that brought from immigration, the way of relating to the sacred through Byzantine icons; takes as a theoretical framework for their analysis the thoughts of theologian and historian Slavic Leonid Uspenski. Keywords: Byzantine icons. Ukrainian ethnic community. Leonid Uspenski. Introdução Toda e qualquer imagem se apropria de um endereço, uma referência espacial por onde é facilmente localizada. O espaço em que se situa uma imagem não é apenas 1 Professor no Programa de Pós-Graduação em História e Bolsista PNPD/CAPES (UFPR). Doutor em História (UFSC). Especialista em Teologia Bizantina (Π. Αγίων Κυρίλλου και Μεθοδίου – Grécia). Áreas de Pesquisa: História e Teologia Oriental; Iconografia Bizantina; Imigração e Comunidades Ortodoxas e Católicas de Rito Oriental no Brasil. E-mail: [email protected].

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O LUGAR E OS ÍCONES NA CULTURA RELIGIOSA DOS IMIGRANTES

UCRANIANOS EM CURITIBA

THE PLACE AND RELIGIOUS CULTURE ICONS IN UKRAINIAN

IMMIGRANTS AT CURITIBA

Paulo Augusto Tamanini1

Resumo Este artigo compreende o lugar como partícipe da arte iconográfica bizantina. O lugar

não é apenas um dado geográfico neutro, até porque condiciona o modo de se pensar e

escrever os ícones. Os ícones bizantinos eslavos têm uma história e faz parte do ofício

do historiador ir à cata dos indícios de seu nascimento para, em um segundo momento,

compreender a maneira como são assimilados nos espaços que ocupam. Para tanto, este

artigo toma como referência o bairro Bigorrilho, em Curitiba-PR, onde se situa uma

parte da comunidade ucraniana que trouxe consigo, desde a imigração, a maneira de se

relacionar com o Sagrado através dos ícones bizantinos; toma como referencial teórico

para suas análises os pensamentos do teólogo e historiador eslavo Leonid Uspenski.

Palavras-chave: Ícones bizantinos. Comunidade étnica ucraniana. Leonid Uspenski.

Abstract This article comprises the place as a participant of the Byzantine iconographic art. The

place is not only a given geographical neutral, because conditions the way of thinking

and writing icons. The Slavic Byzantine icons have a history and is part of the

historian's craft go in search of evidence of his birth to, in a second step, to understand

how they are assimilated in the spaces they occupy. Therefore, this article takes as a

reference the Bigorrilho district of Curitiba-PR, where is a part of the Ukrainian

community that brought from immigration, the way of relating to the sacred through

Byzantine icons; takes as a theoretical framework for their analysis the thoughts of

theologian and historian Slavic Leonid Uspenski.

Keywords: Byzantine icons. Ukrainian ethnic community. Leonid Uspenski.

Introdução

Toda e qualquer imagem se apropria de um endereço, uma referência espacial

por onde é facilmente localizada. O espaço em que se situa uma imagem não é apenas

1 Professor no Programa de Pós-Graduação em História e Bolsista PNPD/CAPES (UFPR). Doutor em

História (UFSC). Especialista em Teologia Bizantina (Π. Αγίων Κυρίλλου και Μεθοδίου – Grécia). Áreas

de Pesquisa: História e Teologia Oriental; Iconografia Bizantina; Imigração e Comunidades Ortodoxas e

Católicas de Rito Oriental no Brasil. E-mail: [email protected].

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um dado geográfico; para além de expressar as coordenadas de localização, mapeia as

suas possíveis relações com o meio onde está inserida. Interpretar o lugar das imagens

em uma cultura étnica, por exemplo, implica na adoção de métodos que pode ajudar a

revelar conexões e saberes. O estudo da imagem em relação ao espaço tende então a

circunstanciar informações do passado que se reverberam no presente, e a delinear um

campo de abordagens multifacetado, nem sempre compreensível pela historiografia. E

quando o objeto em análise trata de um conjunto de ícones bizantinos eslavos, parece

natural reportá-lo aos assuntos de teologia, negando a possibilidade de a história

também sobre ele arguir, discorrer e tecer seus pareceres. Não obstante, a história do

cristianismo, para além de abarcar relatos e registros das experiências pretéritas das

diversas comunidades de fé e das instituições delas derivadas, serve também como

substrato para reflexão teórica interessada em discutir a natureza, o significado e a

historicidade da arte imagética dessa religião (HEIDEGGER, 1996).

O espaço em que as imagens estão inseridas então, mais que mero cenário de

exposição é o lugar do acontecer histórico, fazendo parte de um enredo que se deixa

invadir pelos olhos do pesquisador que, em cada esquina, canto, procura apenas facilitar

os conhecimentos em conexão. Até porque, uma narrativa que não encontra prova na

materialidade espacial, corre o risco de curvar-se em si mesma e se apagar. Do mesmo

modo, todo e qualquer lugar que não encontre um nexo constitutivo em uma narrativa

perde muito de seu sentido, desbotando as marcas que o tempo nele pincelou. Isto posto,

é importante que o lugar em que as imagens estão inseridas deva também ser percebido

levando em conta as relações culturais que a partir dele se conectam.

Michel de Certeau certifica que todo lugar tem suas especificidades construídas

pela deambulação dos viventes e circunstâncias. E sem os lugares, assegura o autor, os

objetos seriam apenas parcialmente analisados, porque no espaço pulsam as

conjunturas, acontecem as contradições, as rupturas e as continuidades (CERTEAU,

2007, p. 201). Logo, o termo lugar, ocupa um ponto chave na análise e leitura acerca de

da imagem; por isso, justifica-se que se deva perscrutá-lo com mais largueza,

interrogando-o, por exemplo, sobre a razoabilidade de ali estar. A leitura do lugar pode

ser o preâmbulo de um rico espetáculo do que já passou que se serve das imagens para

tão-somente narrar.

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Assim, porque os ícones bizantinos eslavos têm uma história, faz parte do ofício

do historiador ir à cata dos indícios de seu nascimento para, em um segundo momento,

compreender a maneira como são assimilados no presente. O campo de investigação

acerca dos ícones bizantinos ucranianos na História abre-se então como possibilidade de

observar na contemplação dessa arte, não só práticas culturais calcadas em valores e

normas etnicamente construídas, mas referenciais e elementos da estética que dão

sentido e significações a toda forma da beleza. Afinal, como certificou Paul Evdokmov,

por trás do belo está a possibilidade do divino (EVDOKMOV, 1990, p. 17).

Relata Nicolas Millus que a região sul do Brasil recebeu grande número de

imigrantes, desde o início da República até o final das duas grandes guerras. Entre

tantos grupos imigrantes estavam os ucranianos, vindos do leste europeu, Estados

Unidos, Canadá e Argentina. No Brasil, chegaram pelos portos do Rio de Janeiro e de

Santos. Muitas famílias tiveram como primeiro oficio, o trabalho braçal nas fazendas de

café paulistanas, de onde migraram, posteriormente, para os três estados do sul

brasileiro (MILLUS, 2004, p. 12). No Sul, o interior do Paraná foi a região escolhida

para o estabelecimento da maioria das levas ucranianas, que aos poucos se trasladava

para a capital à procura de um trabalho mais rendoso e da possibilidade de estudos para

os filhos descendentes.

Em Curitiba, nas décadas de 1950 e 1960, a cidade ficou marcada pelos grandes

investimentos do governo na construção do Centro Cívico, Biblioteca Pública do

Paraná, Teatro Guaíra e dos edifícios Dom Pedro I e Dom Pedro II, da Universidade

Federal do Paraná atraindo para os canteiros de obras também os ucranianos que a cada

final de turno, se alojavam nas áreas que atualmente se concentram nos bairros

Bigorrilho e Água Verde.

Bigorrilho e Água Verde, cercanias onde as comunidades ucranianas no

passado plantaram-se, ultrapassam, então, a catalogação de bairros residenciais

urbanizados, no presente. Hoje são compreendidos como lugares de amostragem da arte

bizantina eslava espalhada em pontos estratégicos das casas, igrejas, jardins. Os bairros,

como compósitos imagéticos complexos, indicam em quais percepções os ucranianos

medeiam a materialidade da vida étnico-religiosa em seus locais de vivência e como seu

cotidiano revela-se em culturas reais onde o ícone e outras imagens são protagonizadas.

Assim, esses bairros, em vez de representar espaços de enraizamento dos ucranianos e

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de seus descendentes, instituem-se como lugares praticados de identificação e

propagação de quem se é ou de quem se pensa ser. O ícone ultrapassa a natureza do

mero dado e entroniza-se como um elemento importante para compreender um pouco

mais sobre a herança religiosa dos imigrantes ucranianos no Paraná que, desde o final

do século XIX, juntamente com os ícones, não mais perambulam desprovidos de

qualquer endereço.

Assim, ao redor da evidência desprendida de qualquer natureza jubilatória sobre

os ucranianos, gravita um passado religioso centrado na devoção aos ícones que, por

vezes, se deixa vasculhar. Afora os encantos provenientes das singularidades de que

todo grupo étnico presume ser detentor, as narrativas demonstram que em Curitiba, a

despeito da tônica de modernidade da que se reveste a capital paranaense, continua a

figurar uma identificação étnica-religiosa que se serve dos ícones religiosos para melhor

ser notabilizada no presente.

