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RELIGIÃO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS Religião e relações internacionais: o catolicismo português Uma abordagem historiográfica* 1 António Matos Ferreira Professor na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Membro do Centro de Estudos de História Religiosa da ucp *Este texto corresponde à comunicação realizada no Encontro sobre «Relações Internacionais em Portugal – Uma tentativa de Balanço», promovido pela Associação Portuguesa de História das Relações Internacionais a 12 e 13 de Fevereiro de 1997, em Lisboa. Considerando a religião como o sistema de crenças que marca os indivíduos e as colectividades, esta não pode ser abordada de uma forma restritiva, isto é, circunscrita à sua organização pública, nomeadamente às Igrejas. As crenças remetem para níveis de formulação e para mundividências que se expressam em variadas práticas no âmago dos comportamentos sociais. Este universo do religioso é um dos elementos estruturantes da sociedade e nele se inscrevem as relações internacionais. O estudo da religião na vertente das relações internacionais permite compreender melhor a complexidade das práticas desse universo, estabelecendo os contornos do processo de construção social em que se insere. Por outro lado, neste contexto, o problema das relações internacionais exige uma particular atenção às recomposições que os universos religiosos sofrem em face das transformações sócio-políticas e culturais. Ter como base a problemática «religião versus relações internacionais» remete-nos para uma abordagem relativamente recente, mas complexa. Porque, em primeiro lugar, tomar a religião como objecto de análise equivale a aceitar que a ela corresponde uma prática social específica, distinta de outras, no seio de cada sociedade e entre as diversas sociedades; em segundo lugar, implica também encarar as relações internacionais, não reduzidas ou consideradas como meras relações diplomáticas, mas num sentido mais envolvente e articulado com o construir da dinâmica interna das sociedades, isto é, valorizando níveis de relacionamento entre indivíduos, grupos e instâncias que fornecem uma dimensão supranacional e internacional às experiências individuais e colectivas no seio dessas mesmas comunidades a nível nacional, continental ou de certas áreas de influência internacional. As relações que dão consistência à existência e à vida da comunidade internacional, enquanto forma específica das relações humanas e entre sociedades distintas, não se esgota, nem se reduz às relações entre Estados, nem tem como única concretização o

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RELIGIÃO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS Religião e relações internacionais: o catolicismo português Uma abordagem historiográfica* 1 António Matos Ferreira Professor na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Membro do Centro de Estudos de História Religiosa da ucp

*Este texto corresponde à comunicação realizada no Encontro sobre «Relações Internacionais em Portugal – Uma tentativa de Balanço», promovido pela Associação Portuguesa de História das Relações Internacionais a 12 e 13 de Fevereiro de 1997, em Lisboa.

Considerando a religião como o sistema de crenças que marca os indivíduos e as colectividades, esta não pode ser abordada de uma forma restritiva, isto é, circunscrita à sua organização pública, nomeadamente às Igrejas. As crenças remetem para níveis de formulação e para mundividências que se expressam em variadas práticas no âmago dos comportamentos sociais. Este universo do religioso é um dos elementos estruturantes da sociedade e nele se inscrevem as relações internacionais. O estudo da religião na vertente das relações internacionais permite compreender melhor a complexidade das práticas desse universo, estabelecendo os contornos do processo de construção social em que se insere. Por outro lado, neste contexto, o problema das relações internacionais exige uma particular atenção às recomposições que os universos religiosos sofrem em face das transformações sócio-políticas e culturais. Ter como base a problemática «religião versus relações internacionais» remete-nos para uma abordagem relativamente recente, mas complexa. Porque, em primeiro lugar, tomar a religião como objecto de análise equivale a aceitar que a ela corresponde uma prática social específica, distinta de outras, no seio de cada sociedade e entre as diversas sociedades; em segundo lugar, implica também encarar as relações internacionais, não reduzidas ou consideradas como meras relações diplomáticas, mas num sentido mais envolvente e articulado com o construir da dinâmica interna das sociedades, isto é, valorizando níveis de relacionamento entre indivíduos, grupos e instâncias que fornecem uma dimensão supranacional e internacional às experiências individuais e colectivas no seio dessas mesmas comunidades a nível nacional, continental ou de certas áreas de influência internacional. As relações que dão consistência à existência e à vida da comunidade internacional, enquanto forma específica das relações humanas e entre sociedades distintas, não se esgota, nem se reduz às relações entre Estados, nem tem como única concretização o

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palco das relações diplomáticas. Outras dimensões menos jurídico-institucionais fornecem consistência ou são a efectivação de relações com uma intencionalidade relevante, permitindo a integração e a apropriação de aspectos essenciais do social e do cultural na realidade local e da vida internacional em geral. O campo oferecido pelo universo religioso é particularmente dinamizador deste tipo de relações. Por outro lado, estamos perante uma problemática que nos remete para a articulação de duas dimensões da construção social: a da sua afirmação e a da sua transformação2. Nesta perspectiva, entende-se como relações internacionais aqueles factores de dinamização entre os povos e as culturas que, acompanhando o que poderíamos referir como a progressiva internacionalização e mundialização da economia e das questões da segurança (a defesa e a paz), se situam na emergência e na afirmação de múltiplos protagonismos e de redes de comunicação. Na construção destas redes de influências e de confluências, a religião constitui um dos elementos fundantes e condicionadores mais importantes. E, se a este nível são importantes as relações institucionais, o nível das iniciativas individuais e de grupos não é menor3. Não se esgotando no plano das questões políticas, as relações internacionais remetem-nos para a análise do sistema mundial, onde o religioso tem o seu papel, quer no quadro dos diversos organismos e agências internacionais, quer no quadro da organização das Igrejas ou do movimento interconfessional e ecuménico. Assim, na elaboração do sistema internacional, o religioso pode apresentar três tipos de relacionamento: 1.o formas de confronto e de conflito; 2.o instâncias de dinamização e de cooperação em ordem à paz; 3.o afirmação do ecumenismo como expressão de um paradigma solidário de civilização mundial4. No campo religioso, a época contemporânea corresponde a uma ampla expansão dos universos religiosos e sucessivas recomposições internas no seio de cada uma das sociedades. Isto explica-se pelo facto dos factores religiosos não se apresentarem quase nunca em estado puro, mas se encontrarem imbricados em dinâmicas e problemáticas mais vastas5. No caso do catolicismo, a sua problemática é mais vasta do que a simples referência à Igreja Católica Romana, na sua acepção mais institucional ou nas formas de enquadramento da prática religiosa. O catolicismo romano não é só internamente um sistema complexo de relações internacionais, como participa também a vários níveis no sistema global de relações internacionais6. Para abordar o caso do Portugal contemporâneo, ter-se-á em conta a dimensão religiosa simultaneamente de uma forma restrita mas numa perspectiva abrangente: restrita, na medida em que se circunscreverá essencialmente ao campo do cristianismo7 e às suas formas socialmente organizadas; abrangente, porque tomará em consideração, sob vários planos, as implicações que socialmente decorrem da vivência religiosa. Considerando a vertente do cristianismo, importa sublinhar a diversificação progressiva do campo religioso do país na época contemporânea, caracterizada por uma lenta mas progressiva, e aparentemente irreversível, afirmação da legitimidade do pluralismo religioso8. Por outro lado, importa considerar que, até 1974, em termos nacionais, se apresentam duas dimensões, embora interpenetrando-se em muitas circunstâncias: a metropolitana e a ultramarina. O catolicismo contemporâneo português é tecido por múltiplos aspectos, convergentes e divergentes, os quais, inclusos no sistema das relações internacionais, permitem

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percepcionar relações de centro-periferia e compreender diversas formas de dependência interna e externa que atravessam a sociedade. Esta reflexão implica uma abordagem para além das relações diplomáticas, de Estado a Estado, verificadas entre o Estado português e a Santa Sé (o Estado do Vaticano), como é o exemplo das diversas experiências concordatárias contemporâneas, onde se patenteiam a natureza jurídica do catolicismo romano e os respectivos meios de afirmação da sua autonomia no seio da sociedade, bem como, por parte do Estado, a vontade, não só de delimitar os diversos campos de intervenção do religioso, mas também o de garantir a afirmação da sua soberania9. Nesta abordagem não procuramos definir etapas cronológicas distintas, mas privilegiamos um percurso temático, correspondendo a filões de pensamento e de actuação que, pela sua importância conjuntural, permitem estabelecer um encadeamento interpretativo. Assim, esta reflexão vai orientar-se sob dois eixos principais de análise: por um lado, uma identificação temática das questões que permitem estabelecer níveis de compreensão dessas relações, dos seus agentes e das experiências religiosas portuguesas; por outro lado, a análise de factores que potenciaram essas relações, e que em certa medida as determinaram. A – Identificação temática 1. A experiência de exílio e de refúgio Para o mundo religioso português existe uma primeira instância, geradora de um novo tipo de relações internacionais, provocada por uma percepção conflituosa e de confronto das relações sócio-políticas, iniciada com o processo de implantação do liberalismo. A este nível poderíamos referir vários momentos e circunstâncias importantes que marcaram os dois últimos séculos: o período de ruptura e implantação do regime liberal; o período republicano, sobretudo até 1917-1918; e os anos 60-70 deste século – período de oposição ao Estado Novo e à guerra colonial. Em qualquer um deles, com o seu processo e ambiente político-social específico, verifica-se a existência de personalidades que buscam no exterior condições de sobrevivência, devido a razões de natureza ideológico-políticas, mas também por motivações de carácter religioso, ou pelo menos condicionado por elas. Alguns desses conflitos tiveram também uma dimensão intra-eclesial, traduzida em certas formas de exílio. São ocasiões em que tais personalidades encontram ou buscam apoios em meios europeus ou extra-europeus10, onde certas experiências sobrevivem e se reformulam, encontrando no exterior condições de resistência que as tornam viáveis para um retorno posterior. Foi o caso do clero que tomou o partido político legitimista ou liberal; são os contactos que subsistem posteriormente e são, sobretudo, a formulação de mundividências definidoras de um determinado campo de intervenção na sociedade portuguesa oitocentista. A experiência de exílio de grande parte do Episcopado e de membros do clero, nomeadamente regular, no início da 1.a República, não só incrementou o estabelecimento de laços e de redes de apoio, como contribuiu também para a realização de novas iniciativas eclesiais. É o caso dos Jesuítas portugueses refugiados no Brasil que, através da sua actuação, deram origem à constituição de uma nova Província da Companhia nesse país da América do Sul11. Mais complexo será o período que abarca a década de 60 e o início dos anos 70 deste século. Em grande medida, certos sectores católicos, como também os de outras

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confissões cristãs, procuraram fora não só refúgio mas uma área de intervenção potenciadora de mutações internas. Isto é, desencadeou-se uma prática de denúncia da repressão interna, das atitudes antidemocráticas do regime e desenvolveu-se uma actividade persistente de questionamento em relação à guerra em África12. Pessoas e grupos agiram procurando o estabelecimento de laços de conhecimento, de redes pessoais de solidariedade, até formas práticas de subvenção. Importa assinalar que também Portugal foi procurado como local de refúgio. Em determinados momentos, como resultado da agitação revolucionária e da luta ideológico-política com incidências no campo religioso, chegaram pessoas provenientes de outros países. É o caso, por exemplo, da vinda de membros do clero refractário francês no final do século xviii13. Como também, durante o período da guerra civil espanhola e no contexto da Segunda Guerra Mundial, quando Portugal foi também procurado como local de estadia ou como suporte de redes de passagem. Nestas experiências, as diversas comunidades religiosas, mesmo que de forma pontual, constituíram referências ou possibilitaram a criação de laços de acolhimento a refugiados14. Estas presenças estrangeiras implicaram sempre algum grau de influência e permitiram estabelecer níveis de relacionamento e de cumplicidade. 2. A internacionalização da resistência como organização Os tópicos anteriormente referidos permitem-nos sublinhar a importância que adquiriu nestes dois últimos séculos o processo de internacionalização de um conjunto de redes pessoais que geraram, não só formas de resistência, mas se constituíram em dinâmicas organizativas com consistência própria. As resistências às revoluções, particularmente com a ocupação de Roma (1870)15 e a declaração da situação do «Papa prisioneiro», forneceram ao catolicismo não só uma vertente «ultramontana e restauracionista», mas catapultaram para a primeira linha a necessidade de congregar esforços supranacionais, dando expressão a um amplo Movimento Católico, referenciado à autoridade pontifícia e constituindo uma rede de experiências para essa «reconquista cristã» e mobilizadoras para a «defesa da Religião e da Igreja». São os Congressos Católicos nacionais e internacionais, a criação de Associações Católicas ou de Federações de Juventude que começaram a alimentar uma dinâmica internacional que conduziria à realização de Congressos Internacionais e à constituição de experiências como Pax Romana16. Trata-se de um conjunto de iniciativas e organismos que estão na base do movimento social católico, o qual correspondeu a uma parte significativa da dinâmica de socialização ensaiada pela Igreja Católica Romana numa sociedade em mutação, marcada pelo liberalismo e pela industrialização17. Esta dinâmica foi alimentada por uma rede de propaganda18 que, através da imprensa católica, procurou definir um combate na sociedade, legitimado numa opinião pública, que se procurava alargar, consolidar e centrar num conjunto de ideias mobilizadoras, referidas ao pensamento pontifício – pedra angular do sistema de relações do catolicismo romano. A própria vida internacional é, em grande medida, devedora desta rede de personalidades e de experiências. Esta dinâmica, se foi de resistência e de restauração, foi também de modernidade19, quer pelo que potenciou, quer porque favoreceu uma circulação de ideias e de experiências sem a qual dificilmente se percebe a mutação gerada no contexto do aggiornamento conciliar.

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3. A actividade missionária A actividade missionária, dimensão intrínseca do cristianismo, é indiscutivelmente um dos factores centrais, e dos mais dinamizadores, das relações internacionais dos universos religiosos presentes no Portugal contemporâneo. A necessidade constante sentida pelos diversos governos, monárquicos ou republicanos, de articular a soberania colonial com a actividade missionária, e a dificuldade ou a insuficiência de recrutamento interno de pessoal missionário, colocaram constantemente como pressão o recurso a missionários estrangeiros. Este recurso foi necessário sobretudo porque, com o anti-congreganismo, o tecido eclesiástico tradicional alterando-se profundamente, implicou a criação de novos institutos missionários, com recurso ao exterior. Por outro lado, a dinamização missionária católica, para além do quadro jurídico dos Padroados20, conduziu a uma pressão por parte da Igreja Católica Romana, em ordem a uma actividade missionária própria. Uma certa internacionalidade do catolicismo em Portugal deve-se em grande medida à necessidade, mesmo à urgência, desta actividade missionária. Se houve iniciativa por parte da Santa Sé, também o Estado português reconheceu a necessidade dessa abertura ao exterior em vários momentos: na conjuntura dos anos 80-90 do século passado, na sequência da conferência de Berlim e do Ultimatum inglês; depois, aquando dos conflitos mundiais de 1914-1918 ou 1939-1945, particularmente depois de 1945, quando aparecem múltiplas congregações masculinas e femininas, cuja abertura de casas no Portugal metropolitano se deve à necessidade missionária, resultante dos compromissos do Acordo Missionário (1940) e do interesse de recrutamento interno. Esta particularidade dos laços internacionais do congreganismo foi uma das fontes mais importantes de abertura e de consistência da intervenção de certos sectores do clero nas suas posições sobre a guerra colonial e em torno da problemática da descolonização21. O mesmo ocorreu com outras denominações cristãs. Desde a ruptura liberal que Portugal, e de uma maneira mais global a Península Ibérica, foi encarado como sendo uma região a missionar pelas correntes genericamente denominadas de protestantes. A presença do protestantismo, nas suas variadas formas, só se pode compreender verdadeiramente através da dinâmica missionária, enquanto geradora de redes de pessoas e de comunidades. Seria difícil, neste pequeno ensaio, apontar todas as vertentes que tal estudo sugere; no entanto, observemos alguns aspectos. Desde o primeiro surto de protestantismo na Madeira, sustentado pela dinâmica das Sociedades Missionárias da Escócia, e posteriormente pela Sociedade Bíblica22, que se assiste a sucessivas vagas de implantação de diversas correntes cristãs, as quais são também expressão de novas relações internacionais no âmbito do religioso em Portugal. Sem se ter em conta estas relações com o exterior, dificilmente se poderá compreender a natureza de muitos desses grupos quanto aos seus princípios teológicos, ao seu modo de actuação, ao tipo de pessoal missionário envolvido ou às fontes e aos meios de sustentação dessas várias iniciativas23. A própria evolução interna das diversas denominações, por vezes identificada com certas personalidades, resultou, em parte, dessa articulação entre o interno e o externo, motivando fracturas que são expressão de tendências teológicas e disciplinares distintas, corporizando áreas de influência internacional diversificadas24. Mais recentemente, a presença de novas Igrejas – como, por exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus (iurd)25 – tem que ser compreendida de um modo mais global,

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enquanto variantes de correntes que sempre atravessaram o cristianismo. Na cissiparidade26 eclesiológica herdada da Reforma – diversa da compreensão da sociabilidade como corpo, unidade vital, própria do catolicismo romano –, as correntes protestantes disputam concorrencialmente o terreno social, apresentando-se através da utilização dos meios gerados pela matriz económica contemporânea, marcada pela concorrência e pela acumulação de capital, considerados como formas de afirmação social. A presença em Portugal de muitas destas experiências foi potenciada por dois fenómenos convergentes. Por um lado, o contexto do mundo bipolar em que esses grupos religiosos surgiram expressando claramente uma atitude reactiva e de combate contra movimentos religiosos e sociais reivindicativos ou revolucionários, como tem ocorrido, por exemplo, em certos contextos da América Latina ou da Ásia. Por outro lado, estas experiências correspondem, na sociedade moderna, a uma afirmação do protagonismo individual que, através da conversão e da adesão a um grupo, possibilita uma identificação e fornece um recurso securizante, tão próprios de qualquer expressão religiosa. Nas sociedades marcadas pela industrialização ou pós-industrializadas, estes grupos constituem-se assim como que uma resposta à «perda de identidade», à «perda de valores», às manifestações de diluição e de anomia sociais, ou ainda à «marginalização» social e ao pavor dos «deserdados». Estes aspectos, considerados como perigos para o indivíduo e para a sociedade, funcionam como situações a evitar, conduzindo à presença de sectores sociais em mobilidade, em muitas dessas comunidades, nelas se expressando apelos a que essas expectativas se tornem sucesso. E este horizonte de realização não será outra coisa senão certa percepção da salvação religiosa, tomada como uma das suas variantes secularizadas. 4. A guerra e a paz internacional Na época contemporânea, em torno da guerra e da paz desencadearam-se novas atitudes de consciência individual, de cooperação e de intervenção supranacional. É certo que alguns sectores encararam ou procuraram ver em determinadas atitudes beligerantes a expressão da concorrência entre potências confessionalmente distintas, mas a intervenção humanitária e a afirmação da paz como tarefas a promover – quer em relação às políticas dos diversos governos, quer contra as economias belicistas (como por exemplo a produção de armamento, ou mais recentemente a promoção da não-violência) – levou à cooperação de personalidades ou movimentos supranacionais e mesmo interconfessionais27. Foi em torno destas questões que se assistiu, sobretudo no século xx, a uma intervenção que, juntando personalidades vindas de confissões cristãs distintas, favoreceram os primeiros passos no movimento ecuménico. Para além das divisões doutrinais ou disciplinares que as separavam ou separam historicamente, desencadeou-se uma aproximação entre tradições distintas, impulsionando-se, posteriormente, outros níveis de compreensão e de relação, mesmo do ponto de vista mais institucional, entre as autoridades e as cúpulas das diversas confissões. Ainda que de uma maneira residual ou tangencial, este nível de relações também se manifestou na sociedade portuguesa. O chamado ecumenismo de base, ensaiado sobretudo na conjuntura resultante do II Concílio do Vaticano, procurando alargar e entrosar certas dinâmicas de oposição política e de denúncia da política colonial do governo português, nomeadamente no respeitante à guerra, aproximou personalidades portuguesas e encontrou solidariedades estrangeiras.

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Por outro lado, se considerarmos este nível de relações internacionais, no âmbito mais alargado da sociedade ocidental e europeia, inicia-se no século xix e encontra novas etapas com a guerra de 1914-1918 e com a resistência aos regimes totalitários fascistas e comunistas, que conferem também outros tantos matizes a esse processo de convergência e de organização de relações de âmbito internacional28. O grupo Pragma, criado em torno da divulgação da encíclica Pacem in Terris de João xxiii, surge como pretexto de uma dinamização interna, da constituição de uma rede de influências críticas no seio da Igreja Católica com forte sentido de oposição política, a partir de motivações religiosas que forneceram a base de alargamento dessa área de influência29. Esta cooperação permitiu encontrar e fazer cooperar personalidades de confissões religiosas distintas, mas também «homens de boa vontade», de campos ideológicos e políticos diversos daqueles onde tradicionalmente os católicos se situavam e se entendiam como referência dominante. Esta temática sobre a guerra e a paz tornou-se crucial durante a década de 60 e, com particular relevância, nos anos que antecedem o 25 de Abril de 1974. Verificou-se uma pressão e uma determinação exteriores em relação a sectores religiosos portugueses, particularmente aos católicos, no respeitante à persistência da guerra colonial. A posição internacional contra a política colonial portuguesa, particularmente depois do Concílio tornou-se um factor de influência sobre os meios católicos portugueses, colocando-lhes exigências de confronto com a realidade vivida no país. A consciência internacional sobre a guerra e a paz produziu uma influência determinante na consciência de determinados católicos e em certos sectores da opinião religiosa, contribuindo para alterar paulatinamente uma tendência de identificação da posições dos católicos com a defesa do «império colonial»30, conduzindo-os à problemática da descolonização. Estas pressões traduziam-se em factos concretos como as dificuldades colocadas às candidaturas de portugueses para certas responsabilidades ao nível dos movimentos internacionais católicos31, nomeadamente, pelos representantes das Igrejas africanas. Também importa destacar, na ambiência anglicana, o respeito e o apoio à actividade de certos bispos como Luís Rodrigues Pereira (bispo da Igreja Lusitana na metrópole) ou Daniel Pina Cabral (bispo dos Libombos em Moçambique), ou ainda o suporte dado em Inglaterra à denúncia dos massacres de Wyriamu32. Em grande medida, foi através deste tipo de dinâmica que, em certos meios, mais se desenvolveu uma consciência anticolonial nos finais dos anos 60 e princípios dos anos 70. Essa consciência, antes de ter uma componente específica ou primariamente política, arrancou e fundamentou-se numa exigência decorrente das motivações religiosas. 5. Descolonização e desenvolvimento O envolvimento internacional não se esgota unicamente num movimento do interior para o exterior. Circunstâncias houve, e há, em que esse movimento tem sentido inverso. A experiência de outras Igrejas nacionais e as posições mais gerais da Santa Sé sobre determinados problemas deslocaram as vivências, as práticas e impulsionaram novos contactos, novas prioridades. No caso do catolicismo romano pode sublinhar-se a existência de três aspectos determinantes neste processo: a evolução do pensamento social (também conhecido como doutrina social da Igreja); a doutrina e a prática missionária católicas na época

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contemporânea; e a realização do II Concílio do Vaticano, sobretudo pelas expectativas introduzidas e pelas variantes eclesiológicas desencadeadas. Sem a consideração destas vertentes no seu conjunto, dificilmente se perceberá com rigor a actuação de personalidades como D. António Ferreira Gomes, D. Sebastião Soares Resende e D. Manuel Vieira Pinto ou ainda de outros padres e de leigos católicos, a evolução programática e prática de certas congregações ou movimentos, como no caso da Acção Católica Portuguesa, assim como a evolução e recorrência de sectores católicos de outras sensibilidades, normalmente designadas por tradicionalistas. A problemática da descolonização constituiu um ponto central neste processo. Para muitos católicos, as suas motivações primeiras não eram estritamente políticas mas essencialmente religiosas, na medida em que davam expressão a expectativas de justiça social, de uma sociedade correctamente constituída. Muitas vezes essas preocupações e a insistência nelas decorria do que era dito e escrito noutros ambientes, nas Igrejas de outros países. Por isso mesmo, as posições de certos sectores católicos portugueses encontraram eco em muitas instâncias estrangeiras. O magistério de João xxiii e de Paulo vi conferiu certa legitimidade às posições católicas mais críticas. Uma experiência pouco conhecida, mas com alguma importância, refere-se à constituição do Movimento Justiça e Paz33. Este movimento constituiu a uma plataforma que procurou dar visibilidade à convergência de vários sectores católicos sensíveis ao problema da justiça e da paz em articulação com a questão da guerra colonial, cuja motivação principal se centrava na afirmação de que «a paz é possível»34. Depois do II Concílio do Vaticano até 1974, só existiu uma Comissão Justiça e Paz, de âmbito diocesano, criada no Porto por D. António Ferreira Gomes, depois do seu regresso do exílio em 1969. Este Movimento Justiça e Paz correspondeu à preocupação da existência de uma instância católica crítica que, não tendo partido do Episcopado, acabou por corporizar uma plataforma de entendimento e de acção, nela fazendo convergir várias experiências e sensibilidades católicas35. Desde o seu início, na fase final do marcelismo, esta plataforma procurou também estabelecer contactos internacionais, nomeadamente com a Santa Sé36. 6. O problema da democracia Também a este nível, muito está por conhecer e por estudar. Sem dúvida que a evolução doutrinal do catolicismo, bem como a realidade de outros países, suscitaram novas atitudes internas, sobretudo entre sectores da elite eclesiástica e laical. Se é certo que a questão da democracia – na sua vertente social, popular e orgânica, enquanto alternativa de sociedade37 – surgira como formulação católica de contestação ao regime liberal no século xix e às suas políticas radicais, ela contribuiu para tornar a questão da liberdade, manifestada no exercício do voto como expressão da cidadania dos católicos, num desafio fundamental à sua união. A fractura partidária surgida entre os católicos constituiu uma perturbadora experiência, de certo modo traumática para os católicos, quer na fase final do regime monárquico, quer durante a 1.a República38. Em Portugal, este percurso foi claramente influenciado do exterior, através da imprensa e daquelas experiências que noutros países patenteavam um protagonismo social e político dos católicos – como, por exemplo, na França, na Bélgica, na Alemanha, em Itália ou em Espanha –, considerado como mediação capaz de conferir uma visibilidade pública, social e religiosa, que a sociedade moderna parecia pretender negar à Igreja.

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Importa referir, neste contexto, algo que se encontra completamente por estudar, respeitante à figura de António de Oliveira Salazar: o facto de ele ter sido encarado por certos meios católicos europeus, particularmente durante os anos 30, como o modelo inspirador de uma política católica ou inspirada pelo catolicismo, antiliberal e anticomunista39. Neste campo colocam-se questões significativas, particularmente depois de 1945, à medida que se formulou a hipótese da intervenção política por parte dos católicos e se equacionaram as possíveis formas organizadas dessa intervenção. Também neste caso o suporte exterior existiu, mesmo quando essas experiências não adquiriram posteriormente consistência, como aconteceu com as diversas tentativas de constituir uma formação política democrata cristã no país40. Neste contexto, importa sublinhar a importância do clero que fora estudar no estrangeiro, nomeadamente em Itália nos anos 60. Algumas dessas personalidades, do clero secular e regular, não só contactaram com a «primavera conciliar», como se confrontaram com as utopias do final da década provocadas pela recomposição da Democracia Cristã da «era Moro» e do socialismo depois da «primavera de Praga», particularmente no «comunismo à italiana», o eurocomunismo gramsciano de Berlinguer. Em torno de algumas daquelas figuras estabeleceram-se redes de contactos e de informação entre o exterior e o interior do país, cujo estudo se encontra por fazer. O ambiente de abertura eclesial, social e política ganhou internamente uma consistência progressiva com o desenvolvimento doutrinal do magistério pontifício, nomeadamente com a Carta Apostólica Octogesima Adveniens (1971)41 ou com a realização e declaração final do Sínodo dos Bispos de 1971 sobre «a Justiça no mundo», confirmado por alguns documentos importantes do magistério francês42 e espanhol43, divulgados no país em 1973. Sem se compreender esta interacção dificilmente se poderá captar o significado, o acolhimento e o acatamento, por parte dos católicos portugueses em geral, de certos documentos do próprio Episcopado português que procuraram marcar viragens sem retorno44. Este acatamento não foi isento de tensões e alguns conflitos abertos, mas foi de algum modo sustentado por uma rede de pessoas, clero e leigos, e também por parte de certa opinião pública, cuja consciência fora moldada pela evolução patenteada neste percurso. 7. O fim do sistema bipolar ou a questão da laicidade45 Com o processo de democratização do país, iniciado em Abril de 1974, tornou-se mais patente na sociedade portuguesa a pluralidade e a concorrência de diferentes propostas sociais, nomeadamente no campo religioso. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, que, no entanto, se fazia sentir a pressão da presença organizada de outros grupos confessionais, correspondendo a processos de recomposição religiosa no seio do protestantismo. A importância do pentecostalismo, e de certas correntes apocalípticas, permitiram a formulação de «novos grupos de identificação» numa sociedade em mutação, onde – como no caso português – o catolicismo era encarado como parte do statu quo. No início do século xx, o protestantismo histórico encontrava-se em processo de consolidação e, apesar das dificuldades próprias da sua dimensão minoritária, conseguiu implantar-se em determinados núcleos. Durante os anos 30 surgiu o pentecostalismo – um carismatismo reformador de origem luterana – através da constituição das

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Assembleias de Deus, ao que se seguiu, depois da Segunda Guerra Mundial, outras correntes da fronteira crística, como as Testemunhas de Jeová ou os Adventistas do Sétimo Dia. Algumas destas correntes tornaram-se maioritárias no seio do cristianismo português não-católico. Este desenvolvimento situou-se no desenho da bipolaridade mundial, onde a fractura social, ainda que valorizando sempre o antagonismo entre católicos e protestantes, estava recentrada no conflito: civilização ocidental cristã versus bloco comunista. É, pois, posteriormente à Segunda Guerra Mundial que se formula lentamente a possibilidade da pluralidade religiosa no país: primeiro, pela pressão da missionação exterior – nomeadamente via Estados Unidos da América; e depois, pelo progressivo consentimento mental resultante da abertura em relação à liberdade religiosa suscitada no contexto do II Concílio do Vaticano. Esta dinâmica acelerou-se com o Portugal democratizado mas não sem resistências, dúvidas e acusações. A insinuação continuada, visível e activa de minorias religiosas perturba e lança a desconfiança num país em que a reforma da sociedade estivera fortemente marcada por uma visão dualista e bipolar; ou essa reforma era acompanhada pela reforma da própria Igreja Católica (ver o chamado «progressismo católico»), ou pela redução do significado social desta (ver a «descristianização», ligada à perda de prestígio social da Igreja Católica). De um lado e do outro destas posições, a tendência era encarar negativamente o surgimento dessas novas Igrejas e movimentos religiosos, ou porque encarados como manus americana ou porque expressão de conservadorismo mental e social. Através de missionação estrangeira – norte-americana via Brasil, ou mesmo brasileira, transportando uma mundividência marcadamente dualista –, o que se manifesta é o aparecimento de uma teologia ordenadora fortemente fixista, mas ao mesmo tempo securizante em face de uma sociedade compreendida como decadente ou caótica46. O conteúdo ideológico anticomunista e anti-socialista está presente em muitos desses grupos, mesmo se a sua formulação não é claramente política ou se expressa por uma indiferença à participação cívica e política. Esta emergência da pluralidade religiosa não deixou contudo de colocar desafios aos protagonistas do processo de democratização e à busca de hegemonização que este implica. É certo que esta concorrência se estabeleceu entre diversas minorias e a maioria tradicional e histórica que é o catolicismo. De certo modo, depois de 1974, a concorrência entre a Igreja Católica e as forças sócio-ideológicas que viam nela um perigo encontrava-se relativizada pelas mutações introduzidas pelo regime democrático. O regime de Separação, no quadro do acordo concordatário de 1940, parecia assim dar garantias a ambas as partes. Porém, esta situação não é tão pacífica. Importa considerar o comportamento das outras Igrejas, as reivindicações católicas em face dos vários poderes governativos, nomeadamente a sua argumentação, ou ainda o comportamento de certas correntes religiosas que desencadearam um debate em torno da laicidade e da possibilidade do Estado português encontrar formas de entendimento, de cooperação e de controlo das diversas confissões religiosas presentes no país. Problemas em torno do ensino da Religião nas escolas, da programação religiosa nas televisões públicas, do controlo das rádios locais, das subvenções às Igrejas e à construção de lugares públicos de culto, permanecem como questões em aberto, provocando por vezes atritos de diversa natureza.

