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1 Controle social de políticas públicas: o financiamento do BID para a reabilitação do Centro de São Paulo Relatório III - ANEXOS 30 de novembro de 2007 7. Anexos 7.1. Trabalho dos colaboradores 7.1.1. Helena Menna Barreto Silva (Componente Habitacional no Programa) 7.1.2. Francisco Comaru e Rosa Falzoni (Participação Social no Programa) 7.1.3. Lisandra Guerra (Financeiro do Projeto) 7.1.4. Pedro Fiori Arantes (Discurso dos gestores públicos)

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Controle social de políticas públicas:

o financiamento do BID para a reabilitação do Centro de São Paulo

Relatório III - ANEXOS

30 de novembro de 2007

7. Anexos

7.1. Trabalho dos colaboradores

7.1.1. Helena Menna Barreto Silva (Componente Habitacional no Programa)

7.1.2. Francisco Comaru e Rosa Falzoni (Participação Social no Programa)

7.1.3. Lisandra Guerra (Financeiro do Projeto)

7.1.4. Pedro Fiori Arantes (Discurso dos gestores públicos)

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7.1.1. Helena Menna Barreto Silva (Componente Habitacional no Programa)

_______________________________________________________________ A habitação no financiamento do BID para o centro de São Paulo

Helena Menna Barreto Silva

SUMARIO

1. Antecedentes: a política de habitação para o centro e a problemática da habitação nas propostas de recuperação do centro (nos anos 90)

1.1 Diagnósticos e propostas para habitação no centro

1.2 A habitação nas propostas de revitalização do Centro

2. Fundamentos e pressupostos do componente habitacional no financiamento BID a partir de 2001: o plano "Reconstruir o Centro" e o programa "Morar no Centro"

2.1 o plano "Reconstruir o Centro"

2.2 o programa "Morar no Centro"

3. O processo de negociação do componente habitacional

3.1 Principais pontos de conflito na montagem do componente

a) O programa de Locação Social

b) Recuperação ou demolição do edifício São Vito?

c) Incentivos para atração de moradores de média renda

3.2 Acordos e contrapartidas estabelecidos até 2004

3.3 A alteração dos pressupostos sobre a habitação no centro desde 2005

4. Considerações finais

5. Referências bibliográficas

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1. Antecedentes: a política de habitação para o centro e a problemática da habitação nas propostas de recuperação do centro nos anos 90

1.1 Diagnósticos e propostas para habitação no centro Durante muitos anos, para as políticas públicas, a problemática habitacional na área central foi resumida à questão dos cortiços. Posteriormente, começou a manifestar-se uma preocupação com o abandono da região pelas famílias de classe média e com o esvaziamento dos prédios residenciais.

O cortiço, definido como uma modalidade de moradia coletiva precária de aluguel acolheu os trabalhadores mais pobres e os imigrantes desde os primeiros tempos da cidade. Desenvolveu-se muito no centro aproveitando as residências abandonadas pelos moradores das classes médias e altas quando estes se mudaram para outros bairros ou ainda a possibilidade de construção de novos cômodos nos fundos de lotes. E tem persistido porque existe uma demanda formada por trabalhadores que precisam estar próximos ao local de trabalho e não possuem a renda ou a documentação necessária para alugar um apartamento no mercado formal. Por outro lado, a oferta de cortiços também persiste porque se trata de uma atividade bastante lucrativa. Os aluguéis cobrados são muito caros, se considerados os seus valores por metro quadrado dos cômodos alugados.

O número de cortiços e moradores foi objeto de estimativas ou pesquisas amostrais diversas, geralmente ligadas aos numerosos planos que não chegaram a ser implementados. Em 1968, o Plano Urbanístico Básico (PUB) estimava que os encortiçados representavam 10,3% das famílias e 8,1% da população1. Seus moradores fariam parte de uma demanda para programas habitacionais da Cohab e Inocoop. O plano plurianual de 1975 considera 170 mil famílias em cortiços, das quais 35,8% no setor Brás-Mooca e 20,3% no centro. Um estudo da COGEP, em 1975, estima em 9,3% da população da cidade morando em cortiços; em 1985, a SEMPLA fala em 17,7%; em 1989, uma atualização da PMSP elevou esse número (incluindo também moradias precárias de aluguel da periferia) para 28%.(DIOGO, 2005). No entanto, os dados disponíveis parecem indicar uma redução do tamanho do problema nos anos 90: segundo a pesquisa amostral encomendada pela SEHAB à FIPE em 1993, a população encortiçada no município correspondia a 6% do total do município, sendo que a residente nos distritos pertentes à antiga Administração Regional da Sé era de cerca de 120 mil pessoas (cerca de 25% da população) e na AR-Mooca era superior à 30%. Pesquisas realizadas pela Fundação SEADE para a Companhia de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), o número de cortiços em diversos bairros centrais diminuiu entre 1997 e 2004.

Desde os anos 70 existiram programas municipais pontuais de assistência aos moradores de cortiços, inclusive com apoio de ONG especializadas, como a ADM. Houve também casos de atendimento a encortiçados em programas de mutirão e outros, na periferia. Mas é somente a partir do início dos anos 90 que ocorrem programas que contemplam o atendimento a encortiçados em programas habitacionais no próprio Centro. Na administração Luisa Erundina (1989-1992), foi iniciada a construção de 2 conjuntos habitacionais pelo sistema de mutirão, o Madre de Deus (48 unidades), na Mooca, e o Celso Garcia (192 unidades), no Brás. No âmbito do sub-programa de cortiços também foram adquiridos, com recursos municipais, cinco outras edificações encortiçadas, as quais deveriam ser objeto de projeto para cerca de 120 famílias moradoras. Nesse mesmo período, foi proposta a criação de zonas de especial interesse social (ZEIS) na área central, uma atuação mais ampla de melhoria integral de bairros centrais e nova produção (ver tese). No entanto, o programa municipal teve 1 Nessa época, nas favelas moravam apenas 10.000 famílias

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vida curta, tendo sido interrompido nas gestões seguintes (Paulo Maluf e Celso Pitta), até 2000.

Desde meados da década de 90, a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo) implementa o Programa de Atuação em Cortiços (PAC), com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do governo estadual. A meta do PAC era atender 50002 famílias entre 2002 e 2007 (primeira fase); outras 11 mil, entre 2007 e 2011. Para tanto utilizaria 110 milhões de dólares do BID e 110 milhões da CDHU, em ações de reabilitação ou substituição de edifícios encortiçados (novas edificações), assim como cartas de crédito para acesso a moradia no centro ou em outras regiões.

A busca por moradia no centro deu origem a uma forma de luta desenvolvida pelos movimentos populares a partir do final dos anos 90: as ocupações organizadas. As ocupações se concentraram entre 1997 e 2000, quando 30 prédios foram ocupados, envolvendo cerca de 3.673 famílias. A partir dessas ocupações, os movimentos sociais, em cooperação com assessorias técnicas, desenvolvem projetos e buscam negociar com a Caixa, com o governo estadual e com o município, buscando alternativas de financiamento para reformar os prédios e garantir seus direitos de moradores.

Mas a problemática da habitação no centro é mais ampla que a do cortiço. Desde os anos 60, fala-se num êxodo das famílias de classe média, não havendo estudos precisos sobre as razões dessa saída. Mas certamente podemos apontar a busca pela casa própria em bairros residenciais, facilitada pelos recursos do BNH; e a fuga dos incômodos causados pela poluição ambiental, assim como pela mescla de usos.

Tabela 1: Evolução da população residente (1980, 1991 e 2000) e densidade dos distritos centrais

Distrito Sub-Prefeitura

População residente População perdida

Censo de 1980 (1)

Censo de 1991

Censo de 2000

perda % entre 1980 e 2000 Habitantes /ha

Bela Vista Sé 85.333 71.825 63.143 26% 242,9 República Sé 60.940 57.797 47.459 22% 206,3 Santa Cecília Sé 94.451 85.829 71.111 25% 182,3 Liberdade Sé 82.392 76.245 61.850 25% 167,2 Consolação Sé 77.264 66.590 54.301 30% 146,8 Sé Sé 32.933 27.186 20.106 39% 95,7 Mooca Mooca 84.501 71.999 63.211 25% 82,1 Cambuci Sé 44.807 37.069 28.620 36% 73,4 Brás Sé 38.592 33.536 24.505 37% 70 Bom Retiro Sé 47.542 36.136 26.569 44% 66,4 Belém Mooca 58.300 49.697 38.268 34% 63,8 Pari Mooca 26.942 21.299 14.521 46% 50,1

Barra Funda Lapa 17.877 15.977 12.936 28% 23,1

Total 13 Distritos Centrais 751.874 651.185 526.600 30% 101,5 Município de São Paulo 8.493.226 9.646.185 10 405 867 69,0

Fonte dos dados básicos: FIBGE. (1) adaptação da EMPLASA para os distritos de 1991

Como o IBGE só indica uma queda geral da população dos distritos centrais a partir dos anos 80, é provável que tenha havido um forte crescimento dos cortiços entre 60 e 80, paralelo à 2 Dessas, 500 famílias seriam atendidas pela parte do programa executado na cidade de Santos.

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saída de residentes de classe média. Já a redução de população de cerca de 30% entre 1980 e 2000 pode ser devida à redução da população encortiçada, que estaria se dirigindo às favelas. Isso coincide com o enorme crescimento das favelas ocorrido no mesmo período.

Segundo dados do censo realizado pelo IBGE em 2000, se considerarmos a distribuição das famílias segundo sua renda, os distritos centrais apresentam uma maior heterogeneidade social que o resto do município. Isso os diferencia dos distritos que concentram famílias muito pobres (periferias leste, sul e noroeste, por exemplo) ou muito ricas (setor sudoeste, por exemplo). No entanto, há diferenças importantes entre os distritos, sendo que aqueles situados mais a sul são os mais ricos e mais ao norte e leste são os mais pobres, como mostra o gráfico 1. O distrito da Consolação é aquele que apresenta o menor percentual de chefes de famílias com menos de 1 salário mínimo e maior percentual com renda superior a 10 salários mínimos, sendo que também os distritos de Bela Vista, Santa Cecília e Liberdade, têm cerca de 30% dos chefes nessa faixa de renda. Nos distritos Belém, Bom Retiro, Brás, Cambuci, Pari e Sé, a maioria dos chefes têm renda entre 1 e 3 SM, apresentando também percentuais importantes de chefes que ganham menos de 1 salário mínimo. (LABHAB/LINCOLN, 2006)

Grafico 1. Percentual das famílias, segundo renda do chefe, em 13 distritos da área central de São Paulo

FIBGE, 2000.

Para fazer um diagnóstico e definir um plano habitacional abrangente no centro é importante também levar em conta as relações entre as condições de ocupação dos domicílios e a renda das famílias, como veremos nas tabelas abaixo. Os distritos centrais são os que concentram os maiores percentuais de domicílios alugados no município. A média nos 13 distritos3 é de 36,7% de alugados, sendo de 19,4% no município. Em alguns distritos, esse percentual ultrapassa participação dos domicílios alugados aumenta quando a renda diminuiu. Os moradores mais pobres dos distritos centrais, na sua maioria, estão em domicílios alugados e cedidos, que chegam a 60,2% na faixa de menos de 1 SM e 59% na faixa entre 1 e 3 SM. Nas

3 Brás (49,7%); República (48,5%); Bom Retiro (46,5%); Pari (44,6%); Sé (40,8%)

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

Barra F

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Bela V

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Belém

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Brás

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ade

Mooca Pari

Repúb

lica

Santa

Cecília Sé

menos de 1 s.m.de 1 até 3 s.mde 3 até 5 s.m.de 5 até 10 s. m10 e mais

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faixas superiores, sobe o percentual de domicílios próprios. Considerando os próprios já pagos e os que ainda estão em pagamento, temos que eles correspondem a 63% dos domicílios com renda entre 5 e 10 SM e a 70,8% dos domicílios com renda de 10 e mais SM.

Tabela 2: Condição de renda nos 13 distritos centrais, segundo a forma de ocupação do domicílio (em percentagens)

próprio, já pago

próprio, ainda pagando alugado cedido por

empregador cedidos e

outras TOTAL

menos de 1 s.m. 36,5% 3,4% 49,3% 4,3% 6,6% 100,0% de 1 até 3 s.m 37,2% 3,7% 48,9% 6,8% 3,3% 100,0% de 3 até 5 s.m. 46,8% 5,6% 41,6% 3,2% 2,8% 100,0% de 5 até 10 s.m 55,2% 7,8% 33,8% 1,2% 2,0% 100,0% 10 e mais 62,5% 8,3% 27,6% 0,4% 1,2% 100,0% Total 50,1% 6,3% 38,2% 2,9% 2,6% 100,0%

FONTE: FIBGE, 2000.

Outro indicador importante é que a incidência de domicílios vazios é maior do que no conjunto da cidade (11,8%), em todos os distritos. Os distritos do Brás (24%), República (22,7%), Pari (21%) e Liberdade (18%) são os que têm a maiores taxas.

A partir desses dados, os planejadores, os pesquisadores e os movimentos sociais acreditam que, além de melhorar as condições de vida dos residentes atuais, são necessários programas de repovoamento da área central. Estes programas deveriam basear-se tanto na construção de novos edifícios como no aproveitamento dos domicílios e das construções existentes, a partir de obras de reforma.

E quem gostaria ou deveria vir para o centro? Supõe-se que os que trabalham no centro seriam os primeiros interessados4, especialmente aqueles que são forçados a viver em bairros distantes e precários. No entanto, aparentemente, a oferta não está adaptada à demanda para as faixas de renda média baixa e baixa, ou o número de domicílios vazios não seria tão grande. E talvez haja pouco interesse dos promotores por esse mercado popular, ou a produção de novas unidades seria mais importante.

1.2 A habitação nas propostas de revitalização do Centro nos anos 90 Embora o êxodo da classe média e a proliferação dos cortiços sejam apresentados como causas da “degradação” do centro, não se pode falar de uma articulação entre as propostas de revitalização do centro e uma política habitacional para a região nos anos 90. De qualquer modo, é interessante acompanhar a evolução do discurso e das propostas sobre a erradicação dos cortiços e a (re)atração de famílias de classe média ocorridos nesse período.

A Operação Urbana Anhangabaú (lei municipal 11.090, de 16/09/91)5, que visava obter recursos para um conjunto de melhorias urbanas na área de influência imediata do Vale do Anhangabaú (84,16 hectares) já previa o estímulo ao uso residencial e propunha alguns instrumentos para isso. No entanto, esses estímulos não tiveram nenhum impacto no mercado, segundo os especialistas (Labhab/Lincoln, 2006).

Em estudo encomendado pela Associação Viva o Centro, em 1992, a Adviser Consultores Ltda havia considerado que “pretender estimular o uso residencial no centro da cidade é

4 A área central concentra 1/5 do total dos empregos (pesquisa OD) e 1/4 dos empregos formais da cidade. 5 Administração Luísa Erundina.

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agredir o bom senso e a expectativa da população”.(...) “O centro, desde o início do século, possui uma “vocação” nítida e óbvia de concentrar atividades convencionais, sempre incompatíveis com as características de tranqüilidade desejadas pelos moradores”6. Além de expressar um ceticismo quanto à volta das classes médias, o estudo parece ignorar que o centro ainda possui muitos moradores.

Nas administrações de Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Pitta (1997-2000) foram implementados vários instrumentos visando atrair investimentos para o centro, incluindo o desenvolvimento do mercado habitacional. Ocorreram também concursos de projetos habitacionais para a chamada "zona cerealista" e o Pátio do Pari. Em todas essas medidas, a influência da Associação Viva o Centro foi muito importante. Aliás, a AVC foi responsável por um grande número de debates sobre a temática da reabilitação do centro, incluindo a questão habitacional.

Em 1993, o prefeito Paulo Maluf criou a comissão PROCENTRO (Programa de Requalificação Urbana e Funcional do Centro), responsável por coordenar as ações num perímetro que correspondia aproximadamente aos distritos da Sé e República, dando ênfase ao estímulo das atividades imobiliárias e às propostas tendentes a solucionar os problemas de acessibilidade automóvel detectadas como entrave aquele desenvolvimento.

A posição dessa comissão quanto aos cortiços e localização de habitação social é bem clara, como deixa ver um relatório distribuído em outubro de 1994, no seu item de Ações de Médio Prazo: "Há edificações localizadas no Centro que têm indiscutível valor histórico, arquitetônico e cultural ocupados por habitação suburbana (sic). A adequação do espaço arquitetônico, na maior parte dos casos, implica em recursos muito superiores aos custos das habitações construídas pela SEHAB. Assim, deve-se equacionar a habitação dos encortiçados em locais contemplados pelos programas habitacionais da prefeitura e restaurar as edificações adaptando-as para usos compatíveis". (SILVA, 2000)

A Operação Urbana Centro (lei municipal 12.349/97) surge com um instrumento para atrair empreendimentos para a área central mediante a possibilidade de conceder índices superiores aos da lei de zoneamento em troca de contrapartidas financeiras. O perímetro definido pela lei abrange uma área de cerca de 663 hectares, incluindo o “centro velho”, o “centro novo” e partes dos bairros do Glicério, Brás, Bexiga, Vila Buarque e Santa Ifigênia. Não atinge, portanto, todos os bairros que apresentam interesse para uma política de incentivo à habitação.

Ainda que traga incentivos para preservação de prédios tombados7, a Operação Urbana Centro - OUC estimula, sobretudo, a renovação do estoque construído. Não introduz nenhuma vantagem para as reformas e reciclagens de prédios privados, ao contrário, estimula a demolição e reconstrução mediante diversos instrumentos. Mesmo quando as diretrizes urbanísticas falem de “incentivo à recuperação e reciclagem de edifícios públicos existentes”, esses incentivos estão ligados, sobretudo, ao uso cultural, não há nenhum item específico que facilite a reciclagem para uso residencial. Por outro lado, a lei dá um incentivo gratuito ao remembramento de lotes, com objetivo de formar novos lotes com mais de 1.000m2, ou seja, unir dez lotes permite ao empreendedor ensejar a obtenção de mais 100% de área construída. Isso pode estimular a desocupação e demolições nas áreas hoje formadas por pequenos lotes e construções unifamiliares do início do século. As demolições de edifícios antigos são também estimuladas porque a reconstrução (construção de outro prédio) será permitida com o mesmo índice da construção demolida. Todos esses mecanismos poderiam estimular a construção de

6 Associação Viva o Centro. Documento 1, janeiro de 1993. 7 É permitida a transferência do potencial construtivo para outro imóvel dentro ou fora do perímetro da Operação Urbana.

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conjuntos residenciais novos, segundo os modelos para setores de renda média utilizados em outros setores da cidade.

A lei 12.349 diz que “as propostas que atingirem habitações subnormais (cortiços) deverão contemplar solução do problema habitacional de seus moradores, dentro da área da operação ou numa faixa de 500 m (quinhentos metros) envolvendo seu perímetro, sem ônus para a Prefeitura e sem prejuízo do pagamento da contrapartida financeira” (artigo 5º). No entanto, não há nada especial para incentivar habitação de interesse social.

Algumas das vantagens da lei quanto à verticalização e uso misto poderiam ser aproveitadas em empreendimentos habitacionais de interesse social de médio ou grande porte no perímetro da Operação Urbana Centro. Mas, na opinião de vários técnicos, a HIS não poderia competir com os outros usos estimulados (escritórios, apartamentos com garagens, hotéis) sem que houvesse instrumentos claros e diferenciados para a produção de moradias para as famílias de baixa renda8. De fato, o conjunto de instrumentos para estimular um "novo mercado" tende a ter como efeito a subida do preço dos imóveis, em função da expectativa de valorização geral da região. No entanto, o setor imobiliário residencial não demonstrou interesse em empreendimentos no perímetro da operação, pelo menos até meados dos anos 2000. Segundo empresários da construção, o desenvolvimento do mercado para classe média dependeria mais de melhorias gerais nos bairros centrais do que de altos coeficientes de aproveitamento. (LABHAB/LINCOLN, 2006)

No final da década de 90, na gestão Celso Pitta, o PROCENTRO começa a preparar um plano de ações destinado a solicitar um financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O plano é apresentado em 4 componentes: Informação e Gestão Urbana (A), Desenvolvimento Social, Econômico e Ambiental (B), Infra-Estrutura (C) e Revitalizações Urbanas (D) e abrange o perímetro do Procentro.

A questão habitacional é abordada nos eixos B e D. Segundo o documento a que tivemos acesso, os projetos contidos no componente Desenvolvimento Social, Econômico e Ambiental "estão intimamente ligados à valorização do patrimônio arquitetônico, artístico e cultural da região central, bem como a sua propagação perante a população. Para tanto, também são propostas melhorias para circulação (acessibilidade para deficientes, idosos, crianças) e habitação (adequação dos cortiços) dentro da área"9. Já o objetivo do componente Revitalizações Urbanas é (...) "recuperar uma área de dimensões compatíveis com grandes projetos reestruturantes, com usos voltados para habitação, lazer e atividades educacionais."

Quanto ao modo de enfrentar a problemática dos cortiços, os trechos seguintes são claros:

“(...) Em todas estas questões, pretende-se uma ação sinérgica que gere uma ampla parceria com o setor privado. No caso dos cortiços, estimou-se que um primeiro impacto significativo poderia ser alcançado com estímulo a incorporações imobiliárias a serem realizadas pelo setor privado, com apoio da linha de crédito a ser negociada e tendo uma ação correspondente dos órgãos diretos da PMSP afetos ao problema, no âmbito da Secretaria da Habitação e Desenvolvimento Urbano. Esta, poderia desenvolver programas especiais pautados parcialmente no modelo ‘Cingapura’, de forma a receber a população de cortiçados, que seria deslocada de suas precárias e sub-humanas habitações."

"(...) Cortiços: projeto que objetiva reformar e dar novos usos às edificações atualmente usadas como cortiço, já que estas se encontram num acelerado processo

8 Parte desses instrumentos foi criada pelo Plano Diretor Estratégico de 2002, mediante a definição das ZEIS-3, que serão detalhadas mais adiante. 9 grifo nosso.

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de degradação, frente ao descaso dos proprietários e ao baixo poder aquisitivo de seus inquilinos, o que gera problemas para todo o entorno. Cortiços readequados para receber habitação digna, amparada por uma boa infra-estrutura que possa oferecer lazer, cultura e educação podem ser a alavanca para a fixação de população residente na área central, ponto essencial para a recuperação definitiva da região".

A construção massiva de habitações novas é prevista nas áreas de Revitalizações Urbanas, contando especialmente com o Pátio do Pari (pertencente à RFFSA) e a renovação da chamada Zona Cerealista. Não há previsão de recursos específicos para habitação – nem do Fundo Municipal de Habitação (FMH) nem do financiamento solicitado ao BID, mas fala-se em buscar investimentos privados. Ora, considerando as características do mercado imobiliário no período seria bastante improvável um interesse na produção para as faixas de renda baixa ou mesmo média/baixa10.

É importante notar que, na segunda metade dos anos 90, ocorrem as primeiras intervenções do governo do estado de São Paulo para requalificação da região da Luz, mediante a reabilitação de alguns edifícios públicos para usos culturais (KARA-JOSÉ, 2007). No mesmo período, a CDHU (empresa estadual) inicia a montagem de seu Programa de Atuação em Cortiços (PAC), para o qual passa a contar com recursos do BID para erradicar cortiços e oferecer novas moradias aos moradores deslocados. No entanto, seu perímetro de atuação não inclui os distritos mais centrais, que constituíam o foco das propostas de requalificação, tanto do governo estadual como do município.

No final do período abordado neste item do texto, ocorreu um evento bastante importante para fazer um balanço e pensar propostas para a habitação. Foi o seminário Habitação no Centro de São Paulo: como viabilizar essa idéia?, promovido pelo Labhab, CAIXA e Metrô, realizado nos dias 17 e 18 de agosto de 2000, que tinha como objetivo promover um debate com especialistas e entidades interessadas no desenvolvimento de uma política habitacional no centro.

A introdução do documento preparatório desse encontro (SILVA, 2000) traz um trecho que pretende resumir os conflitos do momento:

"A ampliação do uso residencial nas áreas centrais de São Paulo está na ordem do dia desde o início da década e parece ser um consenso, mas a questão não é simples no contexto do processo de reabilitação. Entre planejadores, prevalece a opinião de que a política de reabilitação do centro, incluindo a restauração de seu patrimônio construído e da qualidade ambiental, depende da intensificação das atividades econômicas formais e da recuperação do uso residencial. O documento preparado para o projeto de Plano Diretor em 1991 aponta para a necessidade de fortalecer a função residencial do centro, mesmo porque a diferença na utilização da infra-estrutura instalada é de 400% entre o dia e a noite. Os movimentos de moradores em cortiços e sem-teto defendem o direito de permanecer no centro e reivindicam projetos habitacionais e, mais recentemente, intensificam a ocupação de prédios para pressionar por financiamento compatível com rendas familiares baixas. Além disso, o centro abriga também uma população que não vive em cortiços e atividades

10 Segundo pesquisa realizada em 1996, a produção do setor imobiliário formal no município estava concentrada nas faixas superiores do mercado. Alguma produção para faixas médias ocorreu, fundamentalmente por cooperativas, nas áreas mais periféricas do município e em outros municípios da Região Metropolitana (SILVA e CASTRO, 1996).

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industriais e terciárias de pequeno e médio porte, com interesses a defender num projeto de revitalização. Por outro lado, temos as iniciativas da Associação Viva o Centro, da prefeitura e do governo estadual visando a revalorização do patrimônio, requalificação do espaço público e intensificação de atividades culturais; assim como propostas de estímulo à reinstalação do terciário de prestígio e aumento da atividade imobiliária residencial. Embora essas iniciativas pareçam simplesmente paralelas, elas envolvem também conflitos ligados à disputa pelo espaço".

Na verdade, a questão habitacional faz parte de um conflito maior, pois as propostas de reabilitação e atração de novo tipo de freqüentadores e residentes para a área central questionam também a permanência de atividades populares e exigem um ocultamento das manifestações da problemática social da cidade, que são bastante visíveis na região. Ao que parece, esse conflito está longe de ser resolvido.

2. Fundamentos e pressupostos do componente habitacional no financiamento BID a partir de 2001: o plano "Reconstruir o Centro" e o programa "Morar no Centro" É importante ressaltar que, tanto a proposta de reabilitação como a de habitação popular no centro, começam a ser definidas na gestão Marta Suplicy /2001-2004/ sem qualquer referência ao financiamento do BID ou de outra agência internacional.

2.1 O plano “Reconstruir o Centro” A preparação desse plano começa nos primeiros dias da administração Marta Suplicy, sob coordenação da então responsável pela Administração Regional da Sé (AR-SE), arquiteta Clara Ant. O trabalho é feito em articulação com o Procentro, ligado à SEHAB, onde havia uma estrutura operacional e recursos para montagem do plano. Para regulamentar as alterações necessárias e legitimar a coordenação exercida pela AR-SE foi necessário alterar o decreto que havia instituído o Procentro11.

Também o secretário do planejamento, arquiteto Jorge Wilheim tem um papel importante nessa formulação, pois, no início da gestão, era o responsável pela coordenação da política urbana. Foram organizadas várias reuniões com as diferentes secretarias atuando na região central para definir um projeto comum e os objetivos de uma intervenção de reabilitação do ponto de vista do interesse geral da cidade. Nesse contexto, dá-se um primeiro embate entre uma visão de "embelezamento" e transposição de modelos internacionais, ainda presentes no discurso inicial da prefeita12, com a realidade dos problemas sociais evidentes na área central, assim como a gestão dos conflitos pela utilização dos espaços públicos. Mas a questão da

11 O Decreto nº 40.753 de 19 de junho de 2001 alterou a definição (passou a significar Coordenadoria de Programas de Reabilitação da Área Central) , a estrutura e a coordenação do PROCENTRO. De acordo com esse decreto, o perímetro de atuação do PROCENTRO passa a ser coincidente com o perímetro da Administração Regional da Sé – AR/SÉ, que compreende o Centro Velho (distrito Sé), o Centro Novo (distrito República) e o conjunto de bairros centrais que integram os distritos Bom Retiro, Santa Cecília, Pari, Brás, Cambuci, Liberdade, Bela Vista e Consolação. 12 Marta havia criado o "projeto belezura", que chegou a desenvolver algumas ações pontuais no início de seu governo, como a pintura do estádio do Pacaembu com participação de trabalho voluntário.

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habitação popular, entendida como melhoria, produção de HIS e recuperação de bairros populares foi percebida como um consenso entre os membros da administração municipal.

Os objetivos do plano Reconstruir o Centro eram: resgatar o caráter público do espaço público; ampliar a função residencial e garantir a diversidade de funções; consolidar a identidade do centro metropolitano; promover ações urbanísticas com inclusão social; criar mecanismos de gestão democrática voltados para o interesse coletivo; atuar sistematicamente para a redução da violência. Para isso, ele seria resultado da articulação de oito planos (ou programas): "andar no centro"; "morar no centro"; "trabalhar no centro"; "descobrir o centro"; "investir no centro"; "preservar o centro"; "cuidar do centro"; "governar o centro".

A concretização do Reconstruir o Centro não dependeria de recursos específicos e era esperada por meio de:

Programas que agrupam e compatibilizam ações e recursos sob a responsabilidade de diferentes órgãos da administração municipal;

Articulação das políticas setoriais municipais e de outros níveis de governo

Intervenção em grandes áreas desocupadas ou ocupadas por usos inadequados

Adequação da legislação urbanística para garantir o caráter público do espaço público e viabilizar novos investimentos adequados às características e potencialidades do território da AR-SÉ;

Segundo os textos distribuídos na época, pretendia-se que, até a criação da Subprefeitura da Sé13a Administração Regional e o Procentro deveriam responder pela execução do Plano. Isso significava: viabilizar a equipe técnica e administrativa para a execução do Plano; integrar o trabalho do Plano ao trabalho das secretarias, empresas e autarquias do Governo Municipal bem como a instituições governamentais de outros níveis; adotar os procedimentos necessários à implementação do Plano, em todos os níveis e em toda a região em conjunto com a população e seus representantes; integrar as prioridades do Plano ao Orçamento Participativo; buscar recursos financeiros e parcerias.

A prefeita queria um plano para o Centro num prazo muito curto, por isso o lançamento oficial do Reconstruir o Centro ocorre já no início de maio de 2001. Algumas entidades, como o Fórum Centro Vivo – FCV e a Associação Viva o Centro reclamaram contra a falta de participação na sua formulação.

O FCV entregou um documento cujas críticas principais são a falta de integração com a política urbana, inclusive a formulação do Plano Diretor; a falta de uma posição clara contra a Operação Urbana Centro14 e de instrumentos de combate à “especulação imobiliária”; a ambigüidade do discurso da ‘diversidade social’ e uma visão incompleta da problemática da democratização dos espaços públicos, pois deveria ser dada ênfase à defesa dos direitos dos setores excluídos e reprimidos (povo da rua, catadores, minorias); uma visão deturpada das questão da violência urbana e da criminalidade no centro, ao apontar principalmente o comércio informal e não o crime organizado representado pelas máfias. Quanto ao programa Morar no Centro, o documento ressalta pontos de apoio, criticas ou outras sugestões cuja discussão ocorria também em reuniões específicas na Secretaria de Habitação.

13 A criação das subprefeituras dependia de lei municipal, que veio a ser aprovada posteriormente. 14 No momento estava funcionando um Grupo de Trabalho, nomeado pela Prefeita, cujas conclusões aconselhavam a extinção ou reformulação radical desse instrumento. No entanto, por pressão do setor imobiliário, a OUCentro permaneceu praticamente igual no PDE. Só foi alterado o mecanismo de transferência do direito de construir.

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2.2 O programa “Morar no Centro” O programa habitacional da prefeitura para o centro foi elaborado na SEHAB, sob a coordenação da equipe do Procentro, e se baseia nas propostas do programa de governo do Partido dos trabalhadores (PT) e nas discussões do seminário “Habitação no Centro: como viabilizar essa idéia?". No entanto, no início de 2001, diante da escassez de recursos municipais e da disputa desses recursos por programas necessários em todos os quadrantes do município, a principal fonte de recursos para o centro parecia ser o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), gerido pela Caixa Econômica Federal15. No âmbito da PAR já havia alguns empreendimentos de reforma de edifícios em andamento, mas as famílias mais pobres não eram atendidas. Por outro lado, não havia um contexto favorável para uma cooperação com a CDHU, visando à utilização de recursos estaduais16.

O processo de montagem de uma atuação mais abrangente foi articulado com a forte pressão dos movimentos sociais junto à SEHAB, que apresentavam propostas concretas para reforma de prédios ou construção, assim como formas de atuação (programa Morar Perto, formulado pela ULC e posteriormente assumido pelo conjunto dos movimentos). Um marco importante neste processo foi a criação do Fórum dos Movimentos e Entidades do Centro, que reúne, de forma paritária, representantes dos movimentos de moradia, de entidades da área central e do governo municipal. Por outro lado, qualquer proposta para utilização dos recursos do Fundo Municipal de Habitação em programas inovadores ou específicos para o centro deveria passar pelo Conselho deste fundo, posteriormente substituído pelo Conselho Municipal de Habitação17.

O programa "Morar no Centro" foi apresentado pela prefeitura como um conjunto articulado de programas e intervenções, apoiado por instrumentos urbanísticos e tributários18, visando atender ao conjunto dos problemas habitacionais da região e viabilizar uma atuação sustentável e de médio prazo. Seus aspectos fundamentais foram propostos ou definidos antes do início das negociações com o BID, embora tenha havido algumas alterações até o final da administração Marta Suplicy.

As principais característica do programa Morar no Centro estão assim definidas nas publicações oficiais da Prefeitura no período 2001/2004:

Objetivos gerais:

− Melhorar as condições de vida dos moradores do Centro;

− Viabilizar moradia no Centro para pessoas que trabalham na região (repovoamento);

− Evitar o processo de expulsão19 geralmente ligado às políticas de reabilitação de centros urbanos.

15 Este programa se caracteriza pelo arrendamento de unidades habitacionais, destinadas à famílias com renda mensal entre 3 e 6 salários mínimos. O financiamento tem duração de 180 meses, sendo que a taxa de arrendamento mensal é de 0,7% do preço da unidade habitacional. Após esse prazo, as famílias têm a opção de comprar o imóvel. 16 O programa PAC também não garantia o atendimento de famílias com renda inferior a 2 salários mínimos; além disso, as “cartas de crédito” atribuídas não necessariamente eram utilizadas na área central. 17 O CMH foi criado pela lei municipal 13.425/02, que extinguiu o CFMH. Ele tem caráter deliberativo, fiscalizador e consultivo da política municipal de habitação. Um terço de seus membros é formado por representantes eleitos diretamente por entidades comunitárias e organizações populares ligados à habitação. 18 baseado na publicação Morar no Centro, de 2004, com consulta a "folders" e documentos de circulação restrita ou produzidos pela autora deste artigo, que coordenou o programa entre 2001 e 2004. 19 Em algumas versões do programa, é utilizada a expressão gentrificação.

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Principais diretrizes

− Priorizar a reforma de prédios vazios;

− Combinar soluções habitacionais com iniciativas de geração de renda;

− Buscar a diversidade social nos bairros centrais.

Modalidades de atendimento habitacional

A) Com recursos federais:

Programa de Arrendamento Residencial (PAR) O convênio entre a Prefeitura de São Paulo e a Caixa Econômica Federal para implementação do Programa de Arredamento Residencial - PAR - no município foi assinado em 21 de maio de 2001. Por ele a Prefeitura se obriga a um conjunto de medidas visando facilitar a obtenção de imóveis, a redução de custos e prazos para licenciamento, a melhoria da qualidade dos projetos e a indicação de famílias prioritárias. A Caixa se obriga a garantir que os empreendimentos viabilizados sejam destinados à demanda indicada e que os subsídios dados pela prefeitura sejam repassados aos mutuários, além de atender a um conjunto de critérios relativos à qualidade de projetos e inserção urbana dos empreendimentos.

B) Com recursos municipais (Fundo Municipal de Habitação)

Locação Social Este programa, cuja base legal foi aprovada em junho de 2002 pelo CFMH, visa a ampliação da oferta de unidades de aluguel compatíveis com as necessidades das famílias e com a sua capacidade de pagamento. Pretende também atender às pessoas sem condições de renda para serem incluídas nos programas de aquisição ou “leasing” disponíveis, garantindo que possam permanecer no Centro, onde estão suas fontes de renda ou redes de solidariedade.

As unidades habitacionais, de propriedade do poder público, serão locadas as famílias cadastradas na Prefeitura. Essas unidades podem ser produzidas a partir de construção de novas edificações ou, através da aquisição e reforma de imóveis existentes, pelo Fundo Municipal de Habitação. O valor desses investimentos retornará ao Fundo através dos aluguéis pagos mensalmente.

Cartas de Crédito municipais20 O objetivo da carta de crédito é ampliar as formas de financiamento á população de baixa renda. Esse crédito poderá ser individual ou coletivo e funcionará com recursos do Fundo Municipal de Habitação. O programa disponibilizará carta de crédito especial para famílias com renda mensal entre 3 e 10 salários mínimos, podendo chegar a R$ 30.000,00.

O programa visa também diversificar as formas de acesso das famílias ao mercado imobiliário e viabilizar pequenos empreendimentos geridos por associações. As cartas de crédito atribuídas coletivamente permitirão que grupos de famílias adquiram prédios vazios para reformar ou terrenos para construir prédios, neste caso, somente em terrenos que integrem os Perímetros de Reabilitação Integrada do Habitat - PRIH.

Subprograma de Cortiços Consiste na continuidade a cinco projetos do Subprograma de Cortiços, desenvolvido pela Prefeitura no período de 89/92 (Gestão Luísa Erundina) e interrompido nas gestões seguintes. 20 O programa Cartas de Credito, aprovado pelo Conselho do Fundo Municipal de Habitação, não chegou ser regulamentado, por conta de dificuldades legais ligadas à lei de licitações (lei 8666/93) e por falta de recursos orçamentários.

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Consiste na construção de novas unidades para famílias que estão atualmente morando em barracos ou prédios degradados, sendo que os terrenos já haviam sido desapropriados21.

Moradia transitória Este programa visa a locação de imóveis pelo Fundo Municipal de Habitação para famílias provenientes de áreas de risco ou insalubres, assim como prédios que serão reformados para os programas PAR ou Locação Social. Numa das modalidades, os beneficiários (especialmente moradores nos vãos dos viadutos e os que moravam em edifícios com risco de ruína) locam imóveis diretamente dos proprietários ou quartos em hotéis, pelo período de um ano, podendo ser renovado por mais um ano. Na outra modalidade, a locação dos imóveis é feita pela COHAB, para uso como moradias transitórias para as demandas dos empreendimentos do Fundo Municipal de Habitação, do PAC/CDHU ou do PAR. Neste último caso, as famílias beneficiárias devem contribuir com até 17% da renda familiar. O prazo de atendimento é de 1 ano, podendo ser renovado por mais 1 ano. Trata-se, portanto, de um programa de apoio aos outros programas, pois possibilita a rotatividade da população por ele beneficiada.

Formas de intervenção urbana

Intervenções em terrenos ou prédios isolados - Têm o papel de permitir a diversidade social e funcional de certos bairros e podem ser indutores de outras iniciativas de reabilitação no entorno. Além de oferecer solução habitacional, a produção de novas unidades habitacionais a partir reforma ou reciclagem de uso de edifícios vazios do Centro para transformá-los em moradia, contribui para reverter o processo de abandono de algumas quadras e recuperar o patrimônio arquitetônico.

Perímetros de Reabilitação Integrada do Habitat (PRIH) – Intervenções em áreas delimitadas em bairros centrais, compreendendo um conjunto de quadras com concentração de moradias precárias, onde haverá atuação articulada de produção habitacional, melhoria das condições de cortiços, reabilitação do patrimônio, criação e requalificação de equipamentos e áreas verdes, melhoria e criação de espaços para atividades econômicas. As intervenções no espaço físico serão acompanhadas de programas culturais, de saúde, de educação, de capacitação profissional e de geração de renda22.

O plano de intervenção e sua gestão serão feitos de modo compartilhado com moradores e entidades locais. Os recursos virão fundamentalmente de agentes habitacionais públicos e privados (Caixa, CDHU, FMH e cooperativas), combinados com recursos específicos para ações de preservação e programas sociais, incluindo financiamentos e cooperação internacional.

Projetos Especiais – no ano de 2003, duas intervenções diferenciadas foram definidas e englobadas na categoria de "especiais", pois apresentam maior complexidade que os projetos isolados e envolvem intrincados problemas sociais, necessitando a articulação de diversos órgãos municipais e federais.

21 As obras nesses cinco terrenos (93 unidades no total) foram iniciados no período 2001-2004, sendo que quatro foram concluídas. 22 O programa PRIH resultou da articulação entre propostas da prefeitura e do conjunto dos movimentos e das assessorias técnicas atuando na área central, que apresentaram, no início de 2001, um projeto para atuação integrada em bairros, envolvendo soluções habitacionais e programas sociais, com participação dos moradores. Para delimitação desses PRIH foram contratados levantamentos de diversos setores da área central, realizados por escritórios técnicos, com apoio dos movimentos populares.

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Requalificação da Foz do Tamanduateí (Favela do Gato) - Trata-se de uma área de 17,5 hectares, onde existia uma favela em situação de risco. Além da construção de unidades habitacionais novas, em outra parte do terreno, serão criadas áreas verdes e equipamentos comunitários para uso do bairro e da cidade.

Reabilitação do Edifício São Vito - Trata-se de um edifício degradado junto ao Parque D. Pedro, onde há, hoje, 600 apartamentos, sendo que um terço vazios e o restante ocupados por proprietários, cessionários ou locatários. A reabilitação do edifício São Vito é considerada muito importante para a requalificação do entorno do parque.

Ações Estratégicas - Foram chamadas assim as ações que visavam garantir viabilidade e sustentabilidade do Programa Morar no Centro. Trata-se fundamentalmente de instrumentos formulados em articulação com a definição do Plano Diretor estratégico (PDE), cujas discussões foram iniciadas em 2001 e que foi aprovado em 2002. Algumas dependeram de alterações legais aprovadas pela Câmara Municipal.

Criação e delimitação de Zonas Especiais de Interesse Social, tipo 3 (ZEIS-3) no PDE/2002, abrangendo um grande conjunto de quadras e imóveis isolados nos bairros centrais. A lei determina que 50% da área computável construída seja destinada a HIS23, podendo o restante ser destinado a qualquer uso compatível, inclusive empreendimentos residenciais para outras faixas de renda, sendo que o empreendimento fica liberado do pagamento da outorga onerosa, vigente no restante da cidade. O zoneamento Z4 utilizado possibilita uma flexibilização dos recuos e um coeficiente de aproveitamento (CA) mais alto. Nas ZEIS serão aplicados diversos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, como parcelamento, edificação ou utilização compulsórios do solo urbano não edificado, IPTU progressivo no tempo, usucapião especial de imóvel urbano, direito de superfície, direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir, operações urbanas consorciadas, transferência do direito de construir. As ZEIS da área central foram definidas a partir dos levantamentos dos setores realizados para definição dos PRIH. Outras ZEIS foram sendo indicadas nos Planos Regionais24 das subprefeituras do Centro.

Instrumentos para obter imóveis ou reduzir custos da produção de HIS.

Lei de Dação em Pagamento (no. 13.259/01)25 – permite que o município receba imóveis como pagamento de dívida de IPTU; estes imóveis serão repassados ao FMH para fins de locação social.

Lei de Incentivos fiscais no ITBI (no. 13.402/02) – isenta do pagamento de ITBI as transações imobiliárias relacionadas à Habitação de interesse social, o que gera um incentivo ao mercado na produção deste tipo de moradia.

Lei de Isenção de ISS para Habitação de Interesse Social (no. 13.476/02) – concede isenção aos serviços prestados para construção de habitação popular.

Lei de Remissão de IPTU na compra de prédios (no. 13.736/04)26 - incentiva a remissão de IPTU para a compra de prédios pela Prefeitura e outros agentes promotores para implementar programas de Habitação Popular.

23 O PDE/2002 define HIS como aquela destinada e acessível a famílias com renda de até 6 salários mínimos. 24 Mudaram as regras quanto aos percentuais. Passou-se a exigir os mínimos de 40% de HIS e 40% de HIS ou HMP, ficando, no máximo, 20% para outros usos. 25 Essa Lei foi regulamentada por decreto, mas não chegou a ser aplicada. 26 Essa Lei não chegou a ser regulamentada.

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Proposta de alteração da lei 12.350/97 (Lei de Fachadas) – A prefeitura encaminhou à Câmara um projeto de Lei que altera essa lei de modo a favorecer especialmente a recuperação de prédios residenciais.

Em 2004 – também no âmbito do programa Morar no Centro - a prefeitura criou o Programa de Intervenção em Cortiços, visando melhorar as condições de habitabilidade - inclusive mediante financiamento público - enfocando a fiscalização e a capacitação dos moradores. Foi prevista a utilização dos instrumentos existentes na legislação municipal específica - a lei 10.928/91, denominada Lei Moura - e no Estatuto da Cidade, para pressionar os proprietários e financiar as intervenções.

Também em 2004, foi aprovada a Bolsa Aluguel, um programa que atribui um subsídio a famílias beneficiárias, utilizável na complementação do aluguel mensal no mercado privado, por um período de até 30 meses, podendo ser prorrogado por igual período. Oferece também caução de 3 meses do aluguel ou seguro da Prefeitura como garantia do contrato de locação. O objetivo é atender famílias com renda de 1 a 10 salários mínimos, priorizando aquelas com renda inferior a 6 salários mínimos, moradoras em áreas de intervenção da Prefeitura.

A vinculação dos planos ao pedido de financiamento ao BID Em meados do ano de 2001, o então Secretário da Habitação e Desenvolvimento Urbano, Paulo Teixeira, encontra-se, em Porto Alegre, com um diretor do BID, que lhe fala do pedido de financiamento feito na gestão anterior e que já tinha uma pré-aprovação do banco. A partir dessa conversa o Secretário se convence da possibilidade da reativação do pedido de financiamento e o introduz na pauta da administração Marta Suplicy. A partir desse momento, começa uma mobilização para preparar uma proposta que pudesse obter o financiamento para o Reconstruir o Centro.

A Sehab, diante de dificuldades para lidar com seu pequeno orçamento para a cidade inteira, percebe o financiamento do BID como uma oportunidade de obter recursos para a construção de habitação social no centro. Só então se começa a falar de um “componente habitacional” no financiamento.

3. O processo de negociação do componente habitacional

As primeiras apresentações do programa municipal para recuperação da área central foram feitas em Brasília com base nos programas Reconstruir o Centro e no programa Morar no Centro. Foram feitas visita à SEPLAN, à COFIEX e ao escritório do BID. A preocupação era mostrar um diagnóstico muito mais consistente que o do projeto anterior da Prefeitura (gestão Pitta) e uma proposta coerente com a visão de inclusão social da gestão atual (Marta Suplicy). Além disso, o próprio Procentro – originalmente apresentado ao BID como órgão gestor do programa - tinha sofrido alterações na sua estrutura de poder e na área de abrangência.

Por orientação do escritório do BID de Brasília, foi preparada uma proposta que tinha como base os quatro componentes utilizados na proposta da gestão Pitta. No entanto, os projetos incluídos em cada componentes eram coerentes com o plano Reconstruir o Centro e estavam espalhados pelos diferentes distritos da AR_SE, embora com maior concentração nos distritos da Sé e República.

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A primeira reunião de apresentação na sede do BID em Washington ocorreu em fevereiro de 200227. No documento preparado para essa ocasião, a proposta para habitação foi incluída nos componentes B) "Desenvolvimento Social, Econômico e Ambiental" (item B.2, incluindo construção de novas edificações, reforma de edifícios vazios e melhoria em cortiços) e D) "Revitalizações Urbanas". Estava prevista a aplicação de US$ 36,68 milhões para construção e reforma de unidades habitacionais de interesse social e US$ 6,5 milhões para intervenções nos PRIH. Esses valores incluíam o empréstimo e a contrapartida municipal, representando cerca de 11,5% do custo total do projeto, que seria de US$ 200,8 milhões.

Houve contestações dos técnicos do BID presentes sobre o foco geral do projeto e sugestões no sentido de montar um conjunto de propostas que pudesse justificar, perante o banco, a redução da contrapartida municipal, de 50% para 40%. Isso só poderia ocorrer se comprovado o caráter ‘muito social’ da proposta da prefeitura.

Quanto ao programa habitacional, a reação foi bastante clara quanto à preocupação exclusiva com a habitação de interesse social, sem tratar da atração a famílias de renda média; e com os programas de atendimento habitacional baseados em subsídios difusos e promoção pela COHAB. De fato, vários documentos do BID sobre políticas habitacionais – indicados à delegação nessa e em outras ocasiões - contém criticas contundentes à forma de atuação dos agentes públicos e dificuldades para obter retorno dos investimentos.

Em abril de 2002, enquanto se preparam alterações na proposta original, ocorre a substituição de Clara Ant na Subprefeitura da Sé e na coordenação da preparação do programa de financiamento28. Na SEHAB, o secretário havia solicitado que o percentual para o componente habitacional fosse aumentado, dada sua importância no Plano e os programas já em andamento.

A entrada de Nádia Somekh e a passagem da coordenação para a EMURB gerou, de início, uma certa confusão institucional. Um dos aspectos é que o Procentro, onde havia recursos orçamentários e uma pequena estrutura operacional para preparação do projeto (estudos, viagens, estadias dos técnicos do BID, etc.) continuava subordinado à SEHAB. Além disso, várias leis (como a Lei de Fachadas) faziam referência a esta entidade e sua Comissão. Posteriormente, o impasse foi resolvido com a extinção do Procentro e criação das estruturas de coordenação e controle social do programa na EMURB. O próprio programa municipal foi rebatizado e passou a chamar-se Ação Centro.

No âmbito dessa mudança, havia inicialmente a proposta de colocar o Morar no Centro sob coordenação da Emurb. O programa de habitação no centro também tinha uma situação peculiar na estrutura da SEHAB, pois sua coordenação geral (Procentro) se vinculava diretamente ao gabinete do Secretário, mas os braços operadores eram a COHAB e a divisão centro da Superintendência de Habitação Popular (HABI-Centro). De qualquer modo, a subordinação à EMURB não se efetivou e o programa continuou a ser inteiramente coordenado pela SEHAB e COHAB. É preciso lembrar que a parte financiável pelo BID era bem menor que o conjunto de obras e ações de habitação em curso na área central. Sem falar nos aspectos políticos ligados à relação da SEHAB com os movimentos sociais do centro.

Posteriormente a essa reunião de Washington e à entrada de Nádia Somekh, houve outros contatos entre funcionários do BID e a prefeitura, em São Paulo, onde ficaram mais claras as restrições ao programa geral e ao componente habitacional. Especialmente importante foi um

27 Participantes: Clara Ant (AR-SE), Solange Natacci (Secretaria de Finanças) e Helena Menna Barreto Silva (Procentro, SEHAB). 28 Os motivos dessa decisão da Prefeita não ficaram claros, o que provocou uma certa perplexidade entre os técnicos da AR-SE e da SEHAB ligados ao programa de reabilitação.

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seminário, realizado entre 5 e 7 de agosto de 2002, reunindo técnicos e funcionários de vários ógãos municipais e consultores, nacionais e internacionais, convidados pelo BID ou pela Emurb. Nessa ocasião, era possível escutar as propostas mais variadas e dissonantes sobre o futuro do centro de São Paulo. Ou seja, todas as propostas anteriores pareciam em causa. Em documento interno do programa Morar no Centro, referente à preparação da discussão com os consultores do BID em São Paulo, previstas para a segunda quinzena de setembro de 2002, encontramos o seguinte documento, que mostra a preocupação da equipe com a necessidade de convencer o BID sobre suas propostas:

PONTOS QUESTIONADOS PELO BID (a considerar no documento a ser apresentado à missão de setembro) 1. Locação Social; 2. subsídio nos juros; 3. localização dos empreendimentos face à área de concentração dos investimentos; 4. “baixa-renda mantida por subsídios não consome, portanto não contribui para atrair atividades”...

“alem disso, contribui para reduzir atratividade para outros setores sociais”.... PODEMOS ALTERAR OU MELHORAR: - ressaltar importância e medidas para atração de setores médios (consumo> atividades> emprego); - diagnóstico voltado para cada tipo de programa; explicação da relação entre eles; explorar a idéia

de patamares de atendimento: hotel > locação social > aquisição ou PAR; - metas para HIS e para outras faixas (baseado no quadro atual de estratos por renda familiar); ARGUMENTOS: 1. Existe população de baixa renda e/ou trabalhadores informais no Centro para os quais as linhas da

Caixa e do CDHU não são acessíveis; 2. Essa população mora em cortiços, em situação de coabitação ou na rua; não é conveniente para as

famílias e nem para a Cidade que elas se mudem para longe do Centro; 3. É preciso (é bom para elas e para a cidade) melhorar suas habitações ou permitir seu acesso a uma

outra habitação melhor; 4. A prefeitura tem um estoque de imóveis que pode ser reformado para abrigar pessoas de baixa

renda em condições adequadas de conforto, pagando um aluguel compatível com sua renda; (efeito na oferta e na recuperação de imóveis, tombados ou não).

5. Ao lado da melhoria do espaço público, a melhoria das condições de moradia dos mais pobres contribuirá para aumentar a atratividade para setores de renda média;

6. o subsídio ao aluguel ou prestação permite às famílias ter uma poupança que aumenta sua capacidade de consumo (ver toda a defesa do sistema europeu de subsídio como alavancador da sociedade de consumo: Lipietz, Lojkine). (ver exemplo da Vilinha 25 de janeiro).

7. essa poupança pode mesmo ser importante para seu acesso a outra solução habitacional (leasing ou compra);

Documento interno da equipe Morar no Centro (5/9/2002) Segundo documento redigido pela equipe do BID (ver Anexo2) após reuniões diversas nos dias 16 e 17 de setembro de 2002, inclusive com o Secretário da Habitação, houve acordo sobre os seguintes aspectos, abaixo resumidos:

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A) Ajuste nos objetivos do componente Morar no Centro:

1. Retenção da população de baixa renda e melhoria das condições de habitabilidade das suas moradias;

2. Atração de população de média renda.

B) Programas e instrumentos

1. Programa de Arrendamento Residencial (PAR) – se acordou que a prefeitura teria um papel facilitador nesse programa e que os recursos comprometidos pela Caixa poderiam ser considerados como contrapartida.

2. Programa de Renda Média – houve acordo sobre a necessidade de utilizar incentivos

financeiros e não financeiros. Caberia à prefeitura analisar a possibilidade de conceder subsídios aos ‘pioneiros’.

3. Programa de Locação Social – a equipe do banco disse que não possuía experiência

nesse tipo de programa e alegou maus resultados das políticas tradicionais (européias e americana). Mas se disse disposta a tentar um programa novo para as famílias sem outra possibilidade de acesso à moradia no centro, inclusive financiando a contratação de uma consultoria internacional.

4. Programa de Carta de Crédito Municipal – a equipe do banco indicou que não é

permitido financiar esse tipo de programa e que seu uso não é recomendado. Aconselhou utilizar subsídios diretos, como os chilenos29.

5. Programa Moradia Provisória – a prefeitura solicitou que entrasse como contrapartida,

mas não houve ainda decisão do banco.

6. Projeto Favela do Gato – considerando possíveis atrasos devido aos estudos de impacto, foi recomendado retirar do financiamento BID e financiar com recursos da PMSP.

7. Programa Edifício São Vito - considerando a existência de outros edifícios com os

mesmos problemas, a equipe do banco sugeriu criar um componente específico, para dar uma resposta global.

Complementarmente, foi decidido que:

1. O desenvolvimento dos programas habitacionais se dará no marco das políticas de habitação e nacionais e municipais;

2. as intervenções nos PRIH não constituem um programa independente, mas estarão incluídas nas intervenções urbanas. Correspondem a uma gestão integrada dos componentes em uma parte do território.

A proposta financeira da Sehab correspondente a essas preocupações é a que vemos esboçada no quadro abaixo, que já considera a redução da contrapartida da prefeitura para 40%. 29 Sugeriu-se uma visita ao Chile, que veio a concretizar-se alguns meses depois, com a viagem de Marcos Barreto. No entanto, nenhum elemento da experiência chilena chegou a ser proposto concretamente no programa Morar no Centro.

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Quadro 1 – Proposta esboçada pela Sehab, com data de 9/10/2002 (valores em Reais)

Programas e Linhas de Atuação demanda unidades V. Médio Valor total

Recursos PMSP

Recursos PMSP

Recursos BID

Locação Social (LS) (produção e gestão) his 3.000 25.000 75.000.000 40% 30.000.000 45.000.000Programa PAR (Convênio com a Caixa) his 1.500 28.000 42.000.000 100 42.000.000 0Subsídio direto para setores médios (pioneiros) his/hmp 2.000 5.000 10.000.000 0% 0 10.000.000Facilitação para setores médios (gestão) 500.000 0% 0 500.000Alojamento provisório para riscos his 2.000 2.000 4.000.000 100% 4.000.000 0PRIH (ver detalhe) (*) 19.060.000 40% 7.624.000 11.436.000subtotal negociado 8.500 150.560.000 83.624.000 66.936.000Contrapartida global prevista no projeto 40% 60.224.000 Recup. da Foz do Tamanduateí (Gato) his/hmp 500 30.000.000 40% 12.000.000 18.000.000Reforma do São Vito p/ HIS e/ou HMP his/hmp 630 30.000 18.900.000 40% 7.560.000 11.340.000subtotal em discussão ( a retirar) 1.130 48.900.000 19.560.000 29.340.000Contrapartida global prevista no projeto 40% 19.560.000 OBSERVAÇÕES O PRIH não entrará como componente específico do Projeto, devendo seus diversos itens ser incorporados em outros componentes. As unidades HIS poderão estar nos distritos Sé e República, nos PRIH ou em outras localizações centrais

Fonte: documento de circulação restrita do Programa Morar no Centro (arquivos de Helena Menna Barreto)

Na medida em que avança a discussão sobre a proposta e que o projeto Ação Centro vai definindo seu foco e restringindo seu âmbito territorial, ganha força a discussão sobre necessidade de atrair e facilitar a vinda (volta) da classe média e colocar limites à presença de população de baixa renda. Nesse quadro, a discussão sobre os programas e projetos a serem incluídos no financiamento não se separa de uma abordagem mais geral do BID sobre o que a prefeitura deveria fazer em matéria de HIS no centro, de forma a manter a coerência com um projeto financiável pelo banco.

Os argumentos do BID eram de dois tipos:

A) os que ressaltavam as dificuldades par o atendimento adequado às famílias de baixa renda na área central –

- restrições ao modelo de política habitacional baseada em promotores públicos, considerados ineficientes e coniventes com inadimplência;

- desinteresse do banco no financiamento de programas com os modelos de financiamento disponíveis no FMH e a insistência na busca de mecanismo de mercado.

- A insistência no modelo da “moradia evolutiva ou progressiva” como solução mais adequada para famílias pobres, o que seria dificilmente exeqüível na área central

B) a inconveniência dos programas de HIS face aos objetivos da requalificação do centro

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- receio que a permanência e o incentivo à habitação para famílias de renda muito baixa funcionasse negativamente em relação à vinda de famílias de classe média30. Este processo era entendido como fundamental para que garantir a valorização e o desenvolvimento de atividades (e empregos) ligadas ao aumento do consumo ("circulo virtuoso").

Entre os programas em desenvolvimento pela prefeitura no Centro, o que os consultores do BID consideravam mais interessante era o dos PRIH, que obteve recursos extras para pesquisas e permitiu seu desenvolvimento preliminar. Isso foi importante para ‘valorizar’ e manter o programa, apesar do ceticismo de alguns diretores da Sehab e Cohab. De fato, como não apresenta resultados concretos e imediatos, ao contrário construção, os PRIH inicialmente pareciam não ter muito "apelo" na administração. Aliás, foi apenas quando foi viabilizado um projeto de construção na área do PRIH-Luz (cerca de 700 unidades), que o trabalho da equipe local passou a ser mais apreciado na prefeitura.

No contexto das decisões sobre o conteúdo do programa Ação Centro, a pessoa do BID que mais participou das discussões sobre o programa Morar no Centro foi Beatriz Lopez, que teve um papel muito importante para que os argumentos do município quanto aos programas destinados às famílias mais pobres fossem aceitos.

3.1 As questões mais polêmicas do componente habitacional

a) Locação Social Esse programa (descrito no item anterior) era muito importante no Morar no Centro e a pedra angular na possibilidade de atender e manter famílias com poucos recursos no centro. Desde o início da gestão Marta, já estavam claros os limites do PAR e o fato que os empreendimentos em curso não atendiam famílias com menos de 5 salários mínimos31.

As discussões com o BID envolviam diversos aspectos:

- A locação é necessária? Viável? Conveniente? Que tamanho deve/pode ter o parque locativo municipal, de modo a não prejudicar o programa de reabilitação?

- por que não implementar outras soluções, como vouchers para a acesso ao mercado privado?

No desenvolvimento dessas discussões, a Sehab insistiu na necessidade de ter um parque de unidades de locação social e negociou o financiamento de um conjunto de projetos envolvendo entre 1200 e 1600 unidades no âmbito do empréstimo. Essa negociação não foi fácil, tendo os consultores do BID manifestado muita desconfiança na capacidade de gestão do programa por parte da COHAB e o que chamavam de "fracasso" das experiências internacionais baseadas na locação.

Finalmente, a principal justificativa para a aceitação da locação social foi a inexistência de linhas de financiamento compatíveis com a capacidade de pagamento de famílias com renda inferior a 3 salários mínimos em programas a realizar-se na área central. Para comprovar isso, houve reuniões com a coordenação do Programa de Ação de Cortiços da CDHU (PAC/BID) para discutir se já havia linhas capazes de atender à população com renda mais baixa. Ficou

30 Compreensível como lógica de banco. Lembrar que a CAIXA também tem essa lógica, por isso não permite HIS perto de empreendimentos de classe média, para não desvalorizar. 31 Vários outros aspectos, como as análises de risco da demanda.

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evidente que as ‘cartas de crédito’ não estavam atendendo no centro e que as famílias mais pobres recebiam uma espécie de ajuda mínima para encontrar outra solução em qualquer parte da cidade.

A insuficiência dos programas disponíveis com recursos federais e municipais foi também comprovada por reuniões com as organizações sociais. Além disso, a locação social já aparecia em reivindicações mais amplas do movimento popular, visando às famílias sem recursos para assumir um financiamento32.

Houve bastante insistência do BID e acordo do município sobre a necessidade de capacitação para a montagem e gestão do parque locativo, visto que não havia experiência com esse tipo de programa na prefeitura e nem no Brasil! Para tanto, a SEHAB e a COHAB utilizaram os recursos da cooperação técnica vigente com a França e com a Província de Turim, na Itália, promovendo seminários em São Paulo e estágios curtos de técnicos nos 2 países.

O próprio BID contratou o professor Stephen Shepard33 para analisar as experiências internacionais e sugerir soluções para o caso paulistano. Houve bastante insistência para que o município restringisse seu apoio aos locatários mais pobres apenas mediante um sistema de "vouchers", como parecia apresentar bons resultados em cidades americanas. Mas essa proposta foi contestada por técnicos brasileiros, alegando dificuldade para o uso desse instrumento em escala, considerando o nível de renda dos beneficiários e sua provável incompatibilidade com os valores de condomínios a pagar nos prédios privados, entre outros problemas. Também por iniciativa do BID foram obtidos recursos do Fundo Fiduciário Japonês para contratar três estudos e seis propostas de desenho para o programa34, realizados por instituições ou consultores especializados. Estes estudos foram apresentados em um seminário organizado em novembro de 2004.

O programa de locação social foi incluído no programa final do BID, mas entendido como "experimental". Pelas normas do contrato, deveriam ser experimentadas diversas formas de gestão. Um documento elaborado pela COHAB em 2003 problematizava quatro possíveis modalidades de gestão condominial:

Direta, pela própria COHAB/SP – logo descartada, por não ser foco das atividades da companhia, que também não contava com os funcionários necessários; pelos próprios moradores – considerada inviável diante do nível de carência e desestruturação; ausência do controle externo poderia incentivar a inadimplência e degradação; por empresas de administração de condomínios – haveria problemas devidos a taxa de administração alta que poderiam inviabilizar o programa; baixo interesse em trabalho sócio educativo e descomprometimento com a população alvo; por organização não governamental – podendo ser ONG ou OSCIP, de qualquer modo sem experiência, mas com maior "vocação", acesso a incentivos e financiamentos, etc.

Em 2004, foi aprovado o mecanismo da "bolsa-aluguel", pela lei municipal 13.741/04. Esse subsídio se destina à complementação dos valores de aluguel contratado no mercado privado, por um período de até 30 meses. Destina-se a famílias com renda de um a dez salários mínimos, priorizando famílias retiradas de situação de risco ou cadastradas para outros 32 Entre esses, a Plataforma Nacional da Habitação Popular, preparada pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), em 1994, e o documento do Fórum Centro Vivo sobre a reabilitação do Centro. 33 Professor do Departamento de Economia do Williams College, Williamstown. 34 "Gestão de condomínios em HIS" (Inglez de Souza); "Experiências internacionais de gestão de parques públicos de locação social" (Gilles Horenfeld e Maura Veras); "Mercado de locação residencial na área central" (Eduardo Rottman); "Desenho das Modalidades de gestão de condomínios" (Consórcio Diagonal-Villagua); "Estrutura Operacional" (IETS-Gallaguer Consultoria); "Sistema de Subsídio" (Mario Navarro); "Sistema de Monitoramento e avaliação do Programa" (PBLM); "Plano de Trabalho Social" (IEE-PUCSP).

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programas de HIS. Oferece também o aval da Prefeitura como garantia do contrato de Locação (São Paulo, 2004 c). Trata-se de um mecanismo semelhante aos “vouchers”, preconizados pelo consultor Shepard, e a instrumentos de "ajuda familiar" utilizados nos programas sociais de habitação na Europa.

É interessante notar que, embora a prefeitura tivesse destinado terrenos centrais35 bastante valorizados suficientes para quase 2000 unidades de aluguel, estes valores não foram considerados como contrapartida do município.

Os primeiros empreendimentos de locação social (Condomínio Parque do Gato e Olarias, com 486 e 136 unidades, respectivamente) foram inaugurados e ocupados em meados de 2004. A gestão dos dois edifícios foi confiada a uma empresa administradora privada (Principal). A última visita dos consultores do BID na gestão Marta Suplicy teve ocasião de constatar que a situação de manutenção e gestão encontrada não era boa. Isso certamente teve peso nas análises posteriores sobre o programa.

b) Demolição ou recuperação do edifício São Vito? O São Vito é um enorme edifício com 25 andares e 600 pequenos apartamentos (entre 25 e 30 metros quadrados de área privativa) situado junto ao parque D.Pedro II e em frente ao Mercado Municipal. Inaugurado em 1959, era habitado por pessoas que trabalham nas proximidades, na condição de proprietários ou locatários. Devido à situação financeira dos moradores e aos custos de gestão do condomínio, deteriorou-se enormemente, com problemas de acessibilidade aos andares superiores (elevadores que não funcionavam), acumulação de lixo nas partes comuns, destruição de elementos da fachada, etc. De fato, tornou-se um símbolo da precariedade habitacional, sendo considerado "o maior cortiço de São Paulo".

Embora essa situação fosse conhecida havia muito tempo36, a discussão sobre a intervenção nesse prédio na administração da prefeita Marta Suplicy começou com uma crítica feita pela própria prefeita ao estado de degradação do edifício e com a insistência do BID, a partir de meados de 2002. Na verdade, existem outros prédios em situação semelhante na área central, mas o São Vito é muito visível, e fica ao lado de dois projetos de reabilitação no âmbito do projeto Ação Centro (o parque e o mercado) e também em frente à antiga sede da Prefeitura.

A posição do BID e de alguns setores da prefeitura foi pela demolição. Para o BID, o edifício era um evidente fator de desvalorização da região, prejudicando os possíveis resultados a obter com a reabilitação do parque D. Pedro II. Foram feitas pesquisas conhecidas como "disposição a pagar" que comprovariam as vantagens e o interesse dos moradores vizinhos em livrar-se do edifício e dos seus moradores.

Na administração, o debate foi bastante penoso, por conta das pressões e do debate na mídia. Houve várias propostas arquitetônicas para reforma do São Vito, com menor ou maior intervenção na organização das unidades ou redução de seu número total. No entanto, todas as soluções previam a subdivisão do condomínio, como forma de viabilizar a gestão. Finalmente, os estudos de custo/benefício comprovaram a vantagem da reforma face à

35 Havia terrenos pertencentes à COHAB/SP nos bairros do Belém e Mooca (320 unidades); áreas repassadas por diferentes secretarias municipais, suficientes para 1272 unidades; e prédios em desapropriação, com capacidade para 531 unidades. 36 Houve tentativas de demolição no período Janio Quadros.

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hipótese de demolição37. Mas, certamente, pesou na decisão política pela reforma, além dos argumentos econômicos, a possibilidade da repercussão negativa da demolição de 600 unidades na área central, num momento em que se defendia a moradia no centro, sendo que ainda poucas unidades estavam concluídas ou em construção.

Talvez como forma de fazer face às críticas quanto à manutenção do edifício, passou-se a defender um projeto “com grife”. No final da gestão Marta Suplicy estava sendo executado – pelo arquiteto Roberto Loeb - um projeto com 375 unidades (50 quitinetes, 275 apartamentos de um dormitório e 50 apartamentos de 2 dormitórios), sendo prevista uma creche no terraço do edifício e atividades ligadas a programas de capacitação profissional e geração de renda no térreo (SAO PAULO /b, 2004).

Ainda em 2004, a prefeitura negociou com as famílias a desocupação total do prédio e a atribuição de bolsas-aluguel para grande parte das famílias desalojadas ou desapropriadas. O processo de desapropriação foi iniciado e havia negociações com a Caixa para execução da reforma com recursos do PAR, combinados aos subsídios diretos da prefeitura e os provenientes do financiamento BID.

Desde 2005, as famílias atingidas pela desocupação têm vivido uma situação de muita insegurança, por conta das ameaças de corte das bolsas-aluguel. A posição da prefeitura quanto ao prédio variou entre alterações do projeto para aumentar o número de unidades, venda para uso de hotelaria e demolição. Em meados de 2007 esta era a posição que prevalecia.

c) Incentivos para atração de moradores de Média Renda Como já foi dito, os textos iniciais do programa Morar no Centro, embora falando de diversidade social, não explicitavam nenhuma ação para classe média.

"A demanda que se manifesta por habitação no Centro é hoje constituída principalmente pelos que já vivem na região em más condições de habitabilidade: encortiçados, moradores de rua, e pelos movimentos organizados por moradia da área central"

Apos a definição da demanda prioritária, aparece o texto seguinte num dos textos divulgados:

"No entanto, é consenso que segmentos de renda média, especialmente quando trabalhando no Centro, podem constituir uma demanda importante. (…) para estancar o processo de abandono e retomar a atratividade do Centro para famílias de renda média será essencial melhorar as condições dos espaços públicos. Para esses segmentos, é importante também estimular a formação de uma oferta qualificada de unidades residenciais. Para isso, o papel da iniciativa privada é essencial, devendo ser apoiada por incentivos municipais e linhas de crédito públicas e privadas compatíveis. Segundo os corretores imobiliários, será importante identificar o perfil de demanda de renda média que poderá interessar-se pelo Centro e desenvolver uma campanha promocional. Tem ficado claro que o modelo residencial do Centro será adequado, sobretudo, para os que não são cativos do automóvel e dos condomínios fechados: jovens, adultos sós ou casais sem filhos, pessoas idosas."

37 No caso do São Vito, a demolição por implosão é dificultada pelo fato de o edifício ser geminado com um outro, em bom estado, e vizinho próximo de vias de circulação, do próprio Tamanduateí e edifícios tombados. A demolição manual seria extremamente demorada e com grande visibilidade e transtornos.

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Mas havia de fato uma preocupação, varias vezes expressa pelo Secretário Paulo Teixeira, com a atração de categorias como funcionários públicos e profissionais liberais. Para isso foram organizadas diversas reuniões na Sehab, com a presença de empresários, sindicatos profissionais e cooperativas de produção. O papel da Sehab seria na facilitação da aprovação e no fomento ao desenvolvimento da tecnologia da reforma. Quanto ao financiamento, a idéia era que esses setores se articulassem com a Caixa, em torno das linhas de financiamento disponíveis.

Com a passagem da coordenação para a EMURB e o avanço das negociações com o BID, as discussões com o setor imobiliário para a atração de empreendimentos de renda média foram intensificadas. A participação de dirigentes da Caixa e da Secretaria de Projetos Especiais do Ministério das Cidades permitiu discutir os entraves existentes nas linhas de financiamento vigentes e resultou na adaptação das Cartas de Crédito da Caixa para reformas de edifícios, mediante resolução específica do Conselho Curador do FGTS.

Especificamente no que se refere à utilização de recursos do empréstimo para o objetivo de atração de moradores de classe média, a primeira hipótese examinada foi a dos “bônus aos pioneiros”. Tratava-se de atribuir um valor em dinheiro a um certo número de compradores de apartamentos no perímetro central, no momento do contrato de aquisição. Chegou-se a falar em mil “pioneiros” que receberiam US$ 10.000 cada um. No entanto, a avaliação dos técnicos e do setor jurídico da Sehab foi a de que ela essa proposta não tinha viabilidade operacional nem legal, além de parecer não corresponder a um incentivo realmente interessante para os compradores esperados.

A primeira dificuldade seria escolher as pessoas “bonificáveis”. Como definir a lista e as prioridades, considerando o processo de negociação de apartamentos em um mercado privado disperso, no qual os problemas de documentação dos imóveis não são raros? Talvez isso só fosse possível no caso de imóveis negociados com financiamentos da Caixa já aprovados.

Por outro lado, especialistas do mercado imobiliário estavam convencidos que as dificuldades para vinda de famílias de classe média permaneciam ligadas à falta de atratividade dos bairros centrais. De fato, os preços no centro já eram bem mais baixos que em outras zonas da cidade que concentravam o interesse das famílias que se pretendia atrair para o centro.

Outra dificuldade se relacionava com a qualidade e quantidade da oferta na área central: por um lado, praticamente não havia lançamento de novas unidades; por outro, grande parte dos edifícios com unidades disponíveis estavam em muito mal estado (elevadores estragados, instalações elétricas e hidráulicas degradadas, infiltrações em coberturas, etc.). Em muitos casos, os apartamentos também estavam bastante deteriorados, com custo de reforma bastante alto.

As dificuldades legais estavam relacionadas ao processo de seleção das pessoas e à atribuição de subsídios a famílias com renda superior a 10 salários mínimos, contrariamente ao estabelecido pelo Fundo Municipal de Habitação.

Partiu da equipe formada por técnicos da Sehab e da Cohab a proposta de atuar especificamente sobre a oferta, mediante a criação de uma linha de subsídios visando apoiar a reforma das partes comuns dos edifícios. Posteriormente, foi desenvolvida uma proposta de ajuda aos compradores de unidades nestes edifícios.

A proposta para o componente “Estímulos para renda média” foi finalmente formulada da forma seguinte:

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Prêmios para reabilitação de partes comuns dos edifícios

Descrição - Valor em dinheiro atribuível ao condomínio ou ao proprietário de edifício residencial multifamiliar, ocupado ou não, que realize obras destinadas à reabilitação das partes comuns dos edifícios, tais como fachadas, elevadores, corredores, caixas de escada, instalações diversas do prédio, caixa d’água, calçadas, etc.

Objetivos - tornar o prédio mais confortável para os moradores, evitando a saída destes, e atrativo para venda ou aluguel das unidades residenciais vazias; contribuir para a melhoria da paisagem e da vizinhança; reduzir despesas de manutenção e, conseqüentemente, o custo de condomínio.

Imóveis qualificáveis - Apartamentos em prédios residenciais multifamiliares ou mistos com predominância residencial localizados nos distritos da Sé e República e nos PRIH da Luz, do Brás e do Glicério.

Subsídios a compradores para reformas de unidades residenciais em prédios reabilitados

Descrição - Valor em dinheiro atribuível ao adquirente de um imóvel desocupado que necessite de obras de reforma na unidade habitacional e cujas áreas condominiais se encontrem em bom estado de conservação ou tenham sido reformadas pela modalidade anterior de prêmio.

É interessante notar que na formulação da proposta não há referência à renda ou situação social das famílias bonificadas. A intenção dos técnicos da prefeitura, expressa em documentos internos, era atender uma classe média baixa, que parece continuar existindo na área central.

No final de 2004, após a assinatura do contrato com o BID, um grupo de trabalho tentava desenvolver um regulamento operacional para resolver os aspectos legais e operacionais ligados à aplicação dos estímulos para renda média. No entanto, não foram previstos recursos para sua aplicação no orçamento de 2005.

3.2 - Os acordos e as contrapartidas decididas até 2004

O empréstimo do BID à Prefeitura de São Paulo foi aprovado, no final de 2003, com cinco componentes, assim denominados:

1. "Reversão da Desvalorização Imobiliária e Recuperação da Função Residencial";

2. "Transformação do Perfil Econômico e Social"

3. "Recuperação do Ambiente Urbano"

4. "Transporte e Circulação"

5. "Fortalecimento Institucional do Município"

O componente "Reversão da Desvalorização Imobiliária e Recuperação da Função Residencial" incluiu os 3 seguintes sub-componentes: a) Elaboração de propostas de legislação urbanística; b) Intervenções urbanísticas e c) Programa Morar no Centro. Neste, os itens financiados, conforme descrições constantes de documentos do Programa Ação Centro, são os seguintes.

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Quadro 2 – Morar no Centro. Itens considerados no financiamento, conforme Anexo do Contrato Assinado

Itens Considerados

Contrapartida local aceita

Parte financiada pelo BID Descrição

1. Programa de Arrendamento Residencial (PAR)

Custo total dos empreendimentos listados

Recuperação de edifícios para uso residencial, destinados a famílias com renda entre 3 e 6 SM (...)

2.Perímetros de Reabilitação Integrada do Habitat (PRIH)

Alguns serviços executados

Serviços (funcionamento dos escritórios-antena dos PRIH Luz, Glicério e Brás); Infra-estrutura e paisagismo;

Conjunto de intervenções em quadras (...) visando o melhoramento do habitat (...)

3.Programa de Locação Social (PLS)

Algumas obras executadas

Obras de construção e reforma em caráter experimental. para beneficiar famílias com renda até 3 SM.

4.Moradias Transitórias

Valor total das despesas comprovadas

Atendimento a famílias provenientes de zonas de risco ou que vivem nas ruas

5. Urbanização da Favela do Gato

construção de moradias; implantação de infra-estrutura urbana; equipamentos sociais; ações p/ geração de trabalho e renda

6. Estímulos para Renda Média

Prêmios (subsídios) para recuperação de áreas condominiais de edifícios degradados; Prêmios (subsídios) para reformas em unidades adquiridas nesses prédios;

visando incentivar a classe média, incluindo campanhas, difusão, apoio tecnológico e prêmios em dinheiro.

TOTAL "Morar no Centro"

US$ 6,9 milhões US$ 19 milhões

TOTAL Financiamento BID

US$ 67 milhões US$ 100,4 milhões

Fonte: Site do BID. Programa Ação Centro. Anexo A. LEG/RE1/0332

Ainda em 2004, após as eleições que definiram a derrota da prefeita Marta Suplicy (PT) e sua substituição pelo prefeito José Serra (coligação PSDB-PFL), houve uma missão do BID que alterou essa composição. Foi retirado o item "Urbanização da favela do Gato" e incluído o item "Recuperação de Edifícios", que incluiu um recurso para a reforma do edifício São Vito.

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Quadro 3 - Morar no Centro. Itens considerados no financiamento, conforme revisão em

nov/2004

Itens Considerados

Contrapartida local aceita

Parte financiada pelo BID Descrição no Regulamento Operacional (Anexo A LEG/RE1/0332)

1. Programa de Arrendamento Residencial (PAR)

Custo total dos empreendimentos listados

Recuperação de edifícios para uso residencial, destinados a famílias com renda entre 3 e 6 SM (...)

2.Perímetros de Reabilitação Integrada do Habitat (PRIH)

Alguns serviços executados

Serviços (funcionamento dos escritórios-antena dos PRIH Luz, Glicério e Brás); Infra-estrutura e paisagismo;

Conjunto de intervenções em quadras (...) visando a melhoria do habitat (...)

3.Programa de Locação Social (PLS)

Algumas obras executadas

Obras de construção e reforma em caráter experimental. para beneficiar famílias com renda até 3 SM.

4.Bolsas Aluguel Valor total das despesas comprovadas

Atendimento a famílias provenientes de zonas de risco ou que vivem nas ruas

5. Estímulos para Renda Média

Prêmios (subsídios) para recuperação de áreas condominiais de edifícios degradados; Prêmios (subsídios) para reformas em unidades adquiridas nesses prédios;

visando incentivar a classe média, incluindo campanhas, difusão, apoio tecnológico e prêmios em dinheiro.

6. Programa de Recuperação de Edifícios com uso Habitacional (novo)

Edifício São Vito, US$ 1,43 milhões

visando prover os condomínios deteriorados de condições de sustentabilidade social e econômica (....) com diversidade social.

TOTAL "Morar no Centro"

US$ 6,9 milhões US$ 19 milhões

TOTAL Financiamento BID

US$ 67 milhões US$ 100,4 milhões

fonte: AÇÃO CENTRO. Regulamento Operacional. Revisão 1/2004 (novembro de 2004)

Como mostram os quadros acima, o programa Morar no Centro participava de 19% do total financiado pelo BID e 17% do total do investimento considerado no programa “Ação Centro”. Os terrenos, de propriedade da Cohab/SP a serem utilizados para a construção dos edifícios para locação não foram aceitos como contrapartida, apesar de serem muito valiosos.

No final de 2004, estavam em andamento vários projetos e obras para os quais a prefeitura contava com o reconhecimento ou a recuperação do investimento com recursos do empréstimo do BID. O orçamento municipal previa um total de R$ -------para utilização no Morar no Centro em 2005.

3.3 Uma visão radicalmente diferente da habitação e do centro desde 2005

A administração municipal que assume em 2005 tem uma visão radicalmente oposta à anterior em matéria de política habitacional e da problemática social no processo de

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reabilitação do centro. Essa visão – além de explicitada no discurso oficial - pode ser confirmada pelos seguintes fatos

- A paralisação dos projetos de locação social em andamento em áreas da Cohab/SP e cedidas por outros órgãos da administração municipal (empreendimentos Cônego Vicente Marinho, Assembléia, Carlos Gomes, Vieira de Carvalho).

- no caso dos edifícios Riachuelo, Senador Feijó e Asdrúbal Nascimento, as desapropriações tiveram continuidade e as obras estão em andamento por conta de acordo com o Ministério das Cidades, que repassou recursos do programa Crédito Solidário (FGTS), o qual exige a destinação das unidades a famílias com renda inferior a 3 salários mínimos.

- o descaso na gestão e a falta de trabalho social nos conjuntos habitacionais Gato e do Olarias (ver Diagonal), levando a uma grande degradação dos prédios e das unidades, o que tem sido utilizado para “demonstrar” que a locação social para baixa renda não funciona.

- o abandono do projeto de recuperação do edifício São Vito;

- a desistência de reformar o edifício Prestes Maia para HIS, apesar do processo de desapropriação em curso e da possibilidade de descontar a enorme dívida dos proprietários com o município, semelhante ao valor do edifício.

- a falta de controle quanto ao atendimento da demanda de HIS na ZEIS do PRIH-Luz e as propostas de retirada de vários perímetros de ZEIS no centro.

- O pouquíssimo ou nenhum esforço na articulação com a Caixa para viabilização de programas PAR no centro.

- A relação conflitante com os movimentos e ONGs ligados à moradia e esvaziamento do Conselho municipal de Habitação.

Parte dos problemas acima listados e muitos outros aspectos ligados a ações repressivas contra segmentos sociais específicos foram denunciadas por organizações de direitos humanos atuantes na área central (ver dossiê FCV).

Não menos importante para esvaziar uma política de habitação no centro, especialmente a possibilidade de recuperar edifícios abandonados para HIS, foi a legislação que, com o pretexto de estimular o pagamento das dívidas fiscais, possibilita o perdão das multas e juros acumulados durante muitos anos. Isso funciona praticamente como uma anistia aos proprietários e um esvaziamento dos instrumentos legais que facilitavam seu repasse para HIS.

Era de esperar-se que essas novas posições da prefeitura se refletissem na alteração do programa a ser financiado pelo BID, buscando direcionar os recursos para obras que reforcem a nova política para a área central.

De fato, a prioridade da administração iniciada em 2005 é o projeto Nova Luz, uma vasta operação imobiliária planejada segundo a lógica da parceria público-privada, em cujo perímetro a prefeitura está desapropriando centenas de imóveis para posterior revenda a investidores, para uso comercial e residencial. No perímetro dessa intervenção havia sido delimitada uma ZEIS-3 pelo Plano Regional Estratégico de 2004. Segundo opiniões dos especialistas do mercado, a exigência de construção de HIS dificultaria o leilão dos terrenos desapropriados e desestimularia o interesse privado pelo projeto. Essa tem sido apresentada como uma das razões para o pedido de extinção desta e outras ZEIS-3 na área central.

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Para justificar a retirada de recursos próprios e do empréstimo do BID destinados a habitação social, a prefeitura alegou que já existem recursos da CDHU e do programa PAC/BID com essa finalidade. Essa explicação parece falaciosa, pois esses recursos já existiam na época em que o contrato do BID foi montado e assinado, tendo sido então constatado que as famílias de renda inferior a 2 salários não poderiam ser atendidas com moradias no próprio centro.

Considerações finais

1. Na formulação da política habitacional para o centro de São Paulo foi explicitada uma preocupação com os possíveis efeitos perversos do processo de reabilitação - já em curso antes da negociação com o BID. De fato, várias experiências nacionais e internacionais mostram claramente as dificuldades para permanência e acesso de moradores mais pobres quando certos bairros sofrem uma valorização imobiliária, prejudicando especialmente a população locatária. Essa valorização pode ocorrer por efeito de investimentos na infra-estrutura ou nos espaços públicos, mas principalmente como efeito da criação de uma demanda disposta a pagar mais por escritórios ou por apartamentos na área reabilitada. Desse modo, as políticas habitacionais podem ter um papel essencial na valorização e, conseqüentemente, na viabilização (ou não) de moradia para os diferentes segmentos sociais.

2. Os programas de reabilitação financiados pelo BID (e outros agentes) têm como um dos objetivos a revalorização imobiliária e, no caso de São Paulo, este objetivo está explícito no seu primeiro componente - "Reversão da Desvalorização Imobiliária e Recuperação da Função Residencial". Desse modo, para minorar os efeitos de exclusão social decorrentes do projeto, uma política de proteção dos segmentos mais vulneráveis dos moradores era essencial. Por outro lado, a presença de moradores mais pobres e do tipo de consumo e utilização do espaço público dela decorrente constitui um elemento que dificultaria a atração de segmentos de maior renda (como moradores e usuários do Centro).

3. Quando negociou o empréstimo do BID, no período 2001-2004, a prefeitura de São Paulo acreditou haver convencido os consultores do banco sobre a importância de programas de moradia social no centro e decidiu utilizar cerca de 20% do valor total do empréstimo para viabilizar parte do programa habitacional. Esse programa era mais amplo que o descrito no projeto financiado e contava com outros recursos financeiros e instrumentos legais diversos. O peso deste programa e de outros componentes sociais incluídos no programa Ação Centro permitiu que o BID o considerasse como um projeto "muito social", o que permitiu reduzir a contrapartida municipal para 40%.

4. Atualmente, não apenas o componente habitacional está sendo retirado do programa de reabilitação, como não existe mais uma política de habitação social no centro, seja no aspecto de investimentos ou de implementação dos instrumentos previstos no Plano Diretor e outros textos legais. Essa situação denota uma opção do município pela valorização imobiliária com ênfase na abertura do caminho para um repovoamento feito exclusivamente por moradores de renda mais alta. Embora os técnicos do BID tenham discutido amplamente o componente habitacional anterior, aprovado na gestão Marta, as opções atuais da prefeitura parecem corresponder aos argumentos que o banco apresentava no início das discussões em relação à presença de HIS.

5. Permanecem algumas dúvidas e questões a aprofundar: para o plano habitacional da Prefeitura no período 2001/2004, era mesmo necessário contar com recursos do BID? O fato de negociar a inclusão ou não de alguns tipos de programas no financiamento

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do BID ajudou ou prejudicou a implantação de HIS no centro? Por um lado, sabe-se que a necessidade de recursos externos foi aumentando na medida em que a resposta do programa PAR, para o qual a prefeitura fez um convênio com a Caixa, foi menos eficiente do que a prevista no início da gestão. No entanto, (praticamente) todas as unidades construídas no centro acabaram por ser financiadas com recursos municipais ou federais geridos pela Caixa, assim como a grande parte das ações desenvolvidas nos PRIH. Se analisarmos do ponto de vista da disputa de recursos dentro da Sehab, é provável que o fato de estar vinculado ao objetivo de reabilitação do centro e de obtenção do empréstimo do BID tenha ajudado o programa de locação social a contar com terrenos e recursos, por exemplo. Também nesse contexto, um programa inicialmente não muito considerado – o PRIH – passou a ser apoiado pelo fato de ter o financiamento do BID. Finalmente, ao menos no período 2001/2004, a discussão sobre a necessidade de atração de famílias de classe média não parece ter prejudicado o avanço dos projetos municipais de HIS. De qualquer modo, o peso do componente habitacional no empréstimo poderia representar um contraponto real aos investimentos que visavam à valorização imobiliária. Ou seja, se havia um financiamento do BID para reabilitar o centro, parece fundamental que parte desses recursos fosse usada para HIS.

6. Sabe-se que atualmente ocorre uma grande investida do BID na oferta de empréstimos para programas de reabilitação de áreas centrais em outras cidades brasileiras e que as prefeituras desejam ter recursos para esse tipo de programa. É importante que governos e sociedade estejam atentos aos riscos dos efeitos socialmente perversos e dos modelos de programas habitacionais defendidos pelos técnicos do BID. No caso de São Paulo, o fato de ter uma política com objetivos de inclusão social e recursos financeiros de outras fontes certamente foi decisivo para que a prefeitura – enquanto assim o quis - pudesse “resistir” a algumas exigências e conselhos, garantindo a implantação de HIS paralelamente aos investimentos na revalorização do centro.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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FÓRUM CENTRO VIVO. Contribuições para o Plano Reconstruir o Centro. São Paulo: junho 2001. Disponível em www.forumcentrovivo.hpg.ig.com.br. Acesso em março de 2006.

KARA-JOSÉ, Beatriz. Políticas culturais e negócios urbanos: a instrumentalização da cultura na revitalização do centro de São Paulo (1975/2000). São Paulo: Annablume, 2007.

KOHARA, Luís. Rendimentos obtidos na locação e sublocação de cortiços: estudos de caso na área central de São Paulo. Dissertação de mestrado. Escola Politécnica, USP, 1999.

LABHAB/LINCOLN. Relatório Final do observatório do Uso do Solo e da Gestão Fundiária no Centro de São Paulo. 2006

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SÃO PAULO (cidade) [a]. Concurso Habita Sampa para projetos de habitação de interesse social na área central de São Paulo. 2004. COHAB/SEHAB, 2004

SÃO PAULO (cidade) [b]. Programa Morar no Centro. SEHAB, 2004

SÃO PAULO (cidade) [c]. Balanço qualitativo de gestão: 2001-2004. SEHAB, 2004.

SÃO PAULO (cidade). Plano Reconstruir o Centro. Folder. 2001.

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________. Habitação no Centro de São Paulo: como viabilizar essa idéia? Documento preparatório para seminário. São Paulo: FAUUSP/LABHAB; CAIXA, 2000.

Documentos internos da prefeitura de São Paulo:

COHAB/SP. Programa de Locação Social: investimento e retorno. Apresentado no "Seminário Internacional sobre Locação Social", organização PMSP. São Paulo, maio de 2003.

COHAB/SP – Caderno da Locação Social (versão preliminar de documento preparado para o BID). 2003

FIPE/EMURB. Linha de Base do Programa Ação Centro, 2002

- Ajudas Memória do BID

- Análises sobre o projeto São Vito (arq. Carolina Pozzi, Diagonal, etc)

- Relatórios internos da coordenação do programa Morar no Centro (Helena Menna Barreto)

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ANEXOS

ÍNDICE

1. Notas da reunião de 15/16 de setembro de 2002

2. Matriz para controle dos resultados do componente “Reversão da desvalorização

imobiliária e recuperação da função residencial”.

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ANEXO 1

NOTAS DA REUNIÃO DE 15 e 16 DE SETEMBRO DE 2002 Las notas a continuación reflejan las conversaciones entre la misión de la Prefectura de Sao Paulo y el Equipo del Proyecto BR0391 durante los días 16 y 17 de septiembre de 2002. Las conversaciones se centraron sobre los objetivos, programas e instrumentos a utilizarse en el Componente Morar no Centro. A. Objetivos y características del Componente Morar no Centro. Se ha precisado que los objetivos del Componente son los siguientes:

3. Retención de población de bajos ingreso y mejoramiento de las condiciones de habilitabilidad de las viviendas de la población de bajos ingresos

4. Atracción de población de ingresos medios

Adicionalmente, se ha acordado lo siguiente:

3. El desarrollo de los programas habitacionales se hará en el marco de las políticas de vivienda nacionales y municipales

4. Las intervenciones en los perímetros no constituyen un programa independiente, sino que serán incluidas en las intervenciones urbanas. Corresponde a una gestión intencionada de los componentes en una parte del territorio.

B. Programas e instrumentos

8. Programa de Arrendamiento Residencial (PAR) Se acordó que la Prefectura asumirá un rol facilitador y articulador, concentrándose en acciones que promuevan y faciliten que los potenciales beneficiarios accedan a financiamiento provisto por la Caixa Económica Federal (CAIXA). La delegación de Sao Paulo solicitó que los recursos que la CAIXA comprometiera para el Programa sean considerados en la operación como contraparte local. Tarea: Identificar barreras y cuellos de botella que podrían afectar el desempeño del PAR y proponer medidas para superarlos. Esta tarea será asumida por la Prefectura. 9. Programa de Renta Media

Se acordó que para incentivar a las familias de ingresos medios a vivir en el centro, se requiere la utilización de incentivos que podrían ser incentivos

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financieros y no financieros. Se mencionó como una posibilidad un subsidio a los “pioneros”. Tarea: Identificar los factores que hacen el centro poco atractivo para este segmento de la demanda de vivienda, proponer inversiones y otras acciones para mitigar el problema. De ser necesario analizar la posibilidad de otorgar incentivos directos determinando el monto de los incentivos, a cuantas familias beneficiaría (pioneros), la sostenibilidad de los subsidios una vez ejecutada la operación con el Banco, los beneficiarios, los mecanismos de selección de beneficiarios y de traspaso de los recursos. . Esta tarea será asumida por la Prefectura. 10. Programa de Arrendamiento Social

El Equipo de Proyecto del Banco trasmitió que no tiene experiencia en este tipo de programas, y que la experiencia internacional señala que la mayoría de los países que los han aplicado han tenido poca capacidad para gestionar y mantener el parque de vivienda. Sin embargo, el equipo trasmitió que está dispuesto a intentar un programa nuevo en atención a las características de la población a la que se dirige (que no tiene “vocación” de propietario), en razón de que esta población no tendría otra opción de acceder a una vivienda en el centro. Tarea: Realizar una investigación sobre los problemas que han enfrentado experiencias mundiales similares para identificar los cuellos de botella que habría que superar y recomendar un esquema e instrumentos para ejecutar el programa. El Banco apoyará esta tarea con recursos para la contratación de una consultoría internacional.

11. Programa de Carta de Crédito Municipal El Equipo de Proyecto indicó que las políticas del Banco no permiten financiar este tipo de programas. Asimismo, no recomiendan su uso. Esta posición ha sido adoptada por el Banco en razón del fracaso de estos instrumentos en toda la región. El Banco trasmitió que el esquema que recomienda es un subsidio directo a la demanda, que puede ser individual o asociativo y que debiera ser complementado con un crédito del sector financiero formal en condiciones de mercado. Tarea: Revisar experiencias y buenas prácticas de uso del subsidio, organización de la demanda y otros. La delegación de Sao Paulo se pondrá en contacto con la Representación del Banco en Brasil para gestionar recursos ct intra que permitan que una delegación de la Prefectura visite Chile. 12. Programa Morada Provisoria

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El Programa facilita la ejecución de los restantes programas y está financiado completamente por la Prefectura. La delegación de la Prefectura solicitó que las inversiones realizadas por la Prefectura bajo este programa sean consideradas como contraparte del préstamo. 13. Programa Favela Do Gato

El Equipo de Proyecto del Banco informó que para cumplir las políticas del Banco, un programa de estas características debe cumplir requerimientos relacionados con la mitigación de los impactos sociales y ambientales que podrían retrasar el cronograma de preparación de la operación. En este sentido, el equipo recomendó que la Prefectura evaluará esa situación y considerara como una opción ejecutar el Programa fuera de la operación, con recursos de la Prefectura. 14. Programa Edificio San Vito

El Equipo de Proyecto del Banco planteó dado que existen otros edificios en el centro de Sao Paulo con problemas similares a los que enfrenta el edificio de San Vito, sería interesante incluir en el préstamo un componente especial que tendría el objetivo de dar una respuesta global. El componente podría gestionarse a través de una unidad especial. Tarea: Profundizar sobre los mecanismos e instrumentos a utilizarse para asegurar una aceptación y participación activa de los involucrados. El Banco apoyará esta tarea con una consultoría específica en esta dirección.

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Anexo 2. MATRIZ PARA CONTROLE DA EXECUÇAO DO PROJETO COMPONENTES INDICADORES MEIOS DE VERIFICAÇÃO SUPUESTOS

1.Reversão da desvalorização imobiliária e recuperação da função residencial, com diversidade.

• Variação no valor de mercado dos imóveis residenciais e não residenciais maior ou igual ao do restante do município, a partir do segundo ano de execução.

• Diminuição da taxa de desocupação dos imóveis residenciais maior ou igual ao do restante do município, a partir do segundo ano de execução.

• Aumento da superfície aprovada para construções e reformas residenciais.

• Pesquisa sobre o valor da locação de imóveis no centro

• Pesquisa amostral para avaliação do número de imóveis vagos

• Informações da SEHAB/APROV

Estabilidade Econômica Aprovação de legislação urbanística

1.1 Elaboração de propostas de legislação urbanística e tributária • Estudos urbanísticos especiais: Diagonal-Sul-Parte 1 • Estudo sobre a Dinâmica Atual e Legislação Urbanística

o Diagnóstico Área Central o Legislação Urbanística o Plano Diretor Regional Subprefeitura Sé o Plano Diretor Regional Subprefeitura Mooca

• Apresentação do Plano Diretor da Subprefeitura da Sé à Câmara Municipal até dezembro de 2003

• Estudos concluídos, conforme cronograma

• Informe de seguimento do projeto • Diário Oficial do Município

1.2 Intervenções Urbanísticas • Projetos motores

o Centro Velho/Centro Novo o Diagonal Sul – Parque Urbano (perímetro estrito) o Projeto Luz

• Estudo: Perímetros de Renovação e Promoção Imobiliária

• Trilha Histórica Implantada, conforme cronograma • Parque D. Pedro reabilitado, conforme cronograma • Concurso “Projeto Global” realizado, conforme

cronograma • Estudo sobre perímetros de renovação e promoção

imobiliária realizado, conforme cronograma

• Informes de seguimento do programa

1.3 Viver no Centro: • Produção de Unidades para Locação Social • Elaboração de Modelos de Gestão de Locação Social • Programa de arrendamento residencial – PAR • Moradias Transitórias • Programa de incentivos para atração de famílias de

renda média • Apoio técnico à recuperação de edifícios (São Vito) • Perímetros de reabilitação integrada (PRIH) • Estudos necessários à implantação das ações

• Planos de ação, dos resultantes de estudos

contratados • Número de PRIH implantados, segundo

cronograma • Número de edifícios recuperados para uso

residencial, conforme meta • Número de edifícios residenciais pelo PAR, conforme

meta • Número de unidades para locação social,

conforme meta • Moradias provisórias, segundo meta • Número de edifícios recuperados, segundo meta • Modelos de Gestão de Locação Social em

operação • Incentivos para famílias de renda média

concedidos

• Informes de seguimento do programa

fonte: Ajuda Memória – 28-05-2003

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7.1.2.Francisco Comaru e Rosa Falzoni (Participação Social no Programa) _____________________________________________________________ A participação social no Programa de Reabilitação do Centro de São Paulo Francisco Comarú e Rosa Falzoni I – Introdução Considerações sobre algumas concepções de participação Objetiva-se aqui, realizar uma análise do processo de participação social no Programa de Reabilitação do Centro de São Paulo no âmbito deste esforço de desenvolver uma metodologia de monitoramento do desenvolvimento de grandes projetos, que envolvem financiamento externo e de fortalecimento do controle social em políticas públicas. Há referencias diversas sobre o entendimento de participação social. Nota-se pela observação empírica que existem graus de profundidade muito diferentes nos inúmeros processos, mecanismos e instâncias chamadas de participativas. Considera-se nesta análise que é importante distinguir, ainda que de forma relativamente simples, que tipo de participação os diferentes atores estão se referindo, tanto quando se fala, quanto quando se pratica. A idéia da participação e controle social das políticas, programas e projetos públicos pressupõe que apenas o sistema de democracia representativo é insuficiente para garantir uma das finalidades do sistema, que é democratizá-lo, por meio da melhor distribuição do poder político e econômico. Chauí (2004) discute duas perspectivas para entendimento de democracia e de participação: liberal e de esquerda. Na primeira concepção a cidadania é definida pelos direitos civis e a democracia se reduz a um regime político eficaz organizado que se manifesta no processo eleitoral de escolha de representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas sociais e econômicos. Esta concepção de democracia enfatiza a idéia de representação, ora entendida como delegação de poderes, ora como governo de poucos sobre muitos. Na segunda perspectiva, a autora considera que o pensamento de esquerda (...) redefiniu a democracia recusando considerá-lo apenas um regime político, afirmando a idéia de sociedade democrática. Nesta concepção a ênfase recai sobre a idéia e a prática da participação, ora entendida como ação direta nas ações políticas, ora como interlocução social que determina, orienta e controla a ação dos representantes (Chauí, 2004). Para Chauí uma sociedade é democrática quando institui algo mais profundo, que é a condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e esta instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como luta social e, politicamente, como

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um contra-poder social e que termina, dirige, controla, limita e modifica a ação estatal e o poder dos governantes (Chauí, 2005). Demo (2001) defende que, do ponto de vista da cidadania e da sustentabilidade do desenvolvimento, o controle democrático consiste num critério central para a conquista da qualidade de vida. O autor também identifica, na sua análise, duas concepções possíveis de participação, afirmando que, nos dias atuais, geralmente se reconhece a importância da participação popular ante projetos de desenvolvimento. Numa primeira concepção de participação considera-se a mesma, como um processo de convalidação, num contexto de uma visão liberal, em que a cidadania é tutelada ou assistida. Na segunda concepção a participação é uma ferramenta para emancipação. Neste caso, o autor considera que a melhor política social provém da cidadania popular marcada pelo controle democrático. Daí surgiriam algumas questões entre as quais duas mais centrais: a) competência política – como habilidade de produzir cidadania de baixo para cima; b) qual Estado e Governo estaria disposto a dividir poder e ser controlado? Para Demo (2001) a capacidade associativa de controlar o Estado e outras instâncias de poder – inclusive o mercado – é o fulcro essencial da democracia (...). O autor enfatiza ainda que “de partida é fundamental reconhecer que a participação pode ser utilizada como slogan ou fetiche para um quadro histórico que ainda não apresenta um mínimo de competência política”. Neste sentido questionaria-se até que ponto a participação existente é real ou é fantasia. Sousa Santos (2007) também refere-se a democracia liberal representativa que significaria, de um lado, autorização, e de outro, prestação de contas. No entanto, o autor nota que o processo de autorização acontece por meio do voto, mas o processo de prestação de contas muitas vezes não tem ocorrido no jogo democrático atual. Em muitos casos empíricos nota-se que “quanto mais se fala em transparência, menos transparência há”. Daí o autor conclui que, dado que a prestação não acontece, a autorização entra em crise por meio de duas patologias: a da representação - os representados não se sentem representados por seus representantes – e a da participação – abstencionismo muito freqüente: “não vou participar porque meu voto não tem importância” ou porque “acontece sempre a mesma coisa”. Por outro lado, o autor defende que por meio da democracia participativa (direta) poder-se-ia cumprir um papel importantíssimo de complementaridade à democracia representativa, por meio, não apenas da delegação, mas da tomada direta de decisões. Com relação ao caso brasileiro, Sousa Santos (2007) defende que há casos em que uma democracia participativa no nível local consegue articular autorização com prestação de contas, criando realmente transparência e limitando a corrupção – isso está de fato demonstrado – conseguindo uma redistribuição social. A democracia participativa teria a capacidade de ampliar a agenda política. No entanto para que a democracia participativa funcione alguns desafios e pressupostos colocam-se. E é aí que o autor chama a atenção para o risco da “cidadania bloqueada”, ou seja de uma banalização da participação: “participamos cada vez mais do que é menos importante, cada vez mais somos chamados a ter uma opinião sobre coisas cada vez mais banais para a reprodução do poder”. Neste sentido seria preciso garantir três condições fundamentais para a participação: ter a sobrevivência garantida (ou as condições materiais mínimas para tal), ter um mínimo de liberdade civil e política, e ter acesso a informação (Sousa Santos, 2007). No Brasil, apesar de terem-se desenvolvido experiências importantes de participação social ou popular nas políticas públicas após a abertura democrática e a Constituição de 1988, observa-se

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um certo retrocesso deste processo, iniciado, porém, longe de concluído, de participação e controle social das políticas públicas e de democratização do poder político. Rizek (2007) em sua análise sobre o Orçamento Participativo (OP) na Gestão Marta Suplicy que parte de uma pesquisa etnográfica com delegados, conselheiros e membros da equipe que o coordenava, ressalta a importância do OP, enquanto instrumento de democratização e politização das cidades. No entanto, a mesma análise detalha aspectos e hipóteses do fracasso da experiência na cidade de São Paulo. Seu trabalho, como a própria autora coloca questiona e problematiza a idéia mais ou menos corrente de que os dispositivos de participação política são necessariamente expedientes que constituem esferas públicas de interlocução e ação e conformam possibilidades de democratização e, nesse sentido, de publicização da cidade (Rizek, 2007). O OP que já foi considerado referência em termos de mecanismo de planejamento participativo no Brasil e noutros países, possui uma avaliação que deixa muito a desejar e mostra uma crise de sua instituição em São Paulo. A autora levanta três indagações que pesam na reflexão que aqui realizamos: “a) se a experiência do OP se contrapõe ou acaba por ratificar relações de clientelismo e patrimonialismo que marcaram a história brasileira, permeando a distribuição de recursos e as administrações locais (...); b) sobre a possibilidade ou impossibilidade de construção de mecanismos democráticos que instituíssem ou buscassem recompor dimensões distributivas, políticas públicas, investimentos do Estado, permitindo o restabelecimento de alguma equidade (...) por meio da disputa de fundos públicos; c) sobre a construção ou truncamento do OP como um fórum pelo qual pudessem se constituir e ganhar visibilidade os conflitos legítimos pelo uso e apropriação equânime dos territórios e serviços urbanos, para além da espessa camada de normalidade que obscurece e mantém uma ordem perversa em suas expressões materializadas na cidade de São Paulo.” (Rizek, 2007) Entre outros problemas detectados estão o cumprimento bastante parcial do Plano de Obras e Serviços, e a distribuição dos recursos segundo velhas práticas clientelistas, ação popular espetacularizada (no lugar de democratização e participação de fato). Além disso, a autora indaga se o mecanismo de participação tem uma dimensão politizante ou se constitui em forma de gerir, dividir e legitimar a escassez, por meio de dispositivos participativos. Assim em que medida a presença popular e as formas de deliberação podem se configurar como legitimação e explicação plausível da desigualdade, na produção de uma complacência e de uma consentimento relativos à mera administração e controle das carências adocicados pela participação e deliberação coletivas. (Rizek, 2007). A reflexão colocada acima acerca dos rumos tomados por um dos mecanismos mais criativos e inovadores da democracia brasileira, alerta-nos sobre os riscos de uma domesticação dos espaços democratizantes que teriam potencialidade transformadora ou reformadora na nossa sociedade. A reflexão vale para o caso dos espaços de participação criados (e extintos) em sucessivas gestões municipais no âmbito do Programa de Reabilitação do Centro, particularmente com relação ao direito de participação, mas com grau muito restrito de tomadas de decisão sobre aspectos importantes ou centrais. A título de exemplo, no caso do Programa de Reabilitação do Centro jamais foi colocado como objeto de decisão nas instâncias participativas a porcentagem de recursos a ser destinada à habitação social ou à política fundiária. Neste sentido, algumas decisões realmente estratégicas já estavam tomadas de forma bem centralizada e sem participação da sociedade civil.

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Outro aspecto relacionado à esta discussão da participação refere-se à apropriação de palavras-chave com seus conceitos e significados de um setor para outro setor, com um correspondente esvaziamento de conteúdo e sentido. É o que mostra Arantes (2000) em seu ensaio sobre as organizações não governamentais no Brasil. O autor nos mostra como tem ocorrido de forma rápida e abrangente a apropriação semântica – e uma conseqüente perda de sentido – em expressões entre Estado, ONG’s e empresas. Expressões como “participação cidadã”, “direitos de cidadania”, “novos atores”, “governança”, “capital social” tem sido apropriadas ora por gestores governamentais, ora por empresas, ora por ONG’s, motivando uma dificuldade de leitura do seu significado real ou original. Isso resulta num esvaziamento dos sentidos originais que as palavras num determinado contexto e setor teriam. Com relação à participação é notório que este fenômeno, em maior ou menor medida, vem ocorrendo. Movimentos sociais e organizações não governamentais, governos de todos os tipos e matizes ideológicas, agencias internacionais e bancos multilaterais, empresas de variados tamanhos e origens utilizam a expressão “participação” sempre como algo importante e positivo. Certamente que o seu significado não pode ser o mesmo para todos estes setores. Mas, ao mesmo tempo, o que Arantes (2007) nos mostra é que disso resulta uma perda do sentido mais profundo, um esvaziamento, escorregamento semântico. O BID e a participação O BID e os outros bancos e organismos multilaterais vem apresentando nos seus documentos mais recentes a preocupação com a participação. De fato conforme relatado por Soares e Leroy, (1998) nos últimos anos, vem crescendo o reconhecimento dos banco multilaterais sobre a importância da participação no processo de financiamento do desenvolvimento. Os autores coordenaram análises de experiências de participação em projetos específicos. Com relação ao Painel de Inspeção do Banco Mundial38, por exemplo, reconhecem que embora tenham havido avanços, nota-se uma distância existente entre as intenções proclamadas e a realidade vivida dentro da instituição. Este estudo mostra que a recente mudança de discurso dos Bancos Multilaterais num aceno de um eventual reconhecimento de importância e sensibilidade maior para aspectos como: impactos ambientais, reassentamentos involuntários, acesso à informações e participação, entre outros, emerge num contexto de constatação de alto percentual de fracasso nas operações de empréstimos efetuadas, além de pressões (principalmente motivadas pela questão ambiental) e ameaças inclusive de cortes nos orçamentos. Em razão disso, os bancos passaram a se preocupar em melhorar a sua performance e sua imagem externa (Soares e Leroy, 1998). Segundo documento institucional denominado Estratégia para Promoção da Participação Cidadã nas Atividades do Banco de 200439 o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostra-se, em seu discurso, sensível à importância da participação nas suas atividades e nos projetos financiados. 38 Trata-se de um mecanismo de auditoria relativamente independente que permite a qualquer grupo que se sinta diretamente afetado por algum projeto financiado pelo BIRD e pelo BID, em função do não cumprimento das diretrizes operacionais previstas, requerer uma investigação. Ver: Leroy, J., Soares, M.C.C. (orgs). Bancos multilaterais e desenvolvimento participativo no Brasil: dilemas e desafios – Rio de Janeiro: FASE/IBASE, 1998, 236p. 39 Título original em inglês: Strategy for promoting citizen participation in Bank Activities.

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Neste documento considera-se a democracia como uma articulação de mecanismos de representação política e participação cívica. De fato, contribuindo para a renovação da legitimidade das instituições democráticas, a participação complementa o processo de construção da democracia (IADB, 2004). O Banco, define “participação” como um processo em que cidadãos, por meio dos seus governos ou diretamente, podem influenciar o processo de tomada de decisões relativamente a atividades e objetivos. Assim interpretado, a participação cidadã não significa poder de decisão, mas sobretudo ter a possibilidade de influenciar decisões que recairão sob responsabilidade de respectivas autoridades em cada instância (IADB, 2004). Com relação aos projetos específicos o documento deixa claro que a responsabilidade principal cabe aos governos tomadores de empréstimos e agencias executoras, enquanto o papel do Banco é encorajar e promover a adoção do processo participativo por meio da provisão de seu projeto operacional (IADB, 2004). Vejamos a seguir uma discussão sobre a participação no Programa de Reabilitação do Centro partindo do ponto de vista de diversos atores e pessoas-chave entrevistados integrantes de governos (em diferentes gestões municipais) e da sociedade civil. II – O Programa de Reabilitação do Centro de São Paulo Conforme constam em documentos oficiais e nos relatos das entrevistas com diversos atores-chave, durante a gestão Celso Pitta, as instancias de participação social instituídas para os assuntos do centro eram a Comissão Procentro e a Comissão da Operação Urbana Centro. A partir da necessidade de intervenção na região central da cidade e de uma atuação que a Associação Viva o Centro exerceu ao reivindicar ser interlocutora de seus interesses junto a PMSP, criou-se o Procentro através do Decreto n° 33.389 e também a Comissão Executiva do Procentro através do Decreto n° 33.390 ambos de 15/07/1993 na Gestão de Paulo Maluf. Mas seria na gestão de Celso Pitta que nessa instância surgiria a idéia de financiamento internacional para o Centro, principalmente pelo fato do conselheiro Sanderley Fiusa, também ser consultor do BID. Na proposta inicial a grande tônica de intervenção no Centro seria a construção de garagens o que foi bastante apreciado pelo BID. Em meio às negociações da dívida do município, que impedia a contração de outro financiamento internacional, junto ao Governo Federal, Celso Pitta impôs como condição de negociação da dívida, a autorização para o financiamento tendo como argumentos as propostas de intervenção definidas pelo Procentro, apresentadas como prioridade. Na gestão em que o financiamento foi aprovado e o Programa iniciado (Marta Suplicy), foram oficialmente instituídas duas instancias de participação no projeto. O Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico do Centro de São Paulo e a Coordenação Executiva Ação Centro, junto à Empresa Municipal de Urbanização (EMURB)40. O mesmo decreto criou também o Grupo Técnico – Agencia de Desenvolvimento do Centro de São Paulo vinculado à Diretoria de Desenvolvimento da EMURB e revogou o Decreto 40.753/2001 que criara a Coordenadoria de Programas de Reabilitação da Área Central – PROCENTRO.

40 Decreto 44.089 de 10 de novembro de 2003.

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Segundo o decreto municipal da Gestão Marta, o Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico do Centro de São Paulo foi criado baseado em diversos argumentos e justificativas41. O Fórum foi criado segundo discurso oficial, como canal de participação dos cidadãos na proposição de diretrizes e prioridades de desenvolvimento econômico e social sustentável do Centro de São Paulo. Naquele ato o Fórum passava a exercer as funções e atribuições anteriormente desempenhadas pelo Procentro. Além disso o decreto delimitou o Centro de São Paulo aos Distritos Sé e República e eventualmente áreas lindeiras consideradas estratégicas, a critério da Coordenação Executiva Ação Centro instituída no mesmo decreto (São Paulo, 2003). No seu artigo 2º. o decreto define uma série de incumbências e atribuições do Fórum, que segundo discurso oficial visavam o desenvolvimento econômico e social sustentável do centro42. De acordo com o Art. 3º. o Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico do Centro de São Paulo deveria se reunir ordinariamente em plenárias a cada 6 meses sob a presidência da prefeita. O mesmo era composto por órgãos públicos e entidades da sociedade civil já representados na Comissão PROCENTRO; membros da Comissão Executiva da Operação Urbana Centro criada pela Lei nº 12.349, de 6 de junho de 1997; membros do Conselho do Programa de Incentivos Seletivos criado pela Lei nº 13.496, de 7 de janeiro de 2003; todos os conselheiros que compõem o Conselho do Orçamento Participativo da Subprefeitura da Sé, o Conselho Municipal da Habitação e o Conselho Municipal de Política Urbana. Previu-se que poderiam pleitear representação no Fórum organismos governamentais e da sociedade civil organizada, interessados em participar dos trabalhos nele desenvolvidos. Além de se reunir em plenárias, o Fórum poderia se organizar em grupos temáticos de trabalho para análise, preparação de propostas e encaminhamento de sugestões à Plenária ou à Coordenação Executiva Ação Centro. Como citado, além do Fórum a prefeitura de São Paulo nesta ocasião criava também a Coordenação Executiva Ação Centro composta por 6 (seis) representantes do Poder Público Municipal e 6 (seis) representantes da sociedade civil, contando cada titular com um suplente. Definiu-se que até a instalação definitiva da Coordenação Executiva Ação Centro43 e do Fórum de

41 a) a importância do fortalecimento do processo participativo para a formulação e implementação de estratégias e ações que promovam a integração e a consolidação dos diferentes instrumentos de intervenção do Poder Público Municipal, bem como a criação de alianças e parcerias com a sociedade civil e o setor privado para a atração de investimentos e a promoção do desenvolvimento econômico e social sustentável do Centro de São Paulo; b) a possibilidade de destinação de recursos públicos e privados, inclusive com a utilização dos incentivos instituídos nas Leis nº 12.349, de 6 de junho de 1997, nº 12.350, de 6 de junho de 1997, e nº 13.496, de 7 de janeiro de 2003; c) que, para a consecução de tais objetivos, faz-se necessário reformular e ampliar o âmbito de atuação da Coordenadoria de Programas de Reabilitação da Área Central – PROCENTRO (São Paulo, 2003). 42 a) atuar como canal de participação dos cidadãos na discussão de diretrizes gerais e propor prioridades estratégicas para a elaboração de planos de ação; b) apoiar programas, projetos e ações públicas ou privadas norteados pelo mesmo objetivo; c) envolver os agentes públicos, privados e comunitários na construção de uma perspectiva comum, com amplo suporte, articulá-los no desenvolvimento de programas, projetos e ações, bem como referendar as estratégias participativas propostas; d) divulgar informações sobre incentivos, políticas e programas municipais relativos ao Centro; e) aprovar a inclusão de representantes de organismos governamentais e da sociedade civil organizada. 43 A Coordenação Executiva Provisória Ação Centro foi composta pelos seguintes membros: I - Presidente da Empresa Municipal de Urbanização - EMURB; II - Subprefeito da Sé; III - 4 (quatro) representantes de órgãos ou empresas do Poder Público Municipal mais diretamente envolvidos nos programas, projetos e ações de reabilitação, requalificação e desenvolvimento do Centro; IV - 2 (dois) representantes de cada uma das seguintes entidades: a) Associação Viva o Centro - AVC; b) Fórum Centro Vivo; c) União dos Movimentos de Moradia - UMM; d) União de Mulheres de São Paulo; e) Sindicato das Empresas de Publicidade Exterior do Estado de São Paulo - SEPEX; f) Consórcio São Paulo Minha Cidade.

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Desenvolvimento Social e Econômico do Centro de São Paulo. Foi designada pela Prefeita uma Coordenação Executiva Provisória, com mandato de 12 (doze) meses, incumbindo-lhe, nesse período, exercer as atribuições estabelecidas. Cada membro titular da Coordenação Executiva Provisória Ação Centro contava com um suplente, que o substituía em sua ausência ou impedimento. Estas duas instancias, bem como outras ligadas às secretarias e órgãos municipais são de interesse central para a discussão aqui realizada. III – Percepção de Atores-Chave sobre a participação no Programa As diversas entrevistas realizadas mostram que os diferentes depoentes possuem pontos de vista quase sempre bastante influenciado pelo cargo ou posição que ocupam ou ocuparam no âmbito do desenvolvimento do Programa de Reabilitação do Centro de São Paulo. Nota-se que a percepção sobre a participação varia bastante em alguns casos, inclusive porque muito provavelmente os entrevistados não possuem a mesma concepção de participação. Assim um aspecto que pode ser examinado a partir das entrevistas é se ouve ou não participação nas diferentes gestões pelas quais o projeto passou. Outra questão imediatamente relacionada com a primeira e também importante diz respeito ao tipo de participação do ponto de vista do entrevistado. Outro aspecto refere-se a facilidade ou dificuldade de acesso à informações do projeto. Prefeitura: qual compromisso e com que tipo a participação? Como já relatado existem projetos urbanos na área central que contam com algum tipo de participação desde a Gestão Luiza Erundina. Na Gestão Paulo Maluf diversos projetos em andamento, particularmente na área da habitação foram alterados e paralisados, ao mesmo tempo em que foi criado o Procentro. No entanto, a idéia oficial de se realizar um pedido de empréstimo ao BID para um projeto de requalificação no centro da cidade surgiu período da Gestão Pitta. Segundo Sanderley Fiusa que foi Diretor do ProCentro na Gestão Celso Pitta o primeiro projeto para o centro de São Paulo foi feito na Associação Viva o Centro, local onde ficaram os volumes do mesmo após o termino da Gestão. Segundo o entrevistado as reuniões do Procentro aconteciam semanalmene e havia uma comissão com 27 (vinte e sete) membros. A Coordenação Executiva Ação Centro tinha como atribuições: I - promover gestões coordenadas, colaborativas e efetivas que garantam e facilitem a aprovação e a implementação de políticas, programas, projetos e ações do Poder Público Municipal, do setor privado e da sociedade civil, que atendessem as diretrizes e prioridades propostas pelo Fórum, bem como favorecessem a atração de recursos, financiamentos e estabelecimento de convênios ou parcerias para sua viabilização; II - apreciar e encaminhar o Plano de Trabalho e o Relatório Anual de Atividade do Grupo Técnico – Agência de Desenvolvimento do Centro de São Paulo, vinculado à Diretoria de Desenvolvimento da EMURB; III - mobilizar os diferentes membros para participação ativa nas atividades do Fórum e do Grupo Técnico - Agência, bem como na divulgação das informações de interesse comum; IV - promover a integração das ações do Poder Público Municipal com as iniciativas dos setores privado e comunitário, por intermédio da coordenação centralizada das atividades que interferem no desenvolvimento econômico e social sustentável do Centro; V - monitorar e reportar as atividades do Grupo Técnico - Agência à presidência do Fórum; VI - estabelecer diretrizes para o desenvolvimento de projetos específicos para o Centro, bem como para sua execução e manutenção; VII - examinar e manifestar-se sobre projetos que interfiram na dinâmica do Centro; VIII - analisar, opinar e monitorar projetos que possam causar impactos urbanos, funcionais ou sociais no Centro.

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Segundo a arquiteta Nádia Somekh, presidente da Emurb e coordenadora geral do Programa de Reabilitação do Centro na Gestão da prefeita Marta Suplicy, o Procentro surge na gestão Maluf, um pouco para ser porta voz do Viva o Centro. Os canais de participação na Gestão Pitta consistiam na Comissão Operação Urbana Centro e no Procentro. Tratava-se de espaços onde um limitado número de conselheiros tinha assento e relativo poder de influência, no contexto das políticas públicas em implementação naquela época. Foi durante a Gestão Marta Suplicy em que o pedido de empréstimo ao BID foi aprovado e o programa se materializou por meio da implementação de seus projetos e ações. É durante este período e após ele, na Gestão Serra/Kassab que o Programa de Reabilitação do Centro de fato entra em fase de formulação, discussão e implementação. A partir de então o debate em torno da participação no projeto torna-se mais público e os atores explicitam de forma mais clara posições, interesses e conflitos num contexto de financiamento (e conseqüente endividamento) do BID para a região. O Programa Ação Centro ao ser financiado através de recurso proveniente do contrato celebrado entre a PMSP com o BID, articulou uma série de planejamentos e ações definidas pelos órgãos executores das políticas públicas da cidade, entre secretarias e empresas municipais. Entre 2001 e 2003, já havia sido realizado um investimento de cerca de 83 milhões. No processo de discussão, as secretarias e órgãos municipais apresentaram seus projetos. Alguns eram de antigas demandas e outros novos, com avaliação de que eram inclusive inovadores. Esses órgãos da administração municipal contaram, na definição de suas ações, com instâncias de participação da sociedade civil nas decisões ou acompanhamento das políticas, como os conselhos municipais de diversas secretarias. Propostas de intervenções, prioridades e ações, ocorreram antes mesmo da assinatura do financiamento com o BID. Nota-se que na administração Marta Suplicy, houve um discurso e um esforço de desenvolvimento de uma gestão compartilhada, por meio de ouvidoria, discussão de prioridades e recursos orçamentários, através do Orçamento Participativo implantado em todas as subprefeituras. E não foi diferente na Subprefeitura Sé . Levantamento realizado em 2004 mostra que o município contava com diversos conselhos44 dos mais diferentes setores, cujas decisões poderiam também interferir em uma política pública para a região central. Estes, ligados à secretarias, vieram a compor a figura contratual do “Sub Executor”. Com relação à construção dos espaços de participação social há algumas visões a respeito. Conforme relata Nadia Someck “nós construímos de um lado uma mobilização social de

44 Conselho Municipal de Turismo, Conselho Municipal de Cultura, Conselho Municipal de Habitação, Conselho Municipal de Política Urbana, Conselho Municipal de Assistência Social, Grande Conselho Municipal do Idoso, Conselho Municipal de Monitoramento da Política de Direitos das Pessoas em Situação de Rua na Cidade de São Paulo, Conselho da Pessoa Deficiente, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente/Conselho Tutelar do Município de São Paulo , Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Conselho Municipal de Trânsito e Transportes / Fórum Regional do Trânsito e Transportes (área 5), Conselho Interdisciplinar Consultivo da Secretaria Municipal da Segurança Urbana. Também outros conselhos que teriam interferência na política pública da região, como: Conselho Municipal de Educação , Conselho Municipal da Saúde, Conselho Municipal de Informática, Conselho Municipal de Tributos, Conselho Municipal de Valores Imobiliários, Conselho Municipal de Alimentação Escolar, Conselho Municipal de Políticas de Drogas e Álcool, Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, Conselho de Gestores dos Parques Municipais, Conselho Municipal de Tributos, Conselho Municipal de Valores Imobiliários. (Levantamento dos Canais de Participação no Centro de São Paulo. Ação Centro/Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico do Centro. EMURB, SP outubro de 2004)

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entidades e pessoas envolvidas com o Centro, criamos o Fórum Ação Centro, e ao mesmo tempo, entendemos que dentro da EMURB poderia haver essa entidade, responsável especificamente por implementar o programa. Mas o que a gente constata hoje é que dois anos foram pouco, é preciso efetivamente constituir essa entidade. Isso não é uma exigência do BID, a experiência mostra que o caminho certo pra implementar é a criação de uma entidade que cuide do efetivamente do projeto. Então pode ser uma exigência do BID, mas eu acho que pra efetivamente constituir, o que nós trouxemos como aporte, e que o BID também achou muito bom, porque eles também estão tratando dessa questão do capital social, foi dessa entidade não ser só público-privada. Mas também ter a sociedade civil dentro – uma mobilização de recursos ampla, não só financeiros, mas humanos e sociais para a implementação de um programa”. Conforme pode-se notar a noção de capital social e de gestão compartilhada estão no centro do entendimento da entrevistada, que eu outro trecho da entrevista comenta: o BID estava com essa discussão de capital social e achava importante a gestão compartilhada. Mas não veio com modelo não. Veio com essa discussão, que eles estavam começando a discutir. Não era uma imposição do BID, foi uma perspectiva nossa de mudar o Procentro. Segundo a percepção da depoente, ao Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico caberia constituir-se espaço aberto de locução com a população. Já a Coordenação Executiva era composta por 12 integrantes e deveria analisar monitorar, propor e analisar projetos. A sua composição previa o assento de representantes de diferentes secretarias e órgãos do governo municipal, bem como, lideranças e integrantes de entidades da sociedade civil com concepções políticas bastante diferentes, e até antagônicas como no caso da Associação Viva o Centro e o Fórum Centro Vivo. Estes dois canais principais de participação criados no âmbito do Programa, bastante valorizados na visão dos gestores da Emurb, apresentaram, obviamente, problemas e limitações. Por exemplo, pelo fato de que em muitos casos os projetos, naquela altura da gestão já haviam sido discutidos e aprovados pelos técnicos. A arquiteta Renata Milanesi que trabalhou na Emurb na gestão da Marta sobre as reuniões da Coordenação comenta “(...) a questão é que as ações já estavam definidas e, a maioria delas não tinha como discutir. Eram ações básicas, ninguém discordava da necessidade e da importância delas. Um dos aspectos resultantes mais importantes do Fórum foi ter fomentado a criação de variados Grupos de Trabalho (GT’s) que se reuniram diversas vezes, debatendo, formulando e constituindo espaço de capacitação, como assinala Renata Milanesi. Entretanto, sabe-se que o Fórum enquanto tal reuniu-se apenas uma única vez. A gestão mudou e o Fórum foi extinto. Outro problema refere-se também aos tempos de execução dos projetos, das tomadas de decisão nos momentos-chave e da instalação do próprio Fórum. Neste sentido, segundo a entrevistada” para definir as ações do programa cada Secretaria enviou seus projetos. Alguns eram antigos, demandas de muitos anos; Outros eram novos projetos, inclusive projetos bastante inovadores Mas o Fórum aconteceu depois que o projeto já estava assinado. A EMURB passou por várias diretorias ao longo dos 4 anos, isso dificultava o projeto deslanchar”. Segundo Renata Milanesi cada GT formado a partir do Fórum tirou um coordenador, que era responsável por organizar o grupo. O grupo poderia fazer reuniões independentemente da prefeitura. Mas a prefeitura cedia o espaço e, normalmente Renata comparecia com seus estagiários. Mas eles não interferiam, apenas davam apoio. O problema dos GT’s foi que não houve tempo de inserir no trabalho do Programa Ação Centro. Houve tempo apenas para a formação das pessoas, a realização de vários seminários. Os grupos produziram bastante dentro

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dos temas. Havia, por exemplo, um grupo de “Retrofit”, um sobre condomínios, o de idosos, o de tarifas sociais (...). No sentido das pessoas entenderem melhor o Centro foi muito bom. O fato é que durante a gestão Marta diversos conselhos municipais funcionaram, com diferentes tipos de êxitos e de problemas. O que se constata, por meio das entrevistas é que a participação no Programa de Reabilitação do Centro se deu mais de forma indireta, por meio das instâncias e mecanismos previstos nas secretarias que nas instâncias previstas para o Programa. Em outras palavras, nesta gestão a participação no processo das políticas e projetos das secretarias era mais intenso e relevante do que diretamente nos canais criados no âmbito do Programa financiado pelo BID. Nadia Someck reconhece isso: (...) concordo que as ações do programa foram definidas com participação, através das secretarias, mais do que pelo próprio Fórum, porque foi feito depois. Porque a própria concepção do programa foi pegar o que estava em andamento. Não dava pra parar tudo e fazer um grande debate do quê seria necessário. De acordo com a arquiteta Helena Mena Barreto Silva que coordenou programas de Reabilitação na Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano na Gestão Marta, particularmente os Perímetros de Reabilitação do Habitat, não houve uma participação popular explícita na questão do BID. A participação popular que havia era na questão do Morar no Centro (um dos programas centrais de moradia desenvolvidos pela secretaria na ocasião e incluído no bojo do financiamento do BID). Já a percepção do engenheiro Sergio Torrecilas, sub prefeito da Sé no mesmo período, a participação acontecia nos Conselhos e no Orçamento Participativo, mas as decisões mesmo (do Programa de Reabilitação) eram tomadas sem participação da população. BID: qual compromisso e com que tipo de participação? Como já comentado anteriormente, o BID a exemplo de outros organismos multilaterais de financiamento do desenvolvimento, tem sinalizado mudanças, menos do ponto de vista do discurso, com relação a temáticas de importância contemporânea como meio ambiente, impactos, participação, entre outras. Com relação ao grau de compromisso do BID com a participação, nota-se que mesmo entre os técnicos e gestores do programa de São Paulo em diferentes momentos, há opiniões nem sempre convergentes. A questão do compromisso (ou não) do BID com a participação ganha importância com o término da Gestão de Marta e com o inicio da Gestão dos prefeitos José Serra e Kassab, passagem marcada por mudanças muito significativas no modo de conduzir as políticas públicas e ações para a região central de São Paulo. Do ponto de vista da participação foram desativados o Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico do Centro e a Coordenação Executiva Ação Centro. O acesso às informações também neste caso ficou mais dificultado. Se na Gestão da Marta havia uma preocupação com abertura e manutenção de canais de interlocução do programa e dos projetos com representantes da sociedade civil – por mais questionáveis que pudessem ser a efetividade e a eficácia dos mesmos – na gestão sucessora esta postura mudou completamente. Diante disso ganha importância o papel do BID, como financiador e co-autor da proposta em curso. Isso aparece também de forma explícita no depoimento dos entrevistados, tanto da gestão Marta quanto da gestão Serra/Kassab.

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Renata Milanesi deixa claro seu ponto de vista: o BID exigia que houvesse participação social, essa é minha percepção. Nadia Somekh também considera que o Banco exige participação – pelo menos enquanto um princípio em construção – no entanto ao final da reflexão sobre o assunto ela demonstra desconhecer detalhes do que acontece atualmente e reconhece que o princípio depende muito do técnico e da direção da equipe para ser aplicado. Quando indagada a respeito responde: “Eles exigem. Mas é uma coisa em construção. Tanto que eu fui num seminário deles, e eles têm como princípio, mas eu não sei como está a negociação. Você tem que perguntar lá. Mas na montagem do projeto eles tinham isso como fundamental e nós também. Como teve essa troca de direção na equipe, não sei como está. No fim acaba dependendo bastante do técnico responsável, o que é uma pena, por que se perde o princípio. A fundamentação dos princípios. Mas tem uma questão política também. Tem que ser articulado se não as coisas não saem”. De qualquer forma poderia-se levanta um aparente contradição a partir deste ponto de vista. De um lado considera-se que o “Banco exige a participação”. No entanto isso é algo “em construção” e que acaba “dependendo bastante do técnico responsável” que está a frente das negociações e do acompanhamento e monitoramento. Uma dedução plausível disse, na prática, significaria supor que a participação seria uma diretriz relativamente nova, não incorporada, não exigida, nem fiscalizada do ponto de vista institucional, cuja aplicação fica a critério pessoal de quem está à frente de determinado projeto em nome do Banco. Aderbal Curvelo do escritório do BID em Brasília quando entrevistado esforçou-se para afirmar a importância da participação. Diante da informação de que a Gestão Serra / Kassab desativou os canais de participação instituídos no âmbito do programa, reagiu com surpresa deixando demonstrar que desconhecia tal informação “isso para mim é novidade. Eu não estava sabendo. Agente vai se dirigir ao mutuário para saber o que está acontecendo” (...). Em outro trecho da entrevista comenta sobre a participação: “A gente deseja e espera que ocorra dessa maneira, com participação. Acreditamos que construir junto e com transparência é a melhor solução para qualquer problema. A gente tá esperando que isso continue a ocorrer no Procentro. Estamos num período de ajuste, ainda não terminou. E quando isso tiver concluído, a gente entende que vai continuar ocorrendo a participação social e tudo o que está previsto no programa”. Quando questionado pelos entrevistadores se o Banco pode suspender projetos porque a participação social não está funcionando, respondeu: “Existem motivos contratuais para a suspensão de desembolso, e entres eles não está esse. Não tem nenhum caso de suspender desembolso ou fazer cancelamento de empréstimo por causa de falha no controle social. O que nós fazemos é sentar e ver o que está acontecendo, de que maneira a gente pode fazer pra voltar a ter o controle que estava previsto no contrato. Para nós o tema do controle social é importante, como é importante o tema ambiental. É por isso que discutimos tanto antes essas questões. Mas não precisa estar como motivo de suspensão do contrato”. Em outro trecho do diálogo o entrevistado rediscute o quanto a ausência de participação pode ser ou não crucial para a continuidade do empréstimo. Lembra que o projeto está em fase de rediscussão entre as partes: “ O Banco pode até chegar e falar saímos do projeto, vocês não têm mais o dinheiro. Mas tem que ser uma coisa muito grave. Não que a questão do acompanhamento social não seja muito grave. Não que isso o banco não zele por isso, não dê importância pra isso. Mas aí é toda uma discussão jurídica de contratos internacionais que ainda

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não é. Não que não possa vir a ser. É um projeto que está num momento de rediscussão, uma rediscussão um pouco longa”. Por fim Aderbal mostra, por meio de exemplos, que para se chegar à suspensão de um financiamento do BID, é necessário que ocorram distorções muito graves: “é lógico que se dentro do Procentro a Prefeitura começar a eliminar mendigos pra construir, o projeto vai parar. Não pode ter sempre razão e não é uma razão absoluta. Por que a questão do controle social não passa a ser uma cláusula de suspensão do contrato? Pode vir a ser. Mas aí é um construir. Às vezes as pessoas jogam pedra porque o banco também não deu nenhuma ausculta. À medida que você oferece ausculta e oferece a possibilidade de ouvir e trabalhar junto o jogar pedras diminui”. O tema da existência, importância e do compromisso com a participação no programa do centro permeou praticamente todos os diálogos com os entrevistados. Heloísa Proença que trabalhou na Emurb durante a Gestão Serra não chega a falar de participação com alguma profundidade, no entanto comenta que acha necessário haver adesão da população ao projeto. Rubens Chamas da Emurb na Gestão Kassab comenta sobre o Grupo executivo do Centro e sobre a perspectiva de participação nesta gestão: “O Gcentro – Grupo executivo do centro, “dá o tom” e coordena o projeto. SubSé, Sehab, cultura, planejamento, siurb e emurb. Hoje o Andrea Matarazzo é o coordenador e o secretário executivo. No Gcentro não há na atual estrutura nenhum espaço para participação da sociedade civil”. Rovena Negreiros também da Emurb na Gestão Serra/Kassab afirma que no caso do Projeto Nova Luz houve diálogo com grupos de interesse locais em conversas separadas. Quanto a participação de forma mais abrangente admitiu que não existe: “quanto à participação popular no projeto, ela diz que foram feitas reuniões separadas por segmento (comerciantes, empresários, movimentos, etc.) para o Nova Luz, mas que o Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico do Centro está desativado e não existe participação popular nas decisões do projeto”. O olhar de representantes de segmentos da sociedade civil Se do ponto de vista dos entrevistados participantes dos governos há uma grande heterogeneidade de percepções sobre a participação no programa, do ponto de vista dos atores da sociedade civil entrevistados parece que há pontos de vista, opiniões e posicionamentos, mais claros. A arquiteta Terezinha Gonzaga militante da organização não governamental União de Mulheres de São Paulo foi representante da sociedade civil na Coordenação Executiva Ação Centro na Gestão Marta Suplicy. Ativista da região central há algumas décadas ela coloca sua percepção sobre o programa e a situação do centro. Há alguns elementos importantes de sua avaliação. O primeiro refere-se aos limites da participação por parte de quem é representante de algum segmento popular da sociedade. Neste sentido a entrevistada coloca sua própria dificuldade. Uma questão muito séria é que eu sou voluntária da União de Mulheres e as reuniões da Coordenação Executiva Ação Centro eram durante o dia (no horário comercial). Eu vinha correndo do trabalho para poder participar da reunião e às vezes eu me via defendendo posições pessoais. Nestes fóruns de participação se você não é profissional não consegue participar. Quem topa participar tem que entrar no espírito da auto-tortura: não dorme, não tem fim de semana.

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Além do problema do tempo para se dedicar às atividades de representação a entrevistada coloca também a questão do conhecimento técnico necessário para acompanhar e poder participar, dar opiniões de forma conseqüente. No seu ponto de vista o Estado deveria cumprir um papel de dar suporte no fortalecimento das entidades para o processo de participação. Você não tem investimento do Estado em fortalecer as entidades – cria-se problema para as entidades – dificuldade de participar. O governo não quer saber, ele quer tocar o programa dele. Inclusive (no caso da Coordenação do Centro) montou aquele Regimento que excluía quem não participava de certo número de reuniões. Para garantir a participação você tem que garantir uma política de fortalecimento das entidades da sociedade civil. Se você diz isso eles falam que é paternalismo. (No entanto) se eu senti essa sobrecarga45.. (imagine os outros). Na opinião dela havia poder de decisão no conselho do programa. O problema é que os integrantes da sociedade se desdobram em muitas atividades e não conseguem se dedicar, de modo a imprimir qualidade à sua participação. A sociedade civil tinha poder de decisão – eu falo de conflito interno que agente não tinha tempo para se articular. Lembra da nossa insistência em que a União de Mulheres tinha que participar da Coordenação Ação Centro? Teve abertura. Nós não conseguimos (mais) porque não tínhamos capacidade de participar mais. Eu tive vontade de pedir para a Nadia cópia do contrato com o BID – eu sabia que se eu pedisse ela passava as informações. É uma dificuldade objetiva, mas eu não tinha pernas. A sua conclusão com relação à passagem da gestão Marta para gestão Serra-Kassab é que os segmentos populares mais progressistas foram derrotados, por uma política higienista e o BID não interferiu, nem procurou ninguém para saber que aconteceu, para ouvir os representantes. Esta passagem da entrevista com a arquiteta Terezinha deixa claro esta percepção. Por exemplo, na Luz nós não conseguimos ter uma leitura crítica deste projeto – fazer um paredão. Nós fomos derrotados. Ele é higienista mesmo. Nós na conseguimos intervir, dar a volta por cima. Por outro lado, olhando outros aspectos da gestão Marta, o Bilhete Único virou política de Estado e nós não conseguimos isso (com relação à uma proposta para o centro). Tem a ver com a sintonia que a proposta tem em cada pessoa – da opinião pública em geral. Política universal. Com o Serra voltou a centralização. Alguns representantes da Coordenação viraram governo e todo aquele trabalho virou letra morta e o BID aceitou. É um banco como qualquer outro, não cobra que a população participe – não foi contra a política higienista46. O BID nunca perguntou para nós se não participamos mais... diferentemente da EU que veio com o Marcelo e perguntou – chamou para conversar. Nós não recusamos a ir em nenhuma reunião que eles chamava. Agora o BID não quis nem saber... não sei em nome de que.. Respeito à autonomia do município? Não ficou clara a postura dele. Outra entrevistada no âmbito deste projeto foi a militante e líder do movimento de luta por moradia no centro de São Paulo, Fórum dos Cortiços Verônica Kroll, que foi representante no Conselho da Coordenação Ação Centro e no Conselho Municipal de Habitação. Verônica tem atuado na região central há algumas décadas. Sua entrevista trás um olhar próximo dos problemas da moradia nos cortiços, bem como das ocupações dos movimentos organizados.

45 A entrevistada nesta passagem refere-se ao fato do conhecimento técnico necessário para acompanhar as discussões. Ela é arquiteta e doutora em arquitetura e urbanismo pela FAU USP. 46 Sobre o caráter higienista das ações da atual gestão da prefeitura no centro de São Paulo ver Dossiê de Violação dos Direitos Humanos no Centro de São Paulo. Documento do Fórum Centro Vivo (FCV, 2006). http://dossie.centrovivo.org/Main/HomePage

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A entrevistada critica veementemente as mudanças de rumo ocorridas após a mudança da gestão Marta para Serra-Kassab, sem entretanto deixar de criticar a gestão petista. Tinha um fórum na época da Marta que a gente fazia discussão, tinha executiva e a gente acabou a regulamentação da Lei Moura. Um grupo discutiu essa lei junto com o dinheiro da União Européia e do BID e se formaram naquela época os PRIHs. Foram feitos levantamentos de tudo que tinha naquela região e tudo que poderia ser feito. O que andou um pouco foi o PRIH Luz. E o dinheiro que ficou no município com União européia e BID? Nessa gestão, acabaram sendo destinados à outras ações que não a moradia. Eles formaram o Grupo de Ação Local, na baixada do Glicério, que é com o dinheiro da União Européia, que era um dinheiro para construção de moradia no centro na gestão da Marta. Isso acabou se desviando. Aí acabou o grupo de discussão do centro, o Fórum, tinha a executiva. Dentro do Conselho Municipal tinha um grupo que discutia a questão do centro. As entidades perderam o conselho e com a entrada desse pessoal está acabando isso. Esse dinheiro do BID e da União Européia acabou chegando no penúltimo ano da gestão da Marta. No próximo já era eleição e não poderia viabilizar. A entrevistada cobra que os movimentos populares deveriam ter uma participação mais efetiva nos programas e projetos. No limite os governos têm o poder de alterar o que quiserem nos rumos das políticas. Neste sentido acusa o BID de ser conivente com um programa que em última instancia está promovendo expulsão da população de mais baixa renda, principalmente, em função da valorização imobiliária – que inclusive estava prevista como um dos indicadores de “sucesso” do programa. A exemplo de Terezinha, a entrevistada cita as ações na Luz (ou Cracolândia como alguns denominam), além das ações no Glicério. O que eu critico nesse pessoal que financia de fora, é que o movimento organizado não tem nenhuma participação. O governo faz o que quer. Ele monta o programa em um governo que é mais popular. Quando entra um governo de direita ele desmonta o programa, e investe onde ele quer, e que não atende a população. A ação do Glicério atende o que? É um dinheiro jogado no lixo. E nós vamos pagar esse dinheiro (...). Do BID no município, eu não sei o que virou esse dinheiro. Hoje não tem mais discussão de nada na prefeitura de São Paulo. No centro o que foi feito foi vender a Cracolândia para grandes empresários. Tem a licitação agora. É toda uma região de ZEIS, que era para construir moradia popular. Vai construir a sede da Subprefeitura, a sede da guarda metropolitana, praça, faculdade. E a moradia vai custar R$100/R$120 mil a unidade. E a população que morava na região, mais carente?. Eles alegam o problema do tráfico. Será que resolveu, ou o tráfico mudou de lugar? Essa é crítica que eu tenho ao BID e à União Européia. Por fim, Verônica defende que os programas e projetos de habitação na região central deveriam ser mais subsidiados para viabilizar a permanência da população moradora dos cortiços. Defende também que os recursos de um programa como este, financiado pelo BID deveriam estar vinculados a um fundo municipal associado a um conselho (já existentes), de modo que representantes dos segmentos populares pudessem participar do controle do seu uso e aplicação. Hoje temos um Conselho de Habitação deliberativo. Esses financiamentos deveriam passar pelo conselho, que deveria deliberar. Essa discussão tinha que ser feita lá dentro. É uma instância que lutamos 11 anos, para ter o fundo. Se o dinheiro vem para o fundo...daí poderíamos participar. O dinheiro vem por cima e eles decidem. Porque não faz um Conselho ou um Fórum estadual? (Porque) não interessa. Com relação ao Fórum Ação Centro a entrevistada reconhece que a idéia era interessante no entanto não percebe que tiveram poder de tomar decisões relevantes.

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Com a Nádia tem a formação daquele grupo. A gente participa, leva proposta, mas na hora de decidir não era a gente que decidia. A Nádia foi bastante feliz na formação daquele grupo. Haviam propostas interessantes. Acesso à informações sobre o projeto Conforme assinalado por Sousa Santos (2007) nos seus estudos sobre participação, democracia e autonomia, um dos pré-requisitos fundamentais para que a participação ocorra é a disponibilidade e o acesso à informações. Neste sentido caberia examinar em que medida informações relevantes para o devido acompanhamento e monitoramento do programa tem sido disponibilizadas ou não. Algumas entrevistas trouxeram à tona esta questão. O caso, por exemplo, da entrevista com Aderbal Curvelo do BID, mostra que apesar de os entrevistados afirmarem que na prefeitura não obtiveram acesso a dados do andamento do programa, o Banco não está aberto a fornecer tais informações. Diante da negativa o entrevistado procura justificar: “não é que o banco não queira que seja uma informação acessível. Mas é uma informação que muitas vezes não está disponível. Não porque a gente não quer. Essa questão da mudança da forma de trabalhar tem a ver com isso. Muitas vezes nós trabalhamos de forma localista. E temos que trabalhar de uma forma mais informacional. Mas que bom que vocês estão trazendo. Você tem esse decreto?” Em outro trecho continua com a argumentação: a documentação administrativa vocês têm que ter acesso com a prefeitura (...). São documentos públicos. Mas nós não podemos passar (...) o andamento financeiro do projeto eu acho que não é público. O banco é de governos. Mas, via de regra, quem passa as informações sobre os projetos são os nossos mutuários. A gente está financiando, mas as informações são deles, eles que as produzem. Diante da insistência dos entrevistadores Aderbal reitera: “a questão é a seguinte: a obrigação é da prefeitura de São Paulo. A rigor o banco não têm projetos que são dele. O banco financia o projeto, ajuda a elaborar projetos e a partir de um determinado momento ele passa a ter executores. Como é o caso do Procentro. Vocês estão monitorando o Procentro. O Banco aqui é o financiador do programa. Quem tem que te prestar essas informações é o executor do programa. Se ele não presta, não cabe ao banco cumprir com uma obrigação que é do executor. Vocês têm que tomar as medidas cabíveis junto ao executor. O Banco vai dar as informações que contratualmente pode dar. Não vamos nos recusar a prestar nenhuma informação. Mas nesse caso vocês têm que ir ao executor. E se ele não prestar as informações vocês têm que tomar as medidas cabíveis. Mas não é porque ele não cumpre com suas obrigações que o Banco vai cumprir com uma obrigação que não é dele. Como organização internacional é fundamental que a gente siga as regras contratuais. Se a partir de um determinado momento porque o executor não cumpriu uma obrigação a gente vai cumprir por ele a gente passa a não ter credibilidade pra fazer nenhum projeto. Porque uma coisa que dá ao banco a credibilidade que ele tem é a imparcialidade. Vocês têm que cobrar com rigor do executor”. Rovena Negreiros questionada sobre o cronograma de obras que a Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara Municipal solicitou ao então presidente da Emurb, Biasoto em outubro de 2006, responde que a Emurb enviou o cronograma ao vereador que o pediu (vereador Fiorillo) 15 dias depois de demandado. Quando os entrevistadores solicitaram uma cópia do cronograma, ela sugeriu que pedissem ao vereador, negando-se a fornecer.

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IV – Discussões e considerações finais Por meio da análise empírica, documental e dos conteúdos das entrevistas algumas reflexões importantes podem ser realizadas sobre o processo de participação no âmbito de um projeto financiado pelo BID. A experiência de São Paulo tem mostrado que a mudança de orientação política como conseqüência de uma mudança de Gestão governamental pode ser determinante para a continuidade ou interrupção do processo participativo. Entrevistados com posicionamentos ideológicos bastante distintos concordam que a descontinuidade das políticas quando da mudança de governos é muito ruim para a cidade. Segundo Verônica Kroll do Fórum dos Cortiços o governo faz o que quer. Ele monta o programa em um governo que é mais popular. Quando entra um governo de direita ele desmonta o programa, e investe onde ele quer, e que não atende a população. A ação do Glicério atende o que? É um dinheiro jogado no lixo. E nós vamos pagar esse dinheiro. Marco Antonio diretor da Associação Viva o Centro (AVC) segue a mesma linha, no entanto, destaca que na sua opinião, o que causa isso é a quantidade excessiva de cargos de confiança. É um problema que deve acontecer na maior parte dos projetos. Com esse sistema que temos – cargos de confiança temos o desmantelamento da maquina pública. Quando muda algum secretario, zera-se a administração. Contratos permanecem, mas até com dificuldade. As pessoas levam a memória. Não tem uma transição. É muito ruim. No caso de centro, o que salvou é a existência da Associação. Ela já ia levantamento esse assunto com os próprios candidatos, para expor a questão e comprometê-los. Garantiu-se uma certa continuidade disso. Cada gestão que chegava tentava imprimira uma cara, nome novos, etc. Nota-se que num contexto em que há carência de uma cultura política de participação é fundamental que sejam assegurados alguns pré requisitos e que haja incentivos diversos que fomentem a participação tais como: locais adequados, regras claras, possibilidade de a população ter algum poder de decidir ou influenciar os rumos dos investimentos ou que o processo participativo esteja em sintonia temporal com a concepção, e com as decisões importantes do programa, além da disponibilidade de informações, entre outros. Nesta linha Terezinha defende que o Estado deva realizar um investimento para o fortalecimento das entidades da sociedade civil. É relevante refletir sobre as dificuldades de se obter informação de programas públicos, financiados com recursos onerosos por organismos internacionais que são estatutariamente criados para fomentar o desenvolvimento. Chama a atenção o grau de detalhe e cuidado que as instituições credoras prezam para diversos aspectos relacionados ao empréstimo e ao desenvolvimento dos projetos: contratação de consultores, contratação (terceirização) de gerenciamento privado e outras empresas, taxas de juros, valorização imobiliária como forma de medir sucesso do programa, entre outros, em detrimento de um critério de participação que deveria ter um papel e importância central na execução de um projeto de desenvolvimento social e econômico. Nota-se também que o Contrato entre a PMSP e o BID (2004). Clausula 4.08, a única referente à participação define sobre o Conselho Executivo Ação Centro: “Dentro de doze meses contados a partir da data de vigência deste contrato, o Mutuário, por intermédio do órgão executor, deverá

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apresentar ao Banco, conforme acordado previamente entre as partes, evidencia de criação e funcionamento na EMURB do Conselho Executivo Ação Centro”. Apesar da exigência contratual de criação desta instância, nota-se por meio das entrevistas que não houve um monitoramento por parte do BID sobre a continuidade de funcionamento do conselho, por um lado, nem se considera que a sua desativação seja considerada uma falta grave por parte da prefeitura. Em outras palavras, a participação, apesar do reconhecimento de sua importância, ao menos no discurso oficial, está longe de receber o status ou a importância que outros itens, como os citados recebem em financiamentos e projetos desta natureza. Em última instância, o que está por trás do interesse e da discussão sobre a participação é a luta por projetos de cidade e de centros da cidade. No caso de São Paulo, está claro que diversos atores de mercado, empresas, proprietários e investidores imobiliários tem seus interesses de acumulação e valorização representados pela Associação Viva o Centro. Por outro lado, segmentos populares identificados politicamente com bandeiras políticas de esquerda, movimentos sociais de moradia, catadores de materiais recicláveis, população em situação de rua, trabalhadores ambulantes, alguns pesquisadores, estudantes e militantes de ONG’s e de direitos humanos se identificam com a democratização popular do centro da cidade, numa perspectiva de inclusão sócio-econômica e territorial. Parte desses segmentos estão representados pelo Fórum Centro Vivo47 criado em 2000. Esses atores, quando tem a oportunidade de participar de alguma instancia defendem obviamente seus interesses, suas visões, seus projetos de cidade. Lutam para apropriar-se de alguma forma dos fundos públicos nacionais e internacionais. No caso do centro de São Paulo, o desafio obviamente, passa por criar e manter canais legítimos e respeitados de participação e controle onde todos os segmentos possam ser representados, tenham poder de decisão sobre aspectos relevantes da política, dos programas e projetos. O desenho do conselho e a política pública deveria ainda considerar as desigualdades de partida que existem entre os diferentes setores e segmentos representados ali, e buscar introduzir mecanismos de equidade no processo da participação, por meios qualitativos ou quantitativos. Como defende a arquiteta Terezinha, é necessário haver um investimento do Estado para fortalecer as entidades para participar. É muito fundamental possuir tempo disponível e qualificação técnica para participar de um conselho desta natureza.

47 O FCV é uma articulação coletiva fundada em dezembro de 2000. sua criação está associada à necessidade de um espaço para encontros, de bates, reflexão e atuação na perspectiva da democratização e defesa dos direitos no centro da cidade, como contraponto a projetos e ações públicas e privadas que, em muitos casos, desconsideravam e afetavam negativamente os grupos mais vulneráveis ou atendiam apenas a interesses privados e de ordem econômica e imobiliária. (FVC, 2006)

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05

101520253035

Numero Participantes

1993 /Maluf-Pitta

2001 -Marta

2005 /Serra -Kassab

Período - Ano / Gestão

Participantes no Conselho/Comissão

Soc CivilGovernoTotal

Por fim, nota-se pela observação do gráfico montado a partir da tabela sobre as instâncias e categorias de participação por gestão, que de fato, ocorreram mudanças significativas não só do ponto de vista qualitativo, mas também do ponto de vista quantitativo, no que se refere ao número de conselheiros e representantes nos conselhos e comissões referentes ao programa de reabilitação do centro. Nota-se que no início do projeto nas gestões dos prefeitos Maluf e Pitta o número de participantes na Comissão Procentro, tanto da sociedade civil, quanto do governo ampliaram-se ao longo dos anos e dos decretos instituídos. Durante a gestão Marta o número de representantes de governo e sociedade civil continuaram em ascendência até atingirem um ponto máximo durante todo o período analisado até a presente data em 2004. No entanto, a partir da Gestão dos prefeitos Serra e Kassab com a extinção da Coordenação Ação Centro e do Fórum de Desenvolvimento Econômico e Social do Centro, em todas as instancias que vieram em substituição destes, não foi mais prevista (nem permitida) a participação de representantes da sociedade civil. O que aconteceu, simplesmente, nas mudanças ocorridas dentro desta gestão foi um aumento do número de representantes de diferentes secretaria do governo municipal. Se, como afirma a arquiteta Terezinha Gonzaga: os movimentos populares foram derrotados, a prefeitura implementou uma política higienista, e o BID não interferiu, não foi contra, nem procurou saber o que aconteceu; e as possibilidades de participação para a sociedade civil foram e estão cerradas devido ao fechamento dos canais existentes, então uma enorme parcela mais vulnerável da população do centro da cidade, está de fato refém. Perdendo esta batalha co-financiada por um Banco que diz prezar a imparcialidade. V – Referências Bibliográficas Arantes, P. E. Esquerda e direita no espelho das ONG’s. In: ABONG (org.): ONG’s identidade e desafios atuais. Cadernos ABONG no. 27. São Paulo: Ed. Autores Associados, 2000. Chauí, M. Considerações sobre a democracia e os obstáculos à sua concretização. In: Teixeira, A. C (org.). Os sentidos para participação. São Paulo: Instituto Polis, 2005.

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Demo, P. Participação e avaliação – projetos de intervenção e ação. In Sorrentino, M. (org.) Ambientalismo e participação na contemporaneidade – São Paulo: EDUC/FAPESP, 2001. FCV – Fórum Centro Vivo. Dossiê Violação dos Direitos Humanos no centro de São Paulo. São Paulo: Fórum Centro Vivo, 2005. Leroy, J., Soares, M.C.C. (orgs). Bancos multilaterais e desenvolvimento participativo no Brasil: dilemas e desafios – Rio de Janeiro: FASE/IBASE, 1998, 236p. Souza Santos. Boaventura. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007. Rizek, C. S. São Paulo: orçamento e participação. In: Oliveira, F.; Rizek, C.S. (orgs.) A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007. São Paulo, Prefeitura Municipal. Diário Oficial do Município. DECRETO Nº 44.089, DE 10 DE NOVEMBRO DE 2003. São Paulo, PMSP, BID. Contrato de Empréstimo 1479 – OCBR entre o Município de São Paulo e Banco Interamericano de Desenvolvimento. 2003. Sítios da Internet consultados http://www.iadb.org/exr/pic/pdf/citizenpart_eng.pdf IADB, Inter-American Development Bank. Strategy for promoting citizen participation in Bank Activities. http://www.iadb.org/news/articledetail.cfm?language=Portuguese&ARTID=533&ARTTYPE=PR - BID, Banco Interamericano de Desenvolvimento. BID promoverá participação do cidadão. http://dossie.centrovivo.org/Main/HomePage - Dossiê de Violação dos direitos humanos no centro de São Paulo, realizado pelo Fórum Centro Vivo em 2006.

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7.1.3. Lisandra Guerra (Financeiro do Projeto)

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Aspectos financeiros do Programa PROCENTRO Lisandra de Moura *

Introdução

Um projeto de recuperação urbana com financiamento internacional é, no seu cerne, um empréstimo, um mútuo, uma operação financeira como outras, em que pesem seus aspectos urbanísticos, sociais e políticos. Deve, portanto, ser também avaliado em seus aspectos financeiros: juros, custo de oportunidade, viabilidade, taxa de retorno, entre outros. Quando se tem um órgão financiador multilateral voltado ao desenvolvimento, sujeito ao controle da comunidade internacional e a seus regramentos internos, é praxe que todos os aspectos citados sejam objeto de análise antes da aprovação da operação e da assinatura do contrato de mútuo. E assim ocorreu com o Contrato da Empréstimo OC-BR 1479, celebrado entre a PMSP e o BID, em junho de 2004.

Como muitos dos agentes idealizadores, promotores, executores e fiscalizadores dos programas de recuperação urbana em geral (quais sejam, urbanistas, arquitetos, políticos, sociólogos, jornalistas, entre outros) têm como formação e área de atuação campos do saber pouco afeitos à administração financeira, tende-se a desligar da análise de um programa de recuperação urbana sua natureza de operação financeira e ao mesmo tempo em que se minimiza a preocupação com a eficiência financeira da aplicação do recurso, criam-se mitos em torno da conveniência de um financiamento internacional.

O objetivo do presente texto é, de uma forma livre e quase didática, apontar para questões relevantes e suscitar um debate tão necessário quanto esquecido sobre a opção por um financiamento internacional.

Financiamento internacional: opção, falta de opção ou uma decisão não financeira?

O levantamento do histórico do Contrato de Empréstimo OC-BR 1479 feito no Relatório I 48 revela com clareza os fatos que desembocaram na assinatura do instrumento que obriga a PMSP a investir no centro da cidade e a pagar ao BID juros e taxa de crédito e hoje influenciam sua execução. Embora cientes das variáveis políticas e do panorama local envolvido, nossa proposta é fazer a seguinte análise: de agora em diante, vamos ver o mútuo simplesmente como um conjunto de obrigações assumidas soberanamente pela Prefeitura: (1) obrigação de investir

* A autora, bacharel em Administração Pública pela EAESP-FGV e em Direito pela USP, trabalhou como Gerente Financeira do PROCENTRO de março de 2004 a agosto de 2006. 48 Controle Social de Políticas Públicas: o financiamento do BID para o Centro de São Paulo, Relatório I ,de 30 de maio de 2007

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os recursos do Banco; (2) obrigação de investir recursos próprios; (3) obrigação de pagar os serviços da dívida ao BID.

Simultaneamente às obrigações, o Programa PROCENTRO traz consigo expectativas de ganho, daí podermos utilizar “investimentos” e não “despesas” quando tratamos dos gastos previstos do projeto. Os ganhos – e aqui vamos nos posicionar estritamente no lugar do mutuário, a PMSP – vêm do aumento de receita dos impostos municipais, ISS e IPTU, decorrente do desenvolvimento da área de influência do Programa que seria de US$ 13,4 milhões por ano49. Vê-se que a lógica do retorno financeiro de uma operação de crédito foi considerada. A ela retornaremos logo a seguir.

Ocorre, contudo, que se a fonte de tal análise é justamente a Proposta de Empréstimo de outubro de 2003, é possível concluir que se trata de uma justificativa da operação e não uma recomendação face a outras alternativas de financiamento. Quando se toma a decisão de investir, é recomendável avaliar um cenário de não investimento e compará-lo a outros com diferentes fontes de recurso, mesmo que hipotéticas, em diferentes condições financeiras. Assim, podemos ter claros os riscos e benefícios de uma ou outra forma de financiamento que possam gerar retornos a partir da interferência em uma dada área urbana.

Pelo histórico levantado, não fica claro se houve tal análise comparativa de alternativas. Parece que a brecha deixada pelo acordo entre União e Município e a vontade política de usar os recursos naquele momento levaram a opção pelo prosseguimento da negociação com o BID. Houve mais uma confluência de fatos do que uma medida de planejamento das políticas públicas quanto às suas alternativas de financiamento.

Também é válido argumentar que à PMSP restavam, como ainda restam, pouquíssimas alternativas possíveis para financiar projetos deste tipo. Cortar gastos correntes que estão em sua maioria ocupados por salários e dívidas não é factível. Buscar financiamentos internos, já em patamares altos, tampouco. Logo, financiar o desenvolvimento de uma área urbana para recuperar o investimento pelo acréscimo na receita tributária através de um empréstimo internacional parece ter sido, de fato, uma saída, uma opção ante a falta de outras.

Do outro lado da operação está o agente financeiro, o BID. Como Banco que é, sabe-se que seus contratos de empréstimo gerem receita para ele. Ingênuo é, portanto, crer que por ser um órgão multilateral agiria de forma mais benevolente ou defenderia de ofício os interesses do mutuário. Além de Banco, o BID tem como missão promover o desenvolvimento. Logo, os limites de sua constituição e atuação não permitem que participe de operações meramente financeiras, como as que possibilitam a entrada de recursos a um preço (juros) mais baixo para saldar uma dívida anterior. O BID é um banco que qualifica e acompanha o uso dos seus recursos e é importante ter isso sempre presente ao contratar qualquer operação.

Como parte dessa qualificação, que constitui a Proposta de Empréstimo50 aprovada pela diretoria do Banco em outubro de 2003, foi feita uma análise da viabilidade financeira do Programa, no que tange à sua capacidade de gerar receitas que justificassem as despesas de manutenção dos investimentos e o próprio custo financeiro da operação. O item 4.17 do referido documento afirma que o Programa traz um aumento previsto nas receitas de IPTU e ISS da ordem de US$ 13,4 milhões por ano, enquanto os custos de manutenção aumentariam US$ 6,5 milhões anuais, isso a partir de 2010, quando estariam conclusas as intervenções. A diferença entre os valores, de US$ 6,9 milhões, pode ser vista como a Receita Adicional Líquida, proporcionada pelos investimentos urbanísticos realizados.

49 Conforme Proposta de Empréstimo, item 4.17, fonte: http://www.iadb.org/projects/Project.cfm?project=BR0391&Language=English 50 Proposta de Empréstimo, fonte: link na página http://www.iadb.org/projects/Project.cfm?project=BR0391&Language=English

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A Projeção de Serviços da Dívida51 fornece a previsão das despesas financeiras (juros e taxa de crédito) mais a amortização do principal. Ora, calculando ano a ano o total de receita adicional líquida e subtraindo dele o total a pagar ao Banco, temos o resultado financeiro da operação. Somente em 2024 o saldo do ano passa a ser levemente positivo, com um valor de receita adicional maior do que o serviço da dívida. Já o saldo acumulado, que carrega adiante os saldos dos anos anteriores, só deixa o patamar negativo em 2034. Em uma análise estritamente financeira e sempre do ponto de vista do pólo devedor, a Prefeitura, os números significam que a operação PROCENTRO só começará a trazer benefícios para seus cofres trinta anos após a assinatura do contrato. Até então, a PMSP deve tirar recursos de outras fontes– chegando a um valor máximo acumulado de US$ 36 milhões, em 2023 – para fazer frente aos compromissos assumidos perante o Banco.

O gráfico e respectiva tabela de valores apresentados a seguir trazem a representação e os exatos valores envolvidos 52.

Gráfico I

Resultado Financeiro Projetado

-40

-30

-20

-10

0

10

20

2004-2

006 2008

2010

2012

2014

2016

2018

2020

2022

2024

2026

2028

2030

2032

2034

em m

ilhõe

s de

dól

ares

Receita Adicional LíquidaServiços da Dívida e AmortizaçãoSaldo do AnoSaldo Acumulado

Tabela I – Resultados projetados do PROCENTRO para as finanças da PMSP

51 Projeção de Serviços da Dívida. Fonte: http://www.iadb.org/dsprj/LoanDueDate.aspx?LoanNumber=1479/OC-BR 52 Os valores pagos no período 2004 a 2006 foram extraídos do informe sobre o projeto na página do BID: http://www.iadb.org/projects/Project.cfm?project=BR0391&Language=English

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em milhões de dólares

Receita Adicional Líquida

Serviços da Dívida e Amortização Saldo do Ano

Saldo Acumulado

2004-2006 - 1,78 (1,78) (1,78) 2007 - 0,37 (0,37) (2,15) 2008 - 1,79 (1,79) (3,94) 2009 - 3,65 (3,65) (7,59) 2010 6,90 7,98 (1,08) (8,67) 2011 6,90 10,82 (3,92) (12,59) 2012 6,90 10,53 (3,63) (16,22) 2013 6,90 10,21 (3,31) (19,53) 2014 6,90 9,91 (3,01) (22,54) 2015 6,90 9,61 (2,71) (25,25) 2016 6,90 9,31 (2,41) (27,66) 2017 6,90 9,00 (2,10) (29,76) 2018 6,90 8,70 (1,80) (31,56) 2019 6,90 8,39 (1,49) (33,05) 2020 6,90 8,10 (1,20) (34,25) 2021 6,90 7,79 (0,89) (35,14) 2022 6,90 7,48 (0,58) (35,72) 2023 6,90 7,18 (0,28) (36,00) 2024 6,90 6,88 0,02 (35,98) 2025 6,90 6,57 0,33 (35,65) 2026 6,90 6,27 0,63 (35,02) 2027 6,90 5,97 0,93 (34,09) 2028 6,90 5,66 1,24 (32,85) 2029 6,90 2,72 4,18 (28,67) 2030 6,90 - 6,90 (21,77) 2031 6,90 - 6,90 (14,87) 2032 6,90 - 6,90 (7,97) 2033 6,90 - 6,90 (1,07) 2034 6,90 - 6,90 5,83

TOTAIS 172,50 166,67 5,83

Para a análise acima, consideramos válidas as assunções apresentadas na Proposta de Empréstimo, sem questionar forma de cálculo e o mérito de seus pressupostos. A lógica utilizada leva em conta o resultado esperado e o custo de obtenção desse resultado.

Temos por óbvia a incompletude dos números acima, contudo. Há outros custos inerentes à existência do Programa, como o custo de preparação (estudos, projetos, viagens, entre outros) e o custo de administração não incluído53 (pessoal próprio da EMURB e da PMSP, material de consumo etc.). Por outro lado, não levamos em consideração as externalidades esperadas, como aumento da renda na região de influência do Programa, que podem ser vistas como uma receita adicional não da municipalidade, mas do município.

O principal questionamento a que os números apresentados nos levam é: interessa ao Município e seus munícipes, atuais e das próximas gerações, sacrificar-se financeiramente a este ponto para obter os tais resultados financeiros e não financeiros esperados? E mais: haveria outra maneira de recuperar o centro de São Paulo sem o compromisso financeiro adicional?

Usar recursos do BID tem, como vimos, um custo de oportunidade considerável, para o qual concorrem juros e demais encargos financeiros, custos administrativos adicionais e o custo de oportunidade de vincular receitas próprias à contrapartida. O mutuário deve considerar a conveniência de uma operação com o BID, pois assumir todas as obrigações com o Banco implica necessariamente em esforços que seriam desnecessários se a fonte de recursos fosse outra (receita própria, por exemplo). O próprio custo global do projeto certamente seria outro, 53 O Quadro de Custos do Programa, em seus itens 2.1 e 2.2, previu originalmente US$ 7,8 milhões para Administração e Supervisão (realizadas por uma gerenciadora, a ser contratada) e US$ 1 milhão para Auditoria (conforme exigência do Banco).

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descontados os gastos (estes sim gastos e não investimentos) com gerenciamento e auditoria, requisitos do Banco.

Cabe mencionar, em defesa dos financiamentos internacionais, que os recursos destinados aos investimentos no desenvolvimento econômico e social parecem ser melhor controlados em programas deste tipo do que aqueles realizados somente no âmbito das administrações públicas locais. Em outras palavras, a própria existência de uma supervisão externa acompanhando de perto as despesas, auditando os números e aplicando políticas de transparência e rigor legal pode contribuir para uma melhor segurança no destino do dinheiro do ponto de vista do cidadão. Os mecanismos internos de fiscalização, Tribunal de Contas e Ministério Público, por exemplo, no mais das vezes não têm condições de efetuar um acompanhamento dos recursos públicos com a freqüência, a profundidade, a técnica e a tempestividade54 que possuem os Bancos multilaterais de fomento ao desenvolvimento local.

As condições do financiamento do PROCENTRO

O Contrato de mútuo seguiu as condições já definidas pela Proposta de Empréstimo BR-0391, aprovada pela Diretoria do Banco Interamericano de Desenvolvimento em outubro de 2003. A Proposta prevê o dólar americano como a única moeda da operação, a cobrança de juros pela taxa LIBOR e uma taxa anual de crédito de 0,75% sobre o montante não desembolsado pelo Banco.

O fato de o dólar americano ter sido escolhido como a moeda única do mútuo traz facilidades operacionais. Primeiro, porque há contratos com Bancos internacionais em que o credor pode escolher a cada pagamento a moeda na qual quer receber, o que pode acarretar um câmbio mais ou menos desfavorável conforme a posição relativa da moeda eleita no mercado mundial. Há também contratos que são feitos com base em uma cesta de moedas, mas, ao mesmo tempo que o risco cambial pode estar diluído, o acompanhamento da evolução das moedas que compõem a cesta exige mais atenção. A opção pela moeda única e principalmente pela moeda de maior circulação mundial não criou dificuldades adicionais, além do risco cambial, inerente a operações deste tipo.

A LIBOR55 é tida como uma taxa de juros preferencial, estando hoje ao redor dos 4,5% ao ano, bem abaixo dos 11% ao ano da nossa SELIC, a taxa básica de juros da economia brasileira. Contudo, a posição favorável obtida pela PMSP ao contratar um empréstimo usando a LIBOR como taxa de juros não deve ser desprezada, visto ser ela uma taxa reservada àqueles com boas avaliações de crédito no mercado mundial.

Por outro lado, a conveniência da LIBOR não corre à margem de uma análise mais ampla, qual seja, a internacionalidade da contrato. Em outras palavras, a opção pela tomada de recursos em moeda estrangeira traz para a administração financeira da operação a constante preocupação com os riscos cambiais que, como está sucedendo com o PROCENTRO, acarretam custos adicionais para o devedor, como veremos adiante.

O prazo para o pagamento total do empréstimo é de 25 anos, com um período de carência de 6 anos. A carência significa que o principal, ou seja, os US$ 100,4 milhões do financiamento, começará a ser amortizado somente em dezembro de 2010, sendo os juros pagos semestralmente desde a assinatura. O envio dos recursos à PMSP pelo Banco, chamado

54 Entendemos ser o acompanhamento tempestivo pois na modalidade ex ante o Banco pode barrar um gasto de recursos do financiamento antes mesmo da publicação do edital, enquanto as instâncias internas só tem poderes para fiscalizar e punir desvios após sua ocorrência. 55 London Interbank Offered Rate, taxa de juros interbancária do mercado de Londres, utilizada entre bancos de primeira linha, é também a taxa referência aplicada a vários contratos com governos em todo o mundo.

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de desembolso, pode ocorrer de 3 a 6 anos contados da data de assinatura do contrato, desde que existam despesas comprometidas, ou seja, contratos já assinados entre fornecedores e Prefeitura, até o 5º ano da assinatura do contrato.

O recebimento dos recursos, ou o chamado “desembolso” pelo BID, ocorre mediante solicitação e segundo as práticas explicadas no item Acesso aos Recursos. O Banco reserva contabilmente os 100,4 milhões a partir da assinatura do contrato sem limites anuais pré-estabelecidos, desde que não sejam desembolsados em menos de 3 anos. Em tese, a PMSP poderia ter acesso a 90 milhões no primeiro ano, 9 milhões no segundo e 1,4 milhão no terceiro. Na prática, o BID solicita anualmente uma previsão de solicitação para que possa fazer suas previsões internas de necessidade de caixa e a condução do Programa realizada no trâmite entre PMSP, Executor, sub-executores e do lado do Banco, representação, Especialista e consultores pode imprimir aos desembolsos um ritmo de remessas mais ou menos lento, comparativamente ao planejado. Em outras palavras, uma eventual necessidade extraordinária de dólares desde que dentro das condições contratuais e das normas aplicáveis poderia ser perfeitamente satisfeita mediante uma conversa entre as partes, ainda que não prevista no planejamento anual.

Não é essa a situação enfrentada, contudo. Os recursos têm sido utilizados em níveis abaixo do minimamente esperado para um programa de 6 anos de desembolso. O desembolso informado na página do BID na internet dedicada o PROCENTRO é de US$ 13,2 milhões56, em 31 de outubro de 2007. Para que se tenha uma idéia do nível de execução esperado, dividimos os 100,4 milhões em 6 períodos de forma linear, chegando a 16,7 milhões de desembolso médio por ano. Se fizermos o mesmo raciocínio para os 13,2 milhões desembolsados até o momento, temos o valor médio de 4,4 milhões/ ano. Neste ritmo, para que sejam desembolsados os 100,4 até junho de 2010, o valor médio que a PMSP precisa solicitar por ano é de 29 milhões, bem acima da capacidade executora demonstrada nos três primeiros anos. Não nos parece despropositado concluir que o Programa encontra-se atrasado e necessitará de um aditivo de prazo se as partes quiserem realizá-lo em sua plenitude. O gráfico abaixo demonstra o salto no grau de execução anual necessário para cumprir o prazo de desembolso ora vigente.

Gráfico II

56 http://www.iadb.org/projects/Project.cfm?project=BR0391&Language=English

Desembolsos médios por ano de execução - PROCENTRO

0,0

5,0

10,0

15,0

20,0

25,0

30,0

35,0

2004

-2005

2005

-2006

2006

-2007

2007

-2008

2008

-2009

2009

-2010

em U

S$ m

ilhõe

s Média de desembolso(linear)

Média desembolsada até2007 com saldo realizadono prazo contratual

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Acesso aos recursos do financiamento

Os investimentos previstos no PROCENTRO totalizam US$ 167,4 milhões, sendo US$ 100,4 milhões recursos vindos do BID sobre os quais incidem os juros pactuados e US$ 67 milhões que devem vir da PMSP ou de outra fonte (Caixa Econômica Federal, por exemplo, como é o caso do Programa de Arrendamento Residencial – PAR), montante esse identificado como contrapartida. Contratualmente são definidos eixos de intervenção e as ações já são apresentadas ao Banco com sua forma de custeio prevista, com a parte financiada e o percentual relativo à contrapartida também definido, em documentos como o Quadro de Custos do Contrato, com itens detalhados por Componente e Sub Componente, e o orçamento detalhado do Programa, aberto até o nível do sub-executor e da aquisição em si.

Como é o Quadro de Custos do Contrato o principal orientador financeiro e ele descreve os componentes e não as aquisições, uma dada aquisição prevista como financiada pode não receber recursos do Banco e ainda assim, o componente ser cumprido como planejado, pelo mecanismo da compensação (outra ação prevista como contrapartida pode obter a elegibilidade ao financiamento).

Logo, vê-se que o orçamento do Programa não é rígido, nem poderia sê-lo. A elegibilidade ao financiamento é de fato definida no caso concreto com a análise do consultor do Banco de todo o processo, considerando: critérios de elegibilidade pré definidos em contrato e a regularidade da licitação, da contratação e do pagamento, após a prestação de contas.

Assim, um gasto para o qual se contava com recursos do Banco pode não ser financiado no âmbito deste contrato caso a legislação local, as normas contratuais e as políticas do BID não tenham sido respeitadas. Em que pesem várias não objeções prévias – ao termo de referência, aos projetos, ao edital de licitação – qualquer fase da licitação, execução e pagamento pode ser glosada pelo Banco. Daí a necessidade de conhecer as regras e planejar todo o processo para que não se percam os recursos financiados de uma aquisição específica.

São financiáveis somente os gastos líquidos (tributos retidos na fonte entram como contrapartida: ISS, INSS, IRRF, PIS, COFINS). Indiretamente, o BID acaba financiando outros tributos embutidos na cadeia produtiva, direta ou indiretamente, como o ICMS, IPI, IOF, PIS, COFINS e CPMF, entre outros 57.

É obrigação do devedor manter a razão pré definida entre recursos do financiamento e da contrapartida ao longo da execução, 60/ 40. Essa proporção é chamada de pari passu . Para que ele seja mantido, a PMSP deve dispor de recursos locais para usá-los no Programa e demonstrá-los como contrapartida. Como veremos adiante, também é necessário ter disponibilidades financeiras de curto prazo para ter acesso ao financiamento, já que a maior parte do acesso aos recursos externos acaba chegando como um reembolso de despesas. Em suma, ter um financiamento disponível não elimina a necessidade de ter dinheiro em caixa e mais, no caso da contrapartida, esses recursos estão, por assim dizer, carimbados, pois somente sua utilização em despesas elegíveis trará a possibilidade da chegada dos dólares do Banco58.

57 Como os impostos retidos na fonte não são financiáveis, na maior parte das obras e serviços contratados sempre há um percentual de contrapartida. Já a aquisição de bens pode ser financiada na totalidade, visto não haver impostos recolhidos na fonte. 58 Evidentemente, destinar recursos para uma contrapartida de US$ 67 milhões em 5 anos não é um problema para a PMSP, mas uma opção. A PMSP conta com receitas orçamentárias anuais da ordem de R$ 17 bilhões, conforme Balanço Financeiro de 2006 (fonte: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/financas/balancetes/anual2006/Balanco_Financeiro_2006.pdf) . Esta informação dá uma idéia precisa da relativa pequenez do PROCENTRO dentro da realidade da Prefeitura.

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A formalização do contrato de mútuo, após os trâmites nos governos municipal e federal e a aprovação pelo Senado, confere direitos e deveres recíprocos. No entanto, por si só, não garante o acesso aos recursos. Assim sendo, nos parece interessante abordar os meios de acesso ao dinheiro do financiamento.

As verbas do financiamento podem ser desembolsadas pelo Banco e enviadas à PMSP de duas formas: a primeira, como um Reembolso de Despesas, após realizados os gastos e prestadas contas e a segunda, antes de o mutuário gastar qualquer recurso, com o envio de recursos para o Fundo Rotativo, limitado a 5% do valor do financiamento. Note-se que, embora rotativo, o Fundo pode não dar conta de todos os investimentos previstos e a PMSP, em geral, desembolsa recursos próprios antes de convertê-los a financiados e aí recebê-los do Banco. Logo, como já mencionado, a previsão de financiar uma aquisição não afasta a necessidade de ter em caixa recursos disponíveis.

Seja a título de reembolso, seja na composição ou recomposição do Fundo Rotativo, o contrato estabelece uma série de condições para que o Banco envie os dólares ao mutuário. Além de normas condicionais, há procedimentos ditados pelas políticas do BID que devem ser seguidos, sob pena de o mutuário ver negado o acesso aos recursos do financiamento. São eles a prestação de contas e a solicitação de desembolso.

Prestação de contas

A prestação de contas é o procedimento pelo qual o Banco reconhece as despesas efetuadas como parte do Programa. Sem a prestação de contas, a despesa, ainda que ocorrida em uma ação pré-definida contratualmente e mesmo que licitada e contratada dentro das normas do BID, não entrará para a contabilidade oficial do programa nem como contrapartida, nem como financiamento.

A função da prestação de contas é comprovar a regularidade das saídas financeiras do Programa, quer nos aspectos dos princípios de procurement e das normas contratuais de seleção e contratação de fornecedores, quer na questão do cumprimento da legislação nacional.

Em tese, é um procedimento simples, mas que pode demandar mais do que mera organização administrativa em programas onde há mais de um órgão da Administração envolvido, exatamente o que ocorre na estrutura de execução do PROCENTRO. A dificuldade da prestação de contas também aumenta em função do nível de diferenciação jurídica dos fornecedores (prestar contas de verbas destinadas a OSCIPs é mais complicado do que a uma empresa) e da antigüidade dos gastos em relação ao momento da prestação de contas, principalmente quando o órgão contratante sequer imaginava que aquele gasto seria passível de análise de um financiador internacional.

Uma importante dificuldade inicial enfrentada no PROCENTRO foi o entendimento claro do que seria exigido em cada modalidade de licitação pelo consultor analista do Banco. A cada caso concreto, eram solicitados os documentos pertinentes para a verificação da consonância da licitação, da contratação e dos pagamentos com as normas do Banco e com a legislação aplicável. Do ponto de vista da incipiente equipe de prestação de contas, tornava-se penoso organizar a documentação sem ter certeza do que seria exigido em cada caso. A solução adotada foi enviar um ofício ao BID com a proposição de um procedimento elencando e delimitando o conjunto de documentos que poderiam ser pedidos aos sub-executores para serem apresentados ao Banco.

Os documentos foram organizados conceitualmente em dois cadernos: o Caderno Jurídico que englobava basicamente todos os passos da licitação até o contrato e o Caderno

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Financeiro, que continha as evidências da execução orçamentária e financeira da despesa. As tabelas a seguir elencam os principais documentos de cada caderno

Tabela II – Caderno Jurídico da Prestação de Contas

Edital e seus anexos Comprovantes de publicidade Questionamentos, impugnações e recursos Atas, Relatórios, Pareceres e Decisões da Comissão de Licitação Proposta vencedora Pareceres Técnicos e Jurídicos (*) Termo de Contrato ou equivalente (*) Casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação, ou ainda de alienações.

Tabela III – Caderno Financeiro da Prestação de Contas

Nota de empenho ou equivalente Medição assinada pelo órgão contratante Nota fiscal ou fatura Nota de Liquidação Comprovante de pagamento hábil (*) Guias de impostos recolhidos na fonte, devidamente quitadas (*) O Banco não aceitou, por exemplo, cópia de cheque nominal ao

fornecedor como comprovante de pagamento.

Cabe diferenciar as contratações aprovadas ex ante das ex post. Nas primeiras, o Banco emite sua não-objeção a cada documento marco da licitação e contratação de um gasto financiável, quais sejam: termo de referência, edital, atas de análise técnica e de preços, contrato e aditivos. Quando o pagamento ao fornecedor contratado ocorre, portanto, há mais certeza jurídica de que ele será financiado, mas o financiamento só se concretizará quando mutuário apresentar sua prestação de contas da qual devem constar obrigatoriamente todos os documentos citados e suas respectivas publicações, bem como questionamentos administrativos e judiciais ao edital, as decisões relativas a eles, notas de empenho, notas fiscais ou faturas, comprovantes de pagamento e de recolhimento de impostos retidos. Na ausência de um desses documentos, o Banco não aprovará a despesa.

Vê-se que nas licitações e contratações ex ante o Banco, na pessoa de um consultor especialista contratado, analisa uma série de documentos à medida que eles vão sendo produzidos e deixa para analisar um outro conjunto de documentos após o pagamento da despesa. Essa cisão temporal não sucede nas despesas ex post, já que a análise é feita de todo o conjunto comprobatório após o pagamento, seja de todo o contrato – no caso de compra de

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equipamentos, por exemplo, seja de uma primeira parcela ou medição – como se dá em contratos de prestação de serviços ou de execução de obras.

Tal mecanismo traz como conseqüência a insegurança do mutuário quanto à possibilidade de reconhecimento de uma dada despesa. Qualquer dificuldade em obter a documentação exigida pelo Banco pode deixar uma ação fora da contabilidade do Programa, como foi o caso das obras do PAR – Programa de Arrendamento Residencial, da Caixa Econômica Federal, que havia sido previsto como um gasto de contrapartida e que não foi reconhecido financeiramente pelo Banco, pois não se viabilizou operacionalmente a cessão dos cadernos jurídico e financeiro pela Caixa Econômica para o órgão executor, Emurb, sob a alegação de se tratarem de documentos internos.

Mais grave do que não ver reconhecida uma contrapartida é ter a expectativa frustrada do financiamento de um gasto. Se a objeção do Banco se dá em uma supervisão ex ante, ou seja, ainda durante a fase licitatória, há a chance de correção, mas se a objeção se dá em casos de supervisão ex post, o mutuário já se obrigou perante o fornecedor e efetuou pelo menos um pagamento, mas não poderá contar com os recursos do Banco para fazer frente

Óbvia é a importância operacional da prestação de contas para a celeridade da execução financeira e para o atingimento dos objetivos financeiros do contrato. Daí serem cruciais o planejamento, o treinamento e o comprometimento dos envolvidos desde, não exageramos em dizer, o desenho inicial de qualquer proposta de financiamento externo com um órgão como o BID.

Solicitação de desembolso

A solicitação de desembolso é antecedida da prestação de contas. Melhor dizendo, após analisada a prestação de contas, ela passa a fazer parte de um segundo procedimento pelo qual o mutuário solicita a remessa de recursos. O único caso no qual a solicitação é feita sem uma prestação de contas é no momento da remessa inaugural do Fundo Rotativo, já que posteriormente, o Fundo só pode ser recomposto mediante comprovação da utilização dos recursos através de prestação de contas específica.

Em resumo, podemos elencar os seguintes passos para acesso e utilização dos recursos do financiamento, já definida:

Em se tratando de reembolso de despesas, com supervisão ex ante:

1) PMSP faz a previsão orçamentária na rubrica pertinente. 2) Sub executor prepara documentos licitatórios: termo de referência ou projetos,

edital e anexos. 3) BID avalia documentos e solicita alterações. Após eventuais correções, BID envia

sua não-objeção. 4) Durante os procedimentos de licitação, o Banco avalia e emite sua não objeção a

todas as decisões da Comissão de Licitação. 5) O Contrato é firmado, executado e medido. O fornecedor emite nota fiscal, a

PMSP faz a liquidação normalmente, efetuando o pagamento ao fornecedor e o recolhimento de impostos devidos na fonte.

6) O órgão executor prepara prestação de contas e BID analisa, podendo glosar pagamentos específicos, exigindo retificação ou apresentação de documentos.

7) Aprovada a prestação de contas, órgão executor envia Solicitação de Desembolso ao Banco.

8) Banco analisa a Solicitação e envia o montante em dólares à conta corrente específica da PMSP destinada ao recebimento de recursos do financiamento na modalidade

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de reembolso. Na entrada do dinheiro no País, efetua-se um contrato de câmbio que converte os dólares em reais.

Em se tratando de reembolso de despesas, com supervisão ex post:

1) PMSP faz a previsão orçamentária na rubrica pertinente. 2) Sub executor realiza a licitação. 3) O Contrato é firmado, executado e medido. O fornecedor emite nota fiscal, a

PMSP faz a liquidação normalmente, efetuando o pagamento ao fornecedor e o recolhimento de impostos devidos na fonte.

4) O órgão executor prepara prestação de contas e BID analisa, podendo glosar pagamentos específicos ou licitações inteiras, desqualificando-as de financiamento para contrapartida.

5) Aprovada a prestação de contas, órgão executor envia Solicitação de Desembolso ao Banco.

6) Banco analisa a Solicitação e envia o montante em dólares à conta corrente específica da PMSP destinada ao recebimento de recursos do financiamento na modalidade de reembolso. Na entrada do dinheiro no País, efetua-se um contrato de câmbio que converte os dólares em reais.

Em se tratando de utilização do Fundo Rotativo, com supervisão ex ante:

1) PMSP faz a previsão orçamentária na rubrica pertinente. 2) Sub executor prepara documentos licitatórios: termo de referência ou projetos,

edital e anexos. 3) BID avalia documentos e solicita alterações. Após eventuais correções, BID envia

sua não-objeção. 4) Durante os procedimentos de licitação, o Banco avalia e emite sua não objeção a

todas as decisões da Comissão de Licitação. 5) O Contrato é firmado, executado e medido. O fornecedor emite nota fiscal, a

PMSP faz a liquidação normalmente, efetuando o recolhimento de impostos devidos na fonte com recursos próprios e o pagamento ao fornecedor através de débito na conta corrente específica da PMSP que recebeu o Fundo Rotativo59.

6) O órgão executor prepara prestação de contas e BID analisa, podendo glosar pagamentos específicos, exigindo retificação ou apresentação de documentos.

7) Aprovada a prestação de contas, órgão executor envia Solicitação de Desembolso ao Banco para recomposição do Fundo Rotativo.

8) Banco analisa a Solicitação e envia o montante em dólares à conta corrente específica da PMSP destinada ao recebimento de recursos do Fundo Rotativo. Na entrada do dinheiro no País, efetua-se um contrato de câmbio que converte os dólares em reais.

Funcionamento do Fundo Rotativo

O Fundo Rotativo é uma antecipação de recursos do financiamento, limitada a 5% do valor financiado. Os parâmetros de funcionamento são os seguintes:

a) Condições para acesso ao fundo rotativo

59 Os dólares do BID foram convertidos em reais na remessa dos recursos que abriu ou recompôs o Fundo Rotativo.

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O envio de recursos para o Fundo Rotativo é considerado um desembolso e portanto, está sujeito a uma série de pré-condições estabelecidas em contrato 60. Os limites, tanto condicionais mas principalmente o quantativo, indicam que o órgão financiador não tem preferência por essa modalidade de acesso aos recursos, direcionando de certa maneira o mutuário a usar o reembolso de despesas.

À parte das condições, não há outros requisitos para acesso ao Fundo. Basta efetuar uma Solicitação de Desembolso e o mutuário receberá os recursos sem ter de vinculá-los a nenhuma aquisição ou processo licitatório específico. O dinheiro do Fundo pode ser utilizado somente para pagar a parte financiada dos investimentos do Programa.

b) Recebimento, uso das verbas e controles

O montante enviado em dólares para formação ou recomposição do Fundo Rotativo é objeto de um contrato de câmbio para que possa ingressar no País. Logo, ele fica congelado em reais até seu uso efetivo pela PMSP. São a EMURB, como órgão executor, e a Secretaria de Finanças os responsáveis por definir quando e para quais pagamentos será usado o Fundo e não o caixa regular da Prefeitura (o que implicaria em um reembolso futuro pelo BID). Em suma, esta é uma decisão do devedor, que pode ser estratégica para a eficiência de todo o Programa se considerar a disponibilidade de caixa, o momento do câmbio, entre outras variáveis.

A Prefeitura pode, por exemplo, optar por deixar os 5 milhões de dólares convertidos em reais em sua conta corrente e utilizar recursos próprios para pagar as despesas financiáveis do Programa. A exigência do Banco limita-se a receber semestralmente um relatório da situação do Fundo, com informações sobre os resultados da variação cambial e das aplicações financeiras, cujo rendimento será obrigatoriamente revertido para uso no Programa. O relatório do Fundo Rotativo é auditado periodicamente, assim como toda a contabilidade do Programa.

c) Rotatividade

Evidentemente, o uso do Fundo Rotativo pode ser maximizado se o devedor tiver a agilidade necessária para usar os recursos, reunir a documentação comprobatória, elaborar a Prestação de Contas, obter sua aprovação, enviar a Solicitação de Desembolso e receber a recomposição a tempo de pagar novas despesas no menor prazo possível. Os cinco milhões podem, então, significar pelo menos 20 milhões por ano, já que não nos parece improvável pensar que com a cooperação de todos os sub-executores e da Secretaria de Finanças, o órgão executor possa realizar os procedimentos mencionados quatro vezes por ano. Basta ter em andamento obras ou aquisições de bens e serviços financiáveis e reunir os documentos em tempo hábil.

Considerando que o desembolso médio dos recursos financiados pelo BID ficaria em menos de US$ 20 milhões por ano61, o uso planejado do Fundo Rotativo pode minimizar ou até mesmo eliminar a necessidade de se ter disponíveis recursos próprios para fazer os pagamentos de gastos financiados, exceto nos casos em que uma nota fiscal excedesse o valor máximo do Fundo, pois um pagamento parcial não seria considerado na prestação de contas como hábil para recompor o Fundo Rotativo.

Variação Cambial

60 A título de exemplo, podemos citar a apresentação do orçamento anual da PMSP e do orçamento do Programa, também conhecido como plano de contas. 61 Se dividirmos os 100,4 milhões de dólares por 6 anos de desembolso, temos uma média de US$ 16,7 milhões de recursos financiados anuais.

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Ainda que houvesse alternativas ao financiamento internacional e ainda que elas fossem passíveis de implementação, o gestor público no uso de suas atribuições, achou por bem contratar com o BID. E assim o fez, acabando por cair nas armadilhas próprias a projetos dessa natureza: variação cambial e atrasos, refletindo negativamente na eficiência e na eficácia planejadas.

A variação cambial faz parte de qualquer operação financeira em que se tenha de um lado receitas em uma moeda e despesas em outra. No caso do financiamento do PROCENTRO celebrado entre a Prefeitura de São Paulo e o BID, as despesas com fornecedores são em moeda local, enquanto que as financeiras são em dólar. As receitas da PMSP, sejam as destinadas à contrapartida, sejam as direcionadas para o pagamento de gastos futuramente reembolsados pelo Banco, são em reais. Já os recursos vindos do Banco vêm em moeda estrangeira.

Esses quatro tipos de movimentação ocorrem a cada certo tempo, sendo o mais certo o prazo de pagamento das despesas financeiras (semestralmente, sempre em junho e dezembro de cada ano). Em tese, como há para os três fluxos restantes uma certa margem para decidir a forma e o momento de seu acionamento, respeitados os limites contratuais, é possível administrar o Programa com uma certa consciência cambial com o intuito de minimizar e/ou compensar perdas.

Uma decisão tomada para maximizar a capacidade de investimento da PMSP através de ganhos cambiais seria aproveitar o momento favorável da taxa de câmbio, com uma valorização do dólar frente ao real, para solicitar uma recomposição do Fundo Rotativo mesmo que não se planeje utilizar os recursos no curto prazo. Poderíamos enxergar esse movimento de um hedge62 cambial operacional, pois protegeria os recursos contra futuras valorizações do real. A tabela II demonstra a possibilidade de ganho. Tabela IV – Exemplo de operação de hedge cambial operacional através da antecipação de recomposição do Fundo Rotativo

Data

Montante a recompor em

dólaresTaxa de câmbio

Equivalente em reais

Ganho cambial pela

antecipação1/09/200X $2.000.000,00 2,10 4.200.000,00R$ 600.000,00R$ 1/11/200X $2.000.000,00 1,80 3.600.000,00R$

Os ganhos e as perdas cambiais ordinários são esperados e nada desprezíveis e devem ser administrados desde que haja a consciência necessária por parte da PMSP e pessoal com formação e experiência necessárias para a gestão dos aspectos financeiros no órgão executor

As perdas cambiais por estimativa e seus efeitos na execução do PROCENTRO

Especificamente no PROCENTRO, ocorreu uma grande perda cambial diferente da variação cambial citada anteriormente. Enquanto as alterações do câmbio estão perfeitamente dentro das expectativas e podem ser compensadas entre si, a significativa variação dos recursos do Programa em reais teve origem na estruturação do Programa, daí chamá-la de perda cambial por estimativa.

62 Hedge refere-se a qualquer operação realizada para proteger uma posição financeira atual contra riscos de variações futuras que a possam afetar negativamente.

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Entender a cronologia dos eventos do PROCENTRO e a evolução do rela frente ao dólar nos últimos 4 anos é crucial para compreender o que levou á perda de recursos. O Gráfico III demonstra os eventos mais relevantes.

Gráfico III – Cronologia financeira do PROCENTRO

out-0

3jun

-04de

z-04

dez-0

8

jun-09

dez-0

9

jun-10

dez-1

0

jun-11

...... jun-29

Pagamento de serviços

Pagamento de serviços +

principal

Último pagamento

de serviços + principal

período de exposição à variação cambial

Pagamento de serviços +

principal

Pagamento de serviços

Pagamento de serviços

Pagamento de serviços

Pagamento de serviços

Prazo limite para a contratação de fornecedores

Aprovação da Proposta de Empréstimo pelo BID

Assinatura do Contrato de Mútuo entre PMSP e BID

Prazo limite para o desembolso de recursos pelo BID

...

Em outubro de 2003, as condições do contrato foram consolidadas na Proposta de Empréstimo aprovada pelo BID, mas a preparação ocorreu previamente. Nos dois anos anteriores, o dólar teve uma trajetória ascendente de 2,50 a 3,00, com a taxa média chegando a 3,40 no segundo semestre de 2002, como se pode visualizar no gráfico abaixo Gráfico IV - Trajetória do câmbio entre 2002 e 2004

Taxa de câmbio média R$ / US$ período prévio à assinatura do contrato

2,44

3,4 3,24

2,92

2,97

1,00

1,50

2,00

2,50

3,00

3,50

4,00

1º semestre 2002 2º semestre 2002 1º semestre 2003 2º semestre 2003 1º semestre 2004

Não surpreende, portanto, que se tenha adotado a taxa de 3,50 para dolarizar os custos das intervenções e apresentá-los ao BID para um programa a ser desenvolvido nos cinco anos seguintes. O que não se imaginou foi a forte valorização do real frente ao dólar, que aconteceu a partir do segundo semestre de 2004.

Devido à forte variação do câmbio (de 2,86 reais por dólar em outubro de 2003 para 1,80 em outubro de 2007), os recursos do Programa caíram em mais de 280 milhões de reais, cifra essa que representa quase 50% dos valores estimados inicialmente. A tabela a seguir traz a

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posição do dólar em alguns eventos importantes e o montante de perda cambial equivalente em cada momento.

Tabela V – Perdas cambiais por estimativa em diferentes momentos

Data de referência Evento

Dólar médio do mês Variação

em milhões de dólares

em milhões de reais

perda cambial

Taxa de câmbio adotada para os custos do Programa 3,50 0% 167,4 586R$

outubro-03Aprovação da Proposta de Empréstimo pelo BID 2,86 -18% 167,4 479R$ (107)R$

junho-04Assinatura do Contrato de Mútuo entre PMSP e BID 3,13 -11% 167,4 524R$ (62)R$

janeiro-05 Início da gestão Serra-Kassab 2,69 -23% 167,4 451R$ (135)R$

outubro-07Data base dos últimos informes disponíveis no site do BID 1,80 -49% 167,4 301R$ (284)R$

Investimento total do Programa

Aspectos jurídico - licitatórios e sua influência na execução financeira

A estrutura normativa imposta às licitações e contratações realizadas no âmbito de um contrato de mútuo com o BID impõe empecilhos à celeridade da execução financeira. Tais obstáculos são de duas ordens: uma mais objetiva e concernente aos prazos das licitações e outra, menos óbvia, decorrente dos “choques interpretativos”, por assim dizer, entre o Banco e os procuradores ou departamentos jurídicos dos órgãos licitantes.

Por se tratar de um organismo multilateral, o BID costuma exigir como condição ao financiamento que licitações acima de um certo valor sejam internacionais, possibilitando a participação de empresas oriundas de seus países membros. No caso do PROCENTRO, os limites que tornam as licitações internacionais são US$ 5 milhões para obras, US$ 350 mil para bens e US$ 200 mil para serviços, conforme o Anexo B ao contrato.

Vale a pena atentar para algumas conseqüências práticas do mencionado regramento. Primeiramente, não há orientação explícita com relação ao momento da conversão do valor da licitação para dólares americanos. É claro que num caso de supervisão ex ante a primeira análise será no pacote inicial que contém termo de referência ou pacote de projetos e minuta de edital. Mas e se, devido à variação cambial, a licitação para uma obra que estava convertida a US$ 4,9 milhões no momento da não objeção ao edital passa a valer mais de US$ 5 milhões quando são abertas as propostas? E se a proposta vencedora em uma licitação nacional também apresentar um preço maior do que o limite estabelecido, o que a tornaria internacional pelas normas do Banco, ele solicitaria uma reabertura de prazo para que empresas dos países membros pudessem participar?

O questionamento aqui apresentado tem como função apenas ilustrar as dificuldades encontradas na definição de estratégias licitatórias em programas com financiamento internacional contratado com instituições promotoras do desenvolvimento, tanto pela fixação dos montantes em moeda não local, levando ao risco cambial, quanto pela existência de normas de seleção e contratação próprias, o que pode causar um certo desconforto por parte dos procuradores e dos departamentos jurídicos do mutuário.

Embora o direito internacional possua todo um arcabouço teórico e legal que embasa a assinatura e o cumprimento de um contrato de mútuo que adota as regras da entidade

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financiadora como normas preponderantes sobre a lei brasileira em caso de conflito normativo, os responsáveis por zelar pela regularidade das licitações e contratações também devem dar conta de seus atos a outros órgãos e instâncias, que não o Banco.

Ao considerar as visões do Tribunal de Contas, Ministério Público e de órgãos da Administração, os verificadores da legalidade podem fixar-se nas supostas inconsistências e conflitos entre um e outro regramento e conseqüentemente, recomendar a não adoção da norma do Banco para preservar a total aderência à lei local. Perde-se, assim, a chance de financiar a aquisição.

Ao longo da execução, tais dificuldades são contornadas por meio de discussões, refazimento de editais e seus anexos e de negociações entre procuradores, de um lado, e de especialistas do Banco, de outro, com a mediação do órgão executor. Ainda que se chegue a um acordo, o tempo despendido no trâmite que antecede a publicação de um edital de uma aquisição financiável não deve ser desprezado, pois acaba por contribuir negativamente para a cumprimento do cronograma de implantação do Programa, ampliando os custos do atraso, sobre o que discorreremos mais tarde.

Um exemplo que pôde ser extraído do PROCENTRO diz respeito à contratação de especialistas individuais para a elaboração de projetos e estudos. O BID e a PMSP previram este tipo de seleção no Anexo B e o documento autoriza que seja financiada com recursos do Banco. Os procuradores da Prefeitura, contudo, não se mostraram dispostos a assinar pareceres de acordo com tal prática, já que, sem grandes construtos argumentativos, pode-se interpretar que a seleção baseada em uma lista curta sem uma pré-qualificação prevista na lei 8.666. Como uma saída para efetivar as contratações e, assim, produzir projetos e estudos que serviriam de base para outras ações do Programa, o executor EMURB optou por trazer tais contratações para sua estrutura jurídico-administrativa, contando que seria mais factível convencer o departamento jurídico e a diretoria da aplicabilidade e da adequação das normas do Banco. Não só seria igualmente trabalhoso aprovar as contratações no âmbito da Empresa, como se teria que criar um caminho orçamentário para trazer as dotações que estavam na Administração Direta para a EMURB.

Conclusão

O ritmo lento da execução, a lógica financeira interna da operação do PROCENTRO, que traz retorno somente após 30 anos, as enormes perdas cambiais, as dificuldades operacionais na relação entre executor e sub-executor e os entraves às licitações são alguns dos pontos que nos fazem crer ser necessária uma revisão do contrato com BID, quer para prorrogação de prazo, quer para revisão da quantidade de intervenções previstas.

Fica claro que tais obstáculos vêm impedindo que os benefícios econômicos, sociais e urbanísticos almejados com o investimento no centro de São Paulo se tornem reais. Em que pese o viés financista do presente texto, há que se ter em mente que é para promover o desenvolvimento que se fazem programas deste tipo, não para obedecer a lógica financeira. A Prefeitura pode tirar diversas lições da experiência PROCENTRO e esperamos que colocar os objetivos de um Programa de desenvolvimento local acima de seus percalços políticos e operacionais seja uma delas.

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7.1.4. Pedro Fiori Arantes (Discurso dos gestores públicos)

Interesse público, poderes privados e práticas discursivas

na política de renovação do Centro de São Paulo Pedro Fiori Arantes

“Em política, ‘dizer é fazer’, quer dizer, fazer crer que se pode fazer o que se diz.”

Pierre Bourdieu O poder simbólico, p.185

No Centro de São Paulo transitam 2,5 milhões de pessoas todo dia. Ou seja, 1 em cada 4 moradores da capital freqüentam a região cotidianamente, fato que se nota facilmente observando o fluxo de pessoas pelos calçadões e terminais urbanos. Esse fato não impede, entretanto, que o atual coordenador das ações públicas no Centro da cidade, Andrea Matarazzo, afirme que “Precisamos trazer o paulistano de novo para cá, seja para morar, trabalhar, fazer compras ou simplesmente passear”.63 O que ele quer dizer com isso? A análise das falas e das justificativas para as ações dos agentes públicos no processo de renovação da área central de São Paulo é o tema desse artigo. O discurso e o poder de quem o enuncia revelam intenções que precisam ser interpretadas. Como afirma Pierre Bourdieu, “basta que as idéias sejam professadas por responsáveis políticos para se tornarem idéias-força capazes de se imporem à crença”, pois no campo político, “as idéias-força tem o poder de fazer com que o porvir que elas anunciam se torne verdadeiro”.64 A eficácia do discurso político está em seu poder mobilizador, no sentido de tornar-se uma espécie de “profecia auto-realizada”. A decisão de centrar a análise prioritariamente na prática discursiva de gestores do programa e não de outros atores – como técnicos do BID, consultorias, gerenciadoras, ONGs e mesmo a população atingida – é aqui tomada em função de serem eles os únicos que, por obrigação legal, devem defender o “interesse público” ou “bem comum” – noções a que retornaremos adiante.

Pretende-se, assim, verificar como esse discurso é construído para justificar a ação pública. Na escolha feita por quem enuncia, entre o que é dito ou não dito, entre o que é mostrado e o que é escondido, entre o que é priorizado ou acaba relegado, procuraremos compreender qual o caráter ideológico da construção discursiva dos gestores. Ou seja, ao que ele serve: defende os interesses públicos, como interesses de igualdade de acesso e de bem-estar para a totalidade da população? Está direta ou indiretamente capturado por interesses privados? A quem se dirige este discurso (à população em geral, a investidores locais, a investidores externos, a grupos de pressão)? Quem o

63 Em Revista Veja São Paulo, de 16/03/2005. 64 Em Pierre Bourdieu, O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertand Brasil, 1989, p.187.

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enuncia e qual o poder de autoridade desse enunciador? Quais palavras de ordem e imaginários coletivos ele mobiliza para se legitimar? Como ele publiciza (por que meios de comunicação e informação direta à população) e se publicitariza (ao se tornar a propaganda de si mesmo)? A análise dos discursos certamente não substitui a análise das ações propriamente ditas, inclusive para verificar a distância entre palavras e práticas. Como nos lembra Flávio Villaça, “é comum entre nós considerar como sendo política pública o discurso do Estado acerca de sua ação sobre o urbano (...) há que se considerar, com cuidado, a diferença entre o discurso e a ação real do Estado, cujos objetivos, aliás, freqüentemente são ocultos”.65 Tal constatação não nos impede de reconhecer na própria construção discursiva uma dimensão da ação pública que precisa ser elucidada. Isso porque a enunciação dos objetivos públicos é parte relevante da disputa política e da formação de Estados democráticos e legítimos. As ambigüidades desses discursos, seu caráter ideológico ou de classe, podem revelar os interesses reais que movem as ações concretas, o sentido para o qual são planejadas e executadas. O campo político só é decifrado na medida em que se pode definir o universo do que é “dizível ou indizível, pensável ou impensável”, uma vez que essa fronteira determina-se na relação de força entre interesses concretos em jogo.66

Consciência de crise e produção do consenso A Revista Veja, uma das mais influentes do país, abre a matéria sobre a renovação do Centro de São Paulo com o seguinte parágrafo:

“O centro de uma cidade deveria ser como uma sala de visitas, onde se mostra o que se tem de melhor em casa. O centro de São Paulo, no entanto, parece um depósito de lixo. Sujo e degradado, foi abandonado por famílias, empresas e bancos. Seus imóveis caindo aos pedaços foram invadidos pela prostituição, pelo tráfico de drogas e pelo comércio de produtos piratas.” (1/06/2006).

Qual o mecanismo retórico aqui estabelecido? Em primeiro lugar, mobiliza o senso-comum a respeito do papel da “sala de visitas” na vida doméstica para transferi-lo à própria cidade. Se a sala de visitas exibe “o que se tem de melhor”, seu objetos devem responder à imagem social de seu proprietário. Por isso, é a “área destinada à exposição de poder e riqueza”.67 Na sala de vistas os serviçais (antes, escravos) estão sempre “ao dispor” para bem atender os patrões e seus convidados, segundo as convenções aprendidas. Na cidade, o centro-sala-de-visitas deve despertar nosso “orgulho cívico”, ou “patriotismo de cidade”.68 Mas esse orgulho está ferido, pois na segunda frase somos informados de que o “lixo” (urbano e social) ocupa esse espaço. O passo seguinte é a descrição de um cenário devastador que assombra o Centro da cidade. Evidentemente, não é dada nenhuma informação sobre as causas dessa situação. A degradação do Centro aparece como naturalização de um processo que é social e histórico. Como explica Flávio Villaça, as idéias de “deterioração” e “decadência” do Centro são associadas

65 Em “Uma contribuição para uma história do planejamento no Brasil”, in O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp, 1999, p. 173-4. 66 Pierre Bourdieu, op.cit., p.165. 67 Ver a análise do “poder simbólico” da casa burguesa em Sérgio Ferro, em Arquitetura e trabalho livre. São Paulo, CosacNaify, 2006, p.67-75. Na interpretação de Sérgio Ferro, o espaço social da casa “segue regras de comportamento radicalmente distintas das espontâneas maneiras de viver. Os milhares de tiques, gestos, etiquetas, cuja função é demonstrar que quem os exibe possui suficientes recursos para desenvolver as atividades totalmente inúteis, tem cenário determinado: salas, espaços, móveis, tapetes, quinquilharias que não devem ser usadas”. 68 Expressões do Planejamento Estratégico de cidades analisadas por Carlos Vainer em “Pátria, empresa, mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano” in A cidade do pensamento único. Petrópolis, Vozes, 1999. Como afirma um dos editoriais do Informe da Associação Viva o Centro, de junho de 2004: “Trata-se de um conjunto de medidas que objetivam a plena requalificação da área para devolvê-la à fruição da população e, por extensão, resgatar-lhe a dignidade como referência cívica para São Paulo”.

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aos processos naturais de apodrecimento ou envelhecimento. Com isso, “a ideologia dominante quer veicular a crença de que a ruína do centro é um processo natural”.69 O sociólogo Carlos Vainer, ao analisar os procedimentos do planejamento estratégico de cidades, indica como ponto de partida de qualquer intervenção “a produção de uma aguda e generalizada consciência de crise”.70 Ela é construída por meio de procedimentos discursivos e produz um efeito útil similar ao de uma aparente trégua, ou pacificação, que permite “superar [ou anular?] os conflitos entre os atores locais” e “instaurar consensos”. Esse mecanismo retórico é, a seu modo, incorporado pelos próprios agentes públicos que, diante do quadro de crise, estabelecem a necessidade permanente de impor consensos para legitimar suas ações. Como veremos adiante, a lógica consensual proclama a identidade entre o Estado de direito e o direito dos indivíduos. Não haveria contradição entre interesses comuns e interesses particulares. Para tanto, esse discurso não identifica causas nem conflitos, pois quando se começa a indicar responsáveis e processos concretos, dificulta-se o consenso. Substitui-se a causalidade por “desafios” – órfãos de pai e mãe. A eficácia dessa estratégia está em reduzir ao silêncio as dissidências. O que, no limite, representa o próprio “desaparecimento da política”, como afirma Jacques Rancière. O ex-presidente do BID, Enrique Iglesias, também advoga a superação da antiga “política confrontacional” (também conhecida como luta de classes): “esse novo consenso político começa a surgir do esgotamento, pelas mais diversas razões, de diversos governos baseados em uma cultura populista ou ideológica, confrontacional e conflitiva, pouco disciplinada ou maximalista. Em seu lugar, gesta-se uma nova cultura cívica, mais desiludida e mais pragmática, menos impaciente e mais madura, menos inclinada ao conflito e mais disposta à busca de convergências, mais afastada de extremos e mais orientada pelo centro – uma desistência da impaciência política, com revalorização da moderação, da estabilidade e dos consensos”.71 Rancière define a “pós-democracia” ou “democracia do consenso” como um “idílio reinante que nela vê a concordância racional dos indivíduos e dos grupos sociais (...) preferivelmente ao conflito”.72 Por isso, no regime de consenso, em que as partes são tidas sempre como dadas, há uma hipertrofia da “performance linguística”. Ela passa a ter importância preponderante, pois é a única capaz de apresentar as soluções adotadas como sendo sempre as mais razoáveis e racionais, as únicas objetivamente possíveis. O processo de renovação do Centro de São Paulo, que tem hoje como principal iniciativa em andamento o Programa Ação Centro, financiado pelo BID, tem sido profícuo na criação de idéias-força pelos agentes públicos das diferentes gestões municipais. Nós iremos analisar algumas delas, que consideramos as mais relevantes: a) o “acesso” aos (legítimos?) “paulistanos”; b) a necessidade de “foco” territorial para concentração de investimentos; c) a garantia da “diversidade” e mistura social; d) o incentivo aos negócios imobiliários na Nova Luz, com a demolição da Cracolândia. Ao final, iremos questionar a pertinência ou não de se definir o que seria o chamado “interesse público” na intervenção na região Central, noutras palavras, o que deveria nortear a ação do Estado em direção à construção do “bem comum”.

As idéias-força no discurso de renovação do Centro de São Paulo a) Quem tem direito ao acesso? Podemos voltar aqui ao aparente paradoxo apontado no primeiro parágrafo desse artigo: quem é o paulistano que precisa voltar ao Centro, como afirma Matarazzo, uma vez que 2,5 milhões de

69 Em Flávio Villaça, Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, StudioNobel, 1998, p.345. 70 Carlos Vainer, op.cit., p.92. 71 Em Enrique Iglesias, Reflexiones sobre el desarollo económico. Washington, BID, 1992, p. 57. 72 Em Jacques Rancière, O desentendimento: política e filosofia. São Paulo, Editora 34, 1996, p.105.

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pessoas já passam por ali diariamente? A intencionalidade do discurso não é difícil aqui de ser decifrada: devem ter acesso ao Centro os “sujeitos de tipo certo”, isto é “visitantes e usuários solventes”,73 capazes de “alavancar” processos de renovação urbana e valorização econômica de determinadas regiões-alvo da ação pública. No caso paulistano, como foi no norte-americano décadas antes, trata-se de uma “reconquista”74 das áreas centrais abandonadas pelas elites. Num contexto republicano de Estado de Direito, os discursos de agentes públicos não poderiam explicitar a intencionalidade e o sentido dessa substituição de populações, dado seu caráter classista. Por isso, eles adotam estratégias de convencimento por meio de outras ações, cujas conseqüências diretas são de facilitar a atração da população pretendida. Talvez a mais importante delas seja referente à ampliação do acesso ao automóvel particular, por meio de abertura de vias em calçadões de pedestres e a construção de garagens subterrâneas.75 De acordo com Sanderley Fiusa, diretor do ProCentro e figura central na obtenção do empréstimo do BID, as garagens eram um “foco fundamental” da proposta e deveriam colaborar para o desenvolvimento econômico da região. Segundo Fiusa, não houve resistência por parte do Banco, que emitiu sua pré-aprovação: “o BID gostou muito do projeto”.76 Há aqui uma estratégia retórica na qual se evita mencionar diretamente o interesse em jogo para mais facilmente alcançar um consenso em torno da ação: afinal, quem seria contra a ampliação da infra-estrutura local? O que passa a ser defendido, então, é ampliação das estruturas físicas de acesso ao Centro e, em particular, por meio do automóvel – como se este produzisse uma singular independência simbólica em relação ao seu condutor. Trata-se de uma reificação, em que o “sujeito de tipo certo” passa a ser representado pela mercadoria automóvel, que traz dentro de si quem pode pagar para estar no Centro em veículo particular. Não é necessário mencionar que o custo de se comprar, manter e abastecer um automóvel, acrescido do pagamento da taxa de estacionamento, é elemento definidor da capacidade de solvência do seu proprietário-condutor. O automóvel é o próprio sinal de status e posse e, simultaneamente, veículo que permite o acesso individual. No Brasil, por décadas de políticas de sucateamento do transporte público e de marketing das montadoras, as classes médias urbanas se tornaram dependentes do uso do carro, como se este fosse uma extensão de seu corpo, tornando-se verdadeiros “indivíduos-mônadas” que só circulam em espaços nos quais o automóvel possa penetrar.77 Como afirma o gestor atual da política para o Centro à Revista Veja: “‘No parking, no business’, costuma dizer Andrea Matarazzo”.78 Nos planos da atual gestão municipal, além das garagens, incluem-se a abertura de sete quilômetros de vias para automóveis cortando os antigos calçadões exclusivos de pedestres, construídos no final da década de 1970. Mais garagens e mais acesso é uma antiga reivindicação dos empresários locais organizados por meio da Associação Viva o Centro (AVC). No caso da abertura dos calçadões a automóveis, as intenções de substituição de população são ainda mais nítidas. Enquanto as garagens ocupam os subsolos, as vias de pedestres, no solo, são utilizadas por milhões de pessoas. Entretanto, elas representam um suposto entrave ao comércio mais sofisticado, ao qual só se chega motorizado, e que supostamente fortaleceria a dinâmica econômica e arrecadação de impostos na região. Os calçadões também são os espaços da ilegalidade, de ambulantes, pedintes e moradores de rua, população que deve ser invisibilizada e eventualmente removida do Centro. As políticas de

73 Carlos Vainer, op.cit, p.80 74 O termo é de Neil Smith, em The new urban frontier: gentrification and the revanchist city. Nova York, Routledge, 1996. 75 O projeto inicial apresentado ao BID na gestão Pitta previa 7 garagens subterrâneas, com um custo de US$ 47,8 milhões. Na gestão Marta Suplicy, as garagens foram retiradas do escopo do financiamento. Atualmente, elas foram retomadas e estão sendo licitadas a construção e concessão de 9 garagens, fora do financiamento do BID. De acordo com o edital, a empresa ganhadora tem o direito de exploração da garagem por 30 anos e não há valor máximo para a tarifa ao usuário. 76 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 05/04/2007. 77 Ver, por exemplo, Tatiana Schor. O automóvel e a cidade de São Paulo : a territorialização do processo de modernização (e de seu colapso). Dissertação de mestrado em geografia, FFLCH-USP, 1999. 78 “Dez idéias para o Centro”, Revista Veja São Paulo, 16/03/2005.

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combate ao comércio informal e de tolerância zero – implementadas pelas três gestões e reivindicadas pela AVC – colaboram para esvaziar parte do movimento nos calçadões, justificando sua eventual redução. No plano discursivo, é preciso uma cambalhota retórica para provar aos pedestres que são eles os maiores prejudicados com a preservação dos calçadões. Os argumentos são dados pela consultoria do LUME à gestão Serra/Kassab: “as ruas de uso exclusivo de pedestres estão se tornando cada vez mais inviáveis e extremamente problemáticas para os próprios usuários (...) o problema do ambulante seria justamente decorrente da potencialidade dada pelo calçadão”.79 O embate entre espaços para pedestre e transporte coletivo versus acesso ao automóvel particular, que supostamente ocorre numa esfera técnica de decisões de mobilidade urbana, encobre, na realidade, um corte classista para o acesso e uso do Centro. Além disso, a ampliação da presença de automóveis – aquelas estranhas máquinas de mais de uma tonelada, que utilizam energia não renovável e emitem gás carbônico para transportar pessoas de setenta quilos, na irônica definição de Azis Ab’Saber – produz conseqüências ambientais negativas, congestão urbana, acidentes e custos sociais de todas as ordens80, nenhum deles avaliados pelos gestores públicos.81 Atualmente, em diversas cidades, procura-se restringir o acesso dos automóveis às áreas centrais, dado o fato de que se trata da região mais movimentada e servida de transportes públicos. Em Londres, por exemplo, a atual prefeitura instaurou taxas restritivas ao acesso veicular ao centro, como estratégia para descongestionar a área e incentivar o uso dos sistemas coletivos. Na formatação final do programa, durante a gestão Marta, os investimentos em infra-estrutura de transportes foram dirigidos para os sistemas coletivos, terminais de transferência e corredores de ônibus na rótula e contra-rótula central, articulando os fluxos que cruzam o Centro, dentro do projeto mais amplo de interligação de transportes com bilhete único. Segundo Silvana Zioni, da Secretaria de Transportes na gestão Marta, pensou-se a questão do acesso “de maneira menos privatista do que como o tema vinha sendo tratado”. Contudo, afirma ela, ainda “foram mantidas as demandas por novas garagens e a discussão sobre a permanência dos calçadões”.82 O projeto de corredores de ônibus e de terminais de transferência foi cancelado pela gestão Serra/Kassab com a alegação de inviabilidade técnica83, refutada por Silvana Zioni. No caso da disputa pelo acesso ao Centro e seus meios, parece não ser difícil caracterizar o interesse público. Mesmo que na gestão Marta tenha prevalecido a defesa do transporte coletivo, não houve, entretanto, capacidade da estrutura administrativa estável em garantir a prevalência do interesse público diante das diretrizes da nova gestão. Voltaremos a isso ao final desse artigo. b) Foco e concentração de investimentos O projeto original de renovação da área central apresentado e pré-aprovado pelo BID na gestão Pitta tinha um foco muito claro: 91% dos investimentos em obras concentradas nos distritos Sé e República, sendo as principais, sete garagens subterrâneas.84 A gestão petista propôs a substituição completa do projeto original, e apresentou o programa “Reconstruir o Centro”, que articulava demandas de diversas secretarias para a área da Regional da Sé, incluindo o cinturão de

79 Em Meyer e Grostein (coord.), “Estudo urbano e urbanístico do Vetor Leste do Centro”. LUME, FAU-USP, 2007, p.17. 80 Sobre as irracionalidades dessa mercadoria-símbolo do capitalismo, ver o texto de Robert Kurz “Sinal verde para o caos da crise” em Os últimos combates. Petrópolis, Vozes, 1997. 81 Na carta ao COFIEX, de 1997, é reconhecido o paradoxo, mas sem avaliar seriamente suas conseqüências: “muitos usuários do Centro preferem utilizar o transporte individual (...) Porém, a crescente cocentração de viagens de automóvel vem causando a saturação de centro urbano e a degradação da qualidade de vida, seja pelos congestionamentos cada dia mais críticos, seja pelos elevados índices de poluição do ar”, p.23. 82 Entrevista concedida ao Instituto Polis, 17/07/2007. 83 A reforma das chamadas Rótula e Contra-Rótula - conjunto de avenidas que circundam o centro - é uma delas. Na versão anterior, seria instalado um corredor de ônibus nessas vias. “Não previram que, em vias como a São Luís, não cabia uma pista exclusiva de ônibus”, alegou Biasoto Júnior. “Em Reforma do Parque Dom Pedro é abandonada”, O Estado de S. Paulo, 10/09/2006. 84 Segundo a Carta Consulta à COFIEX, de 1996.

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bairros mais populares ao redor do Centro antigo, num total de 30 km2. A principal crítica do BID ao novo projeto, segundo diversos depoimentos, era a “falta de foco” – crítica também da AVC, que exigia a concentração nos distritos Sé e República, que somam apenas 4,4 km2. Segundo o Banco, a dispersão diminuiria a visibilidade das intervenções e a capacidade de induzir o ciclo de investimentos necessários à renovação do Centro. Mais uma estratégia discursiva para alcançar o consenso: quem poderia ser contra a existência de “foco” nos investimentos para que não sejam desperdiçados? Clara Ant, administradora regional da Sé, presidente do Procentro e coordenadora do “Reconstruir o Centro”, acabou recuando da proposta original: “eu achava a [crítica] pertinente. [Nosso projeto] tinha a tônica de dispersão (...) Do jeito que eles [BID] apontavam seria melhor”.85 A arquiteta Sarah Feldman, que participou do “Reconstruir o Centro”, justifica a dispersão dos investimentos na área de 30 km2: “Centro e bairros centrais tem que ser tratados de forma conjunta (...) Pra mim, foco não é só território. Poderia haver foco em determinadas ações e elas poderiam estar dispersas no território”.86 Esse foi, por exemplo, o modelo de intervenção das mil praças em Barcelona, conduzidos por Oriol Bohigas nos anos 1980. Ainda, segundo Sarah, o investimento do BID poderia ser uma estratégia para fortalecer o papel da futura Subprefeitura Sé. Entretanto, a eleição de apenas uma parte de seu território (14,6%) como foco dos investimentos abalava a própria capacidade da Subprefeitura de agir com certa isonomia em seu território. Em tese, a dispersão de investimentos, realizados segundo diretrizes claras, tem a capacidade de uniformizar certa qualidade urbana pelo território, reduzindo as diferenças entre infra-estruturas e equipamentos públicos nos diversos distritos – o que é um princípio democrático. A concentração de investimento elege áreas prioritárias que irão, por isso, diferenciar-se das demais, num ciclo de investimento e reinvestimento, de modo a ampliar seu valor imobiliário e, por conseqüência, alterar o tipo de população que ali trabalha, consome e habita.87 É isso que pleiteiam a AVC, o BID e as administrações pró-mercado, segundo o depoimento de diversos gestores entrevistados – mas, novamente, algo que não pode ser mencionado diretamente, dado seu caráter particularista. O discurso encontra novamente um subterfúgio retórico, repetindo o senso-comum da necessidade de foco na ação pública. Helena Mena Barreto, coordenadora do programa Morar no Centro na gestão Marta, reconhece que o apelo ao foco é apenas uma estratégia discursiva para que se concentre investimentos: “qual agência financiadora não quer dar visibilidade para o resultado?”. Além disso, o BID mede o sucesso da intervenção por meio de indicadores de “valorização imobiliária e aumento de receitas públicas”, afirma Helena, que participou intensamente das negociações com o Banco. 88 No impasse gerado no primeiro ano da gestão petista houve um confronto entre o “poder de autoridade”, no termo de Bourdieu, dos enunciadores das diferentes possibilidades de renovação da área central. Segundo Sarah Feldman, o PT pouco tinha elaborado programaticamente a questão dos centros urbanos, pois construiu ao longo da sua trajetória política e administrativa um pensamento dirigido a políticas públicas nas periferias. Ou seja, o Partido estava dividido e inseguro em relação ao que fazer. Enquanto isso, a Associação Viva o Centro, que reúne os empresários locais, acumulava “capital simbólico”, por meio de revistas, projetos, conferências, ações locais e projeção na mídia, como a entidade mais preparada para formular propostas para o Centro da cidade.

85 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 02/07/2007. 86 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 01/10/2007. 87 Alguns dos indicadores solicitados pelo BID e incluídos no Marco Lógico do programa não deixam dúvidas: “Renda familiar maior ou igual à renda familiar do município”; “Variação do valor lançado de ISS/ITBI/ICMS na área do projeto igual ou maior que o do restante da cidade”; “Variação no valor de mercado dos imóveis residenciais e não residenciais maior ou igual ao do restante do município, a partir do segundo ano de execução”; “Variação da arrecadação do ICMS e ISS, por setor, maior ou igual ao restante da cidade”. 88 Entrevista ao autor em 10/06/2004. Em diversos documentos e financiamentos do BID e do Banco Mundial é apresentada como central a exigência de foco, credibilidade (diante do setor privado) e retorno financeiro dos investimentos, como já demonstrei em minha pesquisa de mestrado.

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Essa diferença de capital simbólico entre a AVC e a gestora pública fez com que o plano petista para o Centro fosse descartado e Clara Ant demitida. No embate com a AVC, vitoriosa, a SubPrefeitura, ao contrário de se fortalecer, seguia apenas como mantenedora do espaço público, em papel politicamente “infantilizado”, segundo Sarah Feldman. A urbanista Nádia Somekh assume, então, a presidência da Emurb, com a incumbência de coordenar o novo plano “focalizado” nos distritos Sé/República. Como publicamente não poderia reconhecer a ingerência da AVC e mesmo do BID na definição da área de intervenção do programa, Nádia solicita uma pesquisa de opinião para que a população definisse o que entende por Centro da cidade. O resultado foi que “a população tinha no imaginário como Centro os distritos Sé e República”, o que justificaria, então, a focalização.89 O resultado não é surpreendente. O urbanista Flávio Villaça já explicara que os mecanismos ideológicos pelos quais a elite universaliza seus interesses particulares têm aplicações no espaço urbano, com formulações próprias. Por exemplo, “constitui-se na tendência de fazer passar a cidade [ou o Centro] como aquela parte da cidade que é de interesse da classe dominante”.90 A pesquisa de opinião, nesses termos, pode não ser mais que um teste para aferir a capacidade da classe dominante de construir no imaginário coletivo o consenso em torno dos seus interesses. Segundo Nádia, para que a gestão petista não perdesse a oportunidade do empréstimo do BID, “não coloquei nenhuma abordagem crítica, eu achei que esse era o momento de utilizar esse financiamento pra formar uma opinião pública que levasse a um clima de confiança e de investimento na área central”. A nova coordenadora não teve receios em assumir o vocabulário internacional de gestão urbana calcado em modelos empresarias, como se vê na entrevista concedida ao Polis, ao falar em: “clima de confiança”, “alavancar novos investimentos”, “alavancar recursos humanos e sociais”, “foco”, “governança”, “agência de desenvolvimento”, “gestão compartilhada”, etc. Assim, parte da batalha discursiva estava ganha pelo BID e pela AVC. A gestão petista, contudo, introduziu duas questões novas, mas que não deixam também de constar nas agendas das agências multilaterais, a da “inclusão” e a da “diversidade” social, definições que passam a constar no Marco Lógico do financiamento, como veremos no próximo item. É importante mencionar que a gestão Serra/Kassab voltou a utilizar o argumento do “foco” versus dispersão para fazer alterações no programa, com mais da metade dos projetos cancelados. Segundo Matarazzo, “havia uma pulverização de recursos muito grande”. O vice-presidente da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), Geraldo Biasoto Júnior, afirma que a revisão concentrou o investimento no que ele chama de “vetor oeste”, que vai da Luz à Praça Roosevelt.91 Voltaremos a esse tópico no item d. c) Diversidade e mistura social Apesar de parcialmente seduzida pela possibilidade de renovação, embelezamento e gentrificação do Centro de São Paulo, a gestão petista (2001-2004) viveu um embate interno sobre a expulsão da população mais pobre.92 Depois de um braço de ferro entre a ala pró-substituição de populações, encabeçada pelo presidente da Emurb que antecedeu Nádia, Maurício Faria, e o grupo que estava mais próximo aos movimentos populares, nas Secretarias de Habitação e de Assistência Social, foram introduzidos no programa diversas iniciativas que caracterizam o

89 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 16/08/2007. 90 Em O Espaço Intra-Urbano, op.cit., p. 344. 91 Ambos os depoimentos em “Reforma do Parque D.Pedro é abandonada”, O Estado de S.Paulo, 10/9/2006 92 Segundo Helena Mena Barreto, somente ao final da gestão, quando o programa já estava formatado, que a prefeita Marta Suplicy assume uma posição contrária a gentrificação. Até então apenas a Sehab se preocupara com a questão. Entrevista concedida ao Instituto Polis em 29/03/2007.

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chamado “componente social”93 – quase meia centena de ações diversificadas com o objetivo de inclusão social. O que nos interessa neste artigo será mais especificamente a defesa que a gestão petista passou a fazer da “diversidade social” na área central, definida no Marco Lógico (espécie de DNA do programa) nos seguintes termos: “Promover o desenvolvimento social e econômico, com diversidade”; “Reverter a desvalorização imobiliária e recuperação da função residencial, com diversidade”. O discurso da diversidade, como veremos, é carregado de ambigüidades, e, por isso mesmo, um poderoso produtor de consensos. Foi capaz de unificar a divisão interna na administração petista, por ser uma bandeira incontestável. Diversidade tanto serve de palavra de ordem para os contrários à gentrificação, no sentido de permanência de uma população de baixa renda com a implementação de programas habitacionais, quanto pode ser o mote para atrair populações com rendas mais altas, uma vez que o Centro “não esvaziou, mas popularizou”, na definição de Nádia Somekh.94 Ou seja, para quem entende que o Centro vai atrair moradores de renda média, a diversidade social é argumento para manter políticas de habitação social, para quem entende que o Centro é popular, é argumento para trazer as classes médias. Essa convergência discursiva permite que gestores de diferentes espectros políticos defendam a mistura social como situação urbana desejável – a mixité social na cidade tornou-se um tema consensual, sobretudo na Europa.95 Essa convergência vocabular faz com que a coordenadora do Ação Centro na gestão Marta pareça dizer o mesmo que o atual coordenador do programa, Andrea Matarazzo. Nadia Somekh, afirma que “deixemos a classe média se instalar, porque no mundo inteiro pode misturar e isso que é importante na cidade, a não estratificação, a não guetificação, a não segregação”.96 Por sua vez, afirma Matarazzo: “Assim como em toda a cidade, é preciso ter diversidade – a região central não é para ser só para ricos ou só para pobres, a diversidade é o que caracteriza o lugar”.97 A idéia de mistura e composição de interesses também está presente no cenário “integrado” aprovado para o financiamento do BID, com “um pouco de tudo”, e que foi considerado para o projeto, incluindo “simultaneamente as dinâmicas dos setores negócios, cultura, habitação para todas as classes de renda e infra-estrutura”.98 A idéia de bom-senso mediano está, deste modo, embasando o discurso da diversidade. Como o cenário integrado, de mistura de usos e classes é o que fornece “maior taxa de retorno” ao investimento financeiro99, os números conferem autoridade mesmo onde o enunciado é incerto. A ideologia da “mixité social” como princípio organizador da sociedade e da cidade (por oposição à segregação social, espacial e funcional) é difícil de ser contestada. Entretanto, ela naturaliza e toma como dadas as diferenças sociais, produzindo aquele esquecimento sobre as causas e conflitos, necessário aos consensos, e que já mencionamos anteriormente. Segundo Yankel Fijalkow e Marco Oberti, que estudam o caso de Paris, “há um consenso, ao menos na declaração de apoio a certos projetos de lei, que parece abarcar da esquerda à direita sobre a necessidade de se manter a mistura social, ao menos de lutar contra a segregação”. No caso francês, a diversidade residencial em determinados bairros foi obtida graças a uma contínua política pública de implantação de conjuntos habitacionais em toda a cidade, própria ao Estado de Bem-Estar Social. Mas, na França, a diversidade não foi apenas uma política

93 O reconhecimento por parte do BID de que o novo projeto possuía um importante componente social permitiu à Prefeitura reduzir a contrapartida de 50% para 40% do total de recursos. 94 Entrevista ao autor em 10/05/2004. 95 Marie-Helene Bacque e Patrick Simon, “De la mixité comme ideal e comme politique”, in Paris : les vrais enjeux d’une campagne. Revista Mouvements, n.13, janeiro de2001, p.22. Afirmam os autores: “Qual força política progressista pode reivindicar a instauração de um desenvolvimento separado dos grupos sociais e étnicos?” 96 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 16/08/2007. 97 Entrevista a AVC, Revista URBS, ano X, n. 40, março / abril 2006. 98 Documento “Ajuda-memória” ao Programa de reabilitação da área central, janeiro de 2003. 99 Segundo cálculos do consultor do BID, apresentados no “Relatório final” do Programa de reabilitação da área central, Procentro, 2003.

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residencial, mas social e em diversos níveis, graças ao serviço público universal e de qualidade em educação, saúde, cultura, lazer etc, o que permite a existência espaços multi-classistas mais democráticos. No Brasil, o que seria mistura social num país que não construiu um Estado de Bem-Estar e que vive o “desmanche” das políticas de desenvolvimento? Ou ainda, o que seria a mixité numa sociedade caracterizada pela segregação secular cuja herança é o escravismo? Florestan Fernandes afirma, por exemplo, que existe no Brasil um padrão de dominação que produz uma distorção no modelo (europeu) de luta de classes: aqui ela passa a se dar em termos de apartheid e assume a característica de guerra étnica, de extermínio (como numa “balcanização”) entre possuidores e não-possuidores.100 Estruturalmente prevalece um padrão histórico de segregação entre as classes sociais, o que impediria a democrática convivência das classes no espaço urbano. Mesmo para o caso francês, Fijalkow e Oberti propõem uma questão provocativa: “está a classe média disposta realmente co-habitar com as classes populares e imigrantes?” (...) “Quem sustenta, afinal a mixité?”. Segundo os autores, se olharmos de perto as práticas dos grupos sociais, constataremos que “a proximidade territorial se traduz raramente por proximidade social”. Políticas de mixité, ao contrário do que pode parecer – como uma proposta urbana de caráter liberal – exigem processos de regulação e intervenções públicas fortes e permanentes, inclusive uma intervenção pública sobre o parque habitacional privado, que só ocorreram em contextos de Welfare. Noutro texto que analisa o paradigma francês de mixité, Bacqué e Simon afirmam que, mais recentemente, em Paris, “as políticas de mixité consistiram em introduzir as camadas médias e superiores em bairros majoritariamente populares”. Segundo eles, “o discurso da mixité legitimou a reconquista de territórios populares pelas camadas médias e superiores, fragilizando as formas de resistência coletiva que não puderam colocar eficazmente seu contra-projeto”. Nesse sentido, a mixité surge como situação transitória num processo de substituição de populações, dada a dificuldade de sua permanência no tempo como estrutura social e espacial estável. Se, mesmo na França, país que construiu um dos mais fortes Estados de Bem-Estar Social, a mixité como modelo de organização da sociedade parece uma possibilidade cada vez mais remota, sua transformação em bandeira da ação pública no Brasil encobre os reais interesses em jogo. A orientação segregacionista dos grupos sociais no espaço residencial (pois mesmo próximos, muros e guaritas serão erguidos) não permitirá que se crie as condições de uma verdadeira mistura e, na maioria dos casos, reforça as estratégias de distinção para evitar a assimilação às classes populares. Como afirmam os autores, “longe de reduzir as distâncias sociais, a mixité programada constrói barreiras, atiça antagonismos, generaliza condutas de preconceito também no espaço público e nas escolas”. Se atravessarmos a nuvem de fumaça do discurso da “mistura social”, encontraremos a batalha real que está sendo travada: a da fixação das camadas populares na área central. O componente habitacional foi um ponto de dissenso entre parcela da gestão petista, os técnicos do BID e lobistas da AVC. Eram questionados os investimentos em habitação social, sobretudo na modalidade de locação social, que atingiria a população de mais baixa renda (de 0 a 3 SM, e que representa a maior parte do déficit habitacional), não contemplada nos programas da CDHU e da Caixa Econômica para rendas acima de 3 SM. O componente habitacional foi quase integralmente cancelado, sem justificativas públicas, no final da gestão Marta e pela nova gestão.101 Rovena Negreiros, afirma que a re-alocação de recursos num programa é comum e que “a Marta já havia excluído algumas ações, inclusive de habitação”.102 O fato, que está registrado no

100 Ver Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. 101 Dos 18 empreendimentos habitacionais previstos, 2 foram concluídos na gestão Marta e tiveram despesas reconhecidas pelo BID. Outros 8 projetos foram cancelados na própria gestão Marta, de acordo com o relatório de progresso n.1, de dezembro de 2004. Na gestão Serra/Kassab, 4 projetos foram cancelados, 1 deixou de ser reconhecido pelo BID e outros 3 foram realizados fora do financiamento. 102 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 02/04/2007.

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“Relatório de progresso número 1”, redigido ao final da gestão Marta, é negado por Nádia Somekh: “O que a Rovena falou sobre programas de moradia terem sido tirados já no final da gestão Marta é mentira”. 103 Já Matarazzo considerou suficiente afirmar que estes projetos eram “equivocados”. Segundo ele, havia “a idéia de fazer só moradia de baixa renda. O centro pede uma visão multiuso (...) É melhor isso [cancelar] do que executar projetos equivocados”.104 Marco Antonio Almeida faz coro, segundo matéria na Revista do IPHAN, “o presidente executivo da Associação Viva o Centro (AVC) não vê esse caráter excludente na revitalização: ‘Não se trata de obrigar ninguém a sair do centro, mas também não se deve incentivar a vinda deles (população pobre)’, defende”.105 d) Nova Luz na Cracolândia Ao ser empossada, a gestão Serra realiza uma revisão completa do programa Ação Centro sob duas alegações: a já mencionada falta de foco, com escolha de ações “equivocadas”; e a variação cambial de 62%, de 1 dólar para 3,50 reais no momento da formatação do contrato para 1 dólar para 2,2 reais no início de 2005, o que exigia que diversas ações fossem cortadas.106 Não casualmente foram canceladas, revistas ou reduzidas os investimentos em habitação social, transporte público e programas da assistência social e da Secretaria do Trabalho: todos que atingiam diretamente a população de mais baixa renda.107 A nova gestão deixa de mencionar em seus raros documentos e pronunciamentos públicos o tema da “inclusão social”, presente no discurso petista sobre o Centro. A nova palavra de ordem passa a ser a renovação da região de Santa Ifigênia, conhecida como “Cracolândia”, por meio do projeto “Nova Luz” – que é incluído no programa Ação Centro, recebendo um investimento de 100 milhões de reais (cerca de 55 milhões de dólares, no câmbio atual), ou o equivalente a 33% do total de recursos envolvidos no programa.108 Está, assim, definitivamente escolhido o “foco” da intervenção financiada pelo BID – e a escolha não é casual. A região da Luz concentra os interesses de um mesmo grupo político (parcela do antigo MDB e atual PSDB) desde o início dos anos 1980, quando foi formulado o projeto Luz Cultural, na gestão estadual de Franco Montoro.109 O Luz Cultural foi o primeiro projeto de renovação urbana que pretendia gerar uma indução de valorização imobiliária e mudança de imagem por meio de investimentos culturais – seguindo o modelo do Greenwich Village de Nova York.110 Na década de 1990, já sob a iniciativa da Associação Viva o Centro, que fornecia grande parte dos projetos e do discurso da reabilitação, as administrações estaduais comandadas pelo PSDB injetaram recursos na Luz por meio de quase uma dezena de intervenções, as chamadas “âncoras culturais”.111 103 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 17/04/2007. 104 Em “Reforma do Parque D.Pedro é abandonada”, O Estado de S.Paulo, 10/9/2006. 105 Em Sérgio Mattos, “Centro de São Paulo: revitalização, especulação ou higienização”, 04/10/2005. http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=91, acessado em novembro de 2007. 106 A irracionalidade econômica dos financiamentos em moeda estrangeira para políticas públicas que só utilizam moeda local, com complicações micro e macroeconômicas é amplamente discutida em minha dissertação de mestrado. Pedro Arantes, “Crítica à razão do tomador” em O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação de mestrado, FAU-USP, 2004. 107 Foram também feitas alterações nos projetos de drenagem urbana e o cancelamento da reforma do Parque D.Pedro, no vetor-leste (mais popular) de expansão do Centro, entre outras medidas. 108 Segundo Rubens Chamas, atual presidente da Emurb, “Os investimentos públicos na Nova Luz são da ordem de 100 milhões de reais, sendo 70% do BID e 30% da Prefeitura”. Entrevista concedida ao Instituto Polis em 01/08/2007. 109 Ver a reconstituição das intervenções e projetos na região da Luz em Beatriz Kara José. Políticas Culturais e Negócios Urbanos: a intrumentalização da cultura na revitalização do Centro de São Paulo, 1975-2000. São Paulo, Fapesp/AnnaBlume, 2007. 110 A urbanista que coordenava o projeto era Regina Prosperi Meyer, que se tornaria na década seguinte a principal consultora da Associação Viva o Centro, fornecendo os argumentos técnicos para as estratégias de pressão sobre o poder público. Atualmente é consultora da gestão Serra/Kassab para renovação do Centro. 111 São elas: a reforma da decadente Pinacoteca e sua transformação em um dos principais museus da cidade; a transformação do Parque da Luz em Jardim das Esculturas; a restauração do museu de Arte Sacra; a reconversão da

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O objetivo dessas “âncoras” era criar condições favoráveis para desencadear um ciclo de investimentos privados, por meio da valorização imobiliária imediata do entorno ou simplesmente atraindo um novo público à região. Os investimentos em cultura não apenas colaboram para “fertilizar a propriedade imobiliária”, na expressão de Mike Davis,112 como têm a vantagem de aparecerem como “apolíticos” e “universais” – o que facilita a criação de consensos. Segundo Rosalyn Deutsche, trata-se de um modelo de intervenção na cidade que tem “uma ideologia estética segundo a qual arte e arquitetura transcendem as relações sociais (...)”, uma “concepção que sanciona o papel da arte no ambiente urbano como essencialmente benéfico”.113 Mas os investimentos culturais, mesmo concentrados, não foram suficientes para criar o círculo virtuoso de renovação urbana. Apesar dos acordes da “Ressureição”, de Mahler, serem ouvidos na Sala São Paulo,114 a Cracolândia seguia incapaz de atrair o interesse do mercado imobiliário. Com a conquista da Prefeitura de São Paulo pelo grupo político do PSDB, que há vinte anos não ocupava o cargo, tornava-se possível uma ação mais direta na área. Segundo Rovena Negreiros, Superintendente de análise de projetos da Emurb, “os investimentos de patrimônio [ancoras culturais] não foram suficientes para alterar ou surtir efeito internamente à área. Com base nisso, essa administração achou que precisava fazer uma intervenção de fato nesta área”.115 Em setembro de 2005, no segundo semestre da gestão Serra, dez quarteirões da chamada Cracolândia são declarados de “utilidade pública” para demolição completa, sem que o decreto justificasse o motivo oficial, para além da finalidade de renovação urbana. O mercado imobiliário, por meio do Secovi, contrata o urbanista Jaime Lerner, ex-prefeito de Curitiba e ex-governador do Paraná, para realizar um projeto de remodelação da área. Ao mesmo tempo, são realizadas blitz policiais e aprovados agressivos incentivos fiscais para atrair novos investidores, com redução de de 50% no IPTU, 60% no ISS, além de 80% do investimento no imóvel obtido com outras isenções116 – criando uma espécie de “mini paraíso fiscal” intra-urbano.117 O desafio, do ponto de vista do discurso público, passaria a ser a construção de um novo consenso, não mais em torno da cultura, mas da transformação de uma região degradada em um bairro moderno. Quem poderia ser “contra o progresso”, como ironiza Marshall Berman a respeito do “arrasa-quarteirão” Robert Moses?118 Em documento oficial da prefeitura, a Cracolândia é apresentada como verdadeira “mancha negra que irradia degradação” e, por isso, será transformada em novo bairro de tecnologia de informação e cultura, com “modernos projetos imobiliários”.119 Segundo Andrea Matarazzo, a

estação Julio Prestes na Sala São Paulo, sede da orquestra do estado e prestigiosa sala de espetáculos; a instalação da Secretaria de Cultura também na Julio Prestes; a reconversão do antigo DOPS em Centro Cultural e Universidade Livre de Música; a utilização de parte da estação da Luz para o Museu da Língua Brasileira; e por fim, o programa de reabilitação de patrimônio histórico da Luz e Bom Retiro, o Monumenta-BID. Segundo a matéria “Arte ajuda a revitalizar o centro de São Paulo”, O Estado de S.Paulo, 25/07/1999, o governo afirma ter investido até aquele momento ao menos 100 milhões de reais nessas obras, o que equivaleria em valores atuais a cerca de 160 milhões de reais. 112 Mike Davis, Cidade de Quartzo. São Paulo, Scritta, 1997. 113 Apud Beatriz Kara José, op.cit. p.250. 114 Estudei em particular o tema no texto “Notas sobre a Sala São Paulo e a nova fronteira urbana da cultura” em Revista POS, FAU-USP, n.9, pp.192-209. 115 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 02/04/2007. 116 Ver a Lei 14.096 de 2005. A isenção de INSS na construção das edificações e do ICMS podem chegar a créditos de mais de 2 bilhões de reais, segundo o Programa de Incentivo à Revitalização de Áreas Urbanas Degradadas (Pro-Urbe), do governo do Estado. Informações em “Serra libera uso de crédito do ICMS para recuperação de áreas urbanas”, O Estado de S.Paulo, 15/09/2007. É importante lembrar que a lei de incentivos seletivos já havia sido criada pela gestão Marta (Lei 13.469 de 7 de janeiro de 2003), sendo aprofundada e focalizada pela gestão atual. 117 A expressão é de Gilberto Dimenstein em “Uma maravilhosa agulhada na ‘Cracolândia’”. Folha de S.Paulo, 15/11/2006. 118 Marshall Berman. “Notas sobre a modernidade em NY”, in Tudo que é sólido se desmancha no ar. São Paulo, Cia. das Letras, 1992. 119 “O futuro da Nova Luz já começou”, Secretaria de Municipal de Coordenação das Subprefeituras, 29/10/2007. http://portal.prefeitura.sp.gov.br/noticias/sec/subprefeituras/2007/10/0024. Acessado em novembro de 2007.

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Cracolândia deve ser posta abaixo porque é “apenas um antro que atrapalha o funcionamento da cidade”.120 Na construção de consensos os formadores de opinião da mídia colaboram quando necessário. Na coluna de Gilberto Dimenstein, por exemplo, lê-se que é preciso “colocar uma ‘agulha’ na infeccionada ‘Cracolândia’, (...) um plano para fazer daquele bairro uma espécie de incubadora de artistas e de empresas de tecnologia da informação”.121 No Jornal Valor, lê-se que “as imagens de maltrapilhos fumando crack nas calçadas ou as figuras quase bestiais envoltas em cobertores imundos” ocupam indevidamente “uma área que já foi um dos maiores símbolos da riqueza cafeeira do início do século passado”. Por isso, o prefeito José Serra decidiu “fazer com que a região da Luz fosse para São Paulo (...) o que foi Puerto Madero para Buenos Aires”.122 Na Revista Veja, afirma-se que “A solução é derrubar”:

“Nos últimos anos, os governos da capital e do estado de São Paulo recuperaram muitos monumentos do centro, como a Estação da Luz, a Pinacoteca e a Sala São Paulo, usada para concertos de música erudita. Nenhuma dessas medidas interrompeu a degradação do centro, que, sem alternativa econômica, continuou sendo um reduto de pobreza. A ruína do centro paulistano é tamanha que só há uma maneira de resolver o problema: a demolição pura e simples de boa parte dele. O prefeito José Serra já tomou essa iniciativa em relação ao pedaço mais degradado, a Cracolândia. A região engloba dez quarteirões distribuídos em 150.000 metros quadrados próximos à Estação da Luz. Como avisa o nome, é reduto de traficantes e viciados, prostitutas e ladrões, obviamente. A área será desapropriada e, em seguida, leiloada a empresas interessadas em se instalar no centro. Todos os 850 imóveis desses quarteirões poderão ser demolidos, nenhum deles, registre-se, de valor histórico”.123

A estigmatização da região no plano discursivo (a produção da “consciência de crise”, como vimos) é importante igualmente para o bom andamento dos negócios vindouros. A estratégia de marketing e o lançamento da logo-marca “Nova Luz” (leia-se: luz sobre as trevas da Cracolândia) deixam a vista que se trata de uma intervenção urbana pró-mercado, ou de uma incorporação imobiliária em grande escala, ancorada pelo poder público. Não há oportunidade imobiliária mais rentável do que a transformação de uma área completamente degradada, na qual a renda diferencial aproxima-se a zero, em um bairro modernizado, servido por equipamentos culturais de primeira ordem e abastecido por investimentos públicos e isenções fiscais. Foi justamente o tráfico e a prostituição que produziram uma baixa no valor dos imóveis, que passarão a ser desapropriados ou negociados no seu valor mais baixo de mercado, permitindo aos investidores obter o maior rent gap de valorização diferencial.124 Para os “pioneiros”, na expressão de Neil Smith, que aceitarem o risco de serem os primeiros ali a investir, o ganho em renda diferencial da terra poderá ser elevadíssimo. Como afirma um dos principais empresários interessados na operação, Paulo Melo, diretor de contratos da Odebrecht. “Estamos interessados no projeto, mas uma coisa eles [da Prefeitura] precisam entender: das empresas eles não conseguirão filantropia, nós estamos interessados no negócio”, afirma o executivo.125 A prefeitura, entretanto, abdicou de qualquer proposta urbanística mais generosa (civilizatória?) para a área – mesmo o projeto de Lerner foi descartado –, deixando o mercado, dentro da legislação existente, definir no varejo o padrão de urbanização que lhe é de interesse. O resultado, como se vê nos projetos já divulgados pela Prefeitura, é um território fragmentado por prédios monofuncionais, isolados e de gosto duvidoso. Há uma prevalência da mentalidade do corretor imobiliário sobre a do urbanista, o que pode ser explicado, em parte, pela gestão Kassab estar ligada a esse grupo de interesse.

120 “A solução é derrubar”, Revista Veja, 08/01/2006. 121 “Uma maravilhosa agulhada na ‘Cracolândia’”. Folha de S.Paulo, 15/11/2006. 122 “Nova Luz em ‘banho-maria’”, Jornal Valor Econômico, 13/08/2007. 123 “A solução é derrubar”, Revista Veja, 08/01/2006. 124 Ver a análise de rent gap nas intervenções urbanas em Nova York em Neil Smith, op. cit. 125 Em “Nova Luz em ‘banho-maria’”, Jornal Valor Econômico, 13/08/2007.

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O novo presidente da Emurb e também corretor de imóveis, Rubens Chamas, acredita que “o mercado vê de maneira positiva a intervenção e [a desapropriação] dá a segurança de que a ação não é para brincadeira”.126 Segundo ele, o BID empresta grife à operação: “Em reuniões na Bolsa de Valores, dizer que o BID faz parte do projeto é sempre importante”. O Banco aceitou o cancelamento de diversos projetos do programa (quase todos associados ao componente social) e viu com bons olhos a concentração de investimentos na região da Luz, onde mantém outro programa, o Monumenta.127 Segundo Aderbal Curvelo, do BID, o Banco deve ser maleável aos “desejos da nova administração” e considera que as alterações “não alteram os objetivos do programa”.128

O que é e quem defende o “interesse público”? Como vimos, as palavras de ordem e a prática discursiva dos gestores públicos procuram construir consensos para legitimar as intervenções urbanas. Muitas vezes, tornam-se indissociáveis da própria ideologia dominante, ou seja, das classes dominantes e do mercado. Em geral, estão embasadas por uma razão instrumental, que avalia a adequação entre meios e fins, evitando colocar em debate o significado próprio do fim almejado. Há uma espécie de discurso lacunar, no qual as razões objetivas, que definem o sentido efetivo das ações, do ponto de vista ético e político, não são explicitadas. A questão que formulamos é se seria possível caracterizar o real “interesse público” na requalificação da área central – uma vez que nenhum dos gestores entrevistados organiza seu discurso procurando definir qual seria esse interesse público e os meios para garanti-lo. No debate que ocorre no campo do direito, questiona-se a legitimidade da existência de um interesse público acima dos demais ou mesmo se ele poderia ser de fato caracterizado. Nas interpretações mais liberais, interesse público seria o mesmo que a soma dos interesses individuais privados. Como afirma Rancière, “a lógica consensual proclama a identidade entre o Estado de direito e o direito dos indivíduos”.129 Entretanto, quando se reconhece que os interesses privados não são harmônicos e convergentes, pelo contrário, o interesse público deve surgir como instrumento de compensação entre desiguais e na construção de equilíbrios. Diante da constatação da desigualdade existente no campo das relações privadas, o poder público deve intervir, segundo Daniel Sarmento, na proteção dos mais débeis, na consagração dos direitos sociais, e na garantia de um “mínimo existencial” a todos os cidadãos.130 Segundo Paulo Schier, o interesse público deveria legitimar-se “a partir da proteção de um núcleo de direitos fundamentais (...) no caso da Constituição brasileira, a dignidade da pessoa humana”. A Constituição Federal de 1988 proclama que o objetivo da ordem econômica é “assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social” (Art. 170). Como afirma Daniel Sarmento, “na Constituição a igualdade não é só um limite, mas antes uma meta a ser

126 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 01/08/2007. 127 Neste último caso, analisado por Beatriz Kara José, em op.cit., as afinidades eletivas entre a renovação da área entre PSDB, AVC e BID estão expressas em documentos do Banco. Ao assumir intervenções no patrimônio como estratégia de substituição de populações, o BID afirma que “a reabilitação de distritos históricos com sucesso atraem novos residentes e atividades econômicas que estimulam o aumento de preços de terrenos e edifícios (...) a gentrificação gera atrativos positivos, contribuindo para a sustentabildade a longo prazo do esforço de preservação”, citado na p.155. Além disso, o principal critério adotado pelo BID num programa de preservação de patrimônio passou a ser o de potencial de valorização imobiliária e de retorno financeiro à administração pública. Ver especialmente pp 228 a 234. 128 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 02/07/2007. 129 Rancière, op. cit. ,p.110. 130 Daniel Sarmento, “Interesses públicos vs. Interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional”, in Interesses públicos versus Interesses Privados. Rio de Janeiro, Lúmen Juris, 2007, p.72.

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perseguida pelo Estado, justificadora de enérgicas políticas públicas de cunho redistributivo, que podem gerar forte impacto sobre os direitos patrimoniais dos particulares”.131 Como mencionamos anteriormente, segundo Pierre Bourdieu, o campo político só é decifrado na medida em que se pode definir o universo do que é “dizível ou indizível, pensável ou impensável”. No nosso caso, um dos temas impronunciáveis pelos gestores públicos é o conflito entre bem comum e propriedade privada. Nos distritos Sé e República, por exemplo, 26,8% e 22,7% de imóveis, respectivamente, encontram-se desocupados.132 Dado 103% superior a já alta taxa média de vacância da cidade (11,8%). Nenhum dos gestores públicos entrevistados pelo Instituto Polis e pela mídia, ou em documentos oficiais informaram sobre essa questão ou manifestam a intenções em relação a transformação dessa situação. Se considerarmos que a região central é a mais bem servida de serviços e equipamentos públicos, concentra empregos e possui enorme demanda por habitação, essa é uma informação relevante de disfuncionalidade urbana e desigualdade social que exigiria iniciativa dos gestores, tanto no campo dos discursos quanto das práticas. Não custa lembrar que na Constituição Federal, em seus artigos que definem os princípios e direitos fundamentais, nos quais o interesse público deve se basear, podemos ler que: é preciso garantir a dignidade da pessoa humana (art.1); construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 2); erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 2); promover o bem de todos (art.2); garantir a função social da propriedade (art.5); garantir direitos sociais, incluído o de moradia, trabalho e assistência aos desamparados (art.6). Nas declarações e documentos analisados para este artigo, em nenhum momento pode ser verificada a utilização de princípios e direitos constitucionais para embasar e qualificar a ação pública. A dissociação entre os objetivos do programa e a clara definição dos princípios de interesse público que norteariam as ações, permite alterações importantes no conteúdo do programa, com o cancelamento e modificação de grande parte do componente social e sua substituição por investimentos concentrados de interesse do mercado, sem que fossem questionados pelos agentes envolvidos. Mais que isso, a modelagem do programa estabelece um modo de operação do poder público que contraria o monopólio de poder decisório por parte do Estado. Como afirma Floriano Marques Neto, “assiste-se ao processo de privatização do público por meio da substituição do Estado enquanto definidor dos interesses gerais por grupos ou corporações, as quais, naturalmente, enredam-se, tangidas pelos interesses privados de seus membros”.133 Esse é o caso não apenas da ação da Viva o Centro, mas também do crescente poder das gerenciadoras privadas sobre as políticas públicas, por meio de incentivo do próprio BID.134 No caso da AVC, que representa o interesse dos grandes proprietários imobiliários da região, por exemplo, a associação chegou a estar dentro do ProCentro e realizar os primeiros projetos de renovação, como afirma Sanderley Fiusa.135 Segundo Helena Mena Barreto, “a AVC de fato mandava lá dentro”. Em cada decisão, “a AVC teve peso forte”, afirmou Sarah Feldman. Andrea Matarazzo afirma que “a coordenação e o papel da Viva o Centro, ao meu ver, são vitais, pois é uma entidade que não depende em nada do poder público, nunca pede recursos, pelo contrário, tem nos estimulado a agir e nos oferecido soluções”. Um dos principais assessores de Matarazzo na Subprefeitura Sé, o engenheiro Antonio José Ayres Zagatto, não por acaso, era o antigo superintendente da Viva o Centro. A urbanista Regina Meyer, também da AVC, foi contratada como consultora para os projetos públicos na região. Não deixa de impressionar o fato de que, das 131 Daniel Sarmento, op.cit., p.71 132 Censo de 2000, IBGE. 133 Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo, Malheiros editores, 2002, p.136. 134 Como aponto em minha pesquisa de mestrado, foi o BID, ainda na década de 1980, quem passou a exigir e fortalecer as gerenciadoras privadas, com o objetivo de redução do tamanho do Estado. Ver em Pedro Arantes, op.cit., os capítulos “O poder das gerenciadoras privadas” e “A nova classe de gestores de empréstimos e formuladores de ‘best practices’”. 135 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 05/04/2007.

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10 propostas encaminhadas aos candidatos a Prefeitura nas eleições de 2004, nove estavam sendo avaliadas e implantadas pela atual gestão, com exceção do sistema circular de bondes.136 No caso das gerenciadoras privadas, o BID exige contratualmente que uma delas seja a coordenadora operacional das ações – o que a leva, em geral, à condição de controladora das etapas de projeto, execução, fiscalização e mesmo pagamento, além de manter a memória do processo fora do órgão público, destituindo o Estado de suas atribuições legítimas. Na administração Marta, dadas as dificuldades de licitação para contratação da gerenciadora, a equipe de gestores públicos conseguiu desenvolver a coordenação do programa sem a necessidade de gerenciadora. Segundo Ursula Peres, da Secretaria de Finanças, foi possível montar um sistema de gestão com grande eficiência. “Com esse sistema a gente ia ter um controle muito grande do programa e não a gerenciadora”, afirma ela.137 Com as gerenciadoras, segundo Ursula, “você tem uma delegação de autoridade que nunca poderia fazer – a mesma empresa executa e fiscaliza”. E mais: “a expertise vai embora com a gerenciadora. (...) Em todos os programas do BID isso acontece (...) com a justificativa de que quanto mais terceirizado melhor, menos cargos públicos”. Segundo Ursula Peres, a diretoria da Emurb estava sendo organizada para se especializar em gerenciamento de projetos, numa visão de fortalecimento do poder público, necessária à garantia dos interesses públicos. A gestão Serra/Kassab, entretanto, completou a licitação, contratou a gerenciadora e desmontou a estrutura interna de administração que havia sido montada. Esse tipo de ingerência do BID afeta a própria noção de soberania do Estado. São problemas políticos, de soberania, travestidos de problemas técnicos, de burocracia. Segundo o depoimento de diversos gestores entrevistados: o BID tem prazos próprios que não são os da administração; impõe consultorias com a alegação de acelerar o processo; não se preocupa com a publicização do projeto; estabelece procedimentos não habituais para a administração pública; exige regras de licitação que contrariam a legislação nacional; cobra gastos e dedicação extra da máquina pública para que a implementação de seus projetos prevaleça em relação aos demais; define ações como “elegíveis” ou “não elegíveis”, isto é, não financiáveis, mesmo que sejam prioridade da administração local; realiza seminários com os gestores para difundir sua ideologia; etc. Quando organizações de direito privado, sejam elas a Associação Viva o Centro, as gerenciadoras ou o próprio BID, passam a assumir ou ingerir as incumbências que deveriam estar a cargo do poder público, a própria noção de interesse público fica enfraquecida, senão inviabilizada. Em uma sociedade que historicamente não construiu uma autonomia relativa do público em relação aos interesses privados, esse desmantelamento acaba por reforçar as estruturas arcaicas de patrimonialismo. A incapacidade do Estado em estabelecer o interesse público encontra paralelo na inviabilidade da própria esfera pública e, por conseqüência, ocorre uma espécie de “anulação da política” – se definirmos “política como o processo mediante o qual se põe em xeque a repartição da riqueza apenas entre os que são proprietários”.138 Nesse caso, o Estado deveria ser a instância capaz de assegurar o não-aniquilamento dos interesses dos indivíduos excluídos do jogo de interesses.139 Diante da falência da noção de interesse público, o jurista Floriano de Azevedo Marques Neto propõe que ele seja reconstruído com base em três princípios, que deveriam orientar a ação do Estado: a) a interdição do atendimento de interesses particularistas, ou seja, desprovidos de amplitude coletiva; b) a obrigatoriedade de ponderação de todos os interesses públicos enredados no caso específico; c) a imprescindibilidade de explicitação das razões de atendimento de um interesse público em detrimento dos demais.140

136 Essa conclusão pode ser feita por meio da comparação do documento da AVC “Carta aos candidatos, 2004” com a matéria “Dez idéias para o Centro”, Revista Veja São Paulo, 16/03/2005. 137 Entrevista concedida ao Instituto Polis em 05/07/2007. 138 Francisco de Oliveira, “Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal” in Os sentidos da democracia. Petrópolis, Vozes, 1999, p.65 139 Floriano Marques Neto, op.cit. p.162 140 Idem, p.165.

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Para tanto, apenas um amplo movimento de publicização do Estado pode ser capaz de dar sentido e força às noções de interesse público e bem comum. Para isso, é preciso livrar o público dos fundamentos personalistas que patrimonializam bens, direitos e oportunidades, que deveriam pertencer à coletividade social. Resta saber se esse programa clássico de nosso projeto de “formação nacional” ainda é possível diante do desmanche a que assistimos.