O lugar de gestão, a técnica usada para se escrever os ícones, os modelos e

nomes de ícones marianos tornam-se peças-chaves para melhor elaborar uma narrativa

acerca da historicidade dos ícones. Discorrer sobre essa arte religiosa é antes de tudo

compreender o espaço em que foram escritos, pois desses lugares brotaram os

pensamentos que nortearam a arte bizantina trasladada para o Brasil. Nesse sentido, a

imagem ou o ícone bizantino eslavo em relação ao seu lugar de feitura ou de migração e

adaptação podem ser compreendidos como o começo de uma obra pictórica que ainda

está andamento. A obra e o lugar dão a abertura à uma narrativa composta por etapas,

processos de assimilação, fases de aceitação e momentos de propagação que prendem a

atenção de quem o vê como um só corpo, uma totalidade desdobrada em espaços

distintos. Se o lugar é observado em muitos dos campos de investigação como aquela

esfera dentro da qual as pessoas existem, vivem e socializam-se, aos olhos de quem

contempla o ícone, é visto como complemento da figura, o entorno e componente da

obra, porque dela ele faz parte.

Neste artigo, metodologicamente, privilegia-se as análises acerca dos

ucranianos situados somente no bairro Bigorrilho, o que repercute em uma pequena

amostragem da arte iconográfica eslava bizantina que pulsa e se encarna no cotidiano

dos que assim se identificam e dos que contemplam a beleza como uma forma de se

lidar com as coisas sagradas.

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1. Kiev: o lugar de nascimento da iconografia bizantina eslava

A cidade de Kiev é desde 1991 a capital da Ucrânia, país emancipado da

nocauteada ex-União Soviética. Situada próxima ao rio Dienepre, fundada no século V,

é considerada uma das cidades mais antigas da Europa oriental, carregando consigo um

histórico que oscila desde o reconhecimento de ser um forte polo de influência

comercial e política (séculos X a XI) à soterrada capital provincial que foi até a

revolução russa de 1917, quando retomou um período de certa prosperidade.

Afora condicionamentos políticos e interesses escusos de dominação, é

necessário que se retomem pela história os pontos que interessam ao início do

cristianismo em Kiev, antiga capital do Principado Russo.

A religiosidade cristã em terras eslavas alcançou legitimidade quando o príncipe

Vladimir de Kiev fez-se batizar cristão, junto com todo o império, em 28 de julho de

988, por sacerdotes gregos que vieram de Constantinopla. Enquanto a cerimônia

religiosa era celebrada, a milícia imperial por sua vez, destruía as imagens dos deuses

pagãos que até então tinham seus cultos e ritos tolerados. O século X ficou marcado por

ser um período de cristianização da Rússia e de resistência por parte daqueles que não

aderiam à oficialidade da nova fé imposta.

O modelo de liturgia, celebração e as formas de organização clerical davam-se

no principado tendo como referência àqueles praticados por Constantinopla, ou seja, os

de natureza bizantina grega. Relata Leonid Uspenski que, no século seguinte, um

número expressivo de templos cristãos já tinha se espalhado por Kiev e todo Principado

Russo (USPENSKI, 2013, p. 251).

As igrejas, uma vez construídas, eram decoradas segundo as tradições e

pareceres litúrgicos da tradição cristã grega. A importação desse arquétipo

organizacional litúrgico fez inaugurar não somente um novo modelo de religião como a

forma de se manifestar uma fé ritualizada, compassada e oficiosa que deveria ser

disseminada. Era uma luta contra o tempo. Quase dez séculos de culto e crenças pagãs

deveriam curvar-se à nova religião cristã; o que acarretava estratégia e tino mediático

singulares. Era urgente que se buscasse na fé trasladada do Oriente grego o que tinha de

mais característico e de mais fascinante para que novos adeptos se somassem à nova

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religião sem grandes traumas. A pedra de toque foi explorar o uso das imagens cristãs

nos cultos e fazer de sua devoção um marco de piedade aderido e legitimado, por

primeiro, pela nobreza e classes dominantes e, posteriormente pelos mais pobres

(RIBICHINI, 2007, p. 43).

O êxito dos padres iconógrafos gregos no novo império cristianizado foi tal que

um século depois já havia um número considerável de monges eslavos autóctones que

cumpriam a missão de propagação da fé cristã bizantina pelas formas e cores herdadas

da Europa oriental. A rapidez da assimilação da nova religião deu-se porque a Rússia

herdava um modelo de iconografia pronto, testado pelo Império Romano Oriental desde

o século III, com suas formas técnicas experimentadas e formulações doutrinais e

canônicas acerca dos ícones já aprovadas pelos concílios do Oriente grego. Contudo, os

monges e padres eslavos não queriam apenas repetir as formas, os desenhos e as cores

dos ícones. Buscavam com os seus teólogos brechas para que com mais liberdade

pudessem imprimir seus estilos estéticos e uma nova linguagem pictórica, tendo o

cuidado de não incorrer em heresias (LARCHET, 2011, p. 15). A nova linguagem

pictórica de se escrever os ícones fazia do modelo russo um padrão novo de iconografia

que aos poucos ganhava admiradores e adeptos. A cidade de Moscou por concentrar um

número maior de teólogos e monges iconógrafos, passava a ser reconhecida como

centro da arte russa, polo de influência política, retirando de Kiev tais prerrogativas.

Outra forte influência do estilo bizantino grego na arte iconográfica eslava se deu com a

tomada de Constantinopla no século XIV, quando muitos monges hesicastas foram

acolhidos nos monastérios ao sul da Rússia. A rígida vida dos monges, repleta de

orações distribuídas durante as horas do dia, os intensos jejuns e sacrifícios que se

impunham e o tempo de contemplação frente aos ícones preparavam os religiosos para o

saber-fazer da arte pictórica iconográfica.

Kiev e Moscou tornavam-se, então, nos séculos XIV e XV, lugares propícios do

renascimento da vida monacal masculina e feminina, desdobrada em suas vertentes

eremítica e cenobítica, e do reconhecimento de escolas de iconografia cujas sedes se

abrigavam ora no interior dos monastérios, ora nos centros de estudos de teologia.

Ainda que a Rússia experimentasse um período de intensa atividade artística

tanto nas áreas da arquitetura, literatura e liturgia, era na iconografia cristã que a

espiritualidade e a cultura religiosa eslava ganhavam expressão e materialidade

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contundentes. Em decorrência disso, a iconografia bizantina eslava favorecia o

surgimento de uma nova consciência artística eclesial, fundamentada no

desenvolvimento de uma fé em expansão e não apenas como resposta ou defesa frente

aos ataques sofridos acerca de posições dogmáticas ou doutrinas, como aconteceu com

os gregos na iconoclastia, no século VIII (USPENSKI, 2013, p. 255).

Isto posto, Kiev, desde o batismo do príncipe Vladimir até a consolidação da arte

bizantina eslava, não é apenas um lugar em que a vida fluía. Para os ucranianos, Kiev

representa a razão de o cristianismo ter chegado e se alastrado no mundo eslavo. É

considerado o berço e manjedoura da religião cristã em um mundo antes pagão e

politeísta. A história dos ucranianos parece estar condicionada e subjacente a um

processo de legitimação étnica em que o grau de importância de uma religião,

iconografada em formas, cores e padrões estéticos, se sobrepõe a outros.

2. De Kiev à Catedral Ucraniana: lugar do ícone e o seu redor

O exercício e práticas de devoção da comunidade ucraniana do bairro Bigorrilho

encenadas e alocadas em meio urbano fazem pensar que as rezas, as orações e os ritos

devocionais, tendo um percurso de vida, de acordos, de legitimação, de posterior

propagação e de espetacularização, deixavam-se amoldar pelas surpresas de um lugar

cheio de pressa, como se configura a capital do Paraná. Se a velha Kiev era considerada

o berço do cristianismo, Curitiba apresentava-se como o lugar em que a propagação

daquela fé deveria também encontrar lugar para crescer e se maturar. E o lugar propício

para o início dessa empreitada, no entender dos imigrantes, era o interior da catedral que

tinha como padroeiro São Demétrio.

A catedral ucraniana São Demétrio dos ucranianos do Bigorrilho foi construída

no período de 1955 a 1960. Os recursos para o levantamento da obra vinham dos

pequenos eventos de congraçamento da comunidade, feitos uma vez a cada mês, após a

celebração da divina liturgia dominical: jantares, bingos, tardes dançantes, rifas. Os

prêmios dos bingos e das rifas provinham de doações feitas pelas famílias e pelos

comerciantes de Curitiba que na sua maioria não tinha nenhum vínculo com aquela

expressão religiosa oriental, mas que se inclinavam a cooperar.

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A catedral, essa escultura religiosa pintada à mão pelos obreiros do campo que

vieram morar na cidade, nas décadas posteriores a 1950, parece condensar os signos do

passado e da tradição ucraniana com fortes compromissos culturais étnico-religiosos.

Conquanto cercada por empreendimentos comerciais, por escritórios e por uma

academia que preza pelo cuidado e beleza do corpo, traduz-se representante de um

grupo de fieis que se norteiam pelo apego de um outro tipo de arte.

Assim, dois complexos arquitetônicos e duas temporalidades aparentemente

desconexas, intimamente ligam-se, por estarem situadas em um mesmo lugar. Do lado

esquerdo, a catedral ucraniana, uma empresa divina-humana para os cuidados da alma,

expõe-se, enquanto, ao seu redor, esgueiram-se empreendimentos outros cujas

finalidades passam ao largo de qualquer motivação espiritual. Paradoxalmente, o lugar

faz com que a alma e o corpo tornam-se então matérias-primas básicas dos sonhos de

perfeição humana: enquanto uma preocupa-se em preparar a alma para uma acreditada

vida eterna, as outras aparelham o físico e o cotidiano para os inúmeros compromissos

que impõe a ordinariedade.

Nesse diálogo entre o passado e o presente, entre o corpo e a alma, entre a busca

da perfeição exterior e interior, destacam-se a preocupação pela beleza ou contemplação

da beleza e da arte.

Talvez a imagem da igreja rodeada por tantas outras construções, separada por

uma avenida, muros ou filetes de jardins seja tão emblemática quanto a realidade que os

atuais curitibanos de descendência ucraniana vivem. Porque os outros empreendimentos

espiam a igreja ali plantada, lembram que o homem não se reduz apenas a matéria. A

igreja, contudo, ao olhar ao seu redor, recorda-se que a mensagem da qual é portadora

talvez precise de novos métodos para poder atingir a grande massa que anteriormente

conseguia conquistar, mas que nos dias atuais, faz-se de rogada, mesmo estando a

poucos passos dela. Talvez, o anúncio do qual é portadora deva ser divulgado não

apenas pela voz, mas pelo ver, pelo olhar, pelo contemplar.

Do alto da torre da igreja ou nos seletos últimos andares dos prédios, espia-se

que o bairro Bigorrilho está cada vez mais urbanizado e espreme também as famílias de

descendência ucraniana em seus territórios. Esse bairro repaginado, deixando há muito

tempo de ser referência e ninho só de ucranianos, hoje, contudo, é local de certa

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distinção, mostrando o número grande de pessoas abastadas que escolheram aquele

lugar para morar.

Ainda que a catedral ucraniana tribute a presença dessa etnia, circunscreve-se

em um panorama urbano abrangente como lugar de memória, sem qualquer privilégio

ou sustentação de exclusividade. Pelas ruas asfaltadas, bordadas por largas calçadas por

onde floreiras e plantas ornamentais exibem a preocupação pelo meio ambiente, as

antigas ferrarias, botecos e pequenas casas de comércio de 1960, deixam-se substituir

por empreendimentos mais rendosos ou moradias de excelente padrão de acabamento,

revelando que muitas famílias ucranianas acompanharam o crescimento econômico e os

promissores processos sociais da cidade. Os poucos jardins em frente às casas ou as

plantas assentadas nas beiras das calçadas enchem os olhos dos passantes, ao mesmo

tempo que fazem os ucranianos relembrarem do tempo em que a mata e os pássaros

constituíam parte integral de uma paisagem da qual sentem saudades.

Ao contemplar a igreja, por exemplo, vêm a reboque as considerações sobre a

adequação na urbe frente à sua arte religiosa, com suas normas, seu jeito de expressar

com tinta, um discurso feito de imagens, cores e formas. Por conseguinte, se a cidade

tenta pintar um quadro em que as cores do urbano se sobrepõem, a comunidade étnica

ucraniana alocada no bairro Bigorrilho deixa também suas marcas, suas cores, seus

modos de se relacionar com o transcendente; exibe suas formas arquitetônicas eslavas

que ajudam a pincelar o panorama da cidade. E essa maneira de mostrar-se ucraniano

continua sendo marca de uma identificação e o sinal da presença e atuação de uma

religiosidade legitimada pelo tempo e que ainda sobrevive em meio à transversalidade e

à oferta dadivosa de culturas mistas.

Assentados na justificativa de uma compreensível necessidade de relações mais

abertas, e sem o perigo do isolacionismo, os ucranianos procuram dialogar com outras

formas de tradição, qual um vocativo contra toda forma de segmentação. Até porque a

iconografia bizantina é mais uma – de tantas outras que existem – forma de arte a

representar os cidadãos em suas circustancialidades, em um determinado tempo e lugar,

com seus atributos, sonhos e história.

3. O ícone de Maria na devoção ucraniana: da técnica aos nomes e significados

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As muitas famílias ucranianas do Bigorrilho não chegaram ao bairro sozinhas.

Com elas vieram seus sonhos, sua cultura, sua religião e o modo de expressar sua

relação com Deus. E uma dessas formas estava na proximidade com a iconografia,

sobretudo aquela que remetia à devoção à Mãe de Deus.

Desde as primeiras representações da Virgem Maria (que remontam aos fins do

II século, nas catacumbas de Priscila, e, especialmente, a partir do Concílio Ecumênico

de Éfeso), as imagens da Mãe de Deus se multiplicaram, ao ter os teólogos cada vez

mais clara consciência da importância que ela ocupava na história da salvação

(CARRASCO TERRIZA, 1982, p. 578). Desde então, o desenho do ícone segue normas

precisas, que foram elaboradas pelos monges gregos e deram origem aos cânones, às

regras de como se fazer.

Figura 1

Estrutura geométrica do ícone de Maria. Reprodução. Acervo do autor.

A figura acima mostra a composição da imagem da Virgem Maria obediente às

estruturas geométricas da escola monacal grega, que estabelecem a harmonia entre os

diversos elementos, e que os ucranianos do bairro Bigorrilho tentam preservar. Nesse

arquétipo, três grandes círculos interseccionados modelam o rosto da principal figura

que deve estar em conformidade com as demais partes do ícone (USPENSKI, 2013, p.

47).

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Segundo a tradição bizantina, a feitura do ícone é precedida por momentos de

orações e jejuns intensos que lapidam as mãos, mente e técnica do iconógrafo. Após

este período de preparação espiritual, Ribichini lembra que ainda são necessários alguns

cuidados: a escolha da madeira que deve ser lisa e estar sem nenhuma umidade. O

costume grego apregoa que todo ícone é escrito sobre lâminas de madeira e que as

derivações (ícones pintados sobre pedras, paredes de tijolos, cascas de ovos, tecidos ou

papel) não deveriam receber o nome de ícone. Contudo, as escolas iconográficas dos

ramos grego ou eslavo, desde meados do século XV, reconsideraram esta obrigação

(RIBICHINI, 2007, p. 128).

Depois do material escolhido, o saber-fazer da iconografia impõe que seja

preparado um fundo branco (chamado de levkas). A técnica do levkas já era conhecida

dos egípcios, tendo sido encontrada em vários sarcófagos, sendo readaptadas para a arte

grega. A principal função dessa técnica é a de refletir de modo comedido a luz que

incide sobre a imagem, sobre a qual as cores possam se conformar à totalidade da

figura. Geralmente a levkas na tradição grega é uma solução preparada com pó de gesso

ou com algum produto colante extraído de ovos, espinha de peixe ou resina de arvores.

Na tradição eslava, seguida pelos ucranianos de Curitiba, a levkas pode ser preparada

também com resina de pinheiro. Posteriormente ao jejum, à escolha da madeira e à

preparação da levka, e após se escrever a figura, as regras iconográficas prescrevem o

correto uso das cores, cada qual com seu significado teológico e profundidade

hermenêutica.

Embora a confecção dos ícones ucranianos obedeçam a forma e cores advindas

da teologia grega, o leste europeu, que absorveu a cultura bizantina desde o século IX,

adaptou algumas das características dessa arte religiosa. Muitos dos ícones eslavos, por

exemplo, não carregam mais as letras do idioma grego, sendo substituídas pelo cirílico,

a linguagem teológica e da iconografia eslavas dos quais os ucranianos são herdeiros.

Logo, o lugar, como já frisado, não é apenas um registro estéril; aqui soube se impor,

ditando maneiras diferentes de se obedecer às regras, costumes, sem ser despótico.

Alguns desses modelos que chegaram ao Brasil com a imigração ucraniana permitem

classificar os ícones marianos do ponto de vista tipológico, com suas cedências e

adaptações.

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3.1. O ícone de Maria Odighitria

Figura 2

Ícone de Maria Odiguitria. Reprodução. Acervo do autor.

A palavra grega Odighitria significa, literalmente, aquela que mostra o caminho.

Segundo Evdokimov, este ícone teria sido uma cópia de um ícone cuja autoria é

atribuída a São Lucas, o Evangelista (EVDOKIMOV, 1990). Derivada do verbo grego

hodegeo, a palavra Odigitria designa aquele que guia ou que acompanha alguém por um

itinerário. Nesse sentido, a imagem da Virgem Maria sinaliza o seu filho como o mais

seguro caminho a seguir.

De pé, Maria tem seu olhar voltado para frente; sustenta o Menino em seu braço

esquerdo, e com a direita aponta seu filho Jesus como o caminho a seguir, conforme

escreve o evangelista João no capítulo 14: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Por

sua vez, no ícone bizantino eslavo, o Menino segura em suas mãos o livro do Evangelho

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que, na tradição grega, é substituído por um pergaminho enrolado, fechado. As cores

nesse ícone obedecem ao significado teológico da tradição bizantina. A composição da

Odighitria mostra Maria envolta num manto de cor púrpura avermelhada, cor que

simboliza realeza. O Menino está vestido com as cores brancas. Na tradição bizantina, o

branco é um dos símbolo da pureza, da luz da Transfiguração. As inscrições, como já

mencionado, não estão em língua grega e o fundo é formado por uma diversidade de

microfiguras, que molduram a personagem central.

3.2. O ícone de Maria Eleousa

Figura 3

Ícone de Vladimir. Reprodução. Acervo do autor.

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O ícone bizantino da Virgem de Eleousa, também é conhecido como o ícone da

Virgem da Ternura (ou Ícone de Vladimir ou de Rublev). Neste ícone sobressai o

aspecto materno de Maria: ela não é somente a mãe de Deus, mas também a mãe de

uma criança humana que precisa ser amada, cuidada, acariciada. Enquanto o modelo

iconográfico anterior considera Maria como Deípara (ou Theotokos) ou seja, Mãe de

Deus, este contempla a Virgem como Mãe de Jesus Menino. Se o primeiro põe o acento

na divindade de Jesus, este acentua a sua humanidade. De pé ou sentada, aflora o

sentimento amoroso materno-filial, recíproco. A cena mostra a estreita relação entre

ambos, o forte vínculo que os une como mãe e filho. Em Bizâncio, esse ícone recebeu o

nome de Glycophilousa, ou seja, ícone do beijo doce (CARRASCO TERRIZA, 1982, p.

580). Alguns traços particulares deste ícone deram lugar à confecção de outros,

conhecidos e venerados nas igrejas de tradição ocidental: o ícone da Virgo Lactans, e o

ícone de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, como mostram as figuras abaixo:

Figura 4

Figura 5

Virgem da Amamentação. Reprodução.

Acervo do autor.

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Reprodução. Acervo do autor.

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O ícone da Virgem Lactante é popular na Europa ocidental. Considerada

padroeira das mães que amamentam, tem sua devoção garantida em toda Itália, França e

Espanha. O ícone de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é originário da ilha de Creta,

na Grécia. Levado por um comerciante italiano a Roma, a devoção ao ícone logo se

espalhou pela Europa e pelas Américas, ganhando, inclusive no Brasil, várias paróquias

de rito latino e de rito bizantino para sua veneração.

3.3. Ícone de Maria: a Virgem Orante

Figura 6

Ícone da Virgem Orante. Reprodução. Acervo do autor.

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Segundo Evdokimov, no ícone da Virgem Orante, o intuito não é mostrar a

pessoa da Virgem que toma quase a totalidade da área, mas o de evidenciar a

encarnação de Deus no ventre de Maria (o humano e o divino que se unem). A teologia

bizantina lembra que é a cena da Encarnação que define o lugar e o papel da mulher que

se tornou Theotokos (Mãe de Deus). É também a Encarnação que inicia a presença do

Espírito Santo em meio às criaturas (EVDOKIMOV, 1990, p. 18).

Este ícone está presente na cúpula do altar principal da maioria das igrejas de

estilo bizantino. Na catedral ucraniana do bairro Bigorrilho, o ícone da Virgem Orante

embeleza a parede do altar, vista pelo celebrante em cada ato litúrgico.

Conclusão

A interdisciplinaridade faz com que a imagem religiosa ou os ícones ucranianos

sejam percebidos em suas várias leituras e apreensões. A pertinência de certos temas ou

problemas inerentes aos assuntos da imagem do sagrado tem aproximado saberes e

evidenciado fontes importantes, antes relegadas ao esquecimento.

Com isso, a história, quando se ocupa das imagens ou dos ícones, abre-se ao

debate epistemológico oriundo da diversificação de fontes da qual se serve, focando

suas análises no pensamento, percepção e ações do indivíduo, rompendo com o modo

positivista e tradicional de se construir suas narrativas. O reconhecimento de novas

possibilidades de estudo sobre o uso da imagem na história coloca a visualidade ou a

centralidade do olhar no cerne das interrogações e problemáticas das atuais pesquisas.

Logo, é possível fazer pesquisas de história utilizando-se de imagens desde que estas

levem à construção de uma leitura dos acontecimentos que valorize o processo contínuo

de produção. Isto porque as imagens, uma vez sendo suporte de relações sociais, não

são apenas efeitos, ou sintomas, mas a própria visualidade como princípio cognitivo de

caráter indefectivelmente histórico (KNAUSS, 2006).

A partir do foco aproximado das experiências e vivências cotidianas, o uso das

imagens e da iconografia no campo da história amplia as possibilidades de se

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compreender os fenômenos humanos em relação ao sagrado e à sua religiosidade, a

partir de conceitos revistos e de reformulações dos postulados teóricos. Interessa,

redescobrir as imagens, notadamente aquelas de cunho religioso, quais objetos densos

de análise, uma vez que se deslumbram em sentidos e significados. Assim, no ofício de

lidar com as imagens, os historiadores podem tirar delas sentidos novos, graças à

hermenêutica que os faz intérpretes das sensibilidades visuais.

Pesquisar sobre os ícones da comunidade ucraniana do bairro Bigorrilho

significa compreender a cultura imagética enquanto processo, em meio a um fluxo

cultural que impõe constantes transformações e adaptações. Foi possível reconhecer

que, até mesmo no modo de se fazer o ícone mariano, as concessões se apresentaram.

Isto dá oportunidade ao historiador de verificar que as diversas manifestações da cultura

devam ser analisadas sob a ótica da troca, dos intercâmbios realizados nas fronteiras,

nos lugares. Afinal, entre o espaço de nascimento da imagem e o da sua exposição e

contemplação há um longo caminho, onde imperam vários condicionantes.

Os ícones ucranianos obedecem aos cânones, às regras, às normas para sua

feitura, desde o século IV. Ainda que tenham justificativas teológicas incontestes,

revelam uma maneira de se lidar com o transcendente, através da contemplação da

beleza. O ícone bizantino, para além da estética, mostra um percurso de formulações de

saberes, calcados em acordos legitimados pela consonância dos pares. O lugar, no

entanto, esse quase que despercebido ponto geográfico, faz observar em quais

pressupostos estão alicerçadas a tradição e as permanências das regras. A alternância do

idioma grego pelo cirílico e a troca de resinas de peixe ou de ovo pela de pinheiro, na

técnica de se escrever um ícone, evidenciaram que o lugar impõe suas condições para se

manter um costume, uma arte, um modo de se fazer. Com o uso do novo idioma, a

composição dos ícones ucranianos, a despeito da dimensão religiosa, orbita em volta de

outros contornos mais precisos de referência étnica e de pertencimento.

A devoção a Maria, como Mãe de Deus e Mãe de Jesus humano se perpetua no

cristianismo, auxiliada pela Escritura, pela força dos dogmas e pela contemplação dos

ícones. Os ícones marianos, dos quais a comunidade ucraniana de Curitiba também é

herdeira, mostra o quanto ao redor das imagens religiosas gravita um conhecimento, um

saber específico e que não prescinde de historicidade. Todo conhecimento tem um

rastro, um arrazoado; inclusive os que se dizem vir dos céus.

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Os vários nomes de Maria são expressões de uma devoção e de um amor filial à

Mãe de Deus criados e alimentados a partir de um lugar. Os nomes dos ícones marianos,

para além de refletirem o lugar de nascimento ou remeterem ao nome de quem pensou

aquela maneira de falar sobre a mãe de Jesus, postulam os muitos modos de se

contemplar a beleza das imagens no transcurso da História.

Referências

BINNS, John. Las Iglesias del Oriente. Madri: Ediciones Akal, 2009.

CARRASCO TERRIZA, Manuel Jesus. Aspectos cristológicos en la iconografía de la

Theotokos. In: MATEO-SECO, Lucas F. Cristo. Hijo de Dios y Redentor del hombre.

Pamplona: Universidade de Navarra, 1982.

EVDOKMOV, Paul. Teologia da Beleza: a arte do ícone. Milão: Mondadori, 1990.

HEIDEGGER, Martin. L’art et l’espace. In: Questions III-IV. Paris: Gallimard, 1996.

KNAUSS, Paulo; CALAINHO, Daniela Buono (Orgs.). Usos do Passado - XII

Encontro Regional de História. Rio de Janeiro: Anpuh-Rio, 2006.

LARCHET, Jean Claud (Org.). Grands spirituels orthodoxes du XXème siècle.

Lausanne: Éditions L’Age d’Homme, 2011.

MILLUS. Nicolás. Colônia Ucraniana. Curitiba: Ed. do Autor, 2004.

RIBICHINI, Sérgio. Sulle tracce del mito: dei ed eroi greci, tra archeologia e storia

delle religioni. Novara: De Agostini, 2007.

USPENSKI, Leonid. Teología del ícone. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2013.