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O espaço do religioso em Portugal passou assim a estar referenciado a uma multiplicidade de centros religiosos47. Com o fim do sistema bipolar, verifica-se uma certa secundarização do investimento na identidade católica do país, através da assunção, não sem reservas, da pluralidade religiosa da sociedade. Esta pluralidade surge como expressão legítima da democracia social e política, expressão de um modelo civilizacional centrado na liberdade, no mercado e na defesa dos Direitos do Homem, triunfante e superando o conflito de blocos. B – Factores potenciadores das relações internacionais a nível religioso Se a natureza das instâncias religiosas e as circunstâncias nacionais e internacionais marcam este tipo de relações internacionais, outras dimensões devem ser referidas como potenciadoras dessas relações. Correspondem a níveis de realização das pessoas e das instituições que, em certa medida, favoreceram a manutenção ou o aparecimento de novas formas de relacionamento. Perante núcleos importantes da sociabilidade religiosa, cuja vertente internacional, como referimos anteriormente, é intrínseca ao próprio cristianismo nas suas mais variadas formas, encontramos factores que as potenciam e contribuem para definir a realidade portuguesa quer no ambiente nacional, quer internacional. 1. Os novos protagonismos Muitas vezes os estudos sobre a articulação do religioso com o conjunto da sociedade circunscrevem-se ao protagonismo da autoridade eclesiástica. Entende-se este facto pela natureza com que o catolicismo romano historicamente sublinhou a centralidade da mediação clerical, o papel histórico do Papado como visibilidade da autonomia da Igreja e a reivindicação do reconhecimento jurídico da autoridade episcopal48. Porém, esta forma de encarar a presença da organicidade religiosa secundariza aspectos centrais no desenvolvimento dos universos religiosos contemporâneos, até porque, como já foi referido, o Portugal contemporâneo caracteriza-se pela presença de outras correntes religiosas, nomeadamente cristãs, que se têm vindo a multiplicar. Mas também porque o catolicismo oferece níveis de metamorfose, onde se patenteia progressivamente uma diversificação de protagonismos. O mais relevante é sem dúvida o do laicado, inicialmente entendido como aqueles católicos – uma elite não eclesiástica – que desenvolvem uma acção e uma intervenção na sociedade procurando contrariar a secularização e a laicização desta49; depois, sobretudo com o II Concílio do Vaticano, essa actuação surge como vocação, como responsabilidade e apelo, extensiva a todos os cristãos comuns pela afirmação da sua presença nas «realidades terrestres» para aí realizarem autenticamente a missão da Igreja50. Esta mutação eclesiológica contemporânea foi acompanhada por uma intensa dinamização internacional51. Mas este protagonismo, tecedor de relações pessoais e institucionais, não pode ser isolado de outras dimensões, nem encarado unicamente na perspectiva das famílias teológico-ideológicas – teologia política, teologia das realidades terrestres, hermenêutica bíblica ou teologia da libertação, entre outras – ou das suas vertentes político-sociais. Associado a estes novos protagonismos, importa incorporar e articular as correntes de espiritualidade e os núcleos devocionais, em torno dos quais se definem prioridades, relacionamentos e compromissos. A título de exemplo, basta enumerar alguns que foram

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marcando e marcam o universo mental de muitos circuitos católicos: Lourdes, Fátima, Taizé ou, mais recentemente, Czestochowa (na Polónia), ou Medjugorje (na Jugoslávia). Não se trata apenas de lugares de peregrinação, onde se poderiam constatar manifestações de um universo devocional tradicional; mas cada uma dessas referências transporta, pela sua conjuntura e pela especificidade da sua mensagem, uma evolução ou deslocação do próprio universo religioso. Por outro lado, para o catolicismo português, cada uma destas experiências corresponde a uma complexa formulação de redes, algumas informais e ocasionais, outras com uma consistência que se apresentam como verdadeiros circuitos capilares da realidade espiritual e eclesial de importantes e dinâmicos núcleos do catolicismo em Portugal. Abordemos três exemplos: Lourdes, Fátima e Taizé. São três referências distintas cronologicamente e também quanto ao seu alcance sócio-eclesial. Lourdes corresponde à afirmação de uma identificação fortemente católica, num contexto do catolicismo integral em face do mundo moderno. Torna-se, por excelência, um centro mobilizador e convergente do catolicismo romano. Desde a segunda metade do século xix, constitui uma referência e um local de peregrinação, onde se cruzam o popular e as elites, para onde convergem peregrinos de toda a Europa52, possibilitando os mais variados contactos informais e formais. Aí residiu o bispo do Porto em determinado período do seu exílio, aí se reúnem, pelo menos uma vez por ano, católicos portugueses com outros de várias nacionalidades, pertencentes a várias organizações e movimentos. Apesar de se situar no sul da França, os bispos franceses realizam aí as suas assembleias plenárias. Em muitos aspectos, Lourdes apresentou-se como uma referência para a organização do espaço religioso que é Fátima. Fátima constitui certamente a dimensão mais internacional do catolicismo português contemporâneo. A sua afirmação realizou-se no espaço português continental, ultramarino e da diáspora, mas tornou-se um autêntico fórum internacional autenticado e legitimado por várias intervenções pontifícias. Em determinados momentos, a mensagem de Fátima ofereceu uma autêntica proposta ideológico-religiosa: a paz, o anticomunismo53 e, necessariamente, o antiprotestantismo54. Pela sua centralidade mariológica, claramente antiprotestante, tem contribuído para a definição e o reconhecimento do espaço religioso português como católico. Diversa é a importância de Taizé, centro de espiritualidade ecuménica, pioneiro de um ecumenismo de base, mas também institucional, na Europa e em muitas regiões do mundo, que, desde os finais dos anos 60, regularmente mobiliza sobretudo jovens em busca de uma vivência espiritual e de convívio com outros de continentes e culturas diversas. Expressão de uma renovação da vida cristã, no contexto da problemática contemporânea da juventude, é responsável directa pela emergência de novas formas de sociabilidade e de sensibilidade religiosas, originando uma multiplicidade de grupos por todo o país. 2. Meios familiares e de promoção Os meios familiares são importantes não só como espaços de reprodução do universo religioso como da sua articulação social. Eles estão na base de muitas das formas de dinamização e de organização religiosas no Portugal contemporâneo. Alguns desses exemplos situam-se no aparecimento de Congregações e Igrejas protestantes55 ou na fundação de Congregações religiosas femininas católicas, como seja

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o caso das Dominicanas de Santa Catarina de Sena em torno de Teresa de Saldanha (1837-1916)56 ou das Servas de Nossa Senhora de Fátima por Luiza Andaluz (1877-1977)57. A fundação destas duas congregações – outras fundações portuguesas serviriam também de exemplo – patenteia a existência de uma rede de relações e influências que dão corpo a um projecto pessoal, mesmo em circunstâncias difíceis. Os movimentos como o Noelismo, o Escutismo, a Acção Católica Portuguesa ou mais recentemente experiências como o Opus Dei, o Movimento de Casais de Nossa Senhora, o graal, os Focolares, o Movimento Schoenstatt, movimentos carismáticos ou outros, apontam para pessoas que através do protagonismo interno acabam por estabelecer relações exteriores e por ocuparem, muitas vezes, funções de relevância internacional. Desconhece-se com rigor a amplitude desta presença internacional de católicos portugueses, mas constituirá certamente uma realidade não negligenciável. Estes circuitos correspondem também a instâncias de promoção e de sustentação, no sentido em que possibilitam a afirmação de protagonismos cujo enraizamento e alcance se situam para além dos condicionalismos ou das possibilidades nacionais. Pode-se, a título de exemplo, referir ainda dois casos. O primeiro refere-se a Fernando Belo, padre-operário no Barreiro, quando no final dos anos 60 vai para Paris. Nele se conjuga uma multiplicidade de factores: refúgio, estudo, relações com a Juventude Estudantil Católica (jec) e a Juventude Operária Católica (joc) francesas, oposição ao regime, luta anticolonial. A sua obra58 e o respectivo impacto no estrangeiro, no início dos anos 70, expressa a complexidade destas relações, sendo certo que, neste caso, as repercussões em Portugal são bem mais escassas. O segundo, ainda mais recente, prende-se com a fundação da organização não-governamental oikos. Se a sua constituição corresponde à congregação de um conjunto de sectores da sociedade portuguesa, não deixa de repercutir a influência do seu impulsionador e dinamizador, Agostinho Jardim Gonçalves, padre e antigo assistente da Liga Operária Católica (loc), do Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos (mmtc) e membro do Comité Catholique contre la Faim et pour le Dévelopement (ccfd), em França, na segunda metade dos anos 70 e nos anos 80. Ele mesmo apoiara uma pequena experiência, denominada Testemunho e Solidariedade, que nos finais dos anos 70 procurou dar corpo a uma instância de cooperação entre experiências cristãs portuguesas e outras de vários continentes. Este núcleo reunia antigos membros portugueses que participaram com responsáveis de organismos católicos internacionais como o mmtc, o Movimento Internacional da Juventude Agrária Rural Católica (mijarc), a Juventude Operária Católica Internacional (joci), a Juventude Estudantil Católica Internacional (jeci) e o Movimento Internacional de Estudantes Católicos (miec), oriundos do que normalmente se designa por Organizações Internacionais Católicas. Muitas destas redes relacionavam, e continuam a relacionar, pessoas católicas ou oriundas desses meios e cujo posicionamento social e político-ideológico encontravam nessas mesmas redes um suporte e uma legitimidade para actuação em certos meios portugueses. Encontrava-se no exterior um apoio que nem sempre era evidente ou proporcionado pelas correntes dominantes do «catolicismo interno», isto é, nacional e mais institucional, ou porque encontravam oposição, ou porque não se apresentavam como prioridades deste catolicismo. Nas correntes cristãs minoritárias este desempenho também é significativo. Alguns portugueses têm desempenhado funções internacionais quer no Conselho Ecuménico das

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Igrejas, quer na Federação Universal das Associações Cristãs de Estudantes (fuace – wcsf)59. Este protagonismo permitiu uma abertura de horizontes pessoal e sectorial, como também conferiu a certas pessoas um peso e uma autoridade, ainda que muitas vezes circunscritas temporalmente, que contribuíram para dar alguma consistência, enquadramento e projecção a experiências minoritárias portuguesas. 3. Estruturas religiosas de cooperação Como ficou assinalado anteriormente, ocorre que o desempenho pessoal tem muito a ver com estruturas e organizações, enquanto formas de prática da crença e enquanto espaços de sociabilidade religiosa. Congregações, movimentos, diversos fora de dinamização ao nível continental ou mundial entre paróquias, episcopados, movimentos e serviços, são níveis importantes de cooperação que, particularmente no contexto católico do pós-Concílio, contribuíram para introduzir em Portugal elementos de renovação e foram instâncias onde católicos portugueses desempenharam determinada presença, contribuindo também para a imagem exterior do país. O mesmo se pode afirmar em relação ao protestantismo português no âmbito, por exemplo, do Conselho Europeu e Mundial das Igrejas ou da Aliança Evangélica Europeia e Internacional. Nestas instâncias desenvolvem-se redes de circulação de pessoas de informações e desenvolvem-se estruturas de cooperação. Ainda ao nível das estruturas religiosas como forma de cooperação, importa destacar a vertente missionária. Religiosos consagrados ou cristãos comuns deram corpo nestes últimos anos a experiências mobilizadoras entre a realidade portuguesa e de outros países, nomeadamente nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Com motivações religiosas, essas experiências exprimem uma nova concepção de parceria nas relações entre Igrejas de diferentes países, envolvendo novas gerações, como acontece recentemente, por exemplo, com as organizações Leigos para o Desenvolvimento ou ainda O Regresso das Caravelas60. 4. Pessoal religioso e circuitos de formação Subjacente a este estudo da religião na sua variante das relações internacionais, deve ser destacada a importância do pessoal religioso (eclesiásticos, pastores, leigos, missionários, etc.) não só através da sua acção e das redes por eles desenvolvidas, mas dos circuitos nos quais foram constituídos ou receberam formação. Esta análise está por realizar, mas torna-se importante, quer para o catolicismo, quer para todas as outras correntes religiosas, nomeadamente a partir da observação dos lugares por onde circularam: noviciados, seminários, residências, encontros, colóquios, etc. Trata-se de considerar, em primeiro lugar, os estudos formais, de natureza académica, mas não só. As Igrejas dispõem de uma rede complexa e heterogénea de núcleos de formação. O exemplo do catolicismo é expressivo e extenso: a importância do Colégio Português em Roma61, por onde tem passado muito clero português e de outros países desde os finais do século xix; grande parte das figuras que ocuparam e ocupam o episcopado português neste século aí fizeram estudos, frequentando as várias Universidades e Institutos Pontifícios. Outros centros marcaram e continuam a formar elites de eclesiásticos, como também, mais recentemente, de leigos, nomeadamente: a Universidade de Lovaina, os Institutos Católicos de Paris, de Lyon ou de Toulouse (ambiente francófono); as Universidades de Salamanca e de Navarra ou Instituto Leão xiii em Madrid (ambiente espanhol); centros de estudo ou universidades no Canadá ou

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nos Estados Unidos, ou ainda a Escola Bíblica de Jerusalém. O ambiente alemão implicaria uma atenção própria pela influência directa ou indirecta que constitui como referência de muitos teólogos católicos, quer ao nível da sua formação universitária, quer pelo apoio que certas Ordens ou Institutos religiosos facultam aos seus membros portugueses. A frequência de todos estes centros revela uma diversificação, nem sempre devidamente considerada, correspondendo por vezes a épocas diferentes e patenteando sensibilidades distintas, muitas vezes subliminarmente presentes no debate e nas tensões existentes em torno de algumas personalidades ou questões. É curioso verificar que algum «progressismo católico» se exprimiu referenciado ao ambiente do pensamento católico francês (ou através dessa via), enquanto a teologia ligada aos centros mais institucionais tem valorizado os ambientes italiano (romano) e alemão. Porém, esta aparente dicotomia é bem mais complexa, pois nenhum destes meios culturais é homogéneo e as diferenciações passam muito pela percepção de como nesses ambientes a própria recomposição, doutrinal e social, do catolicismo se realiza. O caso da influência brasileira, talvez menos formal, tem também grande significado62. Atinge o campo informal das congregações, da literatura religiosa propriamente brasileira e outra, através das traduções, nomeadamente do alemão, mas com relevância para certas áreas do protestantismo ou dos chamados «novos movimentos religiosos». Para muitas denominações cristãs o universo teológico brasileiro é relevante quer como fonte, quer como veículo de transmissão. 5. Migrações O fenómeno migratório foi e é particularmente relevante na sociedade portuguesa contemporânea, com grande impacto no campo religioso. Tem constituído um factor incentivador de profundas transformações materiais e mentais, inscrevendo-se no intercâmbio fecundo, interior-exterior, de pessoas, de experiências e de ideais. Como já foi assinalado, a divulgação em Portugal de outras experiências religiosas deve-se à imigração de pessoas, proveniente nomeadamente do ambiente cultural-religioso anglo-saxónico, desde o que se considera a primeira geração protestante – desenvolvida através de uma intervenção filantrópica e educativa promovida no ambiente de comunidades estrangeiras, irradiando para a população portuguesa. Também a emigração de madeirenses, no seguimento da perseguição aos primeiros evangélicos da ilha da Madeira, levou a que houvesse influência portuguesa no Brasil, nas Antilhas e na América anglo-saxónica de uma corrente protestante que, num segundo momento, retornaria pela via brasileira a ter as suas repercussões em Portugal63. Não se trata, portanto, de um processo exclusivamente decorrente da vontade missionária, mas da circulação de pessoas resultante de pressões sócio-políticas e, em muitas circunstâncias, de pressões económicas. Não se pense que tal se refere unicamente à expansão das várias correntes protestantes. Também a emigração teve assinalável impacto na dinâmica do catolicismo. Apesar da emigração ser encarada inicialmente de modo negativo pelo magistério eclesiástico, considerado como expressão da desagregação social e de valores, acusado de constituir um perigo porque gerador de descristianização das pessoas e das comunidades, as necessidades económicas impuseram-na. E na diáspora portuguesa é assinalável a presença de manifestações religiosas de tradição portuguesa, acabando por incutir alguma influência noutros ambientes cristãos: as festas do Espírito Santo e do Senhor Santo

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Cristo, a devoção a Nossa Senhora de Fátima, etc. Em muitos países e continentes é assinalável um conjunto de manifestações religiosas que se constituíram verdadeiramente como expressão de uma identidade minoritária, confrontada com outras tradições e culturas. A própria pastoral das migrações constitui um vector organizativo e mobilizador de muitas energias no catolicismo português, com uma rede de assistência religiosa, imprensa, peregrinações e com algum peso na angariação de fundos para as obras e actividades da Igreja Católica em Portugal. Também são de realçar algumas consequências da emigração em certas regiões da raia portuguesa, nomeadamente nalgumas dioceses do interior – o caso da Guarda é revelador –, onde a guerra colonial e, sobretudo, a emigração decapitaram sucessivamente a liderança do laicado emergente em certos movimentos, como nos casos da Juventude Agrária Católica (jac) e da Juventude Operária Católica (joc). O estudo dos movimentos de Acção Católica não pode interpretar certas mutações ocorridas nesses anos escamoteando o impacto da emigração. Porém, tem de se assinalar que essa mobilidade introduziu uma forte diferenciação relativamente às raízes das pessoas, verificando-se alterações das práticas religiosas, forjando novos níveis de identidade e redes sociais. Algumas destas transformações facilitaram o aparecimento de novas sensibilidades religiosas. Mesmo no caso do catolicismo, a mobilidade humana favorecida pela emigração conduziu ao aparecimento de novas experiências devocionais e organizativas, de novas formas de enquadramento religioso64. 6. Meios de subsistência A dimensão da sustentação económica do religioso é central na compreensão da sua penetração social, sobretudo para a análise da sua consistência. As práticas religiosas geram bens e necessitam de importantes meios para a subsistência dos seus agentes e instituições. A observação dos mecanismos e redes de funcionamento económico é importante porque ajuda a esclarecer forças e debilidades das experiências religiosas no seio de uma sociedade onde a economia se tornou tão determinante. Todos esses estudos estão por fazer. Algumas dessas redes são importantes formas de cooperação internacional. Assistimos actualmente à tentativa da União das Misericórdias Portuguesas criar instituições similares em países de emigração portuguesa. A caritas, nacional e internacional, foi e é uma rede de contributos pessoais, de meios financeiros e materiais importantes na área da solidariedade social, sustento do aparecimento dos Centros Paroquiais no país, após a Segunda Guerra Mundial, particularmente nos anos 50 e 6065. Depois do 25 de Abril a Igreja Católica em Portugal conheceu ajudas significativas de fundações estrangeiras, particularmente alemãs, como o caso de misereor. Também a circulação de fundos através das Congregações religiosas possibilitou e possibilita obras sociais, construção de casas e templos, bolsas de estudo, estágios de portugueses no estrangeiro, apoio a publicações, etc. Há instituições que possuem redes de amigos que se cotizam no estrangeiro para angariar fundos, quer entre as populações de origem portuguesa, quer entre as comunidades que se encontram motivadas para essa ajuda66. Esta área de reflexão é delicada para a investigação, pois, para o senso comum, o plano religioso é o universo do gratuito; opõe-se ao económico, considerado como material e

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interesseiro, vendo nele possibilidades de manipulação social. Porém, nenhuma tarefa humana e social existe sem uma dimensão económica, a que as experiências religiosas e os seus diversos níveis de organizção não escapam; o modo de funcionamento destes tem a ver com as formas encontradas de subsistência e sustentação económica. Em grande medida, muitas experiências religiosas em Portugal, no seio do catolicismo, do protestantismo ou nos chamados «novos movimentos religiosos» são fortemente dependentes da cooperação exterior, de outras Igrejas, «as dos países mais ricos». Esta dependência aponta para a dimensão mais periférica de Portugal, também no âmbito do universo religioso, e encontra razão mais genérica em certos comportamentos dos portugueses que desenvolveram hábitos e expectativas centradas nas ajudas do Estado. No caso da Igreja Católica, esta expectativa fundamenta-se nos seus direitos históricos e na reivindicação dos bens considerados espoliados em diferentes momentos históricos; porém, esta dependência resulta, a certos níveis, da participação pouco consistente dos crentes e em assumir certos encargos como seus67. Conclusão Neste artigo referiu-se um conjunto de tópicos susceptível de conduzir a uma investigação ampla e complexa, que, em larga medida, e em meu conhecimento, ainda se encontra por realizar. Um estudo e uma investigação que permita também determinar, com maior rigor, o tipo de análise aqui proposto. Ainda que a título meramente sugestivo, apontaram-se quatro níveis de entendimento destas relações: relações pessoais, redes formais ou informais de contacto e de solidariedade, relações entre organismos e participação em estruturas internacionais. A nível teórico e metodológico para a análise das relações internacionais no que diz respeito ao universo religioso, procurámos atender aos seguinte aspectos: 1.o Cada experiência religiosa presente na sociedade faz parte de um sistema complexo de relações internacionais que alimentam a sua própria existência. Esta é certamente a principal destrinça entre as chamadas grandes religiões e as formas etnocêntricas do religioso. Cada universo religioso, directa ou indirectamente, faz parte de um sistema de relações internacionais específico. 2.o Nesta medida, cada universo religioso comporta a existência de uma dimensão interna, particular ou nacional, e de uma dimensão externa, nem sempre concordantes, dominante ora uma ora outra, segundo as circunstâncias. 3.o As relações de centro-periferia condicionam simultaneamente a realidade dos diversos níveis em que os universos religiosos se exprimem, e não necessariamente de modo proporcionado ou de forma unívoca. 4.o A tensão unidade-diversidade, constitutiva do fenómeno religioso, atravessa todas as suas experiências. As dimensões organizativas, incluindo as supranacionais e internacionais, visam conter essa tensão na tradição de cada universo religioso, reproduzindo-o ou transformando-o. Cada universo religioso fornece não só uma rede, enquanto formada por nós de informação e de contacto, mas uma teia que procura conter o social nas suas dinâmicas e dimensões. Neste sentido, as relações internacionais não são apenas parte intrínseca da tessitura de cada universo religioso, mas são estruturantes da realidade mental, cultural e social do Portugal contemporâneo, nos seus consensos e tensões.

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NOTAS 1 Este artigo situa-se numa perspectiva de análise social da religião, isto é, considerando esta como parte integrante da realidade social e como fenómeno global. Um balanço historiográfico do tema proposto – religião e relações internacionais – apresenta um duplo desafio: 1.o a articulação e a destrinça entre a história diplomática e a história das relações internacionais; 2.o a observação do lugar que o fenómeno religioso ocupa na construção da reflexão historiográfica contemporânea ou, dito de outro modo, como se realiza a valorização da religião no debate cultural português e o seu respectivo enquadramento hermenêutico. Nesta abordagem, consideram-se a religião e as relações internacionais como fenómenos sociais de longa duração. 2 Estas virtualidades do fenómeno religioso têm sido objecto dos mais variados estudos. A título de exemplo citam-se os dossiers publicados sobre «La Religion et le pouvoir aujoud’hui», Le Courrier de l’unesco, décembre 1994; «Le monde ortodoxe, pouvoir et nation», Geopolitique, n.o 47, automne 1994; ou, «L’offensive des religions», Manière de voir, n.o 48, novembre 1999. No mesmo sentido podem-se referir alguns artigos regularmente publicados em Le Monde Diplomatique, como: Jesus Ynfante, «Résurrection de l’Opus Dei en Espagne», n.o 508, juillet 1996, p. 3; Michel Arseneault, «Les nouvelles légions de Jean Paul II», n.o 513, décembre 1996, p. 3; ou ainda, entre outros, Florence Beaugé, «Vers une religiosité sans Dieu», n.o 522, septembre 1997, pp. 26-27. De referir também a obra de Eric O. Hanson, The Catholic Church in World Politics, Princeton, 1990 [1.a ed., 1987], onde é analisada a intervenção da Igreja Católica Romana no contexto global da vida internacional, com destaque para o período pós-II Concílio do Vaticano. Ou ainda, trabalhos como os de Pierre de Charentenay, Quand le ciel trouble la terre. Religions et géopolitique, Paris, Brepols, 1997; de François Thual, Géopolitique de l’ortodoxie. Réligion et sociétés, Paris, Dernod, 2.a edição, 1998; de Andrea Riccardi, As Políticas da Igreja, Apelação, Paulus Editora, 1998. 3 Exclui-se desta análise a referência à chamada «era da informática», mais recentemente a da internet, apesar de ser cada vez mais importante esta alteração nos «meios de comunicação» de informações e de relações, no seio de uma comunidade internacional, por onde já passam e tendem a passar cada vez mais certos níveis da experiência religiosa. Presentemente estão articulados pela internet serviços e experiências de várias confissões religiosas, grupos informais que trocam experiências entre si, mesmo no caso português. O caso recente mais famoso será o da diocese informática do bispo Gaillot, em França (Cf. António Marujo, «“Sou um bispo das ruas”. Jacques Gaillot em português na Internet», in Público, sexta-feira, 26 de Setembro de 1997, p. 18). 4 Como afirma Hans Küng, teólogo suíço de expressão alemã: «nous assistons à la lente émergence d’une conscience oecuménique globale et aux débuts d’un dialogue sérieux et de grande envergure entre spécialistes et représentants éminents des religions», in Le Christianisme et les religions du monde. Islam, hidouisme, bouddhisme, Paris, Éditions du Seuil, 1986 (1.a edição alemã, 1984), p. 8. Acrescentando posteriormente: «Pas de survie sans ethos planétaire. Pas de paix mondiale sans paix religieuse. Pas de paix religieuse sans dialogue entre religions […]». «Dans ce monde polycentrique, transculturel et multireligieux, le dialogue oecuménique entre les religions mondiales

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prend un tout autre poids […]», in Projet d’éthique planétaire. La paix mondiale par la paix entre les religions, Paris, Éditions du Seuil, 1991 (1.a edição alemã, 1990), pp. 9 e 211. 5 Cf. Jean-François Mayer, Religions et sécurité internationale. Études relatives à la politique de sécurité, n.o 2/1995, Berna, Office Central de la Défense, décembre 1995, p. 138. Como este autor afirma ainda: «Même si la religion n’est pas le seul déterminant de l’identité d’une population, les déplacements de frontières entre religions ont des conséquences non négligeables sous l’angle des équilibres internationaux. De tels processus sont toujours en cours aujourd’hui, que ce soit par suite de conquêtes ou d’actions missionnaires. Les zones-frontières peuvent se transformer en régions de tensions de la progression ou du recul d’une religion. Les modifications de frontières entre religions servent parfois les stratégies de certains Etats, mais les phénomènes religieux conservent néanmoins leurs dynamiques propres et ces développements doivent également être interprétés en lien avec des causes locales» (p. 6). Cf. também Religiões, Segurança e Defesa, Seminário, 14, 15 e 16 de Julho de 1999, São Pedro do Estoril, Editorial Atena Lda. e Instituto de Altos Estudos Militares, 1999. 6 «Le monde de l’Église n’est pas seulement le petit monde ecclésiastique auquel tout un langage l’a identifié, ni le petit monde dévot qui l’a profondément intériorisée. C’est un ensemble extraordinairement complexe dont nous n’avons à ce jour aucune description satisfaisante» (p. 9), in Émile Poulat, L’Église c’est un monde. L’Ecclésiosphère, Paris, Les Éditions du Cerf, 1986. Ver a este propósito o dossier «Le pouvoir dans l’Église», in Pouvoirs, 17 (1981). Para uma compreensão mais alargada desta complexidade do cristianismo, com especial pormenorização sobre o catolicismo, ver por exemplo: Encyclopédie Catholique du Monde Chrétien. Bilan du monde (1958-1960), 2 tomos, Tournai, Casterman, 1958 e 1960. Certas Igrejas ou organismos religiosos possuem publicações regulares com informações relevantes para o estudo da sua organicidade interna e das suas relações externas. É o caso do Annuario Pontificio, Cidade do Vaticano, que é editado anualmente desde os finais do século xix; ou ainda, o Anuário Católico de Portugal publicado com alguma periodicidade desde 1931. 7 Está fora do âmbito deste artigo a referência a experiências religiosas mais ou menos institucionalizadas, que têm presentemente uma presença na sociedade portuguesa, com os seus lugares de culto, os seus centros de formação e de irradiação, as suas editoras e respectivas publicações, as suas redes de influência e propaganda, com impacto no quotidiano e nas relações entre as pessoas, tais como o Judaísmo, o Islamismo, o Budismo, correntes de teosofia e de espiritismo, para além de várias formas das tradições afro-ameríndias com particular incidência entre comunidades de imigrantes. Mais importante do que o valor numérico destas correntes, a questão central é a sua presença consentida, donde uma pluralidade que coloca a diversificação de mundividência e de éticas no seio da sociedade portuguesa. Todas estas correntes participam de algum modo em circuitos mais vastos, fornecendo deste modo elementos significativos sobre o universo religioso na definição de formas de colaboração e de interacção internacionais.

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8 Sendo a liberdade religiosa um direito constitucionalmente reconheci do, está na ordem do dia a discussão de uma lei sobre o reconhecimento público dos diversos grupos religiosos na sociedade portuguesa. Esta situação não é exclusiva à sociedade portuguesa, mas corresponde também a um debate mais amplo e complexo de reconhecimento, no marco democrático, de novas comunidades religiosas cuja identidade se expressa em concorrência e introduzindo uma diversificação de consciência ao nível da pertença social (Cf.: Lei da Liberdade Religiosa (Anteprojecto), Comissão de Reforma da Lei da Liberdade Religiosa, Lisboa, Ministério da Justiça, 5 de Março de 1997). 9 Os problemas de relacionamento entre o Estado português e a Santa Sé são de grande complexidade, na medida que não estão só em jogo relações de Estado a Estado, mas também o estatuto internacional reconhecido à Igreja Católica Romana na sua dupla vertente: o da sua soberania espiritual e o da sua realidade temporal, expressa nos diferentes acordos internacionais. Esta problemática tem, contudo, ocupado uma centralidade no tratamento historiográfico das relações internacionais quando considerada a questão religiosa. Podem-se citar, a título de exemplo, os trabalhos de Eduardo Brazão, Colecção de Concordatas estabelecidas entre Portugal e a Santa Sé de 1238 a 1940, Lisboa, Livraria Bertrand, s/d; AA. VV., A Concordata de 1940. Portugal-Santa Sé, Lisboa, Edições Didaskalia, 1993; Manuel Braga da Cruz, As relações entre o Estado e a Igreja, in Joel Serrão, e A. H. Oliveira Marques (dir.), Nova História de Portugal, Volume XII: Portugal e o Estado Novo (1930-1960), coord. de Fernando Rosas, Lisboa, Editorial Presença, 1990, pp. 201-221; Vítor Neto, O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998. 10 São os casos de Espanha, de Itália ou de França, ou ainda, com particular destaque, o caso do Brasil. 11 «A actual Província do Brasil Setentrional, criada em 1983, tem as suas raízes na Missão Brasileira (1910-1936) da Província de Portugal. Em 1910 a Companhia foi expulsa de Portugal, e um bom número de jesuítas formados passaram para Salvador, capital do Estado da Baía, e chegaram até aos Estados nordestinos de Pernambuco e Ceará […]. Em 1936, a Missão Brasileira foi elevada a Vice-Província dependente, tendo-se tornado independente dois anos mais tarde», in Jesuítas. Anuário. Atlas da Companhia de Jesus, Edição Portuguesa, Roma, Edições da Cúria Geral S.J., 1991, p. 176. 12 Os meios religiosos, nomeadamente europeus, funcionaram em certos momentos como lugar de refúgio, de apoio e até de denúncia pública de certos sectores dissidentes internos, criando circuitos de informação e de contestação. Neste contexto, são importantes, por exemplo, os meios de informação internacional que os diversos grupos religiosos dispõem, permitindo a circulação de informação e de opinião para além do controlo exercido pelo poder político interno. Exemplificando a importância desta actividade, podem-se referir as notícias que, numa publicação como as Informations Internationales Catholiques – ICI, saíam regularmente sobre a situação da sociedade e da Igreja em Portugal e nos territórios ultramarinos.

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13 Cf. António de Oliveira Ramos, «Franceses em Portugal nos fins do século xviii (Subsídios para um estudo)», in Da Ilustração ao Liberalismo, Porto, Lello & Irmão Editores, 1979, pp. 1-23. 14 Conhecem-se alguns testemunhos destas experiências. Porém, estão por estudar a existência e o papel das redes religiosas que, passando por Portugal, possibilitaram a esses refugiados o apoio, a protecção e o encaminhamento para outras paragens. 15 Para além das obras de Eduardo Brazão, dentro de uma óptica da história diplomática – A unificação de Itália vista pelos diplomatas portugueses (1848-1870), 2 volumes, Coimbra, 1963-1966; Relações diplomáticas de Portugal com a Santa Sé. Um ano dramático (1848), Lisboa, 1969; ou ainda, Relações diplomáticas de Portugal com a Santa Sé. A queda de Roma (1870), Lisboa, 1970 –, importa sublinhar que a tomada de Roma pelas tropas de Vittorio Emmanuel II evidenciou algo de muito importante para a Igreja Católica Romana: uma recentragem da autoridade do Papa na sua vertente mais espiritual (Cf.: David Sampaio Barbosa, O Governo português e a crise do Papado nos anos 1848-1870, Lisboa, 1979). Tal processo será lento, mas fundamental no que diz respeito à evolução da Igreja Católica Romana no final do século xix e ao longo do século xx. É, pois, uma questão muito mais vasta em torno do fim dos Estados pontifícios, na medida em que está em jogo o estatuto da Igreja Católica Romana no seio das sociedades modernas e liberais (Cf.: Jean-Marie Mayeur, «Les Églises et les relations internationales. II: L’Église Catholique», in Histoire du Christianisme des origines à nos jours, Dir. de J-M. Mayeur, C. Pietri, A. Vauchez, M. Venard, Tomo XII: Guerres mondiales et totalitarismes (1914-1958), Dir. J-M. Mayeur. Paris, Desclée-Fayard, 1990, pp. 297-345). 16 Fundada em 1921, no contexto do pós-Primeira Guerra Mundial, Pax Romana surge como a Confederação Internacional dos Universitários Católicos, constituindo uma plataforma de cooperação, onde particularmente depois da década de 50 alguns portugueses assumiram responsabilidades e estabeleceram significativas relações com personalidades de outros contextos eclesiais e sócio-políticos (Cf.: Guillaume de Weck, Histoire de la Confédération internationale des Etudiants catholiques. «Pax Romana» (1887-1921-1946), Fribourg, 1946; AA. VV., Pax Romana 1921-1981 Fondation et développement, Fribourg, Éditions Universitaires Fribourg-Suisse, 1981; ou ainda: Pierre Savard, «Pax Romana, 1935-1962. Une fenêtre étudiante sur le monde», in Les Cahiers des Dix, n.o 47 (1992) 279-323). A actuação de várias personalidades portuguesas, de certas redes de contactos internacionais e mesmo de projectos editoriais ganham uma outra inteligibilidade quando enquadrados neste tipo de contexto. 17 Todo este dinamismo corresponde ao que se designa correntemente por acção católica, enquanto expressão da reacção da Igreja Católica Romana à sociedade liberal e ao radicalismo revolucionário. No contexto de reacção às crises provocadas pelo modernismo teológico e político e pela Action Française, surgirá um modelo orgânico de todo este processo com a constituição da Acção Católica de Pio xi, contribuindo para o aparecimento de uma rede de contactos e de instâncias de coordenação que, particularmente no pós-Segunda Guerra Mundial, serão esteio de vida internacional de

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grande relevância. Esta dinâmica possibilitou a criação das Organizações Internacionais Católicas (OICs) que desde os anos 50 têm desempenhado, enquanto organizações não-governamentais, um importante papel no sistema das Nações Unidas e em algumas das suas agências internacionais, como a unesco, a fao ou o bit. Vários portugueses, em momentos distintos, e por esta via, desempenharam diversas funções neste sistema internacional do movimento católico. 18 Ver, como exemplo paradigmático deste desiderato, o caso de ser constituída em Espanha em 1908 uma associação designada por Asociación Católica Nacional de Propagandistas (ACNP), criada pela iniciativa de Angel Ayala S.J., reunindo jornalistas e intelectuais católicos, e tendo como um dos seus principais animadores Angel Herrera Oria fundador e director do periódico El Debate. Porém, esta dinâmica é muito mais vasta e tem também a sua expressão em Portugal, nomeadamente a partir da realização da Assembleia dos Oradores e Escritores Católicos no Porto, nos finais de 1871 e inícios de 1872, iniciativa da qual arrancará a constituição da Associação Católica do Porto e a criação do jornal A Palavra. Sobre o caso português existe já uma vasta bibliografia: Manuel Clemente, «Primeiro Congresso Católico Português», in Laikos, ano X, Outubro-Dezembro de 1987, n.o 4; «O Congresso Católico do Porto (1871-1872) e a emergência do Laicado em Portugal», in Lusitania Sacra, 2.a série, 1 (1989) pp. 179-195; João F. de Almeida Policarpo, O pensamento social do grupo católico «A Palavra» (1872-1913), 2 volumes, Coimbra-Lisboa, 1977-1992. 19 A problemática da modernidade nos grupos religiosos manifesta-se pela incorporação de determinados elementos que possibilitam a introdução de novos modos de proceder, de novas linguagens ou de novas formas de organização e de acção. A propósito do nascimento da Acção Católica Operária em França, Émile Poulat, sociólogo, chama a atenção para alguns destes sinais de modernidade, ao nível da construção de linguagem e de memória, como transformações importantes no âmbito social e religioso (Cf.: «Préface», in Joseph Debès, Naissance de l’Action Catholique Ouvrière, Paris, Les Éditions Ouvrières, 1982, pp. 7-11). Tal situação também ocorreu em Portugal. Os diversos movimentos da Acção Católica Portuguesa são factores importantes de dinamização e de transformação de comportamentos e de mentalidades, os quais são muitas vezes potenciados pela existência de contactos internacionais que esses movimentos proporcionam. 20 O Padroado não pode ser reduzido a um mero instrumento jurídico, corresponde também a uma complexa rede de soberania exercida por parte dos Estados e da Igreja Católica Romana. Cf.: António Silva Rego, O Padroado Português do Oriente e a sua historiografia (1938-1950), Lisboa-Braga, 1978; David Sampaio Barbosa, «Padroado Português: privilégio ou serviço (século XIX)?», in Didaskalia, XXV (1995) 365-390; ou ainda, Claude Prudhomme, Stratégie missionnaire du Saint-Siège sous Léon XIII (1878-1903), Roma, École Française de Rome, 1994. 21 Cf. Vítor Lopes, «A retirada dos Padres Brancos de Moçambique em 1971 ou a caução religiosa negada a um Estado totalitário», in Actas do Congresso Internacional de História: Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, Volume IV: Missionação:

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Problemática Geral e Sociedade Contemporânea, Braga, Universidade Católica Portuguesa, 1993, pp. 205-226. Neste contexto, é de referenciar também o caso dos Combonianos em Moçambique e dos Metodistas americanos em Angola. Todos estes acontecimentos apresentam uma vertente exterior determinante, pois os seus protagonistas fazem parte de redes internacionais através da dimensão congregacionista fornecida pelo catolicismo ou pelo protestantismo. 22 A divulgação da Bíblia, possibilitada pela «revolução de Guttemberg», estimulou nas diversas sociedades o respectivo processo de alfabetização. Há uma importante dimensão educativa associada à sua divulgação. A divulgação da Bíblia por diversos grupos protestantes desde o início do século xix, se deu lugar a disputas, também correspondeu ao estabelecimento de importantes conexões entre grupos portugueses e estrangeiros. Por exemplo, grupos de sustentação de iniciativas editoriais, canais de divulgação e ligações pessoais estabelecidas. São milhares de exemplares que, em português, contribuem para a reprodução de mentalidades e de mundividências através da prática de leitura da Sagrada Escritura. Ainda recentemente, em 1996 e 1997, foi lançada uma campanha nos órgãos de comunicação social intitulada «Força para Viver – A palavra de Deus permanece para sempre – A Bíblia», recorrendo ao testemunho de diversas figuras de renome no campo das artes, da música e do desporto. 23 As diferentes Igrejas, confissões ou denominações protestantes foram marcantes sobretudo nos territórios ultramarinos, particularmente no século xx e no pós-Segunda Guerra Mundial, nomeadamente em Angola e Moçambique (Cf.: José Júlio Gonçalves, Protestantismo em África, 2 volumes, Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar, 1960; ou Lawrence W. Henderson, A Igreja em Angola, Lisboa, Editorial Além-Mar, 1990). 24 Se este nível de relacionamento internacional provocou divisões internas ao nível de certas correntes protestantes, contribuiu também para a diversificação do terreno religioso português. Este mesmo processo de diferenciação religiosa, ainda que de forma diversa, ocorreu também no seio do catolicismo. Cf. António Matos Ferreira, «Correntes cristãs na definição do espaço colonial português» e «Cristianismo e espaço ultramarino. Igrejas e correntes religiosas em face do Império e da descolonização», in História da Expansão Portuguesa, Volumes 4 e 5, Direcção de Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998 e 1999, pp. 425-443 e 384-405. 25 Cf. Anders Ruuth e Donizete Rodrigues, Deus, o Demónio e o Homem: O Fenómeno Igreja Universal do Reino de Deus, Lisboa, Edições Colibri, 1999. 26 Reprodução pela divisão do seu próprio corpo; qualidade do que se multiplica pela divisão ou fragmentação (Cf.: Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa, Sociedade de Língua Portuguesa-Amigos do Livro Editores, 1981). Eduardo Moreira utiliza a expressão «cissipridade fragmentária» para caracterizar um dos aspectos da Reforma protestante em relação ao qual Alexandre Herculano manifestara a sua reserva e distância críticas, in Vidas Convergentes: História breve dos movimentos de Reforma Cristã em Portugal, a partir do século xviii, Lisboa, Junta Presbiterana de Cooperação em Portugal, 1958, p. 289.

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27 Expressão deste tipo de iniciativas pode-se recordar o aparecimento em Portugal nos anos 50 do Movimento do Mundo Melhor e, no final dos anos 70, do movimento Pax Christi. 28 Cf. Jean Baubérot, «Les Églises et les relations internationales. I: Les Églises Protestantes», in Histoire du Christianisme des origines à nos jours, Dir. de J-M. Mayeur, C. Pietri, A. Vauchez, M. Venard, Tomo XII: Guerres mondiales et totalitarismes (1914-1958), Dir. J-M. Mayeur, Paris, Desclée-Fayard, 1990, pp. 259-297. 29 Cf. António Matos Ferreira, «Catolicismo», in Dicionário de História de Portugal, Suplemento A/E, Volume 7, Coordenadores António Barreto e Maria Filomena Mónica, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, pp. 257-267. 30 Certamente que os dois acontecimentos mais referenciados dizem respeito à deslocação de Paulo vi a Bombaim (1964) e à audiência concedida aos chefes dos movimentos de guerrilha nas colónias portuguesas (1970). Mas outros factos são também de importância como, por exemplo, declarações do movimento internacional católico Pax Christi ou de bispos africanos durante o Sínodo de 1971. 31 Tal ocorreu nas objecções colocadas á eleição de alguns dirigentes e assistentes eclesiásticos portugueses; mas também se verificava no incómodo das delegações portuguesas perante a aprovação, em encontros internacionais, de moções contra a política colonial portuguesa, como sucedeu no âmbito das conclusões da Assembleia Interfederal do Movimento Internacional de Estudantes Católicos (MIEC-Pax Romana) em 1971 (Cf. carta de João Duarte Cunha publicada na revista Convergence, 5 (1971), p. 33). 32 De realçar a importância da Igreja Anglicana, nomeadamente em Inglaterra, onde tiveram eco as denúncias do Rev. Adrian Hastings (Cf. «Mozambique: Les évêques refusent de confirmer ou nient le massacre de tout un village attesté par des missionnaires», in ICI – Informations Catholiques Internationales, n.o 437-438, août 1973, pp. 29 e 30), ou no meio metodista, com repercussões no ambiente americano. 33 Este grupo iniciou a sua actividade em 1972, como instância de divulgação de informação e dinamização no interior dos grupos cristãos, com uma clara componente anticolonial, tendo alargado o âmbito da sua actuação no seguimento dos acontecimentos da Capela do Rato e mantendo-se ainda activo nos primeiros meses após o 25 de Abril (Cf. Augusto José Matias, Católicos e socialistas em Portugal (1875-1975), Cadernos IED, n.o 7, Lisboa, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, 1989, p. 134). 34 Tema proposto por Paulo vi para o Dia Mundial da Paz em 1 de Janeiro de 1973, utilizado para justificar o jejum promovido por um grupo de católicos na Capela do Rato. 35 Estes mesmo sectores, a seguir ao 25 de Abril de 1974, dispersar-se-ão por diferentes iniciativas que, de certo modo expressam essa variedade de sensibilidades e de redes

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existentes. Essa fragmentação traduziu-se em iniciativas posteriores como o jornal Libertar, o movimento dos Cristãos pelo Socialismo ou a fundação do Centro de Reflexão Cristã (CRC). 36 Por exemplo, entre 30 de Maio e 2 de Junho de 1973, uma delegação portuguesa desse Movimento participou no quadro da Assembleia das Organizações Internacionais Católicas em Madrid (San Lorenzo del Escorial), fazendo contactos directos com o Conselho Pontifício «Justiça e Paz» e do Conselho Pontifício para os Leigos, com o apoio de Juaquín Ruiz-Giménez, antigo presidente de Pax Romana, ligado ao grupo espanhol de Cadernos para el Dialogo. Estão por estudar estas relações entre certos ambientes católicos portugueses e espanhóis. 37 Cf. Jean-Marie Mayeur, Catholicisme social et démocratie chrétienne. Principes romains, expériences françaises, Paris, Les Éditions du Cerf, 1986. 38 Cf.: Adelino Alves, A Igreja e a Política. Centro Católico Português, Lisboa, Editora Rei dos Livros, 1996; Manuel Braga da Cruz, As Origens da Democracia Cristã e o salazarismo, Lisboa, Editorial Presença, 1980; Amaro Carvalho da Silva, O Partido Nacionalista no contexto do nacionalismo católico (1901-1910). Subsídios para a História Contemporânea Portuguesa, Lisboa, Edições Colibri, 1996; ou ainda a tese de doutoramento de Marie-Christine Volovitch, Le Catholicisme Social au Portugal, de l’encyclique «Rerum Novarum» aux débuts de la République, Paris, Sorbonne-Paris III, 1981-1982. 39 Salazar foi referenciado, em certos sectores, como o exemplo de um governante católico (Cf. Jean-Marie Mayeur, Des partis catholiques à la démocratie chrétienne. xixe-xxe siècles, Paris, Armand Colin, 1980, p. 141). 40 Cf. Jean-Dominique Durand, L’Europe de la Démocratie chrétienne, Bruxelas, Éditions Complexe, 1995, pp. 294-296. 41 Paulo vi, Carta Apostólica «Octogesima Adveniens». Por ocasião do octogésimo aniversário da Encíclica «Rerum Novarum», Vaticano, 14 de Maio de 1971. Carta dirigida ao cardeal canadiano Maurice Roy, Presidente do Conselho dos Leigos e da Comissão Pontifícia «Justiça e Paz», esta foi acolhida na época como um apelo à maior participação dos cristãos na sociedade e de uma maior abertura em relação às «correntes socialistas» (§ 30-31). 42 Para uma prática cristã da política, Documento da Assembleia Plenária do Episcopado Francês, Lourdes, Outubro de 1972. Este documento foi traduzido e publicado em português, em 1973, pela Editora Telos do Porto, e distribuído pela Livraria Multinova de Lisboa. 43 A Igreja e a comunidade política, Declaração da Conferência Episcopal Espanhola, Janeiro de 1973. Tradução e publicação pela Livraria Telos do Porto, em Março de 1973.

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44 Nomeadamente dois documentos que procuraram balizar a intervenção política dos católicos em Portugal nos anos que antecedem o 25 de Abril de 1974 e no momento exactamente posterior à «Revolução dos cravos»: Carta pastoral no décimo aniversário da «Pacem in Terris» (Fátima, 4 de Maio de 1973) e Carta Pastoral do Episcopado Português: O contributo dos cristãos para a vida social e política (Lisboa, 16 de Julho de 1974). 45 Por laicização entende-se, no seu sentido mais amplo, como um processo no qual a religião e as suas instâncias organizativas se encontram em concorrência seja com o Estado, seja entre si no mercado do religioso. Ocorre que, neste contexto, a pertinência de cada proposta religiosa tende a afirmar-se num contexto de confronto, de disputa, de reivindicação ou de pluralismo. Os processos de laicização embora similares são também distintos, dependem em grande medida do tipo e do grau de secularização que se manifesta em cada sociedade, como também depende da natureza de cada um dos universos religiosos em causa. 46 Ver o já referido em relação à iurd, mas outras correntes apresentam uma evolução similar. Este tipo de atitude perante o real não é exclusivo de tais comunidades ou Igrejas, corresponde em certa medida à expressão do religioso como forma de desencantamento com o mundo, isto é, diante da secularização e mesmo da laicização reagem reforçando o religioso como sistema fechado de identidade pessoal e de grupo. 47 Também neste caso se pode compreender o aparecimento ou «ressurgimento» de Igrejas ortodoxas em Portugal. 48 Exemplo desta problemática é a explicitação da denúncia feita pelos bispos portugueses à Lei da Separação de 20 de Abril de 1911. Uma das dificuldades fundamentais colocadas pela Lei era o facto de objectivamente não ser reconhecida a autonomia da autoridade eclesiástica, nomeadamente episcopal. É óbvio que, quando se aborda a realidade da Igreja Católica na sociedade, a tendência generalizada é exactamente a valorização ou, noutra perspectiva, a redução a este tipo de relacionamento jurídico e institucional. 49 Relativamente a esta emergência do laicado em Portugal ver os trabalhos de Manuel Clemente, «Laicização da sociedade e afirmação do laicado em Portugal (1820-1840), in Lusitania Sacra, 2.a série, 3 (1991), pp. 111-154; ou ainda Nas Origens do Apostolado Contemporâneo em Portugal. A Sociedade Católica (1843-1853), Braga, Universidade Católica Portuguesa, 1993. 50 Através do compromisso temporal, trata-se da elaboração católica do sacerdócio universal dos fiéis, uma noção cara às correntes cristãs da Reforma e que implica uma outra percepção dos protagonismos no interior das confissões cristãs dela herdeiras, nomeadamente em relação à natureza da experiência de Igreja na sociedade. 51 Como tem sido sublinhado pelo trabalho de investigação de Paulo F. Oliveira Fontes. Cf.: «A Acção Católica Portuguesa e a problemática missionária», in Actas do Congresso Internacional de História: Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, Volume I:

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Cristandade Portuguesa até ao Século xv. Evangelização Interna, Ilhas Atlânticas e África Ocidental, Braga, Universidade Católica Portuguesa, 1993, pp. 411-451; e «A Acção Católica Portuguesa (1933-1974) e a presença da Igreja em Portugal», in Lusitania Sacra, 2.a série, 6 (1994), pp. 61-100. 52 Há uma vasta literatura portuguesa referente a este peregrinar a Lourdes. Entre outros, duas figuras relevantes do movimento católico nos finais do século xix e início do xx escreveram a este propósito: Francisco José de Sousa Gomes (1860-1911), Manual do Peregrino Português, Póvoa de Varzim, 3.a edição, 1910; e Manuel Isaías Abúndio da Silva (1874-1914), Uma Romagem a Lourdes, Viana do Castelo, Typ. d’André J. Pereira & Filho, 1904. 53 Ver a presença em Fátima de diversos Patriarcas ou dignitários das Igrejas Ortodoxas, a presença do Exército Azul e, não menos importante, a constante referência à «conversão da Rússia». 54 Fátima reforçou a dimensão mariológica da religiosidade dita popular, entendida como uma barreira resistente à penetração de correntes críticas a esse universo religioso, próprias das diversas formas de protestantismo. 55 É o caso dos irmãos Diogo e André Cassels que, no século xix, contribuíram para a constituição do Metodismo e da Igreja Lusitana em Portugal (Cf. Luís Aguiar Santos, «A primeira geração da Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica (1876-1902)», in Lusitania Sacra, 2.a série, 8/9 (1996-1997), pp. 299-360). 56 Os dominicanos irlandeses (da Igreja do Corpo Santo, em Lisboa) e o contacto com a renovação dominicana encetada em França pelo padre Lacordaire constituíram referências importantes para a actuação de Teresa de Saldanha. A sua inspiração e a sua determinação em fundar uma congregação religiosa deveu-se em parte quer às informações que lhe chegavam através de publicações católicas nacionais e estrangeiras, quer à correspondência ou aos contactos que manteve, por exemplo, com a comunidade irlandesa de Drogheda (Cf. Rita Maria do Nascimento Nicolau, Teresa de Saldanha. Uma vivência cristã no feminino, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, s/d [1996]). 57 A Madre Luísa Andaluz ao longo da sua vida manteve contacto com uma prima – Madre Katherine Drexel –, que fora fundadora nos Estados Unidos da América da Congregação das Sisters of Blessed Sacrement for Indian and Black People. 58 Fernando Belo, Lecture matérialiste de l’évangile de Marc. Récit. Pratique. Idéologie, Paris, Les Éditions du Cerf, 1974. Em 1976 saiu ainda uma 3.a edição, com 415 páginas. Este estudo nunca foi traduzido para português. Pode-se considerar que existe uma pequena síntese, feita em Lisboa, em Agosto de 1974, onde o autor procurou reflectir sobre o binómio ser cristão e ser marxista, no contexto da revolução portuguesa de 1974: Uma leitura política do Evangelho, Lisboa, Livraria Multinova, s/d (1974).

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59 Por exemplo, nos anos 80, dois portugueses desempenharam funções em organismos internacionais de natureza ecuménica: o pastor José Manuel Leite na Conferência Europeia das Igrejas (kek), organismo ecuménico em Genebra, e Eunice Alves como responsável europeia da fuace. 60 Cf. Nélio Pereira Pita, Cooperação e Evangelização. Contributo das associações de leigos portugueses nas relações de parceria entre as Igrejas Lusófonas, Trabalho mimiografado, Lisboa, 1997. 61 Cf.: O Pontifício Colégio Português em Roma: Subsídios para a sua história, Roma, 1984; Arnaldo Pinto Cardoso, «A fundação do Colégio Português em Roma e a formação do clero em Portugal no final do século xix», in Lusitania Sacra, 2.a série, 3 (1991), pp. 291-348; ou ainda, Manuel de Almeida Trindade, Urbano Duarte. Ensaio bibliográfico e selecção de textos, 2 volumes, Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1989, pp. 41-54, e Memórias de um bispo, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1993, pp. 49-61. 62 Basta entrar-se em determinadas livrarias dedicadas ao livro religioso para se poder perceber a quantidade de obras que entram nos circuitos portugueses, quer como traduções, quer como estudos teológico-pastorais a partir do ambiente cultural e religioso brasileiro. 63 Cf. François Guichard, «Madère, pôle de diffusion du protestantisme dans le monde lusophone», in Actas do Congresso Internacional de História: Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, Volume iv: Missionação: Problemática Geral e Sociedade Contemporânea, Braga, Universidade Católica Portuguesa, 1993. Este autor refere que: «A la fin du xixe siècle et durant toute la première moitié du xxe, ce ne sont plus seulement les Iles britanniques mais aussi ces communautés lusophones d’Amérique anglo-saxonne et, plus encore, le Brésil, qui servent de bases de départ pour l’action missionnaire protestante au Portugal même… et à Madère» (p. 169). 64 Cf. José da Silva Lima, «Deus, não tenho nada contra…». Sociabilidades e eclesialidade no destino do Alto Minho, Porto, Universidade Católica Portuguesa e Fundação Eng.o António de Almeida, 1994. 65 Tais funções persistem hoje, com outro protagonismo e outro entrosamento na relação com o Estado, nas Instituições Portuguesas de Solidariedade Social (IPSS) e, como é conhecido, constituindo uma rede de intervenção com grande peso na sociedade civil. 66 Como exemplo, pode-se referir o caso da Associação para o Desenvolvimento da Universidade Católica Portuguesa, constituída nos Estados Unidos da América. Encontramos, a outros níveis, este mesmo tipo de suporte exterior em relação a outras denominações religiosas existentes em Portugal, donde recebem apoios para as suas várias instituições de formação ou de solidariedade social. 67 A suspeita pessoal ou pública instala-se perante diversas formas de angariação de fundos e bens, por parte das Igrejas e movimentos religiosos. Não se estabelece por vezes

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com clareza o que resulta do exercício da vontade e da liberdade dos membros dos grupos ou Igrejas em darem o seu contributo e o que é manifestamente expressão de manipulação e da pressão exercida sobre pessoas, que na aflição e na crença da «busca do religioso» se entendem a posteriori como tendo entrado num logro. Esta ambivalência instala-se sobretudo porque esses bens materiais acumulados, financeiros ou outros, e a sua gestão estão normalmente centralizados em núcleos que escapam ao controlo da maioria dos membros dessas mesmas comunidades e Igrejas, gerando formas de incomodidade interna e pública.