religião e política em espanha: os novos contornos da clivagem

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Análise Social, vol. xxxiii (149), 1998 (5.°), 1053-1077 Religião e política em Espanha: os novos contornos da clivagem religiosa** Pretendo discutir neste artigo as relações entre religião e política em Espanha através das preferências ideológicas e eleitorais dos cidadãos. Como noutros aspectos, as mudanças sociais e políticas das últimas décadas acaba- ram por incorporar essas relações segundo padrões europeus. Mas o caso espanhol apresenta duas características diferenciais. A primeira radica numa acidentada evolução histórica que arranca da dependência estatal da Igreja em finais do século xix, passa pelos polarizados conflitos religiosos da II Repú- blica e chega ao predomínio do nacional-catolicismo durante o regime au- toritário de Franco. Instalada já na transição democrática, a segunda carac- terística consiste na sobreposição de dois processos da máxima importância, os quais tiveram lugar, além disso, num curto espaço de tempo. Esses pro- cessos implicaram, por um lado, a extraordinária magnitude das transforma- ções do catolicismo espanhol nos anos 70 e, por outro, a mais discreta, mas não menos notável, evolução das preferências eleitorais dos católicos espa- nhóis desde o princípio dos anos 80. Na recente democracia espanhola, o desenvolvimento das novas relações entre religião e política foi tornado possível pela combinação entre as estra- tégias das elites políticas e as mudanças sociais que se inscrevem sob o * Universidade Autónoma de Madrid e Centro de Estudos Avançados em Ciências Sociais, Instituto Juan March. ** Uma versão mais ampla deste artigo foi apresentada no Workshop sobre Religion and mass electoral behaviour in Europe, realizado em Berna (Suíça) em Março de 1997, no âmbito das sessões do European Consortium for Political Research (ECPR). Devo agradecer os valiosos comentários dos assistentes do referido Workshop, assim como os de Nikiforos Diamandouros, Stathis Kalyvas e Paolo Segatti. Quero também expressar a minha gratidão a Justin Byrne e Mariano Torcal pela sua ajuda, ao Centro de Estudos Avançados em Ciências Sociais, do Instituto Juan March, pelas suas instalações, e à Comissão Interministerial de Ciência e Tecnologia (CICYT) pelo seu generoso financiamento. 1053

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Page 1: Religião e política em Espanha: os novos contornos da clivagem

Análise Social, vol. xxxiii (149), 1998 (5.°), 1053-1077

Religião e política em Espanha: os novoscontornos da clivagem religiosa**

Pretendo discutir neste artigo as relações entre religião e política emEspanha através das preferências ideológicas e eleitorais dos cidadãos. Comonoutros aspectos, as mudanças sociais e políticas das últimas décadas acaba-ram por incorporar essas relações segundo padrões europeus. Mas o casoespanhol apresenta duas características diferenciais. A primeira radica numaacidentada evolução histórica que arranca da dependência estatal da Igrejaem finais do século xix, passa pelos polarizados conflitos religiosos da II Repú-blica e chega ao predomínio do nacional-catolicismo durante o regime au-toritário de Franco. Instalada já na transição democrática, a segunda carac-terística consiste na sobreposição de dois processos da máxima importância,os quais tiveram lugar, além disso, num curto espaço de tempo. Esses pro-cessos implicaram, por um lado, a extraordinária magnitude das transforma-ções do catolicismo espanhol nos anos 70 e, por outro, a mais discreta, masnão menos notável, evolução das preferências eleitorais dos católicos espa-nhóis desde o princípio dos anos 80.

Na recente democracia espanhola, o desenvolvimento das novas relaçõesentre religião e política foi tornado possível pela combinação entre as estra-tégias das elites políticas e as mudanças sociais que se inscrevem sob o

* Universidade Autónoma de Madrid e Centro de Estudos Avançados em Ciências Sociais,Instituto Juan March.

** Uma versão mais ampla deste artigo foi apresentada no Workshop sobre Religion andmass electoral behaviour in Europe, realizado em Berna (Suíça) em Março de 1997, noâmbito das sessões do European Consortium for Political Research (ECPR). Devo agradeceros valiosos comentários dos assistentes do referido Workshop, assim como os de NikiforosDiamandouros, Stathis Kalyvas e Paolo Segatti. Quero também expressar a minha gratidão aJustin Byrne e Mariano Torcal pela sua ajuda, ao Centro de Estudos Avançados em CiênciasSociais, do Instituto Juan March, pelas suas instalações, e à Comissão Interministerial deCiência e Tecnologia (CICYT) pelo seu generoso financiamento. 1053

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termo secularização. Ambos os factores contribuíram para criar um climareligioso até então desconhecido, presidido pela decisão de evitar conflitose caracterizado por um crescente pluralismo nas distribuições ideológicas epreferências partidárias dos grupos religiosos. Os níveis de consenso e secu-larização alcançados pelos Espanhóis tornam já sumamente improváveis osconfrontos por motivos religiosos: a religião deixou de surgir como umelemento fundamentalmente divisor ou polarizador. A religião continua a serum factor relevante para a decisão de voto, mas a sua influência perdeu emextensão (pelo menor número de votantes afectados) e em intensidade (pelasua menor incidência sobre os votantes). Os eleitorados dos diferentes par-tidos diferenciam-se naturalmente em função da sua religiosidade, mas aclivagem religiosa enfraqueceu. Apesar de não existir em Espanha um par-tido democrata-cristão, os conservadores, que contam com um eleitoradomais religioso, tiveram de adaptar-se a condições de concorrência eleitoralcada vez mais secularizadas. Como em muitos outros países europeus, areligião ocupa, assim, um lugar secundário entre os diferentes factores expli-cativos do comportamento eleitoral dos Espanhóis. Vive-se neste momentoa última etapa de uma acelerada transformação, à qual a hierarquia eclesiás-tica tem por hábito responder com doses variáveis de desconcerto e irritação.Mas os seus resultados são já dificilmente reversíveis.

A TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA COMO PONTO DE PARTIDA

Durante a transição, muitos observadores políticos expressaram os seusreceios de uma possível revitalização da clivagem religiosa. Esses receiosfundamentavam-se na ampla tradição histórica de intervencionismo da Igrejae no seu apoio à prolongada ditadura franquista. De facto, os motivos reli-giosos estão por detrás de grande parte dos conflitos políticos que a Espanhaconheceu no seu passado recente. Como Linz (1993, p. 1) sublinhou, «ahistória da religião e da política em Espanha no último século está, como ahistória do país, cheia de acontecimentos dramáticos». Muitos deles crista-lizaram-se nos anos 30, durante a breve experiência democrática da II Re-pública. Os conflitos religiosos facilitaram a mobilização dos católicos con-tra a República e a formação da Confederação Espanhola de DireitasAutónomas (CEDA), um partido confessional que em muito pouco tempoconseguiu converter-se no principal bastião dos votantes conservadores e dosinteresses católicos. O próprio sistema partidário sofreu profundamente o so-lapamento da clivagem religiosa com os restantes conflitos sociais, regionaise políticos. O sistema de partidos exemplificou quase à perfeição o modelodo pluralismo polarizado, com partidos relevantes nos extremos, competição

1054 centrífuga e oposição irresponsável (Sartori, 1976, pp. 131 e segs.): os partidos

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católicos desempenharam um papel essencial neste resultado, que contribuiutambém para a queda da II República (Linz, 1978; Montero, 1977). E, poucodepois, a Igreja apoiou decisivamente a facção franquista, mediante a suadefesa da guerra civil como uma cruzada contra os inimigos da religião e asua legitimação, durante cerca de quarenta anos, do regime autoritário segun-do o esquema do denominado nacional-catolicismo (Botti, 1992).

Com estes antecedentes, não parecia exagerado recear que os conflitosreligiosos voltassem a ressurgir com o reatar da vida democrática. Em primeirolugar, os actores políticos tiveram de enfrentar um processo constituinte noqual deviam adoptar-se numerosas decisões difíceis sobre temas tão rele-vantes como as relações Igreja-Estado, a regulação da educação, a aprova-ção do divórcio e o tratamento da questão do aborto. Além disso, os elei-tores espanhóis revelavam uma vincada divisão nas suas opiniões sobreestes temas religiosos, uma marcada polarização nos seus sentimentos paracom a Igreja e uma intensa relação entre identificação religiosa e opiniõespolíticas. E certo, como veremos à frente, que no interior dos principaispartidos rivais [União do Centro Democrático (UCD), o partido no gover-no, e Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE)] se produzia uma certaheterogeneidade religiosa, derivada das suas estratégias catch-all e dos seusêxitos eleitorais, mas os perfis religiosos dos seus votantes mostravam clarasdiferenças interpartidárias (Sani, 1981). E, como se isso não fosse já o bas-tante, os dois principais partidos de esquerda [o PSOE e o Partido Comunistade Espanha (PCE)] travaram diferentes confrontos com os dois partidos con-servadores [UCD e Aliança Popular (AP)] sobre regulações específicas destasquestões religiosas nos momentos iniciais do processo constituinte. Emconsequência, a reactivação do conflito religioso parecia depender simples-mente de que certos líderes políticos ou religiosos medianamente irrespon-sáveis radicalizassem as diferenças anteriores, politizassem as identidadescatólicas ou as suas rivais e mobilizassem os sectores afectados: esta tácticapermitir-lhes-ia incrementar as suas possibilidades de êxito para o estabele-cimento de relações duradouras com os seus votantes.

Apesar de tudo isto, o potencial de polarização da clivagem religiosa nãochegou a desenvolver-se. Este resultado surgiu do entrecruzar de três facto-res diferentes: em primeiro lugar, as mudanças experimentadas pela própriaIgreja católica nos momentos finais da ditadura franquista; depois, as estra-tégias dos líderes políticos e religiosos nos momentos cruciais da transiçãodemocrática; finalmente, as consequências do processo de secularização vi-vido pelos Espanhóis. As primeiras manifestações desta secularização coin-cidiram com os efeitos do Concílio Vaticano II, que levaram sectores rele-vantes da hierarquia a reformular o papel da Igreja no regime autoritário.Durante a última década do franquismo, muitos espanhóis começaram asentir as mudanças sociais ligadas ao desenvolvimento económico, o incre- 1055

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mento dos serviços, a mobilidade social, a expansão dos níveis educativos,o deslocamento maciço para as cidades e a difusão de modelos culturais evalorativos modernos. Uma das suas consequências afectou plenamente aesfera religiosa. Estas mudanças impulsionaram processos de afastamento daIgreja enquanto instituição, de perda de força das crenças religiosas e dediminuição das práticas religiosas: eram sintomas evidentes de uma certasecularização, entendida como laicização político-cultural e individualizaçãodas consciências. Ao mesmo tempo, a Igreja reviu as suas posições emrelação à ditadura. No início da década de 70, uma assembleia conjunta debispos e sacerdotes chegou a discutir (ainda que não a aprovar) uma reso-lução na qual se pedia perdão pelo papel da Igreja durante a guerra civil eo franquismo. E, enquanto os sectores mais jovens do clero se integravamem organizações clandestinas antifranquistas, alguns membros da hierarquiareligiosa protagonizavam confrontos com as autoridades do regime autoritá-rio (Enrique y Tarancón, 1996).

Durante a transição, as novas elites políticas incluíram os temas religiososdentro da denominada política de consenso, adoptada como uma estratégiadeliberada para evitar os confrontos sobre questões conflituosas; isto impli-cava que as diferenças existentes haveriam de solucionar-se mediante nego-ciações interpartidárias, ou entre os partidos e os representantes da Igreja, enão mediante declarações públicas ou institucionais, e menos ainda duranteas campanhas eleitorais (Gunther, 1992). Assim, as elites políticas recorre-ram aos procedimentos consensuais na redacção da Constituição, abordaramde forma pragmática a negociação das suas divergências com a Igreja efizeram gala de moderação perante as esporádicas intervenções públicas dahierarquia eclesiástica. No plano organizativo, as elites políticas evitaram,além disso, a politização das identidades religiosas e o estabelecimento delaços formais com grupos religiosos. Por seu turno, a hierarquia eclesiásticaapoiou claramente o processo democratizador, mostrou uma similar modera-ção no tratamento das suas divergências com os novos dirigentes políticosem relação a temas religiosos e recusou explicitamente vincular-se com ospartidos que, nas eleições fundacionais de 1977, se apresentavam sob orótulo de democratas-cristãos. Deste modo, todas as forças políticas conse-guiram evitar que durante o processo constituinte o pêndulo oscilasse donacional-catolicismo característico do regime franquista para a mera aparên-cia de atitudes revanchistas de anticlericalismo: os líderes do PCE e doPSOE, por exemplo, dois partidos caracterizados nos anos 30 pelo seu inten-so anticlericalismo, fizeram gala de atitudes moderadas, pragmáticas edialogantes. E a hierarquia eclesiástica assumiu a mudança política, depuran-do a defesa intransigente dos direitos da Igreja, aceitando compromissos nem

1056 sempre fáceis e desidentificando-se com as passadas posturas de apoio à

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ditadura. De modo definitivo, e segundo as palavras de Linz (1993, p. 31),todas as partes chegaram a acordo sobre uma política de nunca mais: desdeentão, as vozes discordantes do consenso alcançado não conseguiram alteraras relações entre o Estado e a Igreja nem polarizar os grupos religiosos.

ALGUNS INDICADORES DE RELIGIOSIDADE

Actualmente, a situação espanhola caracteriza-se por uma «seculariza-ção crescente da sociedade e persistência do religioso» (González Blascoet al., 1993, p. 746). O contexto comum a ambos os elementos radica nahegemonia cultural do catolicismo. Nos finais dos anos 70, 9 em cada 10espanhóis (à semelhança dos Irlandeses e dos Italianos) declaravam-se ca-tólicos (Stoetzel, 1982, p. 95). Quinze anos depois, 8 em cada 10 espanhóiscontinuavam a considerar-se católicos e ainda em proporção superior à dospaíses europeus, com a excepção dos Irlandeses, dos Portugueses e dosItalianos. Na European Values Survey de 1981, 63% dos espanhóis reco-nheciam-se como pessoas religiosas. Nos anos seguintes a situação não sealterou: à margem dos níveis de assistência à igreja, 66% consideravam-sereligiosos, uma proporção unicamente superada, de novo, pelos 89% dePortugal, os 82% de Itália e os 71% da Irlanda (Eurobarometer, 42, p. 1995).Contudo, os processos de secularização matizaram aspectos substanciaisdestes auto-retratos genéricos: de acordo com algumas definições da secu-larização (Tschannem, 1991), ocorreu de facto um incremento da reduçãoda significatividade social das instituições, acções e crenças religiosas, odistanciamento em relação às regras e símbolos de pertença a uma religiãoe a indiferença da cultura secular perante as manifestações e experiênciasreligiosas. Deste modo, o tempo transcorrido desde a transição alteroudecisivamente os termos de referência das divisões religiosas mediante oreforço dos perfis de uma sociedade moderna que combina a definição doseu catolicismo com um notável alheamento da ortodoxia católica. A pas-sagem do tempo consolidou também o comportamento responsável e mo-derado da maior parte das elites, que evitaram sistematicamente os confli-tos públicos sobre temas religiosos.

Existem numerosos indicadores empíricos que reflectem o alcance destasmudanças. Aqui seleccionarei apenas quatro: as percepções dos cidadãossobre a sua própria religiosidade, os níveis de assistência à igreja, as opiniõesa propósito do magistério eclesiástico em temas morais e os limites da au-tonomia política sobre as questões conflituosas. No que concerne às primei-ras, as mudanças foram espectaculares. Como pode comprovar-se pelo grá-fico n.° 1, em 1970, 2 em cada 3 espanhóis declaravam-se «muito bons 7057

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católicos» e «católicos praticantes»1. Vinte anos depois, estes grupos viram--se reduzidos à sua terça parte, ao passo que metade se considerava «católicanão praticante» lato sensu e a restante quinta parte se via como «indiferente»e, em muito menor medida, «ateia». (Os crentes de outras religiões mantive-ram-se estáveis em torno de um mínimo de 1%.) Produziram-se dois impor-tantes pontos de inflexão para quase todas as categorias. O primeiro localiza--se entre a morte do general Franco e a realização das eleições de 1977,altura em que o grupo dos católicos praticantes se viu praticamente reduzidoa metade e o número de não praticantes e indiferentes quase duplicou. O segun-do ponto situa-se depois das eleições de 1982, altura em que os católicospraticantes voltaram a sofrer uma redução e os não praticantes e indiferentescontinuaram em expansão, se bem que a um ritmo menor. É evidente queambos os movimentos se relacionam, por um lado, com a descoberta colec-tiva da liberdade, o que para muitos espanhóis implicou um considerávelrealinhamento em matéria de atitudes, e, por outro, com o clima de opiniãoauspiciado pela chegada do PSOE ao governo. Desde meados dos anos 80,os níveis de religiosidade parecem encontrar-se basicamente estabilizados.À semelhança de outras sociedades europeias, a espanhola acabou, assim,por dividir-se em três grandes grupos: o dos muito religiosos, que podem ser,além disso, praticantes; o dos católicos que observam uma prática irregulare/ou uma certa relutância em aceitar os preceitos básicos da Igreja; o dosindiferentes, que não se sentem vinculados ou que recusam a experiênciareligiosa.

A evolução seguida pelo segundo indicador, relativo aos níveis de assis-tência à igreja, revela-se similar. De facto, está estreitamente associado aoanterior2 e revela igualmente um declínio considerável dos aspectos institu-cionais e rituais da religião. Como já se disse, se a Espanha continua a ser

1 Trata-se das respostas à pergunta de autodefinição dos entrevistados, formulada doseguinte modo: «Em matéria de religião, considera-se muito bom católico, católico praticante,católico não muito praticante, católico não praticante, indiferente, ateu ou crente de outrareligião?»

2 De acordo com os dados do inquérito realizado pelo Centro de Investigações Socioló-gicas (CIS) em Junho de 1994 (a uma amostra nacional representativa de 2490 espanhóismaiores de idade), o coeficiente de correlação entre ambos os indicadores era de 0,722.Os coeficientes são também elevados no que diz respeito a outros indicadores similares. Porexemplo, a correlação do indicador de assistência à igreja com o da definição do entrevistadocomo pessoa religiosa alcançava um coeficiente de 0,546 e de 0,547 com o da importânciaque concede a Deus na sua vida; a correlação destes dois últimos indicadores com o anterior-mente examinado da autodefinição religiosa evidenciava até coeficientes superiores (0,702 e0,678, respectivamente). Todos os coeficientes são significativos no nível de 0,01. Pode en-contrar-se uma análise mais completa de correlações similares com base em dados das

1058 European Values Survey de 1981 e 1991, em Jagodzinski e Dobbeleare (1995a, 88-89).

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um país eminentemente católico, deve precisar-se imediatamente que o é decatólicos pouco praticantes (De Miguel, 1996, p. 238). Exprimindo-o emtermos dicotómicos, 75% dos espanhóis reconheciam em 1973 assistirem àigreja uma vez por mês, todos ou quase todos os domingos ou mais de umavez por semana; alguns anos depois, contudo, a proporção reduziu-se dras-ticamente para 29%. E, se há vinte anos só 23% admitiam que nunca assis-tiam à igreja ou que só o faziam algumas vezes por ano, em 1994 a percen-tagem alcança os 55%. Em comparação com outros países europeus, as taxasespanholas de assistência à igreja são, porém, em termos relativos, elevadas.Contudo, a par das da Bélgica e da Holanda, são aquelas que sofreram umadescida mais acentuada e num menor período de tempo (Jagodzinski eDobbeleare, 1995a, p. 95). E, de forma similar à do indicador da autodefiniçãoreligiosa, os anos posteriores à transição foram decisivos na sua evolução:após a queda então produzida, os níveis mantiveram-se estáveis desde meadosdos anos 80.

Evolução da religiosidade em Espanha, 1970-1994

[GRÁFICO N.° 1]

70-

60-

50-

40-

30-

20-

10-

2II

it

o1970 1976 1977 1978 1979 1982 1984 1986 1988 1991 1993 1994

Praticante

Nfto praticante

Não muito praticante

Indiferente

Fontes: Montero (1993, p. 180); para 1994, banco de dados do Centro de InvestigaçõesSociológicas (CIS). 7059

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Mas esta estabilidade esconde um processo de mudança extremamenteimportante. Para o comprovar é necessário recorrer à denominada análisegeracional, que procura determinar os distintos tipos de mudança que afec-tam cada uma das gerações ou coortes ao longo do tempo e com respeito auma dimensão específica3. Os resultados desta análise estão contidos nográfico n.° 2, que recolhe as proporções daqueles que declaram nunca assis-

Mudanças geracionais e níveis de inassistência à igreja, 1970-1994

[GRÁFICO N.° 2]

601

50"

w

40-

30-

20"

10-

1978 1983 1984 1985 1988 1991 1994

Coorte mais velha (a) -'""Wk"'"" Coorte 5 (b)

Coorte 3 (d) JÊÊ Coorte 2 (e)

Coorte 4 (c)Coorte maisjovem (/)

(a) Nascidos antes de 1922; (b) nascidos entre 1923 e 1937; (c) nascidos entre1938 e 1952; (d) nascidos entre 1953 e 1962; (e) nascidos entre 1963 e 1967;(/) nascidos depois de 1968.

Fonte: Torcal (1995, p. 165).

tirem à igreja para seis gerações de espanhóis durante os últimos quinzeanos. É necessário assinalar dois tipos de mudanças. O mais importante é ogeracional. O efeito coorte está patente tanto nas escassas diferenças que

1060

3 As mudanças costumam ser de três tipos: as de idade reflectem as ocorridas em conse-quência do envelhecimento de uma geração ao longo do seu ciclo vital; as de período referem--se às mudanças que afectam o conjunto da população em momentos históricos assinalados;as de coorte reflectem as mudanças que surgem pela mão de novas gerações e que se mantêmao longo do ciclo vital das mesmas, diferenciando-as das restantes gerações.

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manifestam entre si as três coortes mais velhas e as três mais jovens como,sobretudo, na distância que separa a terceira coorte da quarta. Deve ter-se emconta que a terceira coorte corresponde àqueles que nasceram entre os anosde 1938 e 1952 (e que chegaram à maioridade durante a fase de autarquiado franquismo) e que a quarta é a daqueles que nasceram durante a décadade 50 (vivendo, assim, a fase de desenvolvimento económico e alcançandoa maioridade na plena crise do franquismo e ao longo da fase de transição).Por conseguinte, as suas diferenças revelam plenamente o impacto do pro-cesso de secularização. E a continuidade dessas diferenças durante os anosseguintes sublinha o facto de que as mudanças não se devem simplesmentea fases de religiosidade características do ciclo vital dos indivíduos, mas sima uma mudança geracional irreversível. De facto, as duas gerações seguintesobservam exactamente o mesmo modelo. Em comparação com estas mudan-ças, aquelas produzidas pelo efeito período são muito menos relevantes.Tudo isto permite predizer que os níveis de assistência à igreja continuarão,provavelmente, em descida no futuro, à medida que as velhas gerações foremdesaparecendo e continuem sem serem substituídas pelas restantes4.

As mudanças na autodefiniçao religiosa e na assistência à igreja dos Espa-nhóis têm consequências relevantes sobre um terceiro conjunto de indicadores,ligado à relativa desvalorização do magistério da Igreja em questões de moralprivada e moral pública. Dada a abundância de dados disponíveis, bastaráapontar apenas os mais significativos5. Assim, esse distanciamento pareceafectar uma proporção de entre cerca de metade a dois terços dos espanhóis,que se afirmam contrários aos modelos morais defendidos pela Igreja emtemas como o das relações sexuais pré-matrimoniais, o da indissolubilidade docasamento ou o da proibição dos contraceptivos. O alheamento da Igreja pro-duz-se até entre aqueles que se consideram católicos praticantes, sobretudo emmatérias que os afectam pessoalmente. Desta forma, o caso espanhol tambémjá faz parte, e num curto espaço de tempo, da lista de países europeus queexperimentam um incremento do pluralismo religioso e étnico (Jagodzinski eDobbleleare, 1995a). Além disso, a maior parte dos espanhóis, entre os quaisse conta a maioria dos católicos praticantes, mantém uma concepção conside-ravelmente restringida do papel político e moralizante da Igreja. Desde os anos80, 2 em cada 3 espanhóis apoiam a total independência entre a Igreja e oEstado e outros tantos reprovam a intervenção directa da Igreja em apoio doscandidatos ou partidos que melhor defendam os seus interesses e ideias, bemcomo a simples participação na política para moralizar a vida pública. E ape-nas 1 em cada 4 afirma que as pessoas devem ter em conta as suas crenças

4 Como foi já assinalado em numerosos estudos (por exemplo, em Orizo, 1996), a con-tínua diminuição dos níveis de assistência à igreja nas gerações mais jovens é compatível como crescimento de uma certa religiosidade interior.

5 Para mais pormenores, v. Montero (1993), assim como os livros de González Blasco eGonzález-Anleo (1992) e de Diáz-Salazar e Giner (1993). 1061

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religiosas no momento de votar, apenas 1 em cada 5 considera apropriadoque a Igreja fale sobre a política do governo e apenas 1 em cada 6 reconheceque os mandamentos da Igreja têm influência sobre a sua opção política e oseu voto.

Este conjunto de opiniões parece evidenciar a perda do monopólio religiosoostentado até há alguns anos pela Igreja católica, acompanhada por um certoenfraquecimento do catolicismo como única matriz cultural da sociedade es-panhola. A menor incidência da religião institucional sobre as orientações eas actividades dos cidadãos reforça a sua autonomia política. E o correspon-dente processo de individualização favorece a expressão de opções morais quese ajustam melhor às preferências próprias do que à obediência a mandamen-tos religiosos ou eclesisásticos (Ester et al., 1993). O último dos indicadoresescolhidos, que se refere aos níveis de aprovação do aborto, é uma boa provade tudo o que acabámos de dizer. Trata-se, obviamente, de uma questão queafecta em pleno as relações entre os católicos e a política e que conta ademaiscom pronunciamentos inequívocos por parte da hierarquia eclesiástica: daí quesurja também como sumamente ilustrativa da autonomia para manter posiçõesentendidas como heterodoxas. Em termos gerais, as atitudes favoráveis aoaborto têm vindo a aumentar progressivamente, até alcançarem 8 em cada 10espanhóis, sobretudo depois da aprovação no Parlamento, em 1985, de uma leique o despenaliza em determinadas circunstâncias. A partir de então os apoiosa essa lei do aborto compreendem praticamente todos os votantes dos partidosde esquerda. Mas foram especialmente significativos nos sectores conservado-res: em finais da década de 80, por exemplo, entre dois terços e metade dosvotantes do conservador Partido Popular (PP) estavam de acordo com a auto-rização do aborto nos casos em que a saúde física ou mental da mãe está emrisco, a sua vida corre perigo ou se saiba que a criança sofre de uma doençagrave e incurável (Morán e Cantero, 1989, p. 84).

Esta evolução contém ainda, no entanto, um certo potencial de polarização.A hipotética introdução de um novo critério de despenalização — o de que amera decisão da mãe basta para a autorização de um aborto — divide o elei-torado ao longo das linhas religiosas e partidárias. Mas a combinação entre apassagem do tempo e a secularização introduz matizes adicionais nos sectorestradicionalmente contrários ao aborto. Os dados de um inquérito pós-eleitoralde 1993, recolhidos no quadro n.° 1, são ilustrativos da divisão existente6.Sobre a base da religiosidade, a distribuição de opiniões segue uma lógica

6 O inquérito foi realizado pela DATA em Maio e Junho de 1993 a uma amostra repre-sentativa de 1400 espanhóis maiores de idade e foi financiada pela Comissão Interministerialde Ciência e Tecnologia (CICYT); para mais pormenores, v. Gunther e Montero (1994). Noquadro n.° 1 pedia-se aos entrevistados que situassem uma das duas frases («O aborto deveriaser sempre considerado ilegal» e «O aborto deveria ser sempre considerado legal») sobre umaescala de 10 posições: a primeira coluna do quadro recolhe as posições de 1 a 4; a segunda,

1062 a posição 5; a terceira, as posições de 6 a 10.

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rigorosamente monotónica. Mas convém não passar por cima dos 27% de cató-licos praticantes orientados para a legalização do aborto e, ainda que em menormedida, a quase quinta parte dos não praticantes para quem o aborto deveria serconsiderado ilegal. Se se tiver em conta que ambos os grupos religiosostotalizam por volta de 60% dos espanhóis, ficam claramente delineadas as dife-rentes atitudes que coexistem, e com um certo grau de polarização, dentro dopróprio universo católico: metade dos católicos praticantes considera que o abor-to deveria ser ilegal, ao passo que outra metade dos não praticantes pensa ocontrário. Por seu turno, as divisões partidárias oferecem um panorama similar.O eleitorado da Esquerda Unida (IU, uma coligação eleitoral dominada peloPCE) continua a prestar o máximo apoio à causa da legalização do aborto: assimpensam 3 em cada 4 dos seus votantes. No outro extremo do espectro político,os votantes do PP manifestam uma notável divisão, dentro da qual é necessáriodestacar o crescimento relativo nos últimos anos daqueles que se pronunciam afavor da legalização do aborto. O eleitorado socialista reflecte em boa medidaa própria divisão de opiniões da sociedade espanhola. No seu conjunto, estadistribuição de atitudes reforça novamente o alcance do processo secularizadoscuja importância avança paralelamente aos frequentes pronunciamentos de con-denação por parte da Igreja.

Concordância com a consideração legal ou ilegal do aborto,segundo religiosidade e preferências eleitorais, 1993 (a)

(em percentagens horizontais)

[QUADRO N.° 1]

Religiosidade

Católicos praticantes (b)Católicos pouco praticantesCatólicos não praticantesIndiferentesAteus

Votos em 1993 (c)

IUPS OECDSPP

Eleitorado

Abortoconsiderado

ilegal

52281863

9262047

30

Posiçãointermédia

2026242114

13242421

22

Abortoconsiderado

legal

2745567381

75485231

47

(n)

(489)(329)(348)(148)(53)

(112)(488)(25)

(326)

(1 400)

Média

4,15,86,87,68,7

8,06,06,34,5

5,8

(a) As percentagens podem não somar 100 porque não se incluíram as não-respostas.(b) Incluem-se os «muito bons católicos» e os «católicos praticantes».(c) IU (Esquerda Unida, uma coligação dominada pelo Partido Comunista de Espanha,

PCE); PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol); CDS (Centro Democrático e Social);PP (Partido Popular).

Fonte: Inquérito DATA, 1993. 1063

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José Ramón Montero

OS PERFIS IDEOLÓGICOS DOS GRUPOS RELIGIOSOS

Apesar da presença dos fenómenos secularizados, o factor religiosocontinua a ser importante para estruturar o mapa de atitudes e para orientaro comportamento político dos cidadãos. Ainda que careça já da força dasubcultura bianca italiana das décadas de 40 e 50, por exemplo, a religio-sidade subsiste sob a forma de orientações básicas, que operam, por sua vez,como esquemas de referência para a compreensão da realidade política.Numerosos estudos comprovaram a importância das relações entre religiosi-dade, ideologia e voto na maior parte dos países europeus (por exemplo, osde Sani e Sartori, 1983, Inglehart, 1991, pp. 339 e segs., e Hayes, 1995).O caso espanhol não é excepcional: também aqui a religiosidade surge es-treitamente associada às orientações políticas e opções eleitorais. Em contra-partida, as associações entre religiosidade e classe social diminuíram nota-velmente nos últimos anos, uma tendência que constitui uma das mudançasmais reveladoras da evolução do catolicismo espanhol (González Blasco eGonzález-Anleo, 1992, p. 30). Isto reforça a ideia de que a religiosidade jánão depende tanto dos sistemas de estratificação social como dos factoressubculturais propiciados pela memória histórica, pela tradição política e pelasocialização familiar.

O caso espanhol parece destacar-se pela força da associação entre religio-sidade e ideologia, ressaltando, assim, um modelo pelo qual as pessoas maisreligiosas tendem a situar-se sistematicamente na direita do espectro ideoló-gico, e vice-versa. Em Espanha, as correlações entre ambas as variáveisparecem estar entre as mais fortes de um amplo grupo de democracias oci-dentais, superiores até às da Holanda e da Itália7. E obteremos um resultadosimilar se recorrermos a análises multivariáveis que procurem apreciar ainfluência relativa de diferentes variáveis sobre a ideologia dos cidadãos(Montero e Torcal, 1992, pp. 78 e segs.). Esta incidência pode ser compro-vada no quadro n.° 28. Tanto em 1982 como em 1993, dois terços daquelesque se situam, numa escala esquerda-direita, nas posições de direita

7 V., por exemplo, McDonough et al. (1984), p. 662. Em 1982 o coeficiente de correlaçãoentre a autodefinição de religiosidade dos entrevistados e a ideologia (medida através do seuautoposicionamento numa escala de dez posições) era de 0,4; em 1994, no inquérito do CIScitado supra, nota 2, este coeficiente tinha descido, mas alcançava ainda um relevante valorde 0,367. Também em 1994, os coeficientes de correlação da ideologia com outros indicadoresde religiosidade eram similares: 0,372 com a assistência à igreja; 0,328 com a importância deDeus na vida do entrevistado; 0,315 com a sua consideração como pessoa religiosa. Todos oscoeficientes são significativos no nível de 0,01.

8 O inquérito de 1982 foi realizado pela DATA no mês de Outubro, imediatamente depoisdas eleições legislativas, a uma amostra nacional representativa de 5463 espanhóis maiores deidade; para mais pormenores, v. Linz e Montero (1986). Para o inquérito de 1993, v., supra,

1064 nota 2.

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Religião e política em Espanha

autodefinem-se como católicos praticantes; pelo contrário, mais de metadedaqueles que se colocam em posições de esquerda autodefinem-se como nãopraticantes, indiferentes ou ateus. Trata-se de uma situação de relativaassimetria que sublinha a capacidade de atracção da esquerda para o sectormais religioso e que possui importantes consequências para a expressão depreferências eleitorais. E revela, além disso, que essa capacidade do espaçoideológico da esquerda carece de contrapartida na direita: basta comparar os17% de esquerdistas que em 1982 se consideram católicos praticantes como esquálido 1% de conservadores que se dizem indiferentes, ou os 19% deesquerdistas praticantes de 1993 com os 5% de conservadores indiferentes.Entre essas duas datas, a diminuição relativa dos católicos praticantes (ex-cepto na esquerda) e o incremento dos não praticantes nos três sectoresideológicos oferecem novas provas do processo de secularização.

Niveis de religiosidade segundo o autoposicionamento ideológicona escala de esquerda-direita, 1982 e 1993 (a)

(em percentagem)

[QUADRO N.° 21

Católico praticante (b)Pouco praticante . . . .Não praticanteIndiferenteAteu

(n)

Esquerda

1982

172628199

(2 180)

1993

192433167

(596)

Centro

1982

4629186

(1 522)

1993

362728

71

(480)

Direita

1982

6623

(1 005)

5922135

(230)

(a) A escala esquerda-direita é de 1 a 10; as posições de esquerda correspondem às de1 a 4; as de centro, de 5 e 6; as de direita, de 7 a 10. Excluiu-se a não-resposta da base daspercentagens.

(b) Inclui os «muito bons católicos» e os «católicos praticantes».

Fontes: Inquéritos DATA, 1982 e 1993.

Esta evolução foi compatível com uma certa despolarização dos sectoresideológicos sob o ponto de vista religioso. Como pode observar-se no quadron.° 3, em todos os espaços ideológicos os índices de religiosidade9 conhece-ram modificações de conteúdo despolarizador, ou seja, os espaços de esquer-da tornaram-se menos seculares e os centristas e conservadores menos re-

9 O índice de religiosidade foi calculado atribuindo-se um valor de 5 aos «muito bonscatólicos», de 4 aos «católicos praticantes», de 3 aos «católicos não muito praticantes», de 2aos «católicos não praticantes» e de 1 aos «indiferentes» e aos «ateus». 1065

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ligiosos. Os efeitos da secularização facilitaram, assim, uma compatibilidadecrescente entre sentir-se esquerdista e autodefinir-se como católico e reduzi-ram, por outro lado, a elevada religiosidade daqueles que se caracterizavamcomo conservadores e católicos. Trata-se, por outro lado, de uma adaptaçãológica dos cidadãos às percepções maioritárias sobre a diminuição da con-flituosidade religiosa, latente ou real, e sobre as posições dos principaispartidos em relação aos temas religiosos, católicos e/ou eclesiásticos.

índices de religiosidade dos espaços ideológicos, 1979-1993

[QUADRO N.° 3]

Espaços ideológicos

EsquerdaCentro-esquerda. . . .CentroCentro-direitaDireita

Ratio direita-esquerda

1979

1,882,43,43,623,98

2,1

1982

1,932,493,243,673,93

2,03

1993

2,212,522,973,363,71

1,68

* A esquerda agrupa as posições 1 e 2; o centro-esquerda, 3 e 4;o centro, 5 e 6; o centro-direita, 7 e 8; a direita, 9 c 10.

Fontes: Inquéritos DATA, 1979, 1982 e 1993.

Finalmente, cada um dos grupos religiosos contém também uma expressãoinequívoca das estreitas relações existentes entre ideologia e religiosidade. Deforma sistemática desde 1978, aqueles que se identificaram com a máximareligiosidade colocaram-se também nas posições mais conservadoras do con-tínuo ideológico; a descida no nível de religiosidade implicou sempre umdeslocamento monotónico em direcção à esquerda. De todas as formas, adistribuição ideológica dos diferentes grupos religiosos volta a revelar-se as-simétrica: a inclinação geral do eleitorado espanhol para a esquerda e os pro-cessos de secularização favoreceram uma considerável presença de indivíduosidentificados com a esquerda entre os católicos praticantes, uma presença quecarece da equivalência conservadora nos sectores indiferentes ou ateus. Estacaracterística viu-se até reforçada na década de 90. Actualmente, os espanhóisde esquerda aumentaram entre os católicos praticantes e os não muito pratican-tes; no entanto, os conservadores mantiveram os mesmos níveis entre os nãopraticantes, os indiferentes e os ateus. No geral, as posições médias dos muitobons católicos movem-se em torno de 6,0 (nas já referidas escalas de dezpontos), os católicos praticantes entre 5,5 e 5,8; os católicos não praticantes emtorno de 4,0, os indiferentes entre 3,3 e 3,6 e os ateus entre 3,1 e 2,710.

1066

10 Estes dados provêm do inquérito de 1993 citado supra, nota 6. A posição média doeleitorado era de 4,6.

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Religião e política em Espanha

RELIGIOSIDADE E PREFERENCIAS ELEITORAIS

Como noutros países europeus, também em Espanha a religiosidade está,obviamente, relacionada com as preferências eleitorais. Trata-se de um factorrelevante, mas certamente não determinante. Ainda que o factor religiosotenha mais peso do que outras variáveis sócio-demográficas, ele surge vin-culado a elementos tradicionais da decisão eleitoral, como a proximidadepartidária, a identificação ideológica ou a valorização dos líderes. No casoespanhol, esta combinação de factores apresenta algumas peculiaridadesdevido às condições em que teve lugar a transição democrática. Essas peculia-ridades impediram que as diferenças religiosas se constituíssem numa dasclivagens através das quais os partidos articulam sectores sociais determina-dos e estabelecem relações duradouras com os seus eleitores, tal como fize-ram os democratas-cristãos europeus nos inícios do nosso século ou depoisda segunda guerra mundial (Kalyvas, 1996). Ao contrário desses casos, atransição espanhola teve lugar numa sociedade moderna, caracterizada pelarelativa fluidez da sua estrutura social, a elevada mobilidade social, a exten-são de níveis educativos elevados e a generalização dos meios de comuni-cação de massas, especialmente da televisão. Depois da extraordinária vio-lência da clivagem religiosa dos anos 30, as novas elites políticas abordarama mudança política com uma vontade determinada de evitarem a politizaçãode eventuais conflitos com a Igreja e de procurarem soluções pragmáticaspara todos os casos. Os partidos da esquerda, particularmente afectados porimagens de anticlericalismo que remontavam aos anos 30, levaram a cabouma política de moderação nas questões religiosas. Desde os inícios da tran-sição, os efeitos da secularização atenuaram as diferenças religiosas entresectores sociais, subtraíram intensidade aos conflitos surgidos no períodoconstituinte e dificultaram as possibilidades de intervenção eclesiástica direc-ta no campo político. Além disso, as mudanças sociais ocorridas desde osanos 60 tinham debilitado a capacidade de mobilização da Igreja: a suapresença organizativa na sociedade espanhola era escassa e assim continuoua ser durante as três décadas seguintes. Ainda na esteira do ConcílioVaticano II, a ausência de um inimigo a combater (como foi o comunismona Itália do pós-guerra, por exemplo) e a franca decadência das organizaçõescatólicas de laicos contribuem para explicar a ausência de um partido demo-crata-cristão. Os líderes que se apresentaram sob esse rótulo nas primeiraseleições de 1977 não conseguiram receber o apoio explícito da Igreja e nãoobtiveram mais do que 1,4% dos votos devido a uma equivocada estratégiaeleitoral e a uma campanha cheia de erros. Na verdade, a UCD, o partido quepilotou a transição no governo, converteu-se, até à sua desaparição em 1982,numa «alternativa funcional» à democracia cristã (Linz, 1993, p. 35).

Como se articulou então a incidência da religiosidade na distribuição daspreferências eleitorais? 0 caso espanhol ilustra os argumentos de Kalyvas(1996, pp. 9, 11 e 116) sobre os efeitos das estratégias deliberadas dos líderes 1067

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políticos para despolitizar as diferenças religiosas, evitar a construção deidentidades políticas sobre as sociais caracterizadas pela religiosidade e, detácito acordo com a hierarquia eclesiástica, renunciar ao estabelecimento departidos confessionais; estratégias que foram, além do mais, marcadas porum processo de secularização particularmente intenso. Em Espanha a com-binação destes pressupostos com os anteriores cristalizou no declínio políticoda clivagem religiosa: a correspondência religiosidade-partidos, e religiosi-dade-voto, foi relativamente elevada no início da transição, mas conheceudesde então uma progressiva redução. Naturalmente, os diferentes gruposreligiosos manifestaram preferências específicas pelos partidos e seus líderese os votantes caracterizaram-se também pela expressão de perfis próprios emtermos de religiosidade. Mas aquelas preferências não foram homogéneas,nem se mantiveram estáticas ao longo do tempo. E estas diferenças não seprojectaram de igual modo sobre todos os grupos de votantes, o que permitiuque a religiosidade surgisse como um factor básico de discriminação paraalguns partidos, mas não para outros.

Para comprovar estes modelos recolhi no quadro n.° 4 dados de inquéritospós-eleitorais sobre a incidência das identidades religiosas nos votos aos parti-dos11 e das sete eleições legislativas realizadas até ao momento seleccionei as de1979, 1982 e 1993, uma vez que são as mais significativas de cada uma das trêsetapas em que pode dividir-se a ainda curta história eleitoral espanhola (Montero,1994). De um modo geral, os dados mostram a correspondência entre religiosi-dade e partidos conservadores, e vice-versa, mas também uma crescente hetero-geneidade religiosa nos eleitorados dos partidos. Em 1979, a UCD conseguiumanter os níveis alcançados em 1977, conseguindo em ambas as eleições umapresença muito elevada entre os grupos mais religiosos e considerável entre osmenos praticantes. Em 1982, a desintegração da UCD permitiu à coligação AP--PDP herdar uma boa parte dos antigos votantes católicos e centristas, mas oPSOE conseguiu duplicar o seu peso entre todos os grupos religiosos. Compa-rada com a concentração das preferências esquerdistas dos sectores não pratican-tes e indiferentes, os mais religiosos mostravam uma notável dispersão. Estaheterogeneidade parece ter-se consolidado nas eleições dos anos 90. Apesar dacrescente dinâmica bipolar do PSOE e do PP, o voto dos praticantes continuoua caracterizar-se pela sua divisão entre os dois principais partidos. E, se metadedos muito bons católicos votou PP, uma terceira parte votou PSOE; entre oscatólicos praticantes, o peso dos partidos socialista e conservador revela-seequiparável. Desta forma, o caso espanhol impossibilitava a reprodução domodelo italiano, baseado numa subcultura católica cuja expressão eleitoral ra-

11 O inquérito de 1979 foi realizada pela DATA no mês de Abril a uma amostra nacionalrepresentativa de 5439 espanhóis maiores de idade; para mais pormenores, v. Gunther, Sani e

1068 Shabad (1986); para os inquéritos de 1982 e 1993, v., respectivamente, notas 8 e 6.

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Religião e política em Espanha

dicara quase exclusivamente nos partidos conservadores. Ao nível dos votantes,a relativamente escassa coesão política dos sectores católicos sublinhava umavez mais o enfraquecimento da clivagem religiosa. E, ao nível dos partidos,supunha, por sua vez, uma boa prova da capacidade socialista para desenvolverestratégias catch-all depois da crise da UCD e das limitações dos conservadorespara se fazerem maioritários junto de um eleitorado que, segundo os seus pres-supostos, deveria ser-lhe favorável.

Votos nas eleições legislativas de 1979, 1982 e 1993segundo níveis de religiosidade (a)

(em percentagens horizontais)

[QUADRO N.° 4]

Votos em 1979 (b) PCE PSOE UCD AP-CD Abstenção (n)

Muito bom católicoCatólico praticantePouco praticante .Não praticanteIndiferenteAteu

Votos em 1982 (b)

Muito bom católicoCatólico praticantePouco praticanteNão praticanteIndiferenteAteu

Votos em 1993 {b)

Muito bom católicoCatólico praticantePouco praticanteNão praticanteIndiferenteAteu

125

101523

111325322916

5142311571

141215182432

(511)(1737)(1217)(965)(522)(262)

PCE PSOE UCD AP-PDP Abstenção (n)

2123

1126

293357676647

101062

3439211121

211311152026

(333)(1 083)(1 070)(826)(455)(168)

IU PSOE CDS PP Abstenção (n)

136

111728

313440363324

46342317104

11121420

(80)(377)(342)(348)(145)(50)

(a) Excluiu-se a não-resposta da base das percentagens. As filas podem não totalizar 100uma vez que não se incluíram outros partidos votados.

(b) UCD (União do Centro Democrático); AP-CD (Centro Democrático, uma coligaçãodominada pela Aliança Popular); AP-PDP (Aliança Popular-Partido Democrata Popular, umacoligação dominada pela primeira); PP (Partido Popular).

Fontes: Inquéritos DATA, 1979, 1982 e 1993.

O debilitamento da clivagem religiosa que se deduz destas tendências éreafirmado por um indicador complementar, que consiste na composição dos 1069

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eleitorados dos principais partidos do ponto de vista religioso. Como podeexaminar-se no quadro n.° 5, cada um deles possui uma espécie de marcacaracterística, que distingue igualmente os partidos de esquerda dos de direi-ta. Mas é também evidente que essas diferenças se atenuaram com a passa-gem do tempo. Actualmente, a composição religiosa do PSOE distribui-seem partes quase iguais entre os católicos praticantes e os não muito pratican-tes, por um lado, e os não praticantes e não crentes, por outro, mas não deixade ser significativo para um partido social democrata que os primeiros te-nham uma certa superioridade sobre os segundos. No caso do PP, quase 8votantes em cada 10 afirmam-se católicos praticantes ou não muito pratican-tes. No caso do PSOE, a maior proporção dos seus votantes foi, tradicional-mente, a dos católicos de prática irregular; no do PP, o grupo dos católicospraticantes é duas vezes superior ao dos não muito praticantes e ao dos nãocrentes. Estas marcas conferem ao PSOE uma atraente similitude com adistribuição religiosa dos Espanhóis. As suas diferenças internas revelam-semais proporcionadas do que as do PP, cuja metade do seu eleitorado é muitobom católico ou católico praticante, ou do que as do IU, cujos dois terços dosseus votantes se declaram ateus e indiferentes. De forma mais sintética, osíndices de religiosidade, recolhidos também no quadro n.° 512, expressam adespolarização produzida na composição religiosa dos votantes dos partidos:a intensidade inicial dos perfis religiosos de todos e cada um dos partidosdesvaneceu-se. A distância entre os partidos extremos reduziu-se notavel-mente: se o PCE apresentava em 1979 um índice de 1,69, em 1993 tinhaascendido (baixando, portanto, o seu conteúdo secular) a 2,08; no outroextremo, o AP/PP desceu (diminuindo, em consequência, o seu conteúdoreligioso) de 4,17 em 1979 para 3,32 em 1993. Dessa forma, se o ratio entreas posições extremas de comunistas e conservadores era, em 1979, de 2,46,os efeitos da despolarização reduziram-na, em 1993, para 1,59.

Até que ponto é circunstancial ou, pelo contrário, duradoura a perda derelevância da clivagem religiosa? Se aplicássemos ao campo das preferênciaseleitorais a análise geracional que efectuámos antes relativamente à assistênciaà igreja, caberia assinalar como hipótese a existência de um efeito período naactual composição religiosa dos principais partidos. De acordo com esta hipó-tese, as atitudes de moderação ideológica dos Espanhóis, as mudanças ocor-ridas nos seus níveis de religiosidade e na sua correspondente falta de adequa-ção estrita entre religião e voto, poderiam ser simplesmente uma consequênciaconjuntural do novo contexto de liberdade religiosa e de pluralismo político.

12 Deve recordar-se que os valores do índice oscilam entre um máximo de 5 e um mínimode 1; para o seu cálculo, v., supra, nota 9. Os índices do eleitorado no seu conjunto eram de

1070 2,94 em 1979, 2,98 em 1982 e 2,82 em 1993 (Montero, 1993, p. 241).

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Composição religiosa dos votantes dos partidos, 1979-1993

[QUADRO N.° 51

PCE PSOE UCD AP PCE PSOE UCD AP

1993

IU PSOE PP

Muito bom católico e católicopraticante

Pouco praticanteNão praticanteIndiferente e ateu

(n)

índices

13161661

(357)

1,69

25262721

d 135)

2,59

632493

(1 563)

3,44

63

23

10

3

(155)

4,17

131661

(152)

1,69

24

30

27

19

(2 004)

2,62

642871

(232)

3,70

6226111

(875)

3,72

10

20

35

35

(110)

2,08

32

28

27

13

(479)

2,86

5125185

(321)

3,32

Fontes: Inquéritos DATA, 1979, 1982 1993.

Mas a passagem do tempo poderia dar lugar a mudanças ao nível dessas atitudes,no sentido de se tornarem cada vez mais religiosas e conservadoras, ao ponto dese assimilarem, nas fases superiores do seu ciclo vital, às características dasgerações mais velhas. Isto poderia supor que os eleitores restabelecessem aidentificação entre religiosidade e conservadorismo (e o seu contrário nos par-tidos de esquerda) e que, consequentemente, votassem apenas em partidos con-servadores: a composição religiosa dos votantes dos partidos manifestaria, assim,diferenças muito mais intensas e a clivagem religiosa recuperaria, de mododefinitivo, uma boa parte da sua relevância. Além disso, esta hipótese seriareforçada se as elites políticas abandonassem a sua estratégia de moderação epragmatismo nos conflitos de natureza religiosa (estratégia essa que remonta aosmomentos da transição) e protagonizassem posições mais radicais que os levas-sem à formulação de identidades religiosas em termos ideológicos, à politizaçãodas diferenças religiosas ou à confrontação aberta com a Igreja em matéria depolíticas religiosas. Não parece, contudo, que esta hipótese esteja em vias derealizar-se: existem provas empíricas que denegam os efeitos de período nasrelações entre religiosidade e voto (e, portanto, o seu carácter meramente cir-cunstancial ou conjuntural) e que sublinham a existência de mudançasgeracionais (e, em consequência, a sua estabilidade). Como se recordará, já antescomprovámos a presença de efeitos de coortes na descida da taxa de assistênciaà igreja ocorrida ao longo dos últimos vinte anos. Uma análise mais demoradadas distribuições da religiosidade e dos votos em algumas coortes permitir-nos--á conhecer com maior precisão a intensidade dessas mudanças geracionais. Paratanto comparámos dados de 1994 relativos às duas coortes mais velhas (queagrupam os entrevistados nascidos antes de 1937) e às duas mais jovens (queagrupam os nascidos depois de 1963)13. Os resultados são apresentados no

13 Utilizei o inquérito do CIS de Junho de 1994 citado supra, nota 2. O número de casosdas coortes mais velhas era de 848 e o das mais jovens de 399. 1071

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quadro n.° 6 e expressam-se em termos do índice de diferenças das percentagens(IDP), ou seja, as diferenças em pontos percentuais entre as proporções dosdois grupos de coortes seleccionadas realtivamente à variável do voto e adois indicadores de religiosidade.

Votos, religiosidade e diferenças geracionais, 1994 (a)

(em percentagem)

[QUADRO N.° 61

Partido votado (c)

IUPSOEPP . . .

Autodefinição de religiosidade

Católicosprati-cantes (b

393144

Nãoprati-cantes

- 1 1- 2 4- 2 5

Indife-rentes eateus

- 2 1- 1 0

- 4

Frequência de assistência à igreja

Todos osdomingos

emais

232743

Uma vezpor mês

97

- 5

Nunca

- 3 0- 2 4- 1 6

(a) Os números correspondem aos índices de diferenças de percentagens (IDP) entre asduas coortes mais velhas e as duas mais jovens dentro do eleitorado de cada partido.

(b) Incluem os «muito bons católicos» e os «católicos praticantes».(c) Partido votado nas eleições legislativas de 1993.

Fontes: Banco de dados do CIS.

1072

Como pode ver-se, os valores dos índices são sistemáticos e suficiente-mente elevados. Para todos e cada um dos partidos seleccionados, o factorgeracional das identidades religiosas parece revestir-se de uma importânciadecisiva. Por exemplo, entre os votantes do IU 52% dos membros das gera-ções mais velhas definem-se como católicos praticantes face a apenas 13%das mais jovens; o IPD é, portanto, de 39. Ainda que com menor intensidade,esta relação produz-se também para os votantes do PSOE e, sobretudo, paraos do PP. Neste último caso, 73% dos membros das gerações mais velhasdefinem-se como católicos praticantes, contra apenas 29% dos membros dasgerações mais jovens; o IPD é de 44. O factor geracional tem, mesmo assim,uma incidência fundamental no que diz respeito aos católicos não pratican-tes, ainda que neste caso predominem as gerações mais jovens (e os índicessejam, portanto, negativos). Entre os votantes do PP só 8% dos membros dasgerações mais velhas se caracterizam como católicos não praticantes, contra33% dos membros das gerações mais jovens; o IPD é de - 2 5 . O resultadoé semelhante quando se utiliza o indicador da assistência à igreja, tambémapresentado no quadro n.° 6. Em todos os casos, as gerações mais velhaspredominam sobre as mais jovens no que diz respeito à assistência à igreja:daí os índices positivos. E as coortes mais jovens superam as mais velhas emmatéria de inassistência: os índices são sempre negativos e, do mesmo modo,

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Religião e política em Espanha

elevados. Desta forma, os IDPs revelam-se consistentes para os eleitoradosde todos os partidos, visto que as duas gerações mais velhas superam as duasmais jovens nos dois indicadores de religiosidade seleccionados, e o contrá-rio também é certo para aqueles que se consideram católicos não praticantese declaram nunca irem à igreja. Parece, pois, provável que a clivagem reli-giosa continue a enfraquecer à medida que as gerações mais velhas abando-nem o censo eleitoral e sejam substituídas por outras que conheceram expe-riências de socialização religiosa muito mais seculares.

Em termos comparativos, os resultados despolarizadores da clivagem reli-giosa revelam-se igualmente interessantes. Uma análise multivariável de 14eleições de nove países nas duas últimas décadas revela que em Espanha,apesar de não contar com um partido democrata-cristão, a força da religiosi-dade como factor de ancoragem do voto era, em finais dos anos 70, semelhan-te à da Itália e superior à da Áustria ou da Alemanha. Nos anos 90, contudo,sofreu uma notável redução: tem uma certa importância apenas para o IU, éescassamente significativa para o PP e carece de importância para o PSOE.A combinação entre as estratégias das elites políticas e os processossecularizadores experimentados pelos Espanhóis teve como consequência oquase desaparecimento da religiosidade como aspecto destacável do compor-tamento eleitoral dos mesmos (Gunther e Montero, 1994, p. 525)14. E tambémnão parece provável, por último, que a intervenção das organizações católicasou da própria Igreja possa modificar a curto prazo esta situação: apenas 3%dos espanhóis afirmam pertencerem a uma organização religiosa. Por outrolado, e apesar das habituais declarações da hierarquia eclesiástica em cadacampanha eleitoral sobre o sentido do voto dos católicos, apenas 8% doseleitores declararam em 1993 que tiveram em conta as recomendações daIgreja na sua tomada de decisão. A debilidade do factor religioso é tão notávelque 60% dos espanhóis desconheciam qual o partido favorecido pela Igrejadurante a campanha de 1993: apenas 29% indicaram o PP, 8% afirmaram quea Igreja era imparcial e 3% que favorecia os socialistas (Gunther e Montero,1996, pp. 22-23).

OBSERVAÇÕES FINAIS

Durante os últimos vinte anos, o dado mais relevante do factor religiosoconsistiu precisamente na sua crescente irrelevância. Isto sublinha, paracomeçar, uma radical descontinuidade histórica com a politização da religiãodurante a II República, altura em que, há seis décadas, os conflitos religiososdividiram os Espanhóis em blocos partidários tão opostos quanto irreconcili-

14 Para outras análises com resultados similares, v. Franklin et al (1992) e Knutsen(1995). 1073

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áveis. Apesar da asfixiante imposição do nacional-catolicismo durante o longoregime autoritário, o papel da religião parece ter-se alheado definitivamentedos tradicionais confrontos entre clericais e anticlericais, das privilegiadasrelações existentes entre a Igreja e os partidos conservadores, de um conflitoreligioso cuja sobreposição aos restantes problemas sociais ou políticosfacilitava o seu agravamento a pontos difíceis de imaginar nos nossos dias.Para apresentar um só exemplo da transcendência desta mudança, bastaráassinalar a distância percorrida entre a percepção que os Espanhóis dos anos30 deviam ter de uma Igreja que abençoou a guerra civil e legitimou o novoEstado franquista e as dificuldades que os Espanhóis tiveram, em 1993, paradiscernirem as preferências partidárias da Igreja por ocasião das eleiçõeslegislativas: de acordo com os dados de um inquérito pós-eleitoral15, apenas29% dos entrevistados declararam que a Igreja tinha favorecido o PP (e 3%apontaram o PSOE), enquanto nada menos de 59% não respondiam à per-gunta.

O processo de secularização vivido pela sociedade espanhola está pordetrás de uma parte destas mudanças. Este fenómeno, para além de reduziro número dos católicos praticantes e de esbater os sentimentos de pertençareligiosa de todos os outros, limitou a capacidade de influência da Igreja edificultou a criação de vínculos organizativos entre os partidos e as associa-ções religiosas. É certo que, apesar de tudo, subsistem situações de desacor-dos potenciais e polarizadores, mas acabam por ser canalizadas por dirigen-tes partidários e sociais que estão de acordo com a despolitização dosconflitos religiosos. Durante o período da transição, os temas das relaçõesentre a Igreja e o Estado, da legalização do divórcio e do tratamento cons-titucional da educação foram abordados pelas elites políticas e eclesiásticascom o determinado propósito de evitar confrontos. Por parte das elites po-líticas, mediante os mecanismos consensuais na redacção da Constituição, asua negativa explícita à construção de partidos confessionais e a estratégiade moderação no tratamento das suas divergências com a hierarquia eclesiás-tica. E, por parte desta, mediante a sua desidentificação com o regimefranquista, o apoio ao processo democratizador, a utilização de uma lingua-gem moderada na defesa dos direitos da Igreja e, fazendo da necessidadevirtude, o desentendimento das intenções eleitorais dos líderes demo-cristãos.

Depois, o aparecimento de novas tensões foi acompanhado por atitudesde desigual moderação nos seus delineamentos. Mas a evolução do eleitora-do diminuiu as possibilidades de expansão do conflito entre os partidos.É certo que a religiosidade manifestava uma notável associação com asorientações ideológicas e que a religiosidade e a ideologia se encaminhavampara preferências eleitorais relativamente homogéneas. Depois das eleiçõesde 1982, contudo, as mudanças na composição religiosa dos partidos contri-

1074 buíram decisivamente para amortecer os conflitos que chegavam, por fim, à

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arena política. Além disso, os perfis religiosos dos partidos foram-se desva-necendo um pouco à medida que diminuía o impacto da religiosidade sobreo voto. Um primeiro resultado dessas mudanças assenta na maior heteroge-neidade dos apoios eleitorais dos grupos religiosos. E uma segunda conse-quência obriga os partidos a compatibilizarem a procura procedente dosnúcleos básicos dos seus votantes com a oferta dirigida a todos os cidadãos,independentemente do seu nível de religiosidade. Juntamente com a diminui-ção dos sentimentos religiosos e o declínio institucional da Igreja, a políticaespanhola apresenta, assim, rasgos estruturais historicamente inauditos: atendência para a despolarização dos conflitos com que periodicamente seenfrentam os sectores políticos e religiosos, a crescente improbabilidade deconfrontações partidárias e eleitorais graves por motivos religiosos, umacompetição entre partidos que premeia aqueles que procuram conciliar todosos sectores religiosos e evitam a mobilização de alguns deles contra osrestantes.

Durante os últimos anos dos governos do PSOE, alguns sectores da hie-rarquia eclesiástica introduziram elementos específicos neste panorama. Osseus diagnósticos enfatizaram as componentes do neopaganismo dos Espa-nhóis apontado por João Paulo II em 1991, atribuíram propósitos descris-tianizadores aos meios de comunicação públicos, denunciaram as campanhasanticlericais e anticonfessionais do PSOE, criticaram supostas estratégiasanti-religiosas nas políticas educativas e vincularam estreitas concepçõespejorativas de laicismo e secularismo às actividades dos governos socialistas(Díaz-Salazar, 1994). As definições da situação efectuadas pela hierarquiaeclesiástica mostravam doses variáveis de desconcerto, irritação e hostilidade(González Blasco et al, 1994). E, se as manifestações de hostilidade sedirigiam principalmente contra os poderes públicos socialistas, já substituí-dos desde a Primavera de 1996 por um governo do PP, as reacções dedesconcerto e irritação parecem reflectir o mal-estar da hierarquia perante aescassa aceitação das suas propostas sobre os limites da modernização social,o pluralismo ideológico e a competência política. Um aspecto fundamentaldesse mal-estar radica no desajuste apreciável entre os critérios eclesiásticospara a actuação dos católicos na vida pública e os comportamentos efectivosde muitos católicos no momento, por exemplo, de exercerem o seu direito devoto. Trata-se de uma das consequências surgidas tanto do êxito das elitespolíticas na despolitização das diferenças religiosas como do próprio proces-so de secularização, que conferiu aos católicos espanhóis uma autonomiaindividual muito maior do que supõem os porta-vozes da hierarquia eclesiás-tica. E trata-se igualmente de uma consequência que questiona os pressupos-tos daqueles que procuram canalizar exclusivamnete para os partidos conser-vadores o voto de todo o eleitorado católico. Por razões semelhantes,também não foram mais acertadas as estratégias de alguns líderes conser- 1075

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vadores quando confundiram o facto de que os seus partidos contam com umeleitorado esmagadoramente católico com o desejo de que uma esmagadoramaioria dos católicos tenha de votar necessariamente nos seus partidos. Mastrata-se de uma situação que já não parece poder reverter-se. Depois de longosperíodos de conflitos religiosos resolvidos a cristazo limpio, como costumavadescrevê-los José Bergamín (1974, p. 274) na II República, o comportamentoeleitoral dos novos espanhóis (católicos ou não) caracterizou-se ao longo dosúltimos vinte anos, e também sob o ponto de vista religioso, por doses histo-ricamente desconhecidas de moderação, tolerância e pluralismo.

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Tradução de Rui Cabral

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