relatório grupo de trabalho indígena - rodinei candeia · da criaÇÃo do grupo de trabalho sobre...

59
1. DA CRIAÇÃO DO GRUPO DE TRABALHO SOBRE DEMARCAÇÕES DE TERRAS INDÍGENAS NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL E SEUS OBJETIVOS As razões da criação do Grupo estão bem explicitadas no ato normativo que o instituiu: o Decreto Estadual 49.651/2012, sendo motivada, principalmente, pela grande diversidade de áreas conflituosas, de procedimentos judiciais e administrativos sobre a questão, bem como de atores envolvidos na solução desta temática. Seus principais objetivos eram: concentrar as informações sobre as diversas Terras Indígenas, fazer interlocuções com os demais atores (União, FUNAI, INCRA, Ministério Público Federal, agricultores e indígenas), buscar definições jurídicas sobre o tema, e, por fim, buscar soluções efetivas para todas as áreas em conflito no Estado do Rio Grande do Sul. Consoante se verá no transcurso deste relatório, os dois primeiros objetivos (de concentrar informações e fazer interlocuções) foram alcançados. Contudo, a par das interlocuções com indígenas e agricultores feitas individualmente pelos diversos integrantes do Grupo de Trabalho no exercício de suas funções habituais, reconhece-se que não houve condições de uma interlocução do conjunto de integrantes do Grupo de Trabalho com estas partes diretamente interessadas. Já as definições jurídicas sobre o tema serão apresentadas de acordo com a evolução da jurisprudência até o momento, apontando um rumo para a atuação do Estado. Com relação às soluções efetivas para todas as áreas em conflito no Estado, entendeu-se que, pelo grande número das áreas em conflito, a profundidade necessária para o estudo de cada uma dessas áreas, bem como a dinâmica dos fatos e o longo processo de negociação e de construção requeridos em cada situação, não terá este Grupo de Trabalho como trazer soluções para as áreas em particular, mas sim apontar instrumentos que podem ser analisados pelo Estado nas diversas hipóteses. Por fim, no acompanhamento dos processos judiciais e nas inúmeras atuações de cada integrante, dentro de suas funções públicas habituais, objetivando soluções dos conflitos relativos ao tema que surgiram ao longo da duração deste Grupo de Trabalho, verificou- se que o ator principal nas demarcações das Terras Indígenas por tradicionalidade é da União Federal, cabendo ao Estado um papel de apoio, tanto às comunidades indígenas, quanto aos agricultores. Isto porque refoge da competência do Estado o processo administrativo demarcatório, embora possa o Estado acompanhá-lo e opinar sobre este, nos termos em que está disposto na chamada Condicionante n. 19 fixada na decisão do Supremo Tribunal Federal que julgou a PET 3.388 (Terra Indígena Raposa Serra do Sol). 2. DAS PRINCIPAIS ATIVIDADES REALIZADAS

Upload: lamkhanh

Post on 08-Jan-2019

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1. DA CRIAÇÃO DO GRUPO DE TRABALHO SOBRE DEMARCAÇÕES DE TERRAS INDÍGENAS NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL E SEUS OBJETIVOS As razões da criação do Grupo estão bem explicitadas no ato normativo que o instituiu: o Decreto Estadual 49.651/2012, sendo motivada, principalmente, pela grande diversidade de áreas conflituosas, de procedimentos judiciais e administrativos sobre a questão, bem como de atores envolvidos na solução desta temática. Seus principais objetivos eram: concentrar as informações sobre as diversas Terras Indígenas, fazer interlocuções com os demais atores (União, FUNAI, INCRA, Ministério Público Federal, agricultores e indígenas), buscar definições jurídicas sobre o tema, e, por fim, buscar soluções efetivas para todas as áreas em conflito no Estado do Rio Grande do Sul. Consoante se verá no transcurso deste relatório, os dois primeiros objetivos (de concentrar informações e fazer interlocuções) foram alcançados. Contudo, a par das interlocuções com indígenas e agricultores feitas individualmente pelos diversos integrantes do Grupo de Trabalho no exercício de suas funções habituais, reconhece-se que não houve condições de uma interlocução do conjunto de integrantes do Grupo de Trabalho com estas partes diretamente interessadas. Já as definições jurídicas sobre o tema serão apresentadas de acordo com a evolução da jurisprudência até o momento, apontando um rumo para a atuação do Estado. Com relação às soluções efetivas para todas as áreas em conflito no Estado, entendeu-se que, pelo grande número das áreas em conflito, a profundidade necessária para o estudo de cada uma dessas áreas, bem como a dinâmica dos fatos e o longo processo de negociação e de construção requeridos em cada situação, não terá este Grupo de Trabalho como trazer soluções para as áreas em particular, mas sim apontar instrumentos que podem ser analisados pelo Estado nas diversas hipóteses. Por fim, no acompanhamento dos processos judiciais e nas inúmeras atuações de cada integrante, dentro de suas funções públicas habituais, objetivando soluções dos conflitos relativos ao tema que surgiram ao longo da duração deste Grupo de Trabalho, verificou-se que o ator principal nas demarcações das Terras Indígenas por tradicionalidade é da União Federal, cabendo ao Estado um papel de apoio, tanto às comunidades indígenas, quanto aos agricultores. Isto porque refoge da competência do Estado o processo administrativo demarcatório, embora possa o Estado acompanhá-lo e opinar sobre este, nos termos em que está disposto na chamada Condicionante n. 19 fixada na decisão do Supremo Tribunal Federal que julgou a PET 3.388 (Terra Indígena Raposa Serra do Sol). 2. DAS PRINCIPAIS ATIVIDADES REALIZADAS

2.1. Coleta de documentos. Foram trazidos pelos integrantes do grupo diversos trabalhos anteriores sobre este tema, bem como relatórios e planilhas que contém informações relevantes e que foram anexados neste expediente administrativo. 2.2. Reuniões realizadas pelo Grupo de Trabalho: - Primeira reunião, em 19/02/2013: Cada integrante do Grupo fez um relato das atribuições de sua Secretaria ou Órgão nas questões indígenas, bem como das principais dificuldades encontradas. Nesta reunião, deliberou-se a respeito dos meios para coleta de dados e informações. Também houve encaminhamento para a contratação de consultoria técnica (antropológica). - Segunda reunião, em 19/03/1993: Debateu-se sobre os encaminhamentos para um caso em concreto (Mato Preto), bem como sobre a destinação de terras públicas para auxiliar no equacionamento de problemas, seja para o assentamento de agricultores ou para o uso de comunidades indígenas. Deliberou-se por adiar os encaminhamentos para contratação de consultoria técnica, eis que o objeto desta teria que ser inicialmente delimitado, o que não se vislumbrava naquele momento. Decidiu-se, também, por fazer uma compilação dos dados colhidos nas mais diversas situações sobre as áreas indígenas. - Terceira reunião, em 19/04/2013: Foram apontados diversos temas para a análise do Grupo de Trabalho. Concluiu-se pela existência de alguns consensos, quais sejam: de que os agricultores desalojados deveriam receber uma justa compensação, ou seja, equivalente ao valor de mercado da terra; de que, no âmbito deste Grupo de Trabalho, não seria discutido o processo administrativo demarcatório, seu procedimento ou seus supostos erros, nem as atribuições e a atuação da FUNAI. Foram formados grupos para aprofundar algumas pesquisas e discussões: a) grupo para interlocução; b) grupo para revisar e organizar o diagnóstico (tabela das áreas); c) grupo para tratar de questões dos agricultores, como as indenizações; d) grupo para tratar de questões afetas aos indígenas; e) grupo para discutir as questões jurídicas; O grupo de interlocução atuou nos conflitos concretos e pontuais que foram surgindo no decorrer do tempo, em especial com as áreas de Mato Preto e Passo Grande do Rio Forquilha, muitas das vezes no âmbito as funções de cada servidor membro do Grupo de Trabalho; outras vezes em apoio aos setores do Governo do Estado, tal como o Gabinete do Governador, que teve forte atuação para a resolução de conflitos no interregno de tempo deste Grupo de Trabalho. Este mesmo grupo de interlocução também atuou em audiências públicas, reuniões com indígenas, agricultores e suas entidades representativas, algumas das quais tiveram a presença do Ministério Público Federal, de representantes do Governo Federal e de entidades da sociedade civil que defendem a causa indígena. O grupo do diagnóstico reuniu-se em algumas oportunidades para finalizar a compilação dos dados das áreas. Este diagnóstico serviu de base para elaboração de um mapa pela Secretaria de Desenvolvimento Rural, que consta em anexo. Os demais grupos não chegaram a se reunir.. - Quarta reunião, em 17/05/2013: Para essa reunião, foram convidados a FUNAI e o Ministério Público Federal. Participaram o Procurador-Chefe da FUNAI, Flávio Chiarelli

de Azevedo, o Diretor de Proteção Territorial da FUNAI, Aloisio Azanha, e os Coordenadores das Regionais da FUNAI de Passo Fundo e do Litoral Sul (Adir Reginato e João Maurício Farias, respectivamente), bem como Assessores do Ministério Público Federal do Núcleo das Comunidades Indígenas e Minorias Étnicas (Sérgio Roberto Arend de Oliveira e Janquiel Neto da Silvieira). Foram discutidas questões jurídicas, tais como o marco temporal da ocupação tradicional e as demais formas de demarcação, feitas considerações sobre as áreas em disputa, bem como estreitados os contatos para a continuidade dos trabalhos. - Quinta reunião em 07/06/2013: Essa reunião contou com a participação da Defensora Pública Dra. Adriana Schefer do Nascimento, Dirigente do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia – NUDEAM, que está atuando em assessoramento jurídico aos pequenos agricultores nos casos de conflitos com grupos indígenas em questões territoriais. Foi retomada a criação dos grupos por temática, consoante tratado na terceira reunião, bem como a questão de contratação de consultoria técnica para o caso de Mato Preto. No que diz respeito a última questão, não houve consenso quanto ao encaminhamento, sendo adiada sua abordagem para outra oportunidade. Os grupos de trabalho dos indígenas e dos agricultores ficaram de se reunir, o que não ocorreu na forma como fora ajustado na reunião, mas apenas em atuações pontuais e emergenciais, em casos práticos, em ações judiciais ou em atos do Governo que necessitaram de apoio dos integrantes deste Grupo de Trabalho. - Sexta reunião, em 06/11/2013: Nessa reunião, foram relatadas as primeiras tratativas de negociação do Estado com indígenas, agricultores e Ministério Público para buscar acordos nas áreas de Mato Preto e Passo Grande do Rio Forquilha , tais como a revisão das Portarias da FUNAI e a indenização para agricultores com recursos da União Federal. Também foi relatada a proposta posterior, feita pelo Ministério da Justiça, de criar uma mesa de diálogo sobre as Terras Indígenas no Rio Grande do Sul, tal como estava acontecendo no Mato Grosso do Sul. Também foram relatadas as negociações do Estado com o Governo Federal na tentativa de transferir recursos da União. Tratou-se sobre as responsabilidades por indenizações e sobre o marco temporal, cuja discussão ficou para ser aprofundada na próxima reunião. Outro tema tratado foi o conflito em concreto da demarcação física de Passo Grande do Rio Forquilha. - Sétima reunião, em 29/11/2013:Nessa reunião, ficou aprovada a não apresentação pelo GT de um relatório preliminar e também o pedido de prorrogação do prazo do GT por 6 meses, previstos no Decreto. Foi relatada a nova proposta do Ministério da Justiça em instalar uma mesa de diálogo que, desta vez, contaria com recursos federais, dentro de um programa que concretizasse as ações ajustadas na mesa. Feita a apresentação sobre os aspectos jurídicos, identificou-se os seguintes pontos de consenso: que o Supremo Tribunal Federal, no caso Raposa/Serra do Sol, entendeu necessária a posse na data da promulgação da Constituição Federal de 1988 para caracterização da tradicionalidade da ocupação indígena, exceto nos casos em que reste comprovado o renitente esbulho; e que há mais formas para destinação de áreas às comunidades indígenas, conforme previsão do Estatuto do Índio. Ficou deliberado pelo envio de textos por meio eletrônico para estudo dos integrantes do grupo sobre as questões jurídicas apresentadas.

- Oitava reunião, em 25/04/2014: Nesta data, foram relatadas as tratativas do Estado com o Governo Federal para a instauração da mesa de diálogo e debatida a possibilidade de indenização pelo Estado do Rio Grande do Sul por meio do repasse de recursos da União Federal, havendo o entendimento de que há dificuldades de ordem jurídico-administrativas para o repasse direto de recursos para esta finalidade. Foram referidas as dificuldades de arranjo orçamentário do Estado em receber repasses e realizar o remanejo desses recursos destinados a outras finalidades para que fossem utilizadas nas indenizações, caso a União aportasse recursos no orçamento do Estado para estas outras áreas. Iniciou-se a discussão da minuta de relatório final, onde entendeu-se pela necessidade de inclusão de um ponto para tratar das questões de desapropriação por utilidade pública e de Reservas Indígenas. - Nona reunião, em 05/05/2014: Tratou-se dos conflitos recentes na região de Faxinalzinho, em razão de disputas correlacionadas à Terra Indígena Votouro/Kandóia, entendendo o Grupo de Trabalho pela iminência de um conflito generalizado na área e pela urgência em alertar o Governo Estadual quanto à necessidade de reforço da segurança pública. Novamente fora aventada a hipótese deste Grupo de Trabalho analisar o mérito de demarcação feita pelo Governo Federal, desta vez sugerindo o tema da Terra IndígenaVotouro/Kandóia, no que não houve consenso. - Décima reunião, em 06/06/2014: Análise do relatório final. - Décima primeira reunião, em 27/06/2014:Análise do relatório final. - Décima segunda reunião, em 08/08/2014: Análise e aprovação do relatório final. 3. DOS DOCUMENTOS COLETADOS

- Processo da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Questões Indígenas de n. 625/1967 (Requerimento) e n. 1709/1968 (Relatório) – cópias de peças e do Parecer Final;

- Relatório “Figueiredo”, publicado no Diário Oficial da União em 10/09/1968, da Comissão constituída pela Portaria 239/67 do Ministério do Interior, para apurar irregularidades no Serviço de Proteção aos Índios;

- Relatório (de 24/09/1975) do Grupo de Trabalho do Termo de Ajuste, firmado entre FUNAI, INCRA e Estado do Rio Grande do Sul (em 27/05/1975) para uma ação conjunta para o equacionamento das questões decorrentes da presença civilizada nas áreas indígenas, localizadas no Estado;

- Informações sobre as Terras Indígenas no Rio Grande do Sul encaminhadas pela FUNAI ao Governo do Estado pelo ofício 046/GAB-91/FUNAI-1a.SUER, de 24/09/1991; - Relatório (de 31/01/1992) sobre Terras Indígenas no Rio Grande do Sul da Comissão Interinstitucional entre Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Estado do Rio Grande do Sul e Município de Santo Augusto; - Ofícios 062/PRES/FUNAI e 081/PRES/FUNAI , de 10 e 22/03/1993, solicitando nova Comissão Interinstitucional ao Estado; - Dossiê de 09/08/1995 sobre “Terras Indígenas no Rio Grande do Sul – histórico e situação atual” da Comissão para Resolver os Conflitos Indígenas no Rio Grande do Sul; - Relatório, de abril de 1997, do Grupo de Trabalho do Decreto Estadual 37.118/1996, sobre a questão indígena no Rio Grande do Sul; - Relatório final, de setembro de 2012, da Comissão Especial para Discutir a Situação das Áreas Indígenas e Quilombolas no RS – Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; - Relatório da Comissão sobre a questão indígena em Mato Grosso do Sul, de 24/07/2013, instituída pelo Conselho Nacional de Justiça pela Portaria 53 de 08/04/2013; - Artigo: Os Direitos Humanos dos Povos Indígenas: os Povos Guarani, Kaingang e Charrua a Contínua Luta pela Garantia de seus Direitos, de Roberto Antônio Liebgott, em Relatório Azul, ano 2011, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. 4. DAS ÁREAS REIVINDICADAS E DAS TERRAS INDÍGENAS NO RIO GRANDE DO SUL O objetivo do Grupo, ao realizar a coleta de dados constante da tabela sobre terras e áreas indígenas, anexa ao presente relatório, foi o de reunir, da forma mais ampla possível, todas as informações sobre áreas reivindicadas, áreas em que há o reconhecimento de tradicionalidade em andamento ou já concluída e, em especial, levantar os atos normativos, ações judiciais e inquéritos civis existentes. Portanto, não se adentrou quanto ao mérito se esses dados fornecidos pelos diversos atores nesta temática estão corretos ou não, ou mesmo se espelham o entendimento do Grupo, pois se demonstrou inviável a análise exauriente de cada caso. Assim, o fato de constar no levantamento em anexo não implica em reconhecimento ou não em reconhecimento de uma determinada área como indígena pelo Estado do Rio Grande do Sul. Essa é apenas uma compilação de dados.

Após a consulta a várias fontes, adotou-se como início da tabela aquela que apresentou uma maior amplitude de áreas, e acrescentou-se os dados das demais fontes nos quadros seguintes. Tal levantamento poderá auxiliar a atuação do Estado em cada caso, a partir dos balizamentos propostos por este Grupo a seguir. 5. DOS ASPECTOS JURÍDICOS Neste particular, o presente relatório faz um apanhado dos diversos instrumentos normativos e dos principais julgamentos sobre a questão dos direitos indígenas à terra, apontando-se o entendimento jurisprudencial e buscando dar algum rumo para a atuação do Estado do Rio Grande do Sul. Cabe salientar que um dos primeiros consensos do Grupo de Trabalho, já na reunião de 19/04/2013, era o da necessidade de encontrar caminhos para uma compensação da terra em valor equivalente ao de mercado aos agricultores atingidos. Nesta reunião, também se definiu que, no âmbito deste Grupo de Trabalho, não seria discutido o mérito dos procedimentos demarcatórios da FUNAI (se estão corretos, se neles há vícios, ilegalidades ou se delongam por demais), mas sim fazer um apanhado das leis e de suas interpretações, apontando-se os problemas e suas soluções. Portanto, é com este norte que foi feita a compilação das normas e que se chegou às conclusões. 5.1. DA LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA SOBRE A PROTEÇÃO DA POSSE, SOBRE A PROPRIEDADE E A TRADICIONALIDADE DA OCUPAÇÃO INDÍGENA 5.1.1. Na época do império havia a política de definir áreas para os indígenas em Aldeamentos, com o objetivo de integrá-los e adaptá-los ao modo de vida dos não índios, consoante demonstra o Decreto Imperial n. 426/1845 (disponível em http: //www2.camara.leg.br/leginfed/decret /1824 -1899 /decreto -426 -24 – julho-1845 -560529-publicacaooriginal-83578-pe.html), Transcreve-se alguns parágrafos de seu primeiro artigo, pois demonstram esta política indigenista da época:

Art. 1º Haverá em todas as Provincias um Director Geral de Indios, que será de nomeação do Imperador. Compete-lhe: § 1º Examinar o estado, em que se achão as Aldêas actualmente estabelecidos; as occupações habituaes dos lndios, que nellas se conservão; suas inclinações e propensões; seu desenvolvimento industrial; sua população, assim originaria, como mistiça; e as causas, que tem influido em seus progressos, ou em sua decadencia.

§ 2º Indagar os recursos que offerecem para a lavoura, e commercio, os lugares em que estão collocadas as Aldêas; e informar ao Governo Imperial sobre a conveniencia de sua conservação, ou remoção, ou reunião de duas, ou mais, em uma só. § 3º Precaver que nas remoções não sejão violentados os Indios, que quizerem ficar nas mesmas terras, quando tenhão bem comportamento, e apresentem um modo de vida industrial, principalmente de agricultura. Neste ultimo caso, e emquanto bem se comportarem, lhes será mantido, e ás suas viuvas, o usufructo do terreno, que estejão na posse de cultivar. § 4º Indicar ao Governo Imperial o destino que se deve dar ás terras das Aldêas que tenhão sido abandonadas pelos Indios, ou que o sejão em virtude do § 2º deste artigo. O proveito, que se tirar da applicação dessas terras, será empregado em beneficio dos Indios da Provincia. § 7º Inquerir onde ha Indios, que vivão em hordas errantes; seus costumes, e linguas; e mandar Missionarios, que solicitará do Presidente da Provincia, quando já não estejão á sua disposição, os quaes lhes vão pregar a Religião de Jesus Christo, e as vantagens da vida social. § 8º Indagar se convirá fazel-os descer para as Aldêas actualmente existentes, ou estabelecel-os em separado; indicando em suas informações ao Governo Imperial o lugar onde deve assentar-se a nova Aldêa. § 11. Propôr ao Presidente da Provincia a demarcação, que devem ter os districtos das Aldêas, e fazer demarcaras terras que, na fórma do § 15 deste artigo e do § 2º, forem dadas aos Indios. Se a AIdêa já estiver estabelecida, e existir em lugar povoado, o districto não se estenderá além dos limites das terras originariamente concedidas á mesma. § 15. Informar ao Governo Imperial ácerca daquelles Indios, que, por seu bom comportamento e desenvolvimento industrial, mereção se lhes concedão terras separadas das da Aldêa para suas grangearias particulares. Estes Indios não adquirem a propriedade dessas terras, senão depois de doze annos, não interrompidos, de boa cultura, o que se mencionará com especialidade nos relatorios annuaes; e no fim delles poderão obter Carta de Sesmaria. Se por morte do concessionario não se acharem completos os doze annos, sua viuva, e na sua falta seus filhos, poderão alcançar a sesmaria, se, além do bom comportamento, e continuação de boa cultura, aquella preencher o tempo que faltar, e estes a grangearem pelo duplo deste tempo, com tanto que este nem passe de oito annos, e nem seja menos de quinze o das diversas posses. § 18. Propor á Assembléa Provincial a creação de Escolas de primeiras Letras para os lugares, onde não baste o Missionario para este ensino.

§ 19. Empregar todos os meios licitos, brandos, e suaves, para atrahir Indios ás Aldêas; e promover casamentos entre os mesmos, e entre elles, e pessoas de outra raça. § 20. Esmerar-se em que lhes sejão explicadas as maximas da Religião Catholica, e ensinada a doutrina Christã, sem que se empregue nunca a força, e violencia; e em que não sejão os pais violentados a fazer baptisar seus filhos, convindo attrahil-os á Religião por meios brandos, e suasorios. § 25. Informar-se dos meios de subsistencia, que tem as Aldêas, para providenciar que não sobrevenha alguma fome, que seja causa de que os Indios abalem para os matos, ou se derramem pelas Fazendas, e Povoações. § 26. Promover o estabelecimento de officinas de Artes mecanicas, com preferencia das que se prestão ás primeiras necessidades da vida; e que sejão nellas admittidos os Indios, segundo as propensões, que mostrarem. § 27. Indagar quaes as producções do lugar de mais facil cultura, e de mais proveito; esmerando-se em fazer adoptar aquelle genero de trabalho, e modo de vida, que offereça mais facilidade, e a que os Indios mais promptamente se acostumem. § 28. Exercer toda a vigilancia em que não sejão os Indios constrangidos a servir a particulares; e inquerir se são pagos de seus jornaes, quando chamados para o serviço da Aldêa, ou qualquer serviço publico; e em geral que sejão religiosamente cumpridos de ambas as partes os contractos, que com elles se fizerem. § 29. Vigiar que não sejão os Indios avexados com exercicios militares, procurando que se lhes dê aquella instrucção, que permittir o seu estado de civilisação, suas occupações diarias, e seus habitos e costumes, os quaes não devem ser aberta, e desabridamente contrariados. § 32. Servir de Procurador dos Indios, requerendo, ou nomeando Procurador para requerer em nome dos mesmos perante as Justiças, e mais Autoridades.

Assim, a expressão "aldeamentos extintos", existentes em normas posteriores, em especial aquelas que tratam da propriedade destas terras em favor da União Federal, tem sua origem nesta política de reservar áreas para os indígenas em aldeamentos delimitados pelas instituições de Estado. Houve discussão no STF quanto à propriedade dos aldeamentos extintos no julgamento da ADI 255, cujo objeto era a análise do dispositivo da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul que incluía entre bens do Estado os aldeamentos extintos. Nesta decisão não se adentrou na questão do que seriam os aldeamentos, se aqueles da época do império, demarcados pela União, consoante sua política da época demonstrada acima no Decreto

Imperial n. 426/1845 (o que nos parece mais razoável), ou se toda e qualquer área de posse indígena. Confira-se:

"EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCISO X DO ART. 7º DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. BENS DO ESTADO. TERRAS DOS EXTINTOS ALDEAMENTOS INDÍGENAS. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 20, I E XI, 22, CAPUT E INCISO I, E 231 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INTERPRETAÇÃO CONFORME. EXTINÇÃO OCORRIDA ANTES DO ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO DE 1891. ADI JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. I - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, reconheceu que as terras dos aldeamentos indígenas que se extinguiram antes da Constituição de 1891, por haverem perdido o caráter de bens destinados a uso especial, passaram à categoria de terras devolutas. II - Uma vez reconhecidos como terras devolutas, por força do artigo 64 da Constituição de 1891, os aldeamentos extintos transferiram-se ao domínio dos Estados. III – ADI julgada procedente em parte, para conferir interpretação conforme à Constituição ao dispositivo impugnado, a fim de que a sua aplicação fique adstrita aos aldeamentos indígenas extintos antes da edição da primeira Constituição Republicana." (ADI 255, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 16/03/2011, DJe-097 DIVULG 23-05-2011 PUBLIC 24-05-2011 EMENT VOL-02528-01 PP-00001)

5.1.2. A Lei de Terras – Lei Federal 601 de 18 de setembro de 1850 (regulamentada pelo Decreto 1.318 de 1854) definiu uma política de colonização e de legitimação das posses e propriedades privadas, conceituando as terras públicas e terras devolutas. Também autorizou o Governo a reservar terras que julgasse necessárias à colonização dos indígenas. Confira-se:

"Art. 3º São terras devolutas: § 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal. § 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei. § 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias: 1º, para a colonisação dos indigenas; Regulamento:

Art. 72 Serão reservadas terras devolutas para colonização, e aldeamento de indígenas nos districtos, onde existirem horas selvagens. Art. 73. Os Inspectores, e Agrimensores, tendo notícia da existência de taes hordas nas terras devolutas, que tiverem de medir, procuração instruir-se de seu gênio e indole, do numero provável de almas, que ellas contêm, e da faciliidade, ou dificuldade, que houver para o seu aldeamento; e de tudo informação o Director Geral das Terras Publicas, por intermédio dos Delegados, indicando o lugar mais azado para o estabelecimento do aldeamento, e os meios de o obter; bem como a extensão de terra para isso necessária. Art. 74. À vista de taes informações, o Director Geral proporá ao Governo Imperial a reserva das terras necessárias para o aldeamento, e todas as providencias para que este se obtenha. Art. 75. As terras reservadas para colonização de indígenas, e por eles distribuídas, são destinadas ao seu usofructo; e não poderão ser alienadas, em quanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder o pleno gozo delas, por assim o permitir o seu estado de civilização.

5.1.3. A Constituição de 1891 passou as terras devolutas ao domínio dos Estados federados:

Art. 64 - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. Parágrafo único - Os próprios nacionais, que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estiverem situados.

Em razão de serem suas as terras devolutas, os Estados passaram a realizar o processo de colonização no Brasil, vendendo ou doando áreas de terras e titulando-as em nome de particulares. Em alguns casos, como as áreas em faixa de fronteira, a União Federal participou deste processo, mediante convênios do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária com os Estados. Ainda, poderá ter hipóteses em que, na origem dos títulos, não figure nenhum dos Entes Públicos, pois decorrentes de, por exemplo, concessões do Império. Isto deve ser analisado caso a caso. 5.1.4. Em 1906 fora criado o Serviço de Proteção ao Índio pelo Decreto nº 8.072, de 20 de Junho de 1910:

"O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil: Resolve, de accôrdo com a lei n. 1.606, de 29 de dezembro de 1906, crear o Serviço de Protecção aos Indios e Localização de Trabalhadores Nacionaes, sujeito ao regulamento, que com este baixa assignado pelo ministro de Estado dos Negocios da Agricultura, Industria e Commercio.

Decreto Federal nº 5.484, de 27 de Junho de 1928 - buscou regular a situação dos índios nascidos no territorio nacional. Este diploma legal contemplava um Título para tratar das terras a serem destinadas para posse dos indígenas. Neste texto legal há referência à terras devolutas, pertencentes aos Estados, e ocupadas por indígenas:

TITULO II - Das terras para indios CAPITULO I - TERRAS DO PATRIMONIO NACIONAL Art. 8º O Governo Federal providenciará no sentido de passarem para o Ministerio da Agricultura, sem onus para este, as terras pertencentes ao Patrimonio Nacional, que forem julgadas necessarias ao Serviço de Proteção aos Indios. Art. 9º Para a fundação de Povoações Indigenas, fica o Governo autorizado a permutar com particulares as terras do Patrimonio Nacional, que estiverem sem applicação, ou que puderem ser alienadas, a juizo do mesmo Governo. CAPITULO II - TERRAS PERTENCENTES AOS ESTADOS Art. 10. O Governo Federal promoverá a cessão gratuita para o dominio da União das terras devolutas pertencentes aos Estados, que se acharem occupadas pelos indios, bem como a das terras da extintas aldeias, que foram transferidas ás antigas Provincias pela lei de 20 de outubro de 1887. § 1º As terras cedidas serão delimitadas em zonas correspondentes á occupação legal já existente, sendo respeitada a posse dos indios, assim como o uso e goso por eIles das riquezas naturaes ahi encontradas. § 2º Respeitada essa posse, poderá o Governo Federal empregar as ditas terras para a fundação de povoações indigenas, ou quaIquer outra fórma de localização de indios.

5.1.5. A Constituição de 1934 é a primeira que contempla dispositivo a proteger a posse dos indígenas:

Art 129 - Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem. permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las. Repete-se a norma Constitucional na Carta de 1937: Art. 154 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas. Repete-se na Constituição de 1946: Art 216 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.

Fulcrado nestes dispositivos constitucionais, houve o julgamento no Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário em Mandado de Segurança n. 44.585, interposto

por terceiro em favor de uma comunidade indígena, contra lei 1.077 de 10 de abril de 1950 do Estado do Mato Grosso que havia reduzido terras anteriormente delimitadas para usufruto dos Índios Caidiuéos pelo Decreto-lei 54 de 09 de abril de 1931 (RE 44.585, julgado em 30 de agosto de 1961, recorrente Presidente da Assembleia, Legislativa do Estado de Mato Grosso X recorrido Diretor da 5ª. Inspetoria Regional do Serviço de Proteção aos Índios):

"EMENTA: Inconstitucionalidade da Lei 1.077 de 10.04.50, de Mato Grosso, que reduziu área de terras que se achavam na posse de silvícolas (C.F., art. 216). 2) Maioria absoluta é o número imediatamente superior à metade, ainda que esta seja fracionária. Assim, o Tribunal de sete membros, a maioria absoluta é quatro (do voto do Sr. Min Luiz Gallotti)."

5.1.6. A Constituição de 1967 é a primeira que contém expressamente a regra de que as terras ocupadas pelos indígenas incluem-se entre os bens da União Federal e, ainda, repete a norma das Cartas anteriores quanto ao respeito da posse dos silvícolas:

Art 4º - Incluem-se entre os bens da União: IV - as terras ocupadas pelos silvícolas; Art 186 - É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.

No Mandado de Segurança (STF) n. 16.443/DF, julgado em 09 de novembro de 1967, IMPETRANTE SOCIEDADE ANÔNIMA SERRARIAS REUNIDAS IRMÃOS FERNANDES X PRESIDENTE DA REPÚBLICA, entendeu-se nula uma concorrência para venda de madeiras de reserva indígena, eis que bem da União Federal, sendo tal procedimento submetido à publicidade e registro:

"EMENTA: As terras ocupadas pelos silvícolas incluem-se, hoje em dia, diante dos preceitos dos arts. 4o., inciso IV, e 186 da vigente Constituição Federal entre os bens da União, competindo, pois, a esta, administração de tais bens, podia ela anular a concorrência de que os autos dão notícia, não só face ao que prescreve o art. 740, do Código de Contabilidade, como frente ao enunciado da Súmula n. 346. Segurança denegada."

5.1.7. Os dispositivos da Constituição de 1967 são repetidos na Constituição de 1969, acrescendo-se expressamente a regra cominatória de nulidade de quaisquer atos que tenham por objeto as terras ocupadas por silvícolas:

Art. 4º. Incluem-se entre os bens da União: IV - as terras ocupadas pelos silvícolas Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos têrmos que a lei federal determinar, a êles cabendo a sua posse permanente e ficando

reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de tôdas as utilidades nelas existentes. § 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas. § 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.

Em 1969, fora editada pelo Supremo Tribunal Federal a Súmula 480 que tratou da questão da propriedade das terras ocupadas por silvícolas:

"PERTENCEM AO DOMÍNIO E ADMINISTRAÇÃO DA UNIÃO, NOS TERMOS DOS ARTS. 4º, IV, E 186, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967, AS TERRAS OCUPADAS POR SILVÍCOLAS." (Aprovada na Sessão Plenária de 03/12/1969. Precedentes RE 44585 DJ DE 12/10/1961, MS 16443 DJ DE 29/3/1958, ACI 9620 DJ DE 27/6/1969)

5.1.8. O Estatuto do Índio, Lei Federal 6001 de 19 de dezembro de 1973 adveio para regular a situação jurídica dos indígenas e suas comunidades, contendo diversas disposições sobre áreas e Terras Indígenas, das quais cabe salientar as que seguem:

TÍTULO III - Das Terras dos Índios CAPÍTULO I - Das Disposições Gerais Art. 17. Reputam-se terras indígenas: I - as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4o, IV, e 198, da Constituição; II - as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título; III - as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas. Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo. CAPÍTULO II Das Terras Ocupadas Art. 22. Cabe aos índios ou silvícolas a posse permanente das terras que habitam e o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes. Parágrafo único. As terras ocupadas pelos índios, nos termos deste artigo, serão bens inalienáveis da União (artigo 4o, IV, e 198, da Constituição Federal). Art. 23. Considera-se posse do índio ou silvícola a ocupação efetiva da terra que, de acordo com os usos, costumes e tradições tribais, detém e onde

habita ou exerce atividade indispensável à sua subsistência ou economicamente útil. Art. 24. O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades. § 1° Incluem-se, no usufruto, que se estende aos acessórios e seus acrescidos, o uso dos mananciais e das águas dos trechos das vias fluviais compreendidos nas terras ocupadas. § 2° É garantido ao índio o exclusivo exercício da caça e pesca nas áreas por ele ocupadas, devendo ser executadas por forma suasória as medidas de polícia que em relação a ele eventualmente tiverem de ser aplicadas. Art. 25. O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição Federal, independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antigüidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República. CAPÍTULO III - Das Áreas Reservadas Art. 26. A União poderá estabelecer, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao usufruto e utilização das riquezas naturais e dos bens nelas existentes, respeitadas as restrições legais. Parágrafo único. As áreas reservadas na forma deste artigo não se confundem com as de posse imemorial das tribos indígenas, podendo organizar-se sob uma das seguintes modalidades: a) reserva indígena; b) parque indígena; c) colônia agrícola indígena. Art. 27. Reserva indígena é uma área destinada a servidor de habitat a grupo indígena, com os meios suficientes à sua subsistência. Art. 28. Parque indígena é a área contida em terra na posse de índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região. § 1o Na administração dos parques serão respeitados a liberdade, usos, costumes e tradições dos índios. § 2° As medidas de polícia, necessárias à ordem interna e à preservação das riquezas existentes na área do parque, deverão ser tomadas por meios suasórios e de acordo com o interesse dos índios que nela habitem. § 3o O loteamento das terras dos parques indígenas obedecerá ao regime de propriedade, usos e costumes tribais, bem como às normas administrativas nacionais, que deverão ajustar-se aos interesses das comunidades indígenas.

Art. 29. Colônia agrícola indígena é a área destinada à exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional. Art. 30. Território federal indígena é a unidade administrativa subordinada à União, instituída em região na qual pelo menos um terço da população seja formado por índios. Art. 32. São de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil. Art. 33. O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinqüenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena. Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal.

5.1.9. A Constituição Federal de 1988 traz novos dispositivos quanto aos direitos dos indígenas, criando o conceito de direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e cominando de nulos os atos que tenham por objeto estas terras:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

5.1.10. A Constituição do Estado do Rio Grande do Sul de 1989 contém previsões sobre as áreas e Terras Indígenas:

Art. 157. Na organização de sua economia, em cumprimento ao que estabelece a Constituição Federal, o Estado zelará pelos seguintes princípios: X - resguardo das áreas de usufruto perpétuo dos índios e das que lhes pertencem a justo título; Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: Art. 14. No prazo máximo de um ano da promulgação da Constituição, o Estado promoverá as ações discriminatórias das terras devolutas rurais e urbanas. (Vide Lei n.º 10.851/96) Parágrafo único. Os imóveis advindos das ações discriminatórias referidas no “caput” destinar-se-ão a projetos de assentamentos agrários e a comunidades indígenas despojadas de terras em território tradicional, na zona rural, e projetos de moradia popular, na zona urbana, ressalvada a indisponibilidade das áreas necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. Art. 32. No prazo de quatro anos da promulgação da Constituição, o Estado realizará o reassentamento dos pequenos agricultores assentados em áreas colonizadas ilegalmente pelo Estado situadas em terras indígenas.

5.1.11. Além das previsões no direito interno, há previsões sobre o tema Tratados e Convenções Internacionais, dos quais o Brasil é signatário. A primeira delas é a Convenção OIT no 107/57 (Convenção sôbre a Proteção a Integração das Populações Indígenas e outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes), internalizada em nosso País pelo Decreto Presidencial no 58.824/66:

“ Artigo 11

O direito de propriedade, coletivo ou individual será reconhecido aos membros das populações interessadas sôbre as terras que ocupem tradicionalmente. Artigo 12 1. As populações interessadas não deverão ser deslocadas de seus territórios habituais sem seu livre consentimento, a não ser de conformidade com a legislação nacional por motivos que visem à segurança nacional, no interêsse do desenvolvimento econômico do país ou no interêsse da saúde de tais populações. 2. Quando, em tais casos, se impuser um deslocamento a título excepcional, os interessados receberão terras de qualidade ao menos igual à das que ocupavam anteriormente e que lhes permitam satisfazer suas necessidades atuais e assegurar seu desenvolvimento futuro. Quando houver possibilidade de encontrar outra ocupação ou os interessados preferirem receber uma indenização em espécie ou em dinheiro, serão assim indenizados com as devidas garantias. 3. As pessoas assim deslocadas deverão ser integralmente indenizadas por tôda perda ou dano por elas sofrido em conseqüência de tal deslocamento. Artigo 13 1. as modalidades de transmissão dos direitos de propriedade e de disposições das terras, consagradas pelos costumes das populações interessadas, serão respeitadas no quadro da legislação nacional, na medida em que atendam às necessidades de tais populações e não prejudiquem seu desenvolvimento econômico e social. 2. Serão tomadas medidas para evitar que pessoas estranhas a essas populações possam prevalecer-se de seus costumes ou da ignorância dos interessados em relação a lei, com o objetivo de adquirir a propriedade ou o uso de terras pertencentes a essas populações. Artigo 14 Programas agrários nacionais deverão garantir às populações interessadas condições equivalentes às de que se beneficiam os demais setores da comunidade nacional, no que respeita: a) à concessão de terras suplementares quando as terras de que tais populações disponham sejam insuficientes para lhes assegurar os elementos de uma existência normal ou para fazer face a seu crescimento demográfico. b) à concessão dos meios necessários ao aproveitamento das terras já possuídas por tais populações.”

O outro diploma internacional é a Convenção OIT n. 169/89 (Organização Internacional do Trabalho), aprovada pelo Decreto Presidencial n. 5.051/2004, estabelece em seu art. 14:

“1. Deverão ser reconhecidos os direitos de propriedade e posse desses povos sobre as terras que ocupam tradicionalmente. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser tomadas as medidas para salvaguardar o direito

desses povos de usar terras não-ocupadas exclusivamente por eles, mas às quais tenham tradicionalmente tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse sentido, atenção especial de ser dispensada à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes. 2. Os governos deverão tomar as providências necessárias para definir as terras que esses povos ocupam tradicionalmente, e garantir a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse. 3. Procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional deverão ser instituídos para decidir sobre as reivindicações relativas a terras, formulados por esses povos. ”

1. Sobre a eficácia da convenção 169/89 da OIT no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no Relatório sobre “LA SITUACIÓN DE LOS DERECHOS HUMANOS DE LOS INDÍGENAS EN LAS AMÉRICAS” (OEA/Ser.L/VII.108; Doc. 62 - 20 octubre 2000) , assim se pronunciou:

“Los Estados partes al ratificar la Convención Americana adquieren obligaciones vinculantes.[8] La Declaración Americana es también una fuente de obligaciones jurídicas, ya sea como instrumento que define las responsabilidades de los Estados de la OEA en materia de derechos humanos dentro del marco de la Carta de la Organización, como porque numerosas de sus disposiciones se han transformado en derecho internacional consuetudinario. La Comisión y la Corte Interamericanas, (la Comisión Interamericana de Derechos Humanos con sede en Washington D.C., U.S.A.; y la Corte Interamericana de Derechos Humanos con sede en San José de Costa Rica) son los órganos centrales del sistema. La Comisión y la Corte pueden también aplicar como norma complementaria instrumentos internacionales especiales como por ejemplo, el Convenio 169 de la O.I.T. sobre “Pueblos Indígenas y Tribales en Países Independientes”.

A posição da CIDH foi ratificada pela Opinão Consultiva 1/83 da CorteIDH, em que interpretou o aritgo 64 da Convenção Interamericana, pela qual afirmara que “ la Comisión “ha invocado correctamente otros tratados concernientes a la protección de los derechos humanos…” y que excluirlos constituiría una limitación al principio de plena garantía, establecido por los Arts. 29b y 64 de la Convención Americana.” En su Opinión Consultiva 10/ la Corte ha indicado en el mismo sentido que “el derecho americano de los derechos humanos debe ser interpretado y aplicado en el cuadro del conjunto del sistema jurídico en vigor en el momento en que la interpretación tiene lugar”, lembrando que o Brasil reconheceu a competência obrigatória da Corte IDH, conforme Decreto Legislativo n.º 89, de 3 de dezembro de 1998. Importante ter-se presente, também, a nova posição adotada pelo STF quando do julgamento do RE 466.343-SP, em que, vencida a posição do Relator Min. Celso de Mello, que apontava no sentido de conferir aos tratados e convenções de direitos

humanos o status de normas constitucionais, preponderou a posição sustentada pelo Min. Gilmar Mendes, pela qual a tais instrumentos deve ser conferida força supralegal. Ainda, a Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 13/09/2007, subscrita pelo Brasil, estabelece no art. 26:

“1. Os povos indígenas têm direito as terras, territórios e recursos que tradicionalmente têm possuído ocupados ou de outra forma ocupado ou adquirido. 2. Os povos indígenas têm direitos a possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional, ou outra forma tradicional de ocupação ou utilização, assim como aqueles que tenham adquirido de outra forma. 3. Os Estados assegurarão o reconhecimento e a proteção jurídica dessas terras, territórios e recursos. O referido reconhecimento respeitará devidamente os costumes, as tradições e os sistemas de usufruto da terra dos povos indígenas. ”

5.1.12. O Supremo Tribunal Federal, na Ação Cível Originária n. 323-7, julgada em 14 de outubro de 1993, entre as partes FUNAI e UF x MINAS GERAIS E OUTROS, anula títulos de propriedade concedidos nos anos de 1974 e 1975 pelo Estado do Minas Gerais, após expulsão de comunidades indígenas. Entendeu que estava comprovada a posse dos indígenas desde, pelo menos 1910, apesar dos esforços do Estado para retirá-los do local. Entende que, pelo menos desde a Lei de Terras, as áreas ocupadas pelos silvícolas não poderiam ser consideradas devolutas e não poderiam ter sido colonizada pelo Estado. Neste feito, havia farta prova documental, histórica e antropológica quanto às diversas tentativas de expulsão das comunidades indígenas:

"EMENTA: - AÇÃO CÍVEL ORIGINARIA. TITULOS DE PROPRIEDADE INCIDENTES SOBRE ÁREA INDIGENA. NULIDADE. Ação declaratoria de nulidade de titulos de propriedade de imóveis rurais, concedidos pelo governo do Estado de Minas Gerais e incidentes sobre área indigena imemorialmente ocupada pelos indios Krenak e outros grupos. Procedencia do pedido." (ACO 323, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Tribunal Pleno, julgado em 14/10/1993, DJ 08-04-1994 PP-07239 EMENT VOL-01739-01 PP-00055)

5.1.13. Outro julgado da Suprema Corte que trata sobre a interpretação dos dispositivos constitucionais sobre a posse indígena e a propriedade da União, é o Recurso Extraordinário 219.983-3, do ano de 1998, cuja ementa se transcreve:

"BENS DA UNIÃO - TERRAS - ALDEAMENTOS INDÍGENAS - ARTIGO 20, INCISOS I E XI, DA CARTA DA REPÚBLICA - ALCANCE. As regras definidoras do domínio dos incisos I e XI do artigo 20 da Constituição Federal de 1988 não albergam terras que, em passado remoto, foram

ocupadas por indígenas." (RE 219983, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/12/1998)

Vale transcrever o seguinte trecho do voto, onde trata da temporaliedade da posse :

"O constituinte de 1988 mostrou-se preocupado com a situação dos indígenas. Nota-se a inserção , na Carta, de um capítulo sob o título "Dos Índios". Aí, previu-se: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Ao mesmo tempo, fez-se inserir no artigo 20 da Carta o definidor dos bens da União, nao só a regra linear remissia aos que, a época, lhe pertenciam e os que viessem a lhe ser atribuídos como também "as terras tradicionalmente ocoupadas pelos índios (incisos I e XI, que a União tem como vulnerados). A Esta altura cabe indagar: nas previsões das Cartas pretéritas e na atual, no que alude a "...terras tradicionalmente coupam...", é dado concluir estarem albergadas situações de há muito ultrapassadas, ou seja, as terras que foram, em tempos idos, ocupadas por indígenas? A resposta é, desenganadamente, negativa, considerado não só o princípio da razoabilidade, pressupondo-se o que normalmente ocorre como também a própria legra dos preceitos constiucionais envolvidos. Os das Cartas anteriores, que versaram sobre a situação das terras dos silvícolas, diziam da ocupação, ou seja, de um estado atual em que revelada a própria posse das terras pelos indígenas. O legislador de 1988 foi pedagógico. Após mencionar, na cabeça do art. 231, a ocupação, utilizando-se da expressão"...as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens", veio no § 1o. desse mesmo artigo, a definir o que se entende como terras tradicionalmente ocupadas. Atente-se para a definição, no que , ante a necessidade de preservar-se a segurança jurídica, mais uma vez homenageou a realidade: § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Mais do que isso, no parágrafo seguinte cuida a Carta da República de deixar explícida a necessidade de ter-se como atual, a posse: (...) Conclui-se, assim, que a regra definidora do domínio dos incisos I e XI do art. 20 da Constituição de 1988, considerada a regência sequencial da matéria sob o prisma constitucional, não alberga situações com a dos autos, em que, em tempos memoráveis, as terras foram ocupadas por indígenas. Conclusão diversa implicaria, por exemplo, asseverar que a totalidade do

Rio De janeiro consubstancia em terras da União, o que seria um verdadeiro despropósito."

5.1.14. Contra o Estado do Rio Grande do Sul tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Cível Originária n. 469-1, que discute a nulidade da redução do Toldo Indígena Ventarra pelo Estado do RS na década de 60, e que havia sido demarcado pelo ente federado no começo do século. Neste feito, houve apenas o julgamento do Relator que entendeu que as terras ocupadas pelos índios a partir da Constituição de 1891 não eram consideradas devolutas e que, portanto, pertenciam ao patrimônio da União Federal, sendo que, em caso de extinção dos aldeamentos, as áreas permaneceriam de propriedade da União Federal e não dos indígenas. Também entendeu que, no caso, estava suficientemente demonstrada a posse imemorial da área objeto do litígio por parte dos índios Kaingang, bem como a expulsão dos silvícolas e a posterior alienação de suas terras por parte do Estado. Este caso se assemelha, em muito, ao julgamento a ACO 323-7, ano de 1993, FUNAI e UF x MINAS GERAIS e outros, acima transcrita, onde trata de área que fora formalmente reconhecida pelo Estado de Minas Gerais como área destinada aos indígenas e posteriormente reduzida também por atos formais com a finalidade de colonização. O julgamento da ACO 469-1 contra o Estado do Rio Grande do Sul foi interrompido por pedido de vista, cabendo salientar os seguintes fundamentos do voto do relator Ilmar Galvão:

"Mister entretanto, estabelecer, no tempo, um marco divisório desta ocupação, com vista à composição de eventuais conflitos de posse e, consequentemente, de propriedade. A tarefa não é difícil. Com efeito, se as terras dos índios, por não serem devolutas, não passaram para o domínio dos Estados, com a Carta de 1891 e se a sua desafetação, após a promulgação da referida Carta, não teve por efeito senão sua incorporação ao domínio da União, logicamente, não pode ser outro o marco a ser fixado senão o advento da primeira Constituição republicada, sendo fora de dúvida que as terras então ocupadas pelos índios, seja por ocupação originária, seja por efeito da instituição de reserva, não decaíram do domínio da União. Somente os aldeamentos que, então, se achavam extintos e que, por isso, já anteriormente passaram à categoria de terras devolutas, conforme acima demonstrado, foram transferidos ao domínio dos Estados. (...)"

"DECISÃO: APÓS O VOTO DO RELATOR, JULGANDO PROCEDENTE, EM PARTE, O PEDIDO FORMULADO NA AÇÃO, PARA O FIM DE DECLARAR A NULIDADE DOS TÍTULOS DE PROPRIEDADE EXPEDIDOS PELO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL EM FAVOR DOS AGRICULTORES-RÉUS, OU SEUS ANTECESSORES, E BEM ASSIM, OS

RESPECTIVOS ASSENTAMENTOS IMOBILIÁRIOS REALIZADOS NO CARTÓRIO DE IMÓVEIS DE ERECHIM/RS, CONDENADOS OS RÉUS NAS CUSTAS E EM HONORÁRIOS DE ADVOGADO FIXADOS EM 20% (VINTE POR CENTO) DO VALOR DA CAUSA, DEVIDAMENTE ATUALIZADOS, PEDIU VISTA O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM. AUSENTES, JUSTIFICADAMENTE, OS SENHORES MINISTROS CELSO DE MELLO E MARCO AURÉLIO, PRESIDENTE. PRESIDÊNCIA DO SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO, VICE-PRESIDENTE. PLENÁRIO, 15.05.2002."

5.1.15. Posteriormente a este início de julgamento da ACO 469-1, houve a edição pelo Supremo Tribunal Federal da Súmula 650 (Plenário de 24/09/2003):

"OS INCISOS I E XI DO ART. 20 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO ALCANÇAM TERRAS DE ALDEAMENTOS EXTINTOS, AINDA QUE OCUPADAS POR INDÍGENAS EM PASSADO REMOTO."

Seus precedentes são julgamentos de dois recursos extraordinários em ações de usucapião (RE 219.983-3 e RE 249.705-3), onde a União Federal alegava serem bens de sua propriedade, pois eram antigos aldeamentos. O fundamento do acórdão é que, com a atual redação da Constituição Federal, no art. 231, fora privilegiada a segurança jurídica, não albergando posses de indígenas em tempos imemoriais, mas apenas as posses atuais. 5.1.16. No julgamento da Petição 3.388 – Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como marco temporal para reconhecimento da tradicionalidade da ocupação indígena a data da sua promulgação. A exceção para este entendimento são os casos em que a reocupação, na data da promulgação da Carta de 1988, somente não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não índios. Confira-se a ementa:

"11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa -- a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) -- como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da

perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das "fazendas" situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da "Raposa Serra do Sol". 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as "imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar" e ainda aquelas que se revelarem "necessárias à reprodução física e cultural" de cada qual das comunidades étnico-indígenas, "segundo seus usos, costumes e tradições" (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras "são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis" (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado "princípio da proporcionalidade". A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado "princípio da proporcionalidade", quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo. 12. DIREITOS "ORIGINÁRIOS". Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de "originários", a traduzir um direito mais antigo do que

qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como "nulos e extintos" (§ 6º do art. 231 da CF).

5.1.17. Neste mesmo julgamento, a Corte Suprema estabeleceu algumas diretrizes a serem observadas no uso e administração da área demarcada, que ficaram conhecidas como "As 19 Condicionantes":

"(…) julgou-a o Tribunal parcialmente procedente, nos termos do voto do Relator, reajustado segundo as observações constantes do voto do Senhor Ministro Menezes Direito, declarando constitucional a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e determinando que sejam observadas as seguintes condições: (i) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art. 231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da Constituição, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar; (ii) o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional; (iii) o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei; (iv) o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira; (v) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; (vi) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; (vii) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação; (viii) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; (ix) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo para tanto contar com a consultoria da FUNAI; (x) o trânsito de visitantes e pesquisadores não-

índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; (xi) devem ser admitidos o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI; (xii) o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; (xiii) a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público, tenham sido excluídos expressamente da homologação, ou não; (xiv) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, caput, Lei nº 6.001/1973); (xv) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, § 1º, Lei nº 6.001/1973); (xvi) as terras sob ocupação e posse dos grupos e das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231, § 3º, da CR/88, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; (xvii) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; (xviii) os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º, CR/88); e (xix) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, encravadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento."

Posteriormente, houve o julgamento dos embargos declaratórios opostos ao acórdão da PET 3.388, no qual são relevantes as conclusões quanto ao efeito vinculante das condicionantes aos futuros julgamentos e quanto à existência de áreas tituladas há muitos anos dentro da área demarcada e sua influência na configuração do marco temporal. 5.1.18. O efeito vinculante, em sentido formal, para todos os casos similares não fora acolhido, mas no julgamento dos embargos de declaração restou salientado que o julgamento da PET 3.388 demonstra o entendimento daquele Tribunal sobre a matéria debatida e servirá de diretriz aos demais juízes e órgãos do Poder Público. Confira-se o seguinte trecho do acórdão dos embargos de declaração:

"54. Essa circunstância, porém, não produz uma transformação da coisa julgada em ato normativo geral e abstrato, vinculante para outros eventuais

processos que discutam matéria similar. No atual estado da arte, as decisões do Supremo Tribunal Federal não possuem, sempre e em todos os casos, caráter vinculante. Não se aplica, no Brasil, o modelo de stare decisis em vigor nos países do common law, no qual as razões de decidir adotadas pelos tribunais superiores vinculam os órgãos inferiores. Embora essa regra admita exceções, entre elas não se encontram as sentenças e acórdãos proferidos em sede de ação popular, ainda que emanados deste Tribunal. 55. Dessa forma a decisão proferida na Pet 3.388/RR não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos, relativos a terras indígenas diversas. Como destacou o Ministro Carlos Ayres Britto, “a presente ação tem por objeto tão-somente a Terra Indígena Raposa Serra do Sol” (fl. 336). Vale notar que essa linha já vem sendo observada pelo Tribunal: foram extintas monocraticamente várias reclamações que pretendiam a extensão automática da decisão a outras áreas demarcadas (Rcl 8.070 MC/MS, dec. Min. Carlos Ayres Britto [RI/STF, art. 38, I], DJe 24.04.2009; Rcl 15.668/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 13.05.2013; Rcl 15.051/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 18.12.2012; Rcl 13.769/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 28.05.2012). 56. Apesar disso, seria igualmente equivocado afirmar que as decisões do Supremo Tribunal Federal se limitariam a resolver casos concretos, sem qualquer repercussão sobre outras situações. Ao contrário, a ausência de vinculação formal não tem impedido que, nos últimos anos, a jurisprudência da Corte venha exercendo o papel de construir o sentido das normas constitucionais, estabelecendo diretrizes que têm sido observadas pelos demais juízos e órgãos do Poder Público de forma geral. 58. Isto é: embora não tenha efeitos vinculantes em sentido formal, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite de superação das suas razões."

5.1.19. Com relação ao marco temporal, foram proferidos os seguintes esclarecimentos nos embargos declaratórios da PET 3.388, explicitando-se o entendimento de que, no caso em concreto, houve o reconhecimento do renitente esbulho em áreas de ocupação privada dentro da Terra Indígena demarcada:

"8. O ponto suscitado pelo embargante diz respeito à Fazenda Guanabara que, em sua avaliação, deveria ser excluída da área demarcada. Sustenta que a fazenda seria de ocupação privada desde 1918, tendo sido reconhecido o domínio particular por sentença proferida em ação discriminatória, transitada em julgado em 1983. Isso teria constado do Despacho no 80/96, do Ministro de Estado da Justiça, e só poderia ter sido alterado caso tivesse sido apontada alguma nulidade. 9. Não verifico qualquer vício quanto ao ponto, que foi expressa e claramente examinado no acórdão embargado. Já em sua ementa, o julgado destacou o caráter originário do direito dos índios, que preponderaria sobre quaisquer outros. Observou-se, ainda, que a “tradicionalidade da posse nativa [...] não

se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das ‘fazendas’ situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o co Embora essas considerações gerais se apliquem também à Fazenda Guanabara, esse imóvel em particular foi objeto de consideração específica no acórdão, tanto no voto do Relator, Ministro Carlos Ayres Britto, como nos votos dos Ministros Carlos Alberto Menezes Direito e Gilmar Mendes, cujos trechos pertinentes seguem transcritos, respectivamente, abaixo: “(...) são nulas as titulações conferidas pelo INCRA, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, assim como inválida é a ocupação da ‘Fazenda Guanabara’. Se não, veja-se: a) a autarquia federal, baseada em estudo de 1979, constante de procedimento declaratório inconcluso (ausentes portaria declaratória e decreto homologatório), sem qualquer consulta à FUNAI arrecadou terras da União como se devolutas fossem, alienando-as diretamente a particulares; b) sucede que as terras já eram, e permanecem indígenas, sendo provisoriamente excluídas nos estudos de 1979 e de 1985 apenas pra superar ‘dificuldades que teria o Órgão Tutelar em demarcar’ tal área (dificuldades consistentes em litígios dos índios frente aos não- índios); c) já a titulação da Fazenda Guanabara, alegadamente escorada em sentença com trânsito em julgado, proferida em ação discriminatória, também ela padece de vício insanável. É que a referida ação não cuidou da temática indígena, pois, equivocadamente, partiu do pressuposto de se tratar de terra devoluta. O que se comprova pelo acórdão do TRF da 1a Região, transitado em julgado, na ação de manutenção de posse que teve por autor o suposto proprietário privado. Acórdão que vocalizou o seguinte: ‘comprovada através de laudo pericial idôneo a posse indígena, é procedente a oposição para reintegrar a União na posse do bem”. Pelo que não podem prosperar as determinações do Despacho no 80/96, do então Ministro de Estado da Justiça, pois o que somente cabe aos detentores privados dos títulos de propriedade é postular indenização pelas benfeitorias realizadas de boa-fé” (fls. 340-1). “No caso concreto, segundo o autor e seus assistentes, a demarcação violou direitos particulares que se constituíram antes mesmo da vigência da política de atribuição aos índios das terras por eles ocupadas tradicionalmente. Seria o caso dos imóveis com posse ou propriedade anteriores ao ano de 1934, quando foi promulgada a primeira Constituição que assegurou o direito dos índios à posse da terra que tradicionalmente ocupavam. Antes disso, sustentam, não havia proteção quanto às terras indígenas. Mas essa argumentação não pode prosperar nos termos do art. 231 da Constituição de 1988, que reconhece um direito insuscetível de prescrição aquisitiva [...]. Ainda que assim não fosse, as imagens de satélite juntadas aos autos (fls. 5.003 a 5.011, v. 19, e fl. 9.440, v. 38) demonstram nitidamente que a ocupação das Fazendas Depósito e Guanabara-Canadá, junto ao rio Surumu,

e Iemanjá, junto ao rio Tacutu, não existia como tal antes de 1991” (fl. 385; negrito no original). “Restam, portanto, as áreas correspondentes às Vilas Água Fria, Socó, Vila Pereira e Mutum, às titulações conferidas pelo INCRA, à Fazenda Guanabara e às propriedades dos pequenos rizicultores privados que passaram a ocupar as terras a partir de 1992. Com relação a essas áreas, cumpre ressaltar que as ocupações e domínios anteriores à demarcação, como consignado pelo Ministro Menezes Direito em seu voto-vista, não prevalecem sobre o direito do índio à demarcação de suas terras, nos termos do § 6o do art. 231 da Constituição Federal [...]. Assim, ainda que algumas áreas abrangidas pela demarcação sejam ocupadas por não índios há muitas décadas, estando situadas em terras de posse indígena, o direito de seus ocupantes não poderá prevalecer sobre o direito dos índios” (fls. 812-3)."

5.1.20. Após o julgamento da PET 3.388, mas anteriormente ao julgamento de seus embargos, foram deferidas pelo Supremo Tribunal Federal duas liminares em ações civis originárias, suspendendo-se atos dos processos demarcatórios enquanto discutia-se o mérito da demarcação, em face da tese levantada pelos Estados autores (Mato Grosso do Sul e Distrito Federal) de que não haveria posse na data da Constituição Federal de 1988, entendendo os Ministros Relatores a existência de verossimilhança nas alegações. São as ações cíveis originárias ACO 1383/MS, de agosto de 2010, Min. Marco Aurélio e ACO 2224/DF, de novembro de 2013, Min. Luiz Fux. Confira-se a liminar da ACO 2224/DF:

"A leitura detida das razões apresentadas pela parte autora revela a presença, in casu, dos requisitos da fumaça do bom direito e do perigo da demora. No que concerne à fumaça do bom direito, verifica-se que o principal fundamento da irresignação da autora consiste na afirmação de que as terras objeto da demarcação não eram “tradicionalmente ocupadas” pelos índios Kayabi, haja vista que, ao tempo da promulgação da Carta de 1988, marco temporal fixado pelo constituinte para se reconhecer aos indígenas o direito às terras que habitam, os índios da referida etnia já não mais ocupavam as terras objeto da ampliação da demarcação situadas no Estado de Mato Grosso. A pretensão, nos moldes em que veiculada, encontra, em uma análise cognitiva não-exauriente, amparo na orientação desta Corte firmada, em particular no julgamento da Pet 3.388/RR, Rel. Min. Ayres Britto. No aludido precedente, restou assentado que as terras tradicionalmente indígenas seriam, somente, aquelas efetivamente habitadas por grupos indígenas na data da promulgação da Constituição Federal de 1988. A ilustrar, destaco o seguinte trecho da ementa daquele julgado:

“11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS . 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa – a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) – como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das ‘fazendas’ situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da ‘Raposa Serra do Sol” (grifos meus). É o que se infere da leitura do art. 231, § 1o, da Carta Magna, in verbis: “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1o - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Ausente esse requisito fundamental ao reconhecimento, em favor dos indígenas, do direito às referidas terras, surge como contrária à Carta Magna a ampliação de reserva já demarcada. Esse entendimento é corroborado pelo disposto no enunciado no 650 da Súmula desta Corte, assim redigido: “Súmula no 650: Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. O referido enunciado esclarece que, não obstante o art. 20 da CF/88 estabelecer que são bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, essa disposição não alcança os aldeamentos extintos, ou seja, aquelas áreas que, no passado, foram habitadas por índios mas deixaram de sê-lo. Evidenciado, também, o perigo da demora, uma vez que o registro em cartório da demarcação das terras e, consequentemente, a transferência da propriedade poderá gerar sérios atritos entre a comunidade indígena e aqueles que adquiriram as terras demarcadas de boa-fé. Em casos semelhantes, a medida liminar já foi deferida por esta Corte, in verbis:

“TUTELA ANTECIPADA - TERRAS INDÍGENAS - MANUTENÇÃO DO QUADRO FÁTICO. Ante a relevância do pedido e o risco alusivo à posse de terras, impõe-se manter a situação fática notada” (ACO 1383-MS TAR, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 18/08/2010, DJe-168, DIVULG. 09-09-2010, PUBLIC. 10-09-2010). No mesmo sentido, MS 29.293 MC/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento: 18/11/2010, Publicação: 23/11/2010, MS 28.541 MC/DF, decisão proferida em 24/12/2009 pelo Min. Gilmar Mendes, então Presidente, nos termos do art. 13, VIII, do RISTF, publicada em 2/2/2010. Ex positis, DEFIRO a antecipação de tutela requerida, ad referendum do Plenário, nos termos do art. 21, V, do RISTF, a fim de que seja obstado o registro no cartório imobiliário e, por conseguinte, a transferência definitiva da propriedade até o julgamento final desta ação."

5.1.21. Ainda, em 2012, houve o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Cível Originária 312/BA, ajuizada em 1982, onde se reconheceu a nulidade dos títulos emitidos em área ocupada por indígenas, em especial em face da perpretação de esbulho contra a comunidade indígena. No caso, tratava-se de área delimitada pelo Estado da Bahia em 1938 para ocupação dos indígenas e que, posteriormente, foi objeto de arrendamentos e de compra e venda. Confira-se a ementa:

"EMENTA: 1) AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. AÇÃO DE NULIDADE DE TÍTULOS DE PROPRIEDADE SOBRE IMÓVEIS RURAIS SITUADOS NO SUL DA BAHIA EM RESERVA INDÍGENA. 2) CONFLITO GRAVE ENVOLVENDO COMUNIDADES SITUADAS NA RESERVA INDÍGENA DENOMINADA CARAMARUMU-CATARINA-PARAGUAÇU. AÇÃO JUDICIAL DISTRIBUÍDA EM 1982 IMPONDO A OBSERVÂNCIA DO REGIME JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA CARTA DE 1967 PARA DISCIPLINAR A RELAÇÃO MATERIAL SUB JUDICE. 3) PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO EM RAZÃO DA INEXISTÊNCIA DE INDIVIDUALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE REIVINDICADA. PRELIMINAR REJEITADA À LUZ DO PEDIDO DE RECONHECIMENTO DA NULIDADE DE TÍTULOS DE PROPRIEDADE EM ÁREA INDÍGENA MERCÊ DA EXISTÊNCIA DE FARTA DOCUMENTAÇÃO FORNECIDA PELA FUNAI QUE VIABILIZOU A REALIZAÇÃO DOS TRABALHOS PERICIAIS. 4) DEMARCAÇÃO DA ÁREA SUB JUDICE OCORRIDA EM 1938 DESACOMPANHADA DE HOMOLOGAÇÃO. INCERTEZA ORIUNDA DA AUSÊNCIA DE HOMOLOGAÇÃO DA DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS RELEGANDO A COMUNIDADE A UMA SITUAÇÃO FRÁGIL E A UM AMBIENTE DE VIOLÊNCIA E MEDO NA REGIÃO. 5) A HOMOLOGAÇÃO AUSENTE, DA DEMARCAÇÃO ADMINISTRATIVA REALIZADA EM 1938, NÃO INIBE O RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE RESERVA INDÍGENA NO LOCAL, ORIGINANDO A IMPOSSIBILIDADE DE SE TER POR VÁLIDOS ATOS JURÍDICOS FORMADOS POR PARTICULARES COM O ESTADO DA BAHIA. 6) AUSÊNCIA DE DÚVIDAS QUANTO À

PRESENÇA DE ÍNDIOS NA ÁREA EM LITÍGIO DESDE O PERÍODO ANTERIOR AO ADVENTO DA CARTA DE 1967 EM FACE DOS REGISTROS HISTÓRICOS QUE REMONTAM A MEADOS DO SÉCULO XVII. 7) O RECONHECIMENTO DO DIREITO À POSSE PERMANENTE DOS SILVÍCOLAS INDEPENDE DA CONCLUSÃO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃO NA MEDIDA EM QUE A TUTELA DOS ÍNDIOS DECORRE, DESDE SEMPRE, DIRETAMENTE DO TEXTO CONSTITUCIONAL. 8) A BAIXA DEMOGRAFIA INDÍGENA NA REGIÃO EM CONFLITO EM DETERMINADOS MOMENTOS HISTÓRICOS, PRINCIPALMENTE QUANDO DECORRENTE DE ESBULHOS PERPETRADOS POR FORASTEIROS, NÃO CONSUBSTANCIA ÓBICE AO RECONHECIMENTO DO CARÁTER PERMANENTE DA POSSE DOS SILVÍCOLAS. A REMOÇÃO DOS ÍNDIOS DE SUAS TERRAS POR ATOS DE VIOLÊNCIA NÃO TEM O CONDÃO DE AFASTAR-LHES O RECONHECIMENTO DA TRADICIONALIDADE DE SUA POSSE. IN CASU, VISLUMBRA-SE A PERSISTÊNCIA NECESSÁRIA DA COMUNIDADE INDÍGENA PARA CONFIGURAR A CONTINUIDADE SUFICIENTE DA POSSE TIDA POR ESBULHADA. A POSSE OBTIDA POR MEIO VIOLENTO OU CLANDESTINO NÃO PODE OPOR-SE À POSSE JUSTA E CONSTITUICONALMENTE CONSAGRADA. 9) NULIDADE DE TODOS OS TÍTULOS DE PROPRIEDADE CUJAS RESPECTIVAS GLEBAS ESTEJAM LOCALIZADAS DENTRO DA ÁREA DE RESERVA INDÍGENA DENOMINADA CARAMURU-CATARINA-PARAGUAÇU, CONFORME DEMARCAÇÃO DE 1938. AQUISIÇÃO A NON DOMINO QUE ACARRETA A NULIDADE DOS TÍTULOS DE PROPRIEDADE NA REFERIDA ÁREA INDÍGENA, PORQUANTO OS BENS TRANSFERIDOS SÃO DE PROPRIEDADE DA UNIÃO (SÚMULA 480 DO STF: Pertencem ao domínio e administração da União, nos termos dos artigos 4, IV, e 186, da Constituição Federal de 1967, as terras ocupadas por silvícolas). 10) A IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO ERIGIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL IMPÕE QUE AS AÇÕES JUDICIAIS PENDENTES EM QUE SE DISCUTE O DOMÍNIO E/OU A POSSE DE IMÓVEIS SITUADOS NA ÁREA RECONHECIDA NESTE PROCESSO COMO RESERVA INDÍGENA SEJAM EXTINTAS SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO NOS TERMOS DO ART. 267, INCISO V, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. 11) O RESPEITO ÀS COMUNIDADES ÍNDIGENAS E À SUA CULTURA IMPLICA RESTE PRESERVADA A POSSIBILIDADE DE SUPERVENIENTE INCLUSÃO, PELA UNIÃO, ATRAVÉS DE DEMARCAÇÃO ADMINISTRATIVA OU MESMO JUDICIAL, DE NOVAS ÁREAS NA RESERVA INDÍGENA CARAMURU-CATARINA-PARAGUAÇU ALÉM DA JÁ RECONHECIDA NESTES AUTOS. 12) DEVERAS, A EVENTUAL AMPLIAÇÃO DA ÁREA ANALISADA NESTES AUTOS EM RAZÃO DE DEMARCAÇÃO SUPERVENIENTE A ESTE JULGAMENTO DEMANDARÁ COMPROVAÇÃO DE QUE O ESPAÇO GEOGRÁFICO OBJETO DE EVENTUAL AMPLIAÇÃO CONSTITUÍA TERRA TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS QUANDO DA

PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 13) AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE APENAS QUANTO AOS TÍTULOS DE PROPRIEDADE E REGISTROS IMOBILIÁRIOS REFERENTES AOS IMÓVEIS ABRANGIDOS PELO ESPAÇO GEOGRÁFICO DEMARCADO EM 1938 E COMPROVADO NESTES AUTOS, TOTALIZANDO APROXIMADAMENTE 54 MIL HECTARES. SOB ESSE ÂNGULO, A AÇÃO FOI JULGADA PROCEDENTE PARA RECONHECER A CONDIÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DE TERRA INDÍGENA SOBRE A TOTALIDADE DA ÁREA DEMARCADA EM 1938 E TOTALIZANDO CERCA DE 54 MIL HECTARES CORRESPONDENTES À RESERVA CARAMARU-CATARINA-PARAGUAÇU, E DECLARAR A NULIDADE DE TODOS OS TÍTULOS DE PROPRIEDADE CUJAS RESPECTIVAS GLEBAS ESTEJAM LOCALIZADAS NA ÁREA DA RESERVA. 14) AS RECONVENÇÕES RELATIVAS ÀS TERRAS SITUADAS NO INTERIOR DA ÁREA DEMARCADA EM 1938 IMPROCEDEM. CONDENAÇÃO DESSES RÉUS RECONVINTES, CUJOS TÍTULOS FORAM ANULADOS, A PAGAREM 10% (DEZ POR CENTO) SOBRE O VALOR ATUALIZADO DA CAUSA E COMPENSADOS OS HONORÁRIOS DOS OUTROS RECONVINTES QUE DECAÍRAM DA RECONVENÇÃO." (ACO 312, Relator(a): Min. EROS GRAU, Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 02/05/2012, DJe-054 DIVULG 20-03-2013 PUBLIC 21-03-2013 EMENT VOL-02683-01 PP-00001)

5.1.22. Os julgamentos do Supremo Tribunal Federal, portanto, vêm apontando para o entendimento de que as terras tradicionalmente ocupadas de que trata o art. 231 e seus parágrafos da Constituição Federal não são aquelas imemorialmente ocupadas, mas sim exige posse atual, na data da promulgação da Carta Magna. A exceção desta regra são os casos de renitente esbulho por parte de não índios. Portanto, mesmo em áreas não ocupadas na data da promulgação da Constituição Federal de 1988 é possível que exista o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação, desde que fique comprovada a exceção estabelecida: o renitente esbulho. O conteúdo desta exceção não resta claro e acabará sendo analisado e discutido caso a caso, observadas as particularidades e histórico de cada área, o que não permite uma solução fácil para nenhuma situação de área reivindicada ou em processo de reconhecimento.

5.2. DA ABRANGÊNCIA DO ART. 32 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL DE 1989

"Art. 32. No prazo de quatro anos da promulgação da Constituição, o Estado realizará o reassentamento dos pequenos agricultores assentados em áreas colonizadas ilegalmente pelo Estado situadas em terras indígenas."

A previsão da Constituição Estadual contida no art. 32 do Ato das Disposições Transitórias fora elaborada a partir de constatações e encaminhamentos propostos pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul constituída no ano de 1967 com a finalidade de apurar a real situação dos Postos Indígenas do Estado do Rio Grande do Sul e de indicar soluções para o problema social do índio e dos Agricultores chamados “sem terra”. As conclusões desta comissão parlamentar de inquérito foram aprovadas pela Resolução 1.605/1968 e apontavam para a necessidade do Estado do Rio Grande do Sul devolver as áreas que havia demarcado como Toldos aos indígenas, entre outras providências, cabendo transcrever sua parte final:

“R E S O L V E 1º - Reconhecer o direito de posse e propriedade dos índios nas terras dos toldos demarcados em 1913; 2º - Considerar os atos administrativos de 20 de março de 1941 e de 16 de fevereiro de 1962, exarado no processo n. 15 0703/61, e os atos legislativos – dec. 658, de 10 de março de 1949 – dec. 3 381, de 6 de janeiro de 1958 – dec. 13 795, de 10 de julho de 1962, como contrários às normas constitucionais vigentes desde 1934, e as leis federais e estaduais que fixaram os direitos dos índios sobre as terras ocupadas e demarcadas; 3º - Recuperar, progressivamente, todas as terras dos índios e reincorporar as áreas destinadas às “Reservas Florestais” desde logo; 4º - Indenizar os índios pela perda do Tôldo Serrinha; 5º - Considerar delicada a situação dos intrusos de Nonoai e conceder-lhes terras em outro local e meios, inclusive doação de recursos imediatos; 6º – Em caso de necessidade, buscar amparo do IBRA. 7º - Remeter cópia do Relatório e dos atos administrativos, dos decretos e leis impugnados a F.N.I., Conselho Nacional de Proteção aos Índios, Ministério da Justiça, ao Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, ao Procurador Geral da República, Exmo. Sr. Governador do Estado e ao Exmo. Sr. Presidente da República. 8º - O Estado e a União, na medida de suas responsabilidades, deverão responder pelos prejuízos causados a possuidores de boa fé.”

Para entender o contexto em que foi elaborada tal conclusão, cabe ressaltar alguns aspectos históricos. Entre os anos de 1911 e 1918, o Chefe da Diretoria de Terras e Colonização da Secretaria do Estado, Torres Gonçalves percorreu o Estado para identificar as áreas onde havia ocupação indígena, tendo delimitado onze Toldos, conforme apurado no Relatório do Grupo de Trabalho do Decreto Estadual n. 37.118/1996.

Posteriormente, em processo de colonização, o Estado reduziu, por leis, decretos ou outros atos administrativos, algumas destas onze áreas demarcadas, com a finalidade de assentar colonos. O reconhecimento deste equívoco, em especial diante das conclusões da CPI do Índio de 1968 acima transcritas, é que culminou com a inclusão da norma do art. 32 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias na Constituição Estadual (obrigação de reassentamento de pequenos agricultores em áreas ilegalmente colonizadas). Ou seja, a norma fora criada diante do conhecimento dos erros históricos do Estado do Rio Grande do Sul na questão indígena, quando reduziu os Toldos demarcados pelo próprio Estado. Erros já reconhecidos pelos parlamentares gaúchos nas conclusões da CPI do Índio de duas décadas antes. Portanto, as Terras Indígenas, áreas reconhecidas de ocupação tradicional pela FUNAI e UNIÃO, por aplicação do § 1º. do art. 231 da Constituição Federal, não guardam correlação com os Toldos Indígenas demarcados pelo Estado do Rio Grande do Sul no início do século passado e que foram ilegalmente colonizados, sendo estas últimas áreas de que trata o art. 32 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Estadual e nas quais o Estado do Rio Grande do Sul reconheceu a responsabilidade por reassentamento ou indenização. Após a promulgação da Carta Estadual, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, a fim de dar cumprimento ao citado dispositivo da Constituição Estadual, criou um Grupo de Trabalho pelo Decreto Estadual n. 37.118/1996 que realizou estudos para fornecer subsídios ao governo relativamente à QUESTÃO INDÍGENA no Rio Grande do Sul. Este Grupo de Trabalho produziu um relatório, do qual cabe citar o seguinte trecho:

“ I – HISTORICO (...) Em julho de 1908 (Correio do Povo de 26/07/1908), o Presidente do Estado, Dr. Carlos Barbosa, recebeu dois caciques índios coroados com aldeamento na Serrinha em Nonoai; os chefes indígenas disseram ao Presidente que sua tribo, vivendo naquela região desde tempos imemoriais, há algum tempo, vinha sendo constantemente, perseguida por intrusos que pretendiam a expulsão dos índios. O Dr. Carlos Barbosa, determinou ao Secretário de Obras Públicas Dr. Cândido José de Godoy, presente ao encontro, que tomasse as providências necessárias à demarcação das terras indígenas. Coube à Diretoria de Terras e Colonização, dirigido por Carlos Torres Gonçalves cumprir o compromisso assumido pelo Governo do Estado. (...) Em relatórios anuais, encaminhados à Secretaria da Agricultura até o ano de 1926, Gonçalves vai informando o andamento do processo demarcatório, concluído em 1918 e da árdua luta para garantir as terras dos kaingang, resultando demarcados os seguintes todos:

Toldo Ligeiro 4.517,86 ha. Toldo Fachinal (Cacique Doble) 5.676,33 ha. Toldo Caseros 1.003,74 ha. Toldo Carreteiro 600,72 ha. Toldo Nonohay 34.907,61 ha. Toldo Ventarra 753,25 ha. Toldo Inhacorá 5.859,00 ha. Toldo Guarita 23.183,00 ha. Toldo Votouro 3.100 ha. Toldo Guarani (Votouro) 741,00 ha. Toldo Serrinha 11.950,00 ha. (Relatórios da DTC e informação do IGRA ao Dr. Procurador-Geral do Estado – Processo N. 5420/63) (...)”

Ao final deste relatório, O Grupo de Trabalho aponta as áreas que merecem solução por parte do Estado, por terem sido demarcadas em favor dos indígenas e, posteriormente, reduzidas: Votouro-Kaingang, Votouro-Guarani, Ventarra, Monte Caseros, Serrinha e Nonoai. Ou seja, o art. 32 do ADCT da Constituição Estadual, com a previsão de reassentamento de áreas ilegalmente colonizadas pelo Estado, buscou solucionar e reverter tais reduções, bem como resolver o impasse entre agricultores e indígenas nestes casos. Já a possibilidade de opção entre o reassentamento e a indenização fora uma interpretação construída, inicialmente, pelos Pareceres desta Procuradoria-Geral do Estado de n. 12.733 e 13.135, pois entendeu-se que o reassentamento não poderia ser imposto unilateralmente. Posteriormente, a possibilidade de indenização fora positivada na lei do FUNTERRA (Lei Estadual 7.916/1984) com a nova redação do art. 6º.-A dada, sucessivamente, pelas Leis Estaduais 11.881/2002 e 13.973/2012. Até a presente data, o Estado do Rio Grande do Sul já indenizou total ou parcialmente as áreas de Serrinha, Nonoai, Monte Caseros, Ventarra, Votouro e Guarani-Votouro, havendo pedidos administrativos de indenização ainda pendentes de atendimento.

5.3. DAS OUTRAS FORMAS DE DESTINAÇÃO DE ÁREAS PARA USUFRUTO DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS Existem outras formas, além da demarcação de terras por tradicionalidade, para que o Poder Público possa destinar áreas necessárias para a atendimento das populações indígenas. 5.3.1. No Estatuto do Índio, Lei Federal 6001/1973, há uma diferenciação das áreas indígenas em quatro tipos (vide dispositivos legais citados no tópico 5.1):

- Terras Ocupadas São aquelas com posse efetiva e permanente por índios que as habitam, independentemente de demarcação, definindo como bens inalienáveis da União. Essas são as terras a que se refere o caput do art. 231, da CF, que visa regularizar as áreas já ocupadas tradicionalmente e ainda não demarcadas. - Áreas Reservadas O Estatuto do Índio define que a União pode estabelecer áreas indígenas reservadas através de compra ou desapropriação, em qualquer lugar. Não se confunde esse tipo com as de posse imemorial, tradicionalmente ocupadas. Consoante previsões do Estatuto do Índio, as áreas reservadas podem ser: - reserva indígena: é uma área destinada a servidor de habitat a grupo indígena, com os meios suficientes à sua subsistência. - parque indígena: é a área contida em terra na posse de índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região. - colônia agrícola: indígena é a área destinada à exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional. - Território Federal Indígena Nos termos da definição do Estatuto do Índio, é a unidade administrativa subordinada à União, instituída em região na qual pelo menos um terço da população seja formado por índios. Entende-se que este tipo não foi recepcionado o tipo pela Constituição Federal, que não foi implementado, pois é inviável em termos administrativos. - Terras de Domínio Indígena Consoante art. 32 do Estatuto do Índio, são de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil.

Assim, consoante citado, a União Federal e a FUNAI podem comprar ou desapropriar áreas por interesse social para formação de Áreas Reservadas, não sendo sua atuação limitada à demarcação por tradicionalidade.

5.3.2. Outrossim, a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul prevê como destinatárias prioritárias de terras públicas as comunidades indígenas despojadas de terras em seu território tradicional:

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: Art. 14. No prazo máximo de um ano da promulgação da Constituição, o Estado promoverá as ações discriminatórias das terras devolutas rurais e urbanas. (Vide Lei n.º 10.851/96) Parágrafo único. Os imóveis advindos das ações discriminatórias referidas no “caput” destinar-se-ão a projetos de assentamentos agrários e a comunidades indígenas despojadas de terras em território tradicional, na zona rural, e projetos de moradia popular, na zona urbana, ressalvada a indisponibilidade das áreas necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.

5.3.3. Também os Estados podem desapropriar áreas por utilidade pública para assentamento de comunidade indígena. Isto já fora feito Estado do Rio Grande do Sul, com o Decreto Estadual n. 40.481/2000, no Município de Barra do Ribeiro, na localidade de Coxilha da Cruz. Este ato estadual fora questionado judicialmente por um proprietário afetado, ao argumento de que o ente federado não poderia atuar nesta temática, pois seria de competência exclusiva da União Federal e da FUNAI. A competência do ente federado fora confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça que considerou válido o decreto expropriatório para assentamento de comunidade indígena. Confira-se:

"CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DESAPROPRIAÇÃO DE IMÓVEL RURAL PELO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PARA ASSENTAMENTO DE COMUNIDADE INDÍGENA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA (DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO, CUJA INDENIZAÇÃO É PAGA COM TÍTULOS DA DÍVIDA PÚBLICA - CF, ART.184), NEM DE PROCEDIMENTO DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS (TAMBÉM DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO - CF, ART. 231). EXPROPRIAÇÃO, MEDIANTE PRÉVIO E JUSTO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO EM DINHEIRO, QUE VISA A SOLUCIONAR GRAVE PROBLEMA SOCIAL, CONSISTENTE NA FALTA DE LOCAL PARA ASSENTAR COMUNIDADE INDÍGENA QUE ATUALMENTE VIVE À BEIRA DE RODOVIA, EM SITUAÇÃO DE MISERABILIDADE. ATRIBUIÇÃO DE TODOS OS ENTES FEDERADOS, NOS TERMOS DO ART. 2º DO ESTATUTO DO ÍNDIO (LEI 6.001/73). ENQUADRAMENTO ENTRE AS HIPÓTESES DE UTILIDADE PÚBLICA, LISTADAS NO DECRETO-LEI 3.365/41, NOMEADAMENTE EM SEU ART. 5º, LETRAS E (CRIAÇÃO E MELHORAMENTO DE CENTROS DE POPULAÇÃO) E G (ASSISTÊNCIA PÚBLICA). RECURSO ORDINÁRIO IMPROVIDO."

(RMS 13621/RS, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/10/2005, DJ 28/11/2005, p. 187)

5.4. DA JUSTA COMPENSAÇÃO NAS ÁREAS DEMARCADAS POR TRADICIONALIDADE Superadas as discussões sobre a ocupação tradicional da Terra Indígena, ou seja, em sendo analisado que o ato declaratório da tradicionalidade observou os contornos do art. 231 da Constituição Federal que vêm sendo estabelecidos pela Suprema Corte, entendemos que se pode avançar na discussão sobre a justa compensação aos proprietários atingidos. 5.4.1. A Constituição Federal de 1988, ao definir o que seriam as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, cujo conteúdo reportamo-nos ao exposto no ítem 5.1. supra, fulmina de nulidade os atos de ocupação, domínio e posse de tais terras e veda pretensão indenizatória contra a União, salvo benfeitorias derivadas de ocupação de boa fé. Confira-se os seguintes parágrafos do art. 231:

§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

Ocorre que, atualmente, os processos demarcatórios estão avançado sobre áreas tituladas em favor de particulares há várias décadas. Dentre estes títulos, identificam-se diversos concedidos pelos Estados, ou pela própria União, no processo de colonização. Salienta-se que estes fatos devem ser verificados no caso em concreto, uma vez que ocorrem hipóteses de títulos de propriedade que não têm origem na concessão pelos Entes Públicos. Negar-se qualquer indenização a estes proprietários e adquirentes de boa-fé nos casos das demarcações por tradicionalidade, além de ser uma das grandes fontes dos conflitos existentes nos processos demarcatórios, não reflete a verdadeira justiça. Esta foi uma das primeiras conclusões e consenso deste Grupo de Trabalho. Mas a tarefa de definição

de caminhos para possibilitar as compensações pela perda do título é árdua, bem como deve ser precedida da discussão sobre a tradicionalidade da ocupação indígena e seu dimensionamento em termos de extensão territorial. A par da disposição constitucional expressa do § 6º do art. 231 da Constituição Federal, se o Estado (aqui entendido em seu sentido amplo) realizou o processo de colonização e titulou áreas de terras em favor de particulares, os quais, não raramente, efetuaram pagamentos para se tornarem proprietários da área (ao próprio Estado ou a outro proprietário na cadeia dominial), não se pode pretender que estes particulares respondam individualmente pelas opções históricas do Estado brasileiro com relação ao processo de colonização e de integração das comunidades indígenas, sem respeito às suas diferenças. 5.4.2. Uma possível solução e a que encontra maior dificuldade de trânsito, é a legislativa, que alteraria o dispositivo constitucional que veda as indenizações da terra nua. Ainda, na via legislativa, entendemos que há soluções que podem ser feitas por lei federal, de forma a conferir um tratamento diferenciado a pequenos proprietários rurais que se enquadrariam na política de reassentamento de competência do INCRA. Como o reassentamento não pode ser imposto unilateramente, devendo ser aceito por seu beneficiário, poderia ser construída solução legislativa para permitir a substituição do reassentamento promovido pelo INCRA por pagamento do valor equivalente ao da terra nua. Em especial se considerado que, na prática, os reassentados no nosso Estado dificilmente serão recolocados na mesma região de onde foram retirados, na qual possuem familiariedade com os métodos produtivos, com as características de clima e solo, bem como laços afetivos e familiares. 5.4.3. Outra forma para viabilizar as indenizações fora detalhada pela "Comissão sobre a questão indígena em Mato Grosso do Sul" instituída pelo Conselho Nacional de Justiça pela Portaria 53 de 08/04/2013, cujo relatório foi anexado ao presente trabalho, onde se destaca o seguinte trecho:

“Fundadas divergências sobre a incidência automática da sanção de nulificação (art. 231, § 6º, da Constituição Federal) em casos de terras reconhecidas como tradicionalmente ocupadas por indígenas, mas que estão na posse e propriedade de não-índios há vários anos por conta de titulações feitas pelo próprio Estado. Incidência do principio da proteção da confiança legítima como fator legitimador da reparabilidade do ilícito estatal praticado em passado remoto (art. 37, § 6º, da Constituição Federal). Imprescindibilidade da presença da boa-fé subjetiva.”

Tal relatório do CNJ também faz referência ao Parecer n. 136/2010/CDP/GLEG/CONJUR/MJ, elaborado pela Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça (que não representa opinião conclusiva da Advocacia-Geral da União e não

possui caráter vinculativo para a Administração Pública, mas tratou da análise de um caso em concreto), nos seguintes termos:

“O referido Parecer analisou o processo administrativo nº 08003.000606/2010-15, referente à Ação de Indenização nº 2009.60.02.004338-9/MS, em que proprietários de imóvel rural pertencente ao Projeto Governamental de Colonização e de Assentamento de Agricultores em unidades agrícolas familiares – “Colônia Agrícola Nacional de Dourados/MS”, que adquiriram terras de boa-fé, por escritura pública outorgada pelo Poder Público, pleiteiam reparação de danos em razão de a área ter sido demarcada como terra indígena.”

Segue o relatório do CNJ:

“ A conclusão do Parecer nº 136/2010, fundamentada nos institutos do Direito Civil e nos artigos 37, §6º, e 231 da Constituição, em síntese, deu-se no sentido de que é possível a responsabilização da União por transferência de terras supostamente dominicais para particulares, sendo a indenização limitada ao pagamento da terra nua, sujeita à prescrição quinquenal e destinada somente aos adquirentes de boa fé.”

O Parecer 136/2010/CDP/GLEG/CONJUR/MJ tem a seguinte ementa, donde se verifica que fundamento da responsabilização é a titulação de áreas em favor de particulares feita pela União, sendo este ato apontado como nexo de causalidade a fundamentar a indenização:

"I – Análise da possibilidade de serem indenizados os possuidores e os proprietários das terras posteriormente demarcadas como indígenas, tendo em vista que adquiriram a posse plena e justa ou a propriedade da terra de boa-fé, por escritura pública outorgada pela União que comprove a posse, em decorrência de erro da Administração Pública Federal. II- Não se trata da responsabilização decorrente da nulidade do ato jurídico, que se encontra vedado pelo §6º do art. 231 da CF/88. Ao revés, cuida-se de verificar a plausibilidade jurídica em se reparar dano causado pela União Federal em transferir terras supostamente dominicais para particulares, tendo em vista que o ato provocou dano ao particular dando ensejo a reparação, nos moldes do §6º do artigo 37 da CF. III – É possível o pagamento de indenização, no valor da terra nua, desde que restem atendidos os seguintes requisitos: a) terra supostamente dominical tenha sido transferida onerosa ou gratuitamente pela União Federal a terceiro, por meio de escritura pública ou outro documento público idôneo que comprove a posse plena, justa e de boa-fé, b) a propriedade alienada em momento posterior seja demarcada e homologada pelo Presidente da República como terra indígena, nos termos do art. 19 da Lei n. 6.001/73 e dos artigos 5º e 6º do Decreto n. 1.775/96.

IV. Necessidade de submissão do entendimento à Consultoria-Geral da União, após manifestação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a fim de que, aquele órgão de direção superior do consultivo, acaso concorde, consolide o entendimento e submeta-o à chancela do Exmo. Sr. Presidente da República."

Portanto, a construção jurídica do Conselho Nacional de Justiça fundamenta-se em indenização por atos ilícitos e elege como nexo causal do dano a venda de áreas supostamente dominiais a particulares. Esta construção apenas serviria para a responsabilização daquele que, ilegitimamente, vendeu e emitiu o título de propriedade: se a União, a responsabilidade seria desta e se o Estado federado, deste. 5.4.4. Mas tal análise decorre de uma visão simplista da questão, pois não identifica as verdadeiras causas, além de não abarcar todas as situações, pois haverá hipóteses em que nenhum dos Entes da federação figurará como outorgante do título originário. Isto porque não foram apenas os Estados federados que realizaram, por sua vontade e determinação, o processo de colonização, mas a União Federal fora grande incentivadora e não resguardou os direitos das comunidades indígenas, uma vez que a orientação da política nacional indigenista, desde a época da colonização, era de integração das comunidades indígenas ao modo de vida dos não índios. Para demonstrar a orientação da política nacional indigenista, vale retomar a transcrição do Decreto Imperial n. 426/1845, transcrito no ítem 5.1 supra, que demonstra a orientação da atuação do Estado desde o Brasil colônia. Também podemos citar a criação do Serviço de Proteção aos Índios tinha como objetivo de "civilizar" as populações indígenas.

Para entendimento deste contexto, vale transcrever o texto publicado no site da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, que traz a história do Serviço de Proteção aos Índios e as técnicas utilizadas época por aquele órgão federal (em http://www.funai.gov.br/ index.php/servico-de-protecao-aos-indios-spi?limitstart=0):

"O Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN, a partir de 1918 apenas SPI) foi criado, a 20 de junho de 1910, pelo Decreto nº 8.072, tendo por objetivo prestar assistência a todos os índios do território nacional (Oliveira, 1947). O projeto do SPI instituía a assistência leiga, procurando afastar a Igreja Católica da catequese indígena, seguindo a diretriz republicana de separação Igreja-Estado. A idéia de transitoriedade do índio (Oliveira, 1985) orientava esse projeto: a política indigenista adotada iria civilizá-lo, transformaria o índio num trabalhador nacional. Para isso, seriam empregados métodos e técnicas educacionais controlando esse processo, baseado em mecanismos de nacionalização dos povos indígenas. Os regulamentos e regimentos do SPI estiveram voltados para o controle dos processos econômicos envolvendo os índios, estabelecendo uma tipologia para

disciplinar as atividades a serem desenvolvidas nas áreas. Era uma classificação que definia o modo de proceder e as intervenções a serem adotadas, disciplinando a expansão da cidadania. A origem do SPI estava nas redes sociais que ligavam os integrantes do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), Apostolado Positivista no Brasil e Museu Nacional, pois o MAIC previu desde a sua criação a instituição de uma agência de civilização dos índios. As atividades das Comissões de Linhas Telegráficas em Mato Grosso deram notariedade a Cândido Mariano da Silva Rondon. Ele e outros militares positivistas que integravam redes de relações políticas regionais e nacionais (Bigio, 2003), vinculadas a instituições civis e aparelhos governamentais, sediados na Capital Federal, se envolveram numa polêmica pública relativa à "capacidade ou não de evolução dos povos indígenas" (Lima, 1987, p. 172). A partir de 1908, Rondon propôs que fosse criada uma agência indigenista do Estado brasileiro tendo por finalidades: a) estabelecer de uma convivência pacífica com os índios; b) garantir a sobrevivência física dos povos indígenas; c) estimular os índios a adotarem gradualmente hábitos "civilizados"; d) influir "amistosamente" na vida indígena; e) fixar o índio à terra; f) contribuir para o povoamento do interior do Brasil; g) possibilitar o acesso e a produção de bens econômicos nas terras dos índios; h) empregar a força de trabalho indígena no aumento da produtividade agrícola; i) fortalecer as iniciativas cívicas e o sentimento indígena de pertencer à nação brasileira (Lima, 1987). As iniciativas do SPI envolviam a intervenção na vida indígena através de um ensino informal, a partir das necessidades criadas, evitando-se influenciar a organização familiar. O objetivo era impedir conflitos entre diferentes povos enquanto o SPI introduzia inovações culturais, prevendo possíveis mudanças nos locais de habitação dos índios. Foram estimuladas mudanças no trabalho indígena com a difusão de novas tecnologias agrícolas e o ensino da pecuária, além da arregimentação de índios para os trabalhos de conservação das linhas telegráficas (Lima, 1987). A experiência de Rondon no trato com povos indígenas e suas idéias positivistas sobre os índios, convergentes com os projetos de colonização e povoamento definidos na criação do MAIC, originaram o convite que o tornou primeiro diretor do SPI. Dessa forma, foi instaurado um novo poder estatizado que assegurava o controle legal das ações incidentes sobre os povos indígenas. Esse poder foi formalizado na malha administrativa do SPI, a partir de um código legal (regimentos, decretos, código civil, etc.). Para a administração da vida indígena foi formalizada uma definição legal de índio, através do Código Civil de 1916 e do Decreto nº 5.484, de 1928. Os indígenas tornaram-se tutelados do Estado brasileiro, um direito que implicava num aparelho administrativo único, mediando as relações índios – Estado – sociedade nacional. A terra, a representação política e o ritmo de vida foram administrados por funcionários estatais, com os índios adotando uma indianidade genérica (Oliveira, 2001).

Os indigenistas do SPI trabalharam em diferentes tipos de postos indígenas (de atração, de criação, de nacionalização, etc.), assim como em povoações e centros agrícolas. Dependendo de recursos financeiros e políticos, o SPI adotou um quadro funcional heterogêneo, envolvendo desde militares positivistas a trabalhadores rurais sem qualquer formação. A pedagogia nacionalista empregada por esses agentes controlava as demandas indígenas, mas podia resultar em situações de fome, doenças e depopulação, contrárias aos objetivos do Serviço. A ação do SPI foi marcada por contradições identificadas como "paradoxos indigenistas" (Oliveira, 1988), pois tinha por objetivo respeitar as terras e a cultura indígena, mas agia transferindo índios e liberando territórios indígenas para colonização, impondo uma pedagogia que alterava todo o sistema produtivo indígena. AS INTERVENÇÕES DO SPI As principais iniciativas do SPI desde sua criação estavam voltadas para a pacificação e sedentarização de grupos indígenas em áreas de colonização recente. Em São Paulo, Paraná, Espírito Santo, Mato Grosso e outras regiões, foram instaladas equipes de atração e inúmeros postos indígenas. Os inspetores do órgão aplicavam a técnica de contato difundida por Rondon, mantendo atitudes defensivas até estabelecer amizade com os índios e consolidar a pacificação. A partir de então, era estabelecida uma negociação com os governos estaduais na tentativa de garantir uma reserva de terras para a sobrevivência física dos índios. De forma progressiva, introduziam-se atividades educacionais voltadas para a produção econômica e atendiam-se, precariamente, às condições sanitárias dos índios. ATRAÇÃO E PACIFICAÇÃO As táticas e técnicas de contato com povos indígenas, empregadas nas atividades de atração e pacificação do SPI, foram paulatinamente desenvolvidas por Rondon, no âmbito das Comissões de Linhas Telegráficas, desde o final do século XIX. Eram práticas filiadas a uma longa genealogia que tinha origem nos contatos dos jesuítas com os povos indígenas desde o séc. XVI. Uma das principais táticas, em um cerco pacífico de povos indígenas (Lima, 1995), era a de identificar-se como amigo, isto é, como um interlocutor de confiança. Nas atividades de atração foram adotadas as seguintes técnicas: 1. A turma de atração deveria ser constituída por trabalhadores esclarecidos a respeito dos problemas do contato; 2. Chefe da equipe experiente no trato com os índios; 3. Participação de índios do mesmo tronco lingüístico dos índios arredios para trabalharem como guias e intérpretes; 4. Equipe de atração instalada dentro do território indígena; 5. Construção de um posto indígena protegido, além da plantação de roçado; 6. Exploração das redondezas do posto indígena, conhecendo matas, rios e tapiris; 7. Exibição de armas de fogo, diante de qualquer ataque de índios hostis, demonstrando que a equipe tinha poderio que não seria usado contra o grupo;

8. Instalação de tapiris com presentes, distribuindo-se os índios intérpretes pelas matas. As trocas de presente estabeleciam a fase inicial de "namoro" com os índios arredios; 9. Após o contato inicial, a pacificação era consolidada com ampla confraternização. Entretanto, se houvesse algum incidente grave, poderia ocorrer o colapso da atividade de atração (Erthal, 1992; Ribeiro, 1962)."

Outrossim, esta política nacional de integração das comunidades indígenas, cujo acerto não será aqui discutido, sequer fora aplicada de forma correta. Ocorreram inúmeros abusos e falhas, desvirtuando, inclusive, os objetivos do Serviço de Proteção ao Índio – SPI. As falhas da política nacional indigenista foram minuciosamente relatadas nos trabalhos da Comissão constituída pela Portaria 239/67 do Ministério do Interior, para apurar irregularidades no Serviço de Proteção aos Índios, com trabalhos coordenados pelo Procurador Jader de Figueiredo Correa. Nos trabalhos da Comissão, foram inspecionados diversos Postos Indígenas em todo o Brasil, ouvidas testemunhas, colhidos documentos e, no Relatório Final, hoje amplamente divulgado e conhecido como Relatório Figueiredo, foram relatados os abusos e desmandos cometidos pelo Serviço de Proteção ao Índio e indiciados dezenas de servidores. O relatório original, conhecido apenas por publicações nos Diários Oficiais da época, e todos os seus documentos, foram encontrados no ano de 2013 no Museu do Índio do Rio de Janeiro, sendo que constavam como desaparecidos há mais de quatro décadas. A íntegra do relatório pode ser acessada no site do Ministério Público Federal, 6a. Câmara de Coordenação e Revisão – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais: http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/ institucional/grupos-de-trabalho/gt_crimes_ditadura/ relatorio-figueiredo. Transcreve-se breves trechos que ilustram a gravidade dos fatos apurados, considerados pelos autores do relatório como "o maior escândalo administrativo do Brasil" (pg. 4915 do Relatório):

"O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados, que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. É espantoso que existe na estrutura administrativa do País repartição que haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos cuja bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos suplícios, a título de ministrar justiça. Para mascarar a hediondêz dêsses atos invocava-se a sentença de um capitão ou de uma polícia indígena, um e outro constituídos e manobrados pelos funcionários, que seguiam religiosamente a orientação e cumpriam cegamente as ordens.

Mas, mesmo que assim não fôsse, caberia ao servidor impedir a tortura e, na reincidência, destituir e punir os responsáveis. Tal porém jamais aconteceu porque as famigeradas autoridades indígenas eram a garantia julgada eficaz para acobertar as tropelias de facínoras eregidos em protetores do selvícola pátrio. (...) A crueldade para com o indígena só era suplantada pela ganância. No primeiro caso nem todos incorreram nos delitos de maus tratos aos índios, mas raros escaparam dos crimes de desvio de apropriação ou de dilapidação do patrimônio indígena. Não se pode avaliar o prejuízo causado ao SPI e nos indígenas diretamente durante tantos anos de orgia administrativa. Não temos capacidade para estimá-lo, mesmo por alto, devido às circunstâncias favoráveis em que os autores o acasionaram. O SPI abrange cêrca de 130 Postos Indígenas, disseminados em 18 unidades da Federação, o que vale dizer que se estende pelo interior de todo o Brasil, excetuando os pequenos Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Sergipe. Durante cêrca de 20 anos a corrupção campeou no Serviço sem que fôssem feitas inspeções e tomadas medidas saneadoras. Tal era o regime de impunidade, que a Comissão ouviu dizer no Ministério da Agricultura, ao qual era subordinado o SPI, que cêrca de 150 inquéritos ali foram instaurados sem jamais resultar em demissão de qualquer culpado."

(trechos do relatório - pgs. 4912/4914)

O Estado do Rio Grande do Sul, a seu turno, colonizou as terras com base no entendimento de serem devolutas e de sua propriedade, participando da política nacional de colonização. Tal atuação teve o incentivo e colaboração da União, com sua política indigenista da época, e, se incidiu sobre áreas de ocupação indígena, contou com a omissão da União em reservar e demarcar as áreas ocupadas pelos indígenas, protegendo estas populações e as áreas em que detinham posse, consoante era seu dever legal. Explica-se. A União deveria ter reservado e demarcado as áreas destinadas aos indígenas, cumprindo as determinações da Lei de Terras, Lei 601 de 1850 e de seu Regulamento (transcritos no ítem 5.1 supra). Estas normas incumbiram o Império de demarcar e reservar as áreas ocupadas por indígenas e por seus aldeamentos. Tais áreas demarcadas e reservadas não seriam consideradas devolutas. A Constituição de 1981 repassou a titularidade das terras devolutas aos Estados que, então passaram a atuar no processo de colonização do Estado brasileiro.

Com a República, fora criado o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, ao qual incumbia a tarefa de defesa dos direitos das populações indígenas e especificamente demarcar e legalizar as posses destas populações. Confira-se:

Decreto nº 8.072, de 20 de Junho de 1910 O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil: Resolve, de accôrdo com a lei n. 1.606, de 29 de dezembro de 1906, crear o Serviço de Protecção aos Indios e Localização de Trabalhadores Nacionaes, sujeito ao regulamento, que com este baixa assignado pelo ministro de Estado dos Negocios da Agricultura, Industria e Commercio. Art. 2º A assistencia de que trata o art. 1º terá por objecto: 1º, velar pelos direitos que as leis vigentes conferem aos indios e por outros que lhes sejam outorgados; 2º, garantir a efectividade da posse dos territorios occupados por indios e, conjunctamente, do que nelles se contiver, entrando em accôrdo com os governos locaes, sempre que fôr necessario; 3º, pôr em pratica os meios mais efficazes para evitar que os civilizados invadam terras dos indios e reciprocamente; (…) Art. 3º O Governo Federal, por intermedio do Ministerio da Agricultura, Industria e Commercio e sempre que fôr necessario, entrará em accôrdo com os governos dos Estados ou dos municipios: a) para que se legalizem convenientemente as posses das terras actualmente occupadas pelos indios; b) para que sejam confirmadas as concessões de terras, feitas de accôrdo com a lei de 27, de setembro de 1860; c) para que sejam cedidas aos Ministerio da Agricultura as terras devolutas que forem julgadas necessarias ás povoações indigenas ou á installação de centros agricolas. Art. 4º Realizado o accôrdo, o Governo Federal mandará proceder medição e demarcação dos terrenos, levantar a respectiva planta com todas as indicações necessarias, assignalando as divisas com marcos ou padrões de pedra. Art. 5º Da planta e do memorial recpectivo, que deverá ser o mais detalhado possivel, será dada cópia aos governos estaduaes e municipaes, conservando-se o original no archivo da directoria. Art. 6º Satisfeito o disposto nos artigos anteriores, o governo providenciará para que seja garantido aos indios o usufructo dos terrenos demarcados. Art. 7º Os indios não poderão arrendar, alienar ou gravar com onus reaes as terras que lhes forem entregues pelo Governo Federal.

Redação semelhante tiveram os decretos posteriores que regulamentavam o Serviço de Proteção ao Índio: Decreto nº 9.214, de 15 de Dezembro de 1911 e Decreto nº 736, de 6 de Abril de 1936.

Nesta tarefa de proteção novamente falhou a União Federal, não só omitindo-se com a demarcação das áreas onde constitucionalmente deveria respeitar a posse dos indígenas, mas atuando no esbulho e no abuso das populações indígenas, por seu Órgão que deveria ter a missão precípua de proteção destas comunidades. Portanto, entende-se que a União Federal deva suportar os ônus em eventuais compensações de títulos de boa-fé em valor equivalente ao terra nua nas terras declaradas de ocupação tradicional, uma vez que, se ocorreu a ocupação destas áreas por não índios, foi em razão da sua omissão na obrigação legal de proteção às populações indígenas e de fazer respeitar o direito de posse às terras que ocupavam, bem como em razão de sua atuação decorrente da política nacional de integração das comunidades indígenas, além da atuação abusiva e falha de um Órgão federal que deveria servir de proteção às populações indígenas, mas que era, na realidade, perpetrador dos mais diversos abusos e desmandos contra seus tutelados. 5.4.5. Ademais, as primeiras Cartas Constitucionais que continham previsão sobre o respeito à posse dos silvícolas, referiam-se às áreas em que estivessem permanentemente localizados, consoante se pode vislumbrar dos textos legais transcritos no ítem 5.1. supra. Assim, ainda não havia uma proteção ampla da posse indígena, como a prevista na atual Constituição Federal, com respeito ao seu particular modo de vida, englobando não só as áreas em que permanentemente localizados, mas aquelas em que realizadas as atividades de subsistência e aquelas necessárias para conservação de sua cultura e tradições. Portanto, a concessão de títulos em áreas devolutas (ou que se considerava devolutas, do que não se adentrará no mérito) não consubstanciava, via de regra, em atos ilícitos, à luz do arcabouço legal e cultural da época. O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu esta diferença no tratamento legal das sucessivas Constituições aos direitos dos indígenas no julgamento do Recurso Especial 1.133.648, cuja ementa se transcreve:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. IMÓVEL ADQUIRIDO DO ESTADO. TERRA INDÍGENA. DESOCUPAÇÃO PELOS AGRICULTORES. RESPONSABILIDADE. OBRIGAÇÃO DE REASSENTAMENTO. NORMA LOCAL. SÚMULA 280/STF. 1. O Tribunal a quo condenou o Estado ao pagamento de indenização no valor de R$ 36.000,00 por danos morais decorrentes da desocupação de imóvel situado em terra indígena, o qual havia sido adquirido mediante colonização promovida pelo ente federado na década de 60. 2. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC. 3. Incorreto afirmar que o Estado deva indenizar por ter assentado colonos nos anos 50 e 60 em terras que, décadas depois, à luz da Constituição de 1988, foram consideradas tradicionalmente ocupadas por índios.

4. É verdade que as Constituições anteriores referiram-se ao direito dos autóctones à posse permanente das terras onde localizados (art. 216 da CF/1946), reconhecendo o usufruto exclusivo dos recursos naturais (art. 186 da CF/1967). Também é cediço que a EC 1/1969 reportava-se à inalienabilidade dessas áreas e à nulidade e extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tivessem por objeto seu domínio, posse ou ocupação (art. 198, § 1º). 5. Entretanto, foi somente com a Constituição Federal de 1988 que surgiu o conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, a serem demarcadas pela União, e de imprescritibilidade dos direitos sobre elas (art. 231, caput, e § 4º, da CF/1988). 6. A legislação infraconstitucional relativa às indenizações deve ser interpretada à luz desses dispositivos legais, sendo inviável condenar o Estado por colonização promovida décadas antes da demarcação das terras indígenas pela União, nos termos do art. 231 da CF/1988. 7. Ademais, o art. 231, § 6º, da CF atual deixa claro que a nulidade e a extinção de direitos relativos à ocupação, ao domínio e à posse privada sobre as terras indígenas não geram direito de indenização oponível à União. Se o governo federal não pode ser condenado por reconhecer e demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelo índios, por força da Constituição de 1988, não parece viável impor tal ônus ao Estado, por atos praticados nos anos 50 e 60. 8. No caso dos autos, entretanto, o juiz de origem e o TJ-RS adotaram outro fundamento, suficiente para a manutenção do acórdão recorrido. Consta que, por força do art. 32 do Ato das Disposições Constitucional Transitórias do Rio Grande do Sul, impunha-se ao Estado o reassentamento desses colonos no prazo de quatro anos. 9. A omissão em relação a essa obrigação imposta pela Constituição Estadual teria gerado danos morais, agravados pelos conflitos com a comunidade indígena. 10. Não houve, in casu, condenação do Estado a indenizar por danos materiais, relativos à perda das terras por parte dos colonos, mas apenas por danos morais, por descumprimento do dever de reassentá-los no prazo de quatro anos, imposto pelo art. 32 do ADCT do Rio Grande do Sul. 11. Isso não pode ser reexaminado em Recurso Especial, pois demanda análise de Direito local, o que é inviável nos termos da Súmula 280/STF. Precedente da Primeira Turma, pelo não-conhecimento do Recurso, embora por aplicação da Súmula 7/STJ. 12. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.” (REsp 1133648/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/10/2010, DJe 02/02/2011)

Portanto, se as atuais demarcações por tradicionalidade atingirem títulos legitimamente concedidos no processo de colonização, os quais foram emitidos nas ordens constitucionais anteriores, verifica-se que o dano ao particular pela perda de sua

propriedade, é causada pelo procedimento demarcatório e não pela titulação feita no passado. Em sendo o procedimento demarcatório de competêncida da União Federal, é ato desta, portanto, que causa o prejuízo, donde ser verifica o liame de causalidade para indenizar o particular individualmente atingido. Neste caso, de danos causados pela Administração Pública por atos lícitos, o que deve ser analisado é a existência de dano anormal e específico a determinadas pessoas. Como exemplo desta teoria, trazemos o dever de indenizar por danos decorrentes de obras públicas licitamente realizadas, o qual é fundamentado no princípio da igualdade. Ou seja, divide-se os ônus daquele benefício social, mediante compensação do Ente Público que realiza aquela obra ou benefício à sociedade. Neste sentido, cita-se abaixo o julgamento do Recurso Extraordinário 113.587:

CONSTITUCIONAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. C.F., 1967, art. 107. C.F./88, art. 37, par-6.. I. A responsabilidade civil do Estado, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, que admite pesquisa em torno da culpa do particular, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade estatal, ocorre, em sintese, diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. A consideração no sentido da licitude da ação administrativa e irrelevante, pois o que interessa, e isto: sofrendo o particular um prejuizo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, e devida a indenização, que se assenta no princípio da igualdade dos onus e encargos sociais. II. Ação de indenização movida por particular contra o Município, em virtude dos prejuizos decorrentes da construção de viaduto. Procedencia da ação. III. R.E. conhecido e provido. (RE 113587, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 18/02/1992, DJ 03-04-1992 PP-04292 EMENT VOL-01656-02 PP-00382 RTJ VOL-00140-02 PP-00636)

Tal raciocínio é aplicável às demarcações de terras indígenas por tradicionalidade. Como já afirmou-se anteriormente, o particular (de boa-fé, salienta-se) não pode arcar sozinho com os prejuízos decorrentes da nulificação de seu título. No caso, se houve a opção do Constituinte originário e o ato da União Federal em proceder a demarcação daquela área como de ocupação tradicional indígena, a União Federal deve indenizar por este ato, mesmo que lícito, em razão do princípio da proteção da confiança legítima. Não está aqui excluindo-se a existência de violações às áreas de posse que deveriam ter sido protegidas, mas não se pode pressupor toda e qualquer concessão de títulos pelos Entes Públicos em área que hoje serão consideradas de ocupação tradicional, nos termos do art. 231 e parágrafos da Constituição Federal, como atos ilícitos no passado. Tal deve ser feito à luz dos fatos apurados em cada caso. 5.4.6. Feitas estas considerações quanto à responsabilidade civil pela compensação aos proprietários pela perda da terra nua, retoma-se a questão apontada no início deste

tópico como pressuposto desta análise: a inexistência de discussões quanto à da tradicionalidade da ocupação, confirmando ou não o renitente esbulho no processo de colonização, pois há contestações, inclusive judiciais, por parte dos ocupantes não índios quanto às conclusões da FUNAI. Exemplifica-se com o caso da Fazenda Buriti, do Mato Grosso do Sul, onde houve o reconhecimento, pelo Tribunal de Justiça daquele Estado, da ausência de tradicionalidade da ocupação dos indígenas:

"CONSTITUCIONAL. DEMANDA DECLARATÓRIA. ÁREA RURAL. TERRAS PARTICULARES. DIREITO INDÍGENA. PROVA DOS AUTOS. EMBARGOS INFRINGENTES PROVIDOS. 1. Na exata conformidade do artigo 231, caput, da Constituição Federal, são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 2. O Supremo Tribunal Federal assentou que a Constituição Federal fixou a data de sua promulgação como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (STF, Pet 3388, Pleno, rel. Min. Carlos Britto). 3. Na mesma oportunidade, o Excelso Pretório decidiu que: a) é preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica; e b) a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. 4. No caso presente, a prova dos autos revela que, em 5 de outubro de 1988, marco temporal a ser considerado para o deslinde da causa, já não havia ocupação indígena e a posse dos não-índios era exercida pacificamente. 5. Embargos infringentes providos." (EI - EMBARGOS INFRINGENTES 0003866-05.2001.4.03.6000 PRIMEIRA SEÇÃO TRF 3a. REGIÃO, j. em 21/06/2012)

Embora pendente de recurso aos Tribunais Superiores, cuja viabilidade não se adentrará no mérito, é com base nesta decisão contrária, que a União Federal vem construindo uma solução para o caso em concreto, admitindo realizar acordo judicial com os proprietários para compra ou desapropriação da área, evitando-se novos conflitos com a ordem de desocupação desta área que está na posse de indígenas. Outrossim, em outros dois casos, o Tribunal Regional Federal da 1ª. Região concluiu pela ocorrência de desapropriação indireta pelo desapossamento de terras decorrentes de processo demarcatório, pois não vislumbrou a tradicionalidade da ocupação, e determinou a justa indenização ao proprietário da área atingida pela Portaria Declaratória da União, afastando a vedação do § 6o do art. 231 da Constituição Federal.

A primeira decisão daquele Tribunal a ser transcrita a seguir são os Embargos Infringentes em Apelação Cível n. 0006071-48.2003.4.01.0000 / DF:

"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS INFRINGENTES. INDENIZAÇÃO POR DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. TERRAS INDÍGENAS NÃO DEMARCADAS. SÚMULA 650 DO STF. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ARTS, 20, I E XI, E 231, CAPUT E § 6º. 1. O verbete da Súmula 650 do col. Supremo Tribunal Federal, quando esclarece que "os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto", impõe como condição essencial para que as terras indígenas integrem o patrimônio da União, a posse atual e a demarcação, como previsto no caput do art. 231 da Constituição Federal vigente. 2. A proteção do § 6º do art. 231 da Constituição Federal incide apenas sobre aquelas terras ocupadas por silvícolas, desde que integrantes do patrimônio da União, assim consideradas apenas aquelas demarcadas e em uso antes do advento da Carta Magna. 3. In casu, as terras em questão foram ocupadas por indígenas em passado remoto, mas não o são mais, ou não eram quando do advento do Decreto Presidencial de (1991) que ampliou a área então demarcada. Logo, a área não está entre aquelas sobre as quais incide a proteção do § 6º do art. 231 da Constituição Federal vigente e os embargados têm direito à indenização por desapropriação indireta, como reconhecido no acórdão embargado. 4. De mencionar, ao final, que na cadeia de causalidade para fins de responsabilidade civil, está, na primeira ordem da linha de desdobramento físico, a União Federal/FUNAI, que ao ampliar a área, por decreto Presidencial emitido em 1991 (fl. 13), retirou a disponibilidade do uso da terra pelos embargados. 5. Negar provimento aos Embargos infringentes. (EIAC 0006071-48.2003.4.01.0000 / DF, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL I'TALO FIORAVANTI SABO MENDES, Rel.Conv. JUÍZA FEDERAL ROSIMAYRE GONÇALVES DE CARVALHO (CONV.), SEGUNDA SEÇÃO, e-DJF1 p.94 de 02/06/2008)

Desta decisão, houve a interposição de recursos especial e extraordinário, os quais não foram conhecidos nos tribunais superiores: no Supremo Tribunal Federal, o acórdão do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 629.993, não conheceu o recurso em razão de implicar em reanálise de fatos e provas e, no Superior Tribunal de Justiça, o Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.157.135 não conheceu o recurso em razão de ser a controvérsia decidida com base constitucional. Assim, a decisão que condenou a União Federal a indenizar os proprietários atingidos pela declaração de tradicionalidade já transitou em julgado. Transcreve-se a ementa e parte da fundamentação do voto da Exma. Sra. Relatora Min. Rosa Weber, no AgReg no RE 629.993, sendo relevante por representar o entendimento daquela Suprema Corte:

"EMENTA: AGRAVOS REGIMENTAIS EM RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS INTERPOSTOS PELA UNIÃO E PELA FUNAI. DIREITO ADMINISTRATIVO. TERRAS LOCALIZADAS EM RESERVA INDÍGENA. ALIENAÇÃO PELO ESTADO DO MATO GROSSO. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. INDENIZAÇÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULAS 279 E 650 DO STF. PRECEDENTES. Pedido de indenização por desapropriação indireta julgado procedente na instância recursal ordinária, ao entendimento de que não sujeitas à disciplina do art. 231, § 6o, da Lei Maior as terras objeto da lide, diante da prova produzida, e a teor da diretriz sedimentada na Súmula no 650/STF (“Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”). Não se conhece do recurso extraordinário quando a aferição da alegada afronta aos preceitos constitucionais invocados supõe o revolvimento do quadro fático delineado na origem. Aplicação da Súmula 279/STF. Precedentes das turmas. Agravos regimentais conhecidos e não providos. VOTO: (...) Dessa forma, de acordo com o voto-depoimento do Ministro Jobim, outrora parlamentar constituinte, prevalece a lógica simples de que não é possível compreender o art. 20, incisos I e XI, bem assim art. 231, § 6o, ambos da CF/88 como autorizadores da quebra de todo o sistema jurídico pátrio então constituído. O termo terras tradicionalmente ocupadas pressupõe posse contemporânea à edição da Lei Magna, presente a utilização atual pelos indígenas. Assim, a proteção do § 6o, do art. 231, da Constituição Federal incide apenas sobre as terras ocupadas por silvícolas que são patrimônio da União, que, por sua vez, são apenas aquelas então ocupadas pela população indígena, sem prejuízo de, como no caso, a União desapropriar outras áreas, com destinação à habitação dos índios, mas com a devida indenização. No presente caso, as terras em questão foram ocupadas por indígenas em passado remoto, mas não o são mais, como atestou a FUNAI, em 1974, por meio das certidões de fls. 78/80. Logo, a área em questão não está entre aquelas sobre as quais incide a proteção do § 6o. do art. 231 da Constituição Federal e os embargados têm direito à indenização pela desapropriação indireta, como reconhecido no acórdão embargado, que deve ser mantido na sua íntegra, pelos seus próprios fundamentos. De mencionar, ao final, que na cadeia de causalidade para fins de responsabilidade civil, está, na linha de desdobramento físico, em primeira ordem, a União Federal/FUNAI, que ao ampliar a área, por decreto Presidencial emitido em 1991 (fl. 13), retirou a disponibilidade do uso da terra pelos embargados, o que esmaece os fundamentos do voto vencido."

A segunda decisão do Tribunal Regional Federal da 1a. Região que se transcreve é a Apelação Cível n. 0004552-62.2008.4.01.0000:

"CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. ÁREA INDÍGENA. TÍTULO DE PROPRIEDADE EXPEDIDO PELO ESTADO DE MATO GROSSO. SÚMULA 650 DO STF. PRECEDENTES DA SEGUNDA SEÇÃO FAVORÁVEIS AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO. INDENIZAÇÃO FIXADA DE ACORDO COM O LAUDO PERICIAL OFICIAL. JUROS COMPENSATÓRIOS DEVIDOS DESDE A DATA DO DECRETO. JUROS DE MORA. CORREÇÃO MONETÁRIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS E CUSTAS PELOS SUCUMBENTES. 1. A Súmula 650 do STF prevê que "os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terra de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas no passado remoto". Logo, segundo entendimento da Segunda Seção, para que as terras indígenas integrem o patrimônio da União mostra-se necessária a posse atual e a demarcação, como estabelece o caput do art. 231 da Constituição de 88. 2. Ainda que as terras dos autores tenham sido ocupadas por indígenas no passado, não eram ocupadas quando do advento do Decreto Presidencial que ampliou a área demarcada. Assim, não há que se falar em proteção do § 6º do art. 231 da Constituição. 3. Os autores têm direito à indenização por desapropriação indireta. Precedente da Seção: EIAC 2003.0100.0100550/DF. 4. A indenização deverá ser fixada de acordo com o laudo oficial. Os valores apurados pelo perito oficial atendem à exigência constitucional da justa indenização, prevista no art. 5º, XXIV, da Constituição da República Federativa do Brasil e na Lei 8.629/93, art. 12. 5. Integram o preço de mercado da terra as florestas naturais e as matas nativas, como partes integrante do solo, ressalvada a possibilidade de indenização separada, quando houver exploração econômica comprovada e autorizada. 6. Não restou provada a efetiva exploração de madeira no imóvel objeto da presente desapropriação, de forma a se admitir a indenização da cobertura florística em separado. 7. Não restou comprovada, ainda, a exploração de minérios a justificar o recebimento de qualquer indenização por eventuais prejuízos. 8. Não têm razão as rés apelantes ao se insurgirem quanto à indenização das benfeitorias. Há prova da existência delas nos autos. 9. São devidos juros compensatórios de 12% (doze por cento) ao ano, desde a data do decreto que demarcou a área indígena. 10. Tendo a presente ação sido proposta em 12/12/1996, aplica-se, no caso em exame, a Súmula nº 408, do colendo Superior Tribunal de Justiça, publicada no Dje de 24.11.2009, no sentido de que "Nas ações de desapropriação, os juros compensatórios incidentes após a Medida Provisória n. 1.577, de 11/06/1997, devem ser fixados em 6% ao ano até 13/09/2001 e, a partir de então, em 12% ao ano, na forma da Súmula n. 618 do Supremo Tribunal Federal." 11. Juros de mora de 6% (seis por cento) ao ano, a partir de janeiro do exercício seguinte àquele em que deverá ter ocorrido o pagamento.

12. Correção monetária que deverá incidir desde a data do laudo até o efetivo pagamento da indenização. 13. As rés sucumbentes deverão arcar com o reembolso das custas e com o pagamento de honorários advocatícios fixados em 3% (três por cento) sobre o valor da condenação. 14. Apelo das rés improvido. 15. Apelo dos autores parcialmente provido. 16. Remessa improvida." (AC 0004552-62.2008.4.01.0000 / MT, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, QUARTA TURMA, e-DJF1 p.255 de 01/12/2010)

Desta decisão, fora interposto recurso, cujo julgamento está pendente no Supremo Tribunal Federal, sob o n. ARE 782156. 6. DA ATUAÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL NAS ÁREAS DEMARCADAS OU EM PROCESSO DE DEMARCAÇÃO A tabela de áreas indígenas elaborada por este Grupo de Trabalho demonstra a diversidade de situações fáticas e jurídicas nas áreas reivindicadas.

Na condução dos trabalhos deste Grupo, verificou-se que, dentro da estrutura do Estado, há diversos Órgãos e Secretarias que atuam na temática indígena. Hoje a atuação é, na sua maioria, feita de forma isolada e não coordenada, o que implica em pouca efetividade e, pior, em atuação contraditória em várias situações. Isto decorre, especialmente, da falta de definições do centro de governo e de posicionamento político com relação aos diversos procedimentos demarcatórios em tramitação e nas respectivas ações judiciais. Tal postura não auxilia na solução de conflitos, pois, embora na defesa de interesses legítimos, mas divergentes (agricultores e indígenas), os órgãos internos do Estado devem chegar a uma conclusão comum em cada caso e trilhar um caminho único, inclusive para não gerar mais insegurança nesta temática tão controvertida. Como já se verificou no tópico referente ao entendimento jurídico, a delimitação precisa de todas áreas em que haveria o direito à demarcação por tradicionalidade está longe de acontecer. É necessário que seja feita uma análise aprofundada de cada caso para que o Estado possa tomar suas decisões. O mais importante é que seja uma decisão de consenso para todos os órgãos do Estado. Tal objetivo só é possível com uma prévia discussão interna para o nivelamento dos conhecimentos entre os órgãos estaduais objetivando a construção de um posicionamento do Estado e de apontamento de soluções, inclusive permitindo uma centralidade nas interlocuções com os outros atores envolvidos na temática: indígenas, FUNAI, UNIÃO, agricultores e Ministério Público Federal.

Assim, é necessário a criação de um grupo permanente, com reuniões periódicas, que estabelecerá as prioridades a serem discutidas, dependendo das demandas que forem apresentadas em seus órgãos. A definição da composição deste grupo caberá ao Poder Executivo, sendo que sugere-se a seguinte composição permanente: um representante da Casa Civil ou Gabinete do Governador, dependendo a quem estiver afeta a matéria no centro de governo, um representante da Secretaria de Desenvolvimento Rural, um representante da Secretaria da Justiça e Direitos Humanos, um representante do Conselho Estadual dos Povos Indígenas e um representante da Procuradoria-Geral do Estado. O principal foco seria a discussão da postura do Estado nas áreas em processo de demarcação, daquelas objeto de litígio judicial ou outras áreas que necessitem de soluções pontuais, como a destinação de áreas públicas para alguma comunidade indígena. Neste grupo permanente, pode ser prevista a possibilidade de participação de outros órgãos e Secretarias de Estado para apresentar demandas e participar das reuniões e discussões, quando pertinentes. Por exemplo, no DAER existe a problemática dos acampamentos indígenas na faixa de domínio das rodovias e o questionamento de qual a melhor solução. Se verificou, no período de duração deste Grupo de Trabalho, que as mais diversas questões vão surgindo a todo momento e que dependem de uma definição do Estado. Em várias oportunidades, fora debatido neste Grupo de Trabalho os problemas de gestão das terras indígenas em benefício da coletividade, bem como a insuficiência das políticas públicas em favor das comunidades indígenas. Estes problemas acarretam outros, como conflitos graves que, muitas das vezes, levam à busca de novas áreas para acomodar os dissidentes. Tais políticas públicas devem ser adequadas às peculiaridades de cada etnia. Por exemplo, deveria ser analisada a questão do uso compartilhado de áreas pelos indígenas, permitindo-se a coleta de materiais para artesanato em áreas de proteção ambiental, questões a serem aprofundadas pelo grupo permanente a ser constituído. A existência de um grupo permanente institucionalizado facilitará a interlocução entre as Secretarias e Órgãos e trará familiaridade com o assunto tão específico aos integrantes do grupo, que poderão ouvir e analisar as mais diversas posições. 7. MEDIAÇÃO Tendo em vista a casuística a que submetido a questão da demarcação de terras indígenas e a necessidade de construção de instrumentos legais em cada caso que permitam a justa compensação, pois, em princípio, a indenização da terra-nua é vedada pela Constituição Federal, a mediação entre os diversos atores parece-nos um dos melhores caminhos a ser trilhado. Isto porque, diante das diversas contestações que sofrem os processos administrativos, a solução acabará sendo tomada pelo Poder

Judiciário, cujo processo, diante da complexidade da matéria e, muitas vezes, do conflito federativo instaurado, tem se mostrado longo. E, enquanto se discute a situação na Justiça, sofrem os indígenas com as más condições a que normalmente estão submetidos e sofrem os agricultores com a insegurança gerada pelos processos demarcatórios. E disto surgem os mais diversos conflitos. A iniciativa desta mediação em cada caso poderia partir de qualquer um dos atores (União Federal, FUNAI, Poder Judiciário, Ministério Público Federal, Estados, agricultores e indígenas), mas deve contar com a participação de todos. No Estado do Mato Grosso do Sul, sob a proposição do Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, os seguintes órgãos federais vem se reunindo em uma mesa de trabalho: o Ministério da Justiça, a FUNAI, o INCRA, a Advocacia-Geral da União. Esta mesa conta com a participação dos demais afetados com as demarcações de terras indígenas: lideranças dos agricultores e dos indígenas, Governo do Estado, Legislativo federal e estadual, Ministério Público Federal, Poder Judiciário. Tal metodologia aproxima todos os envolvidos, permite o conhecimento das peculiaridades de cada área, bem como dos interesses das pessoas afetadas, auxiliando na construção de soluções no plano prático, evitando-se com que as discussões apenas se voltem para teses jurídicas. 8. CONCLUSÕES 8.1. O Supremo Tribunal Federal aponta para o entendimento de que as terras tradicionalmente ocupadas de que trata o art. 231 e seus parágrafos, da Constituição Federal, não são aquelas imemorialmente ocupadas, mas sim exige posse atual, na data da promulgação da Carta Magna. A exceção para este entendimento são os casos em que a reocupação, na data da promulgação da Carta de 1988, somente não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não índios. O conceito de posse tradicional da Constituição Federal de 1988 é mais amplo que o das Constituições anteriores, visando respeitar ao particular modo de vida, aspectos culturais e ambientais das populações indígenas.

8.2. A norma do art. 32 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias na Constituição Estadual (obrigação de reassentamento de pequenos agricultores em áreas ilegalmente colonizadas) fora criada diante do reconhecimento dos erros históricos do Estado do Rio Grande do Sul na questão indígena, quando reduziu os Toldos demarcados pelo próprio Estado. Esta norma é decorrente das conclusões da CPI do Índio de 1968 da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Portanto, as Terras Indígenas, áreas reconhecidas como de ocupação tradicional pela FUNAI e UNIÃO por aplicação do § 1º. do art. 231 da Constituição Federal, não guardam correlação com os Toldos Indígenas demarcados pelo Estado do Rio Grande do Sul no início do século passado e que foram

ilegalmente colonizados, sendo estas últimas áreas de que trata o art. 32 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Estadual e nas quais o Estado do Rio Grande do Sul reconheceu a responsabilidade por reassentamento. Já a possibilidade da opção entre o reassentamento e a indenização fora uma interpretação construída, inicialmente, pelos Pareceres da Procuradoria-Geral do Estado de n. 12.733 e 13.135 e, posteriormente, positivada na lei do FUNTERRA (Lei Estadual 7.916/1984) com a nova redação do art. 6º.-A dada, sucessivamente, pelas Leis Estaduais 11.881/2002 e 13.973/2012.

8.3. Confirmada a tradicionalidade da ocupação indígena em determinada área que atinja títulos de propriedade de boa-fé, os proprietários devem ser compensados, seja através de alteração da norma constitucional, de lei infraconstitucional ou medidas administrativas. Ainda, no caso em concreto, deve ser examinada a responsabilidade civil, em especial da União Federal pela seguintes razões: 8.3.1. a União Federal omitiu-se na obrigação legal de proteção às populações indígenas e de delimitação das terras que ocupavam; 8.3.2. a atuação abusiva e falha do Serviço de Proteção ao Índio, órgão federal que deveria servir de proteção às populações indígenas, mas que era, na realidade, perpetrador dos mais diversos abusos e desmandos contra seus tutelados. 8.3.3. há causa direta entre a nulidade do título e a declaração de tradicionalidade da ocupação (ato da União) que, mesmo sendo ato lícito, o proprietário de boa-fé deve ser indenizado, a fim de não suportar individualmente uma opção do Constituinte originário. 8.4. É necessário a criação de um grupo permanente dentro da estrutura administrativa do Estado do Rio Grande do Sul para acompanhamento das demarcações e da gestão de Terras Indígenas e questões afetas, com reuniões periódicas, grupo este que estabelecerá as prioridades a serem discutidas, dependendo das demandas que forem apresentadas em seus órgãos. Este grupo auxiliará na tomada das decisões técnicas e políticas e seu embasamento fático e legal pelas autoridades administrativas do Estado. 8.5. A mediação deve ser tida como um dos principais instrumentos para solução dos conflitos decorrentes dos processos de demarcação de Terras Indígenas. Esta metodologia aproxima todos os envolvidos, permite o conhecimento das peculiaridades de cada área, bem como dos interesses das pessoas diretamente afetadas, auxiliando na construção de soluções no plano prático, evitando-se com que as discussões sejam permeadas por interesses de grupos, muitas vezes não diretamente envolvidos no conflito, bem como que tais discussões não fiquem apenas no plano teórico de teses jurídicas. Porto Alegre, 08 de agosto de 2014.

Adriano Szynkaruk Representante da Secretaria da Agricultura, Pecuária e do Agronegócio

Carlos Cesar D´Elia Representante da Procuradoria-Geral do Estado Elton Scapini Representante da Secretaria do Desenvolvimento Rural, Pesca e Cooperativismo Guilherme Valle Brum Representante da Procuradoria-Geral do Estado Jaime Martini Representante da Secretaria do Desenvolvimento Rural, Pesca e Cooperativismo Luciane Peralta Representante da Casa Civil Luiza Christina Schaffer Representante da Secretaria do Planejamento, Gestão e Participação Cidadã Maria Patrícia Mollmann Representante da Procuradoria-Geral do Estado Coordenadora do Grupo de Trabalho

Milton Viário Representante da Assessoria Superior do Governador

Rodinei Escobar Xavier Candeia Representante da Procuradoria-Geral do Estado Rodrigo Allegretti Venzon Representante do Conselho dos Povos Indígenas Silvio Guido Fioravante Jardim Representante da Procuradoria-Geral do Estado Sônia Lopes dos Santos Representante da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos