relatório final pesquisa sobre soluções alternativas para conflitos fundiários urbanos
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Parcelamento do SoloTRANSCRIPT
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SOLUES ALTERNATIVASPARA CONFLITOS
FUNDIRIOSURBANOS
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PROJETO BRA/05/036 - FORTALECIMENTO DA JUSTIA BRASILEIRA -
CONVOCAO 01/12
REA TEMTICA: ATUAO DA JUSTIA NOS CONFLITOS FUNDIRIOS
URBANOS
PESQUISA SOBRE SOLUES ALTERNATIVAS PARA CONFLITOS
FUNDIRIOS URBANOS
RELATRIO 4
FINAL
GOVERNO FEDERAL
MINISTRIO DA JUSTIA - SECRETARIA DE REFORMA DO JUDICIRIO
PROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD)
SO PAULO/BRASLIA
JULHO DE 2013
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RELATRIO N 4 FINALSOLUES ALTERNATIVAS PARA CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS
EQUIPE DE PESQUISA
COORDENADORES:
DR. NELSON SAULE JNIOR
DANIELA CAMPOS LIBRIO DI SARNO
PESQUISADORES:
ISABEL GINTERS INSTITUTO PLIS;
PAULO S. ROMEIRO INSTITUTO PLIS;
HENRIQUE BOTELHO FROTA INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO
URBANSTICO (IBDU);
LIGIA MELO DE CASIMIRO - INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO
URBANSTICO (IBDU);
CRISTIANO MULLER CENTRO DE DIREITOS ECONMICOS E SOCIAIS
(CDES);
ESTAGIRIAS:
PAULA FERREIRA TELLES INSTITUTO PLIS
KRISTAL MOREIRA INSTITUTO PLIS
SO PAULO/BRASLIA
JULHO DE 2013
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SUMRIO1 INTRODUO 11
2 OBJETIVOS DA PESQUISA 13
3 METODOLOGIA DA PESQUISA 15
4 DOS CONCEITOS 19
4.1 CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 19
4.2 SOLUES ADEQUADAS 19
4.2.1 Princpio da Funo Social da Propriedade 21
4.2.2 Princpio das Funes Sociais da Cidade 22
4.2.3 Princpio do No Retrocesso Social 23
5 TRAANDO UMA TERMINOLOGIA: CONFLITO FUNDIRIO AMPLO E CONFLITO FUNDIRIO ESTRITO 25
6 NORMAS APLICVEIS PARA A SOLUO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 29
6.1 NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS 29
6.2 NORMAS CONSTITUCIONAIS E LEGISLAO NACIONAL
APLICVEIS PARA A SOLUO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 33
6.3 NORMAS ADMINISTRATIVAS REFERENTES
AOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 36
6.4 O CASO PARTICULAR DA LEI N 15.056, DO ESTADO DO CEAR 39
7 O ESTGIO DO TRATAMENTO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS NO GOVERNO FEDERAL 41
8 RESOLUO DOS CONFLITOSFUNDIRIOS URBANOS ESTRITOS PELA MEDIAO 45
8.1 MEDIAO COMO MTODO DE SOLUO ALTERNATIVA DE CONFLITOS 45
8.2 PRINCPIOS DA MEDIAO 46
8.3 MEDIAO COMO SOLUO ALTERNATIVA PARA CONFLITOS
FUNDIRIOS URBANOS ESTRITOS 49
9 INDICADOS DE TRATAMENTOADEQUADO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS ESTRITOS 53
9.1 VALORIZAO DA VIABILIDADE SOCIAL DOS EMPREENDIMENTOS
GERADORES DE IMPACTOS NAS COMUNIDADES 53
9.2 PRTICAS DE GESTO SOBRE IMPACTOS ECONMICOS,
SOCIAIS, AMBIENTAIS E CULTURAIS 55
9.3 POSSIBILIDADES DE MELHORIA DA QUALIDADE DE VIDA DAS COMUNIDADES 56
10 RECOMENDAES PARA O TRATAMENTOADEQUADO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 57
10.1 PARA CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS AMPLOS 57
10.1.1 Reconhecimento e valorizao dos direitos humanos 57
10.1.2 Reconhecimento da complexidade do tema dos conflitos fundirios 57
10.1.3 Combate Invisibilidade Proposital 57
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10.2 PARA CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS ESTRITOS 58
10.2.1 Instrumentos Jurdicos Processuais 58
10.2.2 Em casos de conflitos ocasionados por obras 60
10.2.3 Em caso de reintegrao de posse 60
10.2.4 Mediao 61
10.3 CONSIDERAES SOBRE O BOLSA ALUGUEL 61
CONCLUSO 63
REFERNCIAS 65
ANEXO A TABELA ANALTICA SOBRE A SITUAO DOS ESTADOS PESQUISADOS 69
ANEXO B MANUAL DE PROCEDIMENTOS: PREVENO E SOLUES ADEQUADAS AOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 74
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A pesquisa sobre solues alternativas
para conflitos fundirios urbanos, Projeto
BRA/05/036 Fortalecimento da Justia Bra-
sileira Convocao 01/12 resulta no presente
relatrio que tem como ncleo aprofundar o
tema dos conflitos fundirios urbanos sob a
perspectiva da identificao, mapeamento, ca-
talogao e definio de conceitos e critrios
capazes de configurar verdadeiramente tais
situaes, bem como produzir soluo pro-
cessual-normativa que estabelea a resoluo
alternativa de conflitos como rotina para casos
desse tipo, considerando as especificidades de
cada um com base em uma tipologia prpria,
inclusive a ser indicada no manual anexo que re-
presenta a parte final da produo da pesquisa.
O tema dos conflitos fundirios urbanos
configura-se como um grave problema social
brasileiro, com significativas repercusses na
gesto das cidades e na vida das pessoas. En-
carados at bem pouco tempo apenas como
um problema de ordem privada a ser resolvido
na esfera judicial (aes possessrias) e com
recursos policiais (esbulho possessrio), os
conflitos fundirios, desde a promulgao do
Estatuto das Cidades Lei 10.257, de 10 de julho
em 2001 passaram tambm a ser tratados
como ponto nevrlgico dos problemas sociais
e urbanos que precisa ser enfrentado de modo
planejado, em conjunto com as demais polticas
pblicas urbanas que envolvem a moradia, o
uso e a ocupao do solo, o saneamento am-
biental e a mobilidade urbana.
As solues judiciais aplicadas, geralmen-
te, para os conflitos fundirios urbanos limi-
tam-se a definir a parte vencedora da lide com
base na legislao civil e processual civil, sem
que seja efetivamente solucionado o conflito
que gerou o litgio. Tal conduo gera, a cada
processo, salvo raras excees, novos e mais
passivos sociais e jurdicos.
Sobre o tema da pesquisa que se apre-
senta, cabe fazer a vinculao com outra pes-
quisa, realizada entre os anos de 2008 e 2009,
que versou sobre Conflitos Coletivos sobre a
Posse e a Propriedade de Bens Imveis, Con-
vocao 02/2008 da Secretaria de Assun-
tos Legislativos do Ministrio da Justia, em
parceria com o PNUD. Na referida pesquisa
foi realizado estudo da doutrina, legislao e
jurisprudncia em mbito internacional sobre
direitos humanos, com foco na proteo jur-
dica dos direitos a terra; a garantia do devido
processo legal apontando, tambm, para as
protees e as garantias legais dispensadas
aos indivduos e grupos afetados por conflitos
coletivos de posse e propriedade; e a proteo
contra a tortura e o abuso de autoridade. Foi
tambm realizada anlise da jurisprudncia
de Tribunais brasileiros que lidam, frequente-
mente, com a questo, quais sejam: o Tribunal
do Estado de So Paulo, o Tribunal do Estado
do Paran, os Tribunais Regionais Federais da
3 Regio e da 4a Regio, com foco nas refe-
rncias doutrinrias e legais utilizadas como
fundamento de suas decises. Esse trabalho
permitiu a identificao do comportamento
e do entendimento jurdico ptrio majoritrio
acerca das aes petitrias e possessrias que
envolvem os conflitos fundirios coletivos.
Dentre as consideraes finais do projeto
supracitado est o entendimento de que h um
significativo distanciamento entre os processos
judiciais, suas decises e as realidades que lhes
so afetas. A pesquisa detectou a ausncia de
terminologias tcnicas com contornos concei-
tuais claros para definir se o conflito fundirio
refere-se ou no s questes coletivas. Sendo
uma pesquisa quantitativa e qualitativa, tambm
no restou claro se a demanda judicial refere-
se a um momento, ou permanncia no tempo,
de conflitos e quais as suas naturezas. As de-
mandas judiciais analisadas so construdas
1 INTRODUO
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pelas partes e suas competncias tcnicas e
fazem parecer que o magistrado no as con-
duz de maneira clara a objetivos e parmetros
que podem ser extrados diretamente do Texto
Constitucional.1
Sob tal perspectiva, o projeto atual tem
muito a contribuir com o tema e o debate que
o cerca, inclusive dando continuidade s pro-
vocaes inicialmente feitas pela Secretaria
de Assuntos Legislativos SAL/MJ quando
da Convocao para uma pesquisa especfica
sobre conflitos fundirios.
O presente relatrio prope a anlise acu-
rada do tema dos conflitos fundirios urbanos
de acordo com a descrio feita na proposta
de pesquisa submetida ao Ministrio da Justia,
abordando como o Poder Pblico, ao intervir em
tais demandas, poderia propor solues adequa-
das que respeitem os direitos fundamentais dos
envolvidos. Almeja-se tambm indicar maneiras
de identificao dos conflitos com o apontamen-
to de algumas questes que transcendem o co-
nhecimento jurdico, mas que podem auxiliar na
efetividade dos direitos, dada as origens socioe-
conmicas, geogrficas e ambientais do proble-
ma e da precarizao das ocupaes urbanas.
A pesquisa realizada apresenta os re-
sultados a seguir, desdobrando-se entre este
relatrio final e um manual (anexo) que expe
como resultado recomendaes sobre a so-
luo de conflitos, tendo por base premissas
conceituais que auxiliem na identificao dos
mesmos, traando procedimentos que (i) evi-
tem o surgimento de conflitos fundirios urba-
nos; (ii) incorporem os conflitos fundirios no
planejamento urbano com a participao dos
habitantes das cidades; (iii) lidem de forma
justa e no-violenta com os conflitos j esta-
belecidos e, (iv) sugiram formas de eficcia
sociojurdicas para a resoluo dos mesmos.
1 Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia. Convocao 02/2008, Conflitos coletivos sobre a posse e a propriedade de bens imveis. Srie PENSANDO O DIREITO n 7/2009. Braslia: Ministrio da Justia, 2009, p. 106.
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2 OBJETIVOS DA PESQUISA
Em conformidade com a Convocao
n 01/2012 do PROJETO BRA/05/036, a pes-
quisa tem por objetivos mapear, catalogar e
avaliar experincias alternativas de resoluo
de conflitos fundirios urbanos que envolvam
iniciativas de interao entre os rgos pbli-
cos, os atores sociais e as partes envolvidas,
especificamente nos Estados do Cear, So
Paulo e Rio Grande do Sul, bem como propor
recomendaes para a adoo de processos
e procedimentos na esfera judicial e adminis-
trativa para a soluo adequada dos conflitos
fundirios urbanos.
Os objetivos especficos cuidam de:
i. Definir conceitos e critrios capazes de
identificar situaes de conflito fundirio;
ii. Construir uma tipologia adequada
caracterizao da espcie do conflito;
iii. Construir, com base nos critrios e na
tipologia desenvolvida, uma metodologia
adequada ao mapeamento dos conflitos
fundirios;
iv. Identificar, com base em experincias
existentes e na legislao vigente, o re-
positrio de possibilidades de atuao
do Estado em conflitos fundirios;
v. Criar um campo de amostra de con-
flitos fundirios significativamente im-
portantes, contendo cinco exemplos re-
ferenciais;
vi. Propor solues de ordem processual
e procedimental que proporcionem a so-
luo adequada para casos de conflitos
fundirios urbanos.
Para atingir seus objetivos, a pesquisa
contou com quatro etapas distintas: 1) a defini-
o da metodologia de pesquisa a ser adotada
e dos critrios para seleo dos casos a se-
rem estudados; 2) estudo de casos concretos,
bem como da legislao incidente sobre os
mesmos e o posicionamento da doutrina e
jurisprudncia em casos afins; 3) realizao de
debate sobre o tema e os resultados prelimi-
nares da pesquisa, com a finalidade de colher
contribuies para sua concluso; 4) elabo-
rao de manual informativo sobre o tema,
apontando possveis novos procedimentos e
repertrios de possibilidades para a soluo
adequada de conflitos fundirios urbanos.
Busca-se embasar o enfrentamento dos
conflitos fundirios com seriedade e rigor
cientfico a partir de conceitos, compreenso
da natureza jurdica e definies que envol-
vem o tema, no intuito de melhor esclarecer
o papel do Estado, seja por meio do Poder
Executivo, do Poder Legislativo e (ou) do
Poder Judicirio, na regulao, mediao e
soluo de tais conflitos. Busca-se, assim,
estabelecer propositivamente um marco de
definies que possam identificar esses con-
flitos e conferir a eles um tratamento no
violento, em observncia aos direitos fun-
damentais da pessoa humana, de acordo
com a legislao ptria e internacional e as
garantias do regular acesso moradia, ao
acesso justia. As polmicas e relevantes
questes que envolvem o tema carecem de
discusso e anlise envolvendo o papel do
Poder Pblico, sem prejuzo de uma discus-
so aprofundada com posicionamentos, ex-
positivos e crticos, permitindo uma viso
panormica de todo o tema.
A pesquisa procurou promover, por con-
seguinte, a abertura de novas perspectivas e
alternativas de resoluo de conflitos ora re-
correntes nas cidades brasileiras, provocados
pelo modelo de urbanizao caracterizado pela
fragmentao do espao e pela excluso scio-
territorial. proposta da pesquisa, tambm e
de maneira objetiva, auxiliar no processo de
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desenvolvimento social e econmico brasileiro
a partir do Direito, o qual como regulamenta-
dor das relaes sociais, no pode se furtar a
estar presente e nem a permitir que haja um
retrocesso social no acesso aos direitos funda-
mentalmente garantidos.
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3 METODOLOGIA DA PESQUISAPara atingir os objetivos descritos no item
acima, o desenvolvimento do projeto contou
com quatro etapas distintas que pretenderam
abranger a definio da metodologia de pes-
quisa adotada, envolvendo a (i) combinao
da anlise de casos concretos existentes em
cada Estado, (ii) avaliao das questes que
envolvem os casos, (iii) o estudo dos conceitos
doutrinrios sobre conflitos fundirios, (iv) bem
como a postura do Poder Judicirio diante de
tais casos.
Ao longo da execuo do projeto, foram
realizados trs debates para melhor compreen-
so dos resultados obtidos. Dois deles foram
promovidos pela Secretaria de Reforma do
Judicirio do Ministrio da Justia, envolven-
do todas as equipes de pesquisa do Projeto
BRA/05/036 Fortalecimento da Justia Bra-
sileira para troca de experincias. O terceiro
evento foi realizado pela prpria equipe da
pesquisa sobre conflitos fundirios urbanos,
com a participao de atores diversos que
atuam ou so afetados por tais conflitos. Os
debates auxiliaram na compreenso do tema,
coleta de dados, elucidao de conceitos usu-
ais e construo de um novo marco jurdico
legal na soluo alternativa de conflitos fun-
dirios urbanos.
Os componentes da pesquisa desenvol-
vidos foram os seguintes:
I. mapeamento sobre a situao de con-
flitos fundirios urbanos envolvendo o
Estado, nas suas variadas funes (Po-
der executivo, Poder Legislativo, Poder
Judicirio, Ministrio Pblico), e os di-
versos atores sociais;
II. estudos de casos de processos judiciais
referentes s modalidades de conflitos
fundirios urbanos analisados pelo Poder
Judicirio Estadual e/ou Federal;
III. sistematizao de estudos jurdicos
e outras reas do conhecimento refe-
rentes aos conflitos fundirios urbanos,
envolvendo a legislao existente e o
tratamento que lhes conferido.
A seleo dos casos estudados foi es-
tabelecida, inicialmente, a partir do conceito
de conflitos fundirios urbanos previsto na
Resoluo n. 87 do Conselho Nacional das
Cidades (CONCIDADES)2. Em seguida, em
cada um dos Estados pesquisados, foram so-
licitadas informaes aos Tribunais de Justia,
Ministrio Pblico Estadual e Federal, Defen-
sorias Pblicas Estaduais e da Unio, Escrit-
rios Modelo e Ncleos de Prtica Jurdica de
Instituies de Ensino Superior, entidades de
defesa dos Direitos Humanos e movimentos
sociais urbanos. Os casos coletados sinteti-
zam a realidade da aplicao da legislao,
dos regulamentos e procedimentos existen-
tes, as solues apresentadas diante dos con-
flitos e o posicionamento do Poder Judicirio
nos litgios que lhe so apresentados sobre
a questo.
Os estudos e debates do grupo de pes-
quisa so orientados por diagnsticos, no
plano administrativo e judicial, doutrinrio e
legal, que revelam o tratamento da questo na
atualidade e servem como base de reflexo e
apontamento de solues prticas. O mtodo
de anlise tem como premissa a produo de
um conhecimento interdisciplinar capaz de
2 A Resoluo n. 87 do Conselho Nacional das Cidades (CONCIDADES) recomenda ao Ministrio das Cidades a instituio da Poltica Nacional de Preveno e Mediao de Conflitos Fundirios Urbanos, apresentando princpios, diretrizes, identificaes e aes de monitoramento, preveno e mediao de conflitos fundirios urbanos, considerando relevante a interlocuo ampla entre o Poder Executivo Federal, os demais Poderes e entes federados com vistas implementao desta Poltica. De acordo com o art. 3 da Resoluo, considera-se conflito fundirio urbano a disputa pela posse ou propriedade de imvel urbano, bem como impacto de empreendimentos pblicos e privados, envolvendo famlias de baixa renda ou grupos sociais vulnerveis que necessitem ou deman-dem a proteo do Estado na garantia do direito humano moradia e cidade.
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associar as propostas jurdicas realidade
social de fato em que estaro inseridas.
Na sequncia, observa-se o que foi cons-
trudo pela pesquisa a partir de seus objetivos.
A etapa 1 teve como objetivo a cons-
truo de metodologia para identificao e
mapeamento dos conflitos fundirios urba-
nos, bem como quais os critrios para sua
identificao, o que envolveu a compreen-
so e definio da tipologia a ser utilizada
nessa pesquisa, apontada mais a frente em
tpico prprio.
A equipe de pesquisadores considerou
como base referencial o levantamento das
tipologias de conflitos fundirios dos resulta-
dos do Projeto Pensando o Direito - Confli-
tos coletivos sobre a posse e a propriedade
de bens imveis, Projeto 07/004-MJ/SAL/
PNUD, desenvolvido pelo Instituto Plis, Ins-
tituto Brasileiro de Direito Urbanstico (IBDU),
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
(PUC/SP) e demais entidades j designadas
anteriormente, bem como do cadastramento
feito pela Secretaria Nacional de Acessibili-
dade e Programas Urbanos do Ministrio das
Cidades sobre conflitos urbanos e tambm
o levantamento realizado pelo Observat-
rio das Metrpoles vinculado ao Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
(IPPUR), da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
Durante essa etapa, ocorreram os semi-
nrios citados no tpico anterior, oportunidade
em que se discutiu sobre os impactos urba-
nos nas cidades-sede dos eventos esportivos
previstos para os prximos anos no Brasil. Os
encontros auxiliaram tambm na definio de
uma metodologia comum para identificao e
caracterizao de conflitos fundirios urbanos
no sentido de aprofundar o mapeamento de
acordo com os critrios estabelecidos.
Dentre os rgos que se envolvem di-
retamente em casos de conflitos fundirios
urbanos, foram identificados como interlocu-
tores fundamentais a prpria Secretaria de
Reforma do Judicirio do Ministrio da Justia,
o Conselho Nacional de Justia, os Tribunais de
Justia dos Estados envolvidos, as Defensorias
Pblicas Estaduais e da Unio, os Ncleos de
Prticas Jurdicas das Instituies de Ensino
Superior, o Observatrio das Metrpoles, os
movimentos sociais urbanos e as organizaes
no governamentais que atuam na assessoria
e apoio das comunidades afetadas. H, contu-
do, em virtude da complexidade dos conflitos,
muitos outros atores sociais envolvidos, dire-
tamente ou no, que foram igualmente consi-
derados medida que foram identificados no
levantamento dos casos pesquisados.
A etapa 2 ocorreu a partir do mapea-
mento realizado na etapa anterior e cuidou
de analisar com mais profundidade trs casos
de conflitos fundirios urbanos que foram sig-
nificativos no sentido da soluo alternativa
proposta. No desenvolvimento do mtodo
qualitativo utilizou-se o estudo de caso com
vistas anlise de condies que envolvem
os conflitos fundirios e os atores envolvidos,
de acordo com a recomendao adotada pela
Resoluo 87 do Conselho Nacional de Cida-
des (CONCIDADES).
A partir da escolha dos casos: i) Jardim
Edith, em So Paulo / SP; ii) Razes da Praia,
em Fortaleza / CE; iii) Vila Floresta , em Porto
Alegre / RS, foi feito um roteiro de questes
visando o aprofundamento das informaes
necessrias elaborao do estudo dos casos
de conflitos fundirios urbanos nos Estados
indicados, junto a rgos pblicos e atores
sociais envolvidos.
Sobre cada caso em especfico, a escolha
se justifica pelas razes seguintes:
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O CASO DO JARDIM EDITH, NA CIDADE DE SO PAULO, ESTADO DE SO PAULONo municpio de So Paulo foi encontrada certa dificuldade para a definio de um caso emblemtico e com a soluo adequada nos parmetros que foram construdos pela pesquisa. Se entendido que o mnimo para uma soluo ser considerada como adequada a no remoo das famlias, o caso do Jardim Edith j seria exclu-do. No entanto, decidiu-se por traz-lo como emblemtico pela resistncia de algumas famlias l residentes e pela atuao da Defensoria Publica do Estado que, em ao junto aos moradores conseguiu um acordo com a Prefeitura de So Paulo para urbanizao da comunidade. O papel da Defensoria no foi o de mediador, mas sim de agente fortalecedor da parte hipossuficiente no conflito, a comunidade ameaada. No caso de So Paulo, os indicativos de soluo alternativa foram o fortalecimento da parte mais fraca do conflito, por meio da assessoria jurdica, e o respeito e validao do direito de resistncia. Depois de mais de 30 anos de disputa, parte da comunidade do Jardim Edith reside na mesma localidade, agora, em conjuntos habitacionais, com 100% de urbanizao e tima infraestrutura, em uma rea de extrema especulao imobiliria em So Paulo.
O CASO RAZES DA PRAIA, NA CIDADE DE FORTALEZA, ESTADO DO CEARDentre os casos pesquisados no Estado do Cear, o conflito envolvendo a comunidade Razes da Praia foi ob-jeto de maior destaque porque, alm de sintetizar fatores representativos que esto presentes na maioria dos demais casos, tem algumas peculiaridades que o tornam singular quanto tentativa de mediao do conflito.Em sentido estrito, o conflito se estabeleceu em razo de uma ocupao realizada por setenta e cinco famlias de baixa renda, organizadas pelo Movimento dos Conselhos Populares (MCP), em imvel vazio na cidade de Fortaleza pertencente famlia Otoch, detentora de um grupo empresarial de grande expresso econmica. Es-tima-se que o imvel possua cerca de quatro mil metros quadrados. As famlias buscavam no apenas reivindicar seu direito a uma moradia digna, mas tambm, por meio da ocupao, evidenciar o descumprimento da funo social da propriedade do imvel em questo e, por consequncia, a violao do Plano Diretor Participativo de Fortaleza (Lei Complementar n 62/2009). Dessa forma, percebe-se uma articulao ntida entre o conflito em sentido estrito e o conflito em sentido amplo, na medida em que o dficit habitacional confrontado com uma realidade marcada pela especulao imobiliria e pelo no aproveitamento adequado do solo urbanizado na cidade de Fortaleza.Na maioria dos casos identificados no Cear, os conflitos fundirios esto associados disputa por imveis privados. Em todas as situaes, houve judicializao do conflito, em regra, por meio de aes de reintegrao de posse com concesso de liminar inaudita altera pars. A anlise do caso Razes da Praia possibilita uma viso de como o Poder Judicirio vem tratando tais situaes.O que torna o caso merecedor de destaque, entretanto, a sua singularidade no que diz respeito interveno do Poder Pblico no processo de mediao do conflito. Ao contrrio do que ocorreu em outras situaes, a Pre-feitura Municipal, por meio da Fundao de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (HABITAFOR), mesmo no estando diretamente envolvida no conflito em sentido estrito, props a compra do imvel para posterior construo de um conjunto habitacional destinado aos ocupantes. Esse processo resultou na permanncia das famlias no imvel, ainda que a sentena judicial da ao de reintegrao de posse tenha sido procedente. Por-tanto, houve um aparente sucesso no processo de mediao, pois o conflito imediato referente desocupao do imvel foi cessado. Contudo, decorridos quatro anos, no foi efetivada a compra por parte do Municpio e no existe sequer projeto para construo de unidades habitacionais na rea, de forma que as famlias permanecem em situao de extrema precariedade. A relevncia do caso se justifica pelo fato de permitir uma anlise crtica sobre a soluo do conflito, que, em primeiro momento, parecia ser satisfatria, mas que se mostrou insuficiente em virtude da no efetivao do direito moradia adequada.
O CASO DE VILA FLORESTA, NA CIDADE DE PORTO ALEGRE, ESTADO DO RIO GRANDE DO SULTal caso trouxe para pesquisa importantes especificidades relacionadas ao fenmeno dos conflitos fundirios urbanos. A primeira delas diz respeito ao fato de que o conflito fundirio teve incio porque a rea onde est assentada a Vila Floresta foi desapropriada com a finalidade de ampliao do Aeroporto Internacional Salgado Filho. Essa obra est figurando na Matriz de Responsabilidade de Porto Alegre para a realizao da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Outra peculiaridade importante o fato de haver uma significativa quantidade de imveis alugados na comu-nidade, isto , as 42 (quarenta e duas) famlias ameaadas de remoo eram locatrias, o que encontra pouco respaldo no direito positivo para fins de defesa dentro de um processo de desapropriao levado a efeito por um rgo pblico, no caso a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroporturia (INFRAERO). Por ltimo, o caso da Vila Floresta teve ainda a especificidade de passar por um processo de mediao/concil-iao conduzido pelo Poder Judicirio, que liderou a aproximao das partes, sendo finalizado o acordo pelo Centro Judicirio de Conciliao e Soluo de Conflitos e Cidadania (CEJUSCON), do Tribunal Regional Federal da 4 Regio, em Porto Alegre.
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Na Etapa 3, foi promovido um seminrio
com o tema solues alternativas para con-
flitos fundirios urbanos com o objetivo de
provocar o debate e permitir o cruzamento
de informaes vindas da sociedade civil. Na
ocasio, a equipe de pesquisa apresentou os
resultados preliminares e fomentou o debate
com os atores sociais presentes para captar suas
contribuies, buscando o aprimoramento da
pesquisa a partir de uma postura dialgica com
todos os sujeitos que podem ser envolvidos na
resoluo de conflitos fundirios urbanos, seja
por previso legal, seja pelo entendimento de
que a multidisciplinaridade e a intersetorialidade
podem garantir maior xito na soluo de tais
conflitos, para alm do balizamento normativo.
O Seminrio permitiu a definio mais
precisa das tipologias identificadas pela pes-
quisa at o momento, contribuindo com mais
informaes advindas dos setores pblicos e
da sociedade civil, bem como das experincias
presenciadas pelas entidades e movimentos
que lidam diretamente com tais conflitos, como
os que integram o Frum Nacional de Refor-
ma Urbana, por exemplo. Os resultados do
seminrio ofereceram as ideias fundamentais
relativas sugesto de uma nova terminologia
para tratamento do tema: o Conflito Fundirio
Amplo e o Conflito Fundirio Estrito.
A Etapa 4 se comps da avaliao das
informaes levantadas ao longo da pesquisa,
destacando a compreenso sobre os critrios
para a identificao dos conflitos e os fatores
que influenciam seu surgimento, bem como a
proposio de solues envolvendo questes
de ordem doutrinria, procedimental e pro-
cessual para os conflitos fundirios urbanos.
Como resultado, produziu-se um quadro
analtico da realidade de cada Estado pesquisa-
do (Anexo A), indicando especificamente: i) a
situao vigente; ii) o tratamento inadequado;
e iii) as recomendaes diante da situao ve-
rificada, considerando a efetivao dos direitos
fundamentais dos grupos atingidos.
Por fim, foi elaborado um Manual de Pro-
cedimentos e Repertrio de Possibilidades para
a Soluo Alternativa de Conflitos Fundirios
(Anexo B), sintetizando os resultados e con-
tribuies da pesquisa em.
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4 DOS CONCEITOS
4.1 CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS
A equipe de pesquisadores do projeto
decidiu ter como base as definies obtidas
nos conceitos descritos no artigo 3 da Reso-
luo n. 87 do CONCIDADES3, indicados para
fins de ao da Poltica Nacional de Preveno
e Mediao de Conflitos Fundirios Urbanos,
tendo em vista a ausncia, por parte da dou-
trina jurdica, de conceitos especficos sobre
tais temas.
Conflito fundirio urbano: disputa pela
posse ou propriedade de imvel urbano, bem
como impacto de empreendimentos pblicos
e privados, envolvendo famlias de baixa ren-
da ou grupos sociais vulnerveis que neces-
sitem ou demandem a proteo do Estado
na garantia do direito humano moradia e
cidade.
Preveno de conflitos fundirios urba-
nos: conjunto de medidas voltadas garantia
do direito moradia digna e adequada e
cidade, com gesto democrtica das polticas
urbanas, por meio da proviso de habitao
de interesse social, de aes de regularizao
fundiria e da regulao do parcelamento, uso
e ocupao do solo, que garanta o acesso
terra urbanizada, bem localizada e a segurana
da posse para a populao de baixa renda ou
grupos sociais vulnerveis.
Mediao de conflitos fundirios urba-
nos: processo envolvendo as partes afetadas
pelo conflito, instituies e rgos pblicos
e entidades da sociedade civil vinculados ao
tema, que busca a garantia do direito mora-
dia digna e adequada e impea a violao dos
direitos humanos.
4.2 SOLUES ADEQUADAS
As solues adequadas aos conflitos
fundirios urbanos partem inevitavelmente de
uma viso crtica em relao ao tema e de uma
compreenso da necessria considerao dos
direitos humanos e fundamentais dos grupos
atingidos. Nesse sentido, preciso questionar
o tratamento conferido aos conflitos fundirios
urbanos sob algumas categorias tericas que
os encaram a partir de premissas que passam
por: a) primazia do formalismo; b) viso redu-
cionista da complexidade do tema dos conflitos
fundirios urbanos; c) desqualificao da posse;
d) negao incidental dos Direitos Humanos.
Comeando pela questo da primazia do
formalismo, percebe-se que os conflitos fun-
dirios so encarados majoritariamente como
um problema meramente judicial ou de polcia.
Essa leitura da realidade est relacionado a uma
viso que tem como base e raiz de interpretao
a propriedade, seja pblica ou privada, como
um direito que se contrape a todos, inclusive
em prejuzo dos demais direitos envolvidos. O
absolutismo da forma conduz a situaes nas
quais os conflitos sejam resolvidos mediante
uma prestao jurisdicional, com o implemento
da fora para cumprir as medidas de desocupa-
o dos imveis em disputa. Com efeito, essa
maneira de soluo dos conflitos fundirios ur-
banos leva a grandes riscos de cometimento de
danos aos Direitos Humanos, j que tem acar-
retado medidas de violncia e injustia social,
como o incremento do nmero de pessoas sem
teto, sem acesso moradia digna e sem efetivo
direito cidade, ou at mesmo afetadas no seu
direito vida e integridade fsica no caso de
uso excessivo da fora nos atos de remoo.
3 BRASIL. Ministrio das Cidades. Resoluo Recomendada n. 87, de 08 de dezembro de 2009. Recomenda ao Ministrio das Cidades instituir a Poltica Nacional de Preveno e Mediao de Conflitos Fundirios Urbanos. Dirio Oficial da Unio, Braslia, DF, 25 de maio de 2010. Disponvel em: . Acesso em: mai. 2013.
-
20
Apesar da consolidao no ordenamento
jurdico brasileiro do direito moradia digna
como uma garantia social, apesar dos princ-
pios, diretrizes e regras emanadas do Estatuto
da Cidade e das resolues advindas do Con-
selho Nacional das Cidades, o Poder Judicirio,
na maioria dos casos, privilegia a aplicao da
legislao civil e processual civil para determi-
nar a desocupao liminar e, por vezes, com
uso de fora policial das reas submetidas a
disputa.
Isso fica claro quando se verificam os
resultados da pesquisa sobre Conflitos cole-
tivos sobre a posse e a propriedade de bens
imveis realizada no mbito do Projeto Pen-
sando o Direito n 07/004-MJ/SAL/PNUD. Na-
quela pesquisa, foram pesquisadas decises
judiciais no Estado de So Paulo por um per-
odo de 20 anos, desde a Constituio Federal
de 1988. Assim, a pesquisa apurou que, nesse
nterim, as aes judiciais com procedncia
total ou parcial do pedido remontam ao per-
centual de 71% (setenta e um por cento) dos
casos, sendo que 27% (vinte e sete por cento)
dessas decises foi baseada na regularidade
do ttulo possessrio, 20% (vinte por cento)
com base na comprovao do esbulho posses-
srio, e 17% (desessete por cento) com base
na comprovao da posse anterior do imvel
objeto da reintegrao. Com efeito, a pesquisa
deixa claro que a legislao processual civil
o grande guia das decises judiciais sobre
os conflitos fundirios, em detrimento das
normas constitucionais e de toda uma legis-
lao ptria garantidora do direito moradia
digna e cidade. assim que a pesquisa se
manifesta concluindo:
Os conflitos fundirios de posse e pro-
priedade, alm de serem compreendidos des-
de uma perspectiva jurdico-legal no plano
do direito internacional, devem tambm ser
considerados desde a perspectiva humanit-
ria do direito e da legislao criminal relativa
tortura e ao abuso de autoridade.
Os dados apontados causam impacto
quando se estuda o tema dos conflitos fun-
dirios urbanos. Em primeiro lugar, porque a
anlise do grave problema social das remoes
sob o ponto de vista eminentemente jurdico-
formal-processual ignora outras interfaces ju-
rdicas e sociais que tambm so importantes
no momento da deciso de uma demanda
judicial desse tipo. Compreender os confli-
tos fundirios urbanos a partir de uma viso
excessivamente formalista e que privilegia a
supremacia da propriedade (da segurana
jurdica e do respeito aos contratos) em de-
trimento do reconhecimento da funo social
da posse (em ocupaes consolidadas ou no,
de seu direito moradia digna, do direito
cidade, do direito participao na deciso
pelas comunidades ameaadas de remoo
do seu prprio destino) diminui consideravel-
mente as chances de uma soluo alternativa
e adequada ao conflito fundirio.
Uma viso crtica dos conflitos fundirios
a partir dos Direitos Humanos permite com-
preender os fundamentos tericos e jurdicos
das violaes. Isso fica claro quando se verifica
o insistente processo de desqualificao da
posse e dos indivduos e comunidades que
so vtimas desses conflitos. Via de regra, es-
sas pessoas so consideradas culpadas por
seu prprio drama, seja por serem classifica-
das como invasoras de imveis privados; pelo
fato de terem construdo suas casas em locais
inapropriados e ambientalmente frgeis em
encostas de morros, margens de rios, mangues
e arroios, por exemplo; ou porque suas comu-
nidades so vistas como entraves realizao
de obras importantes sob a tica do Poder
Pblico e do mercado imobilirio.
Todo esse processo de desqualificao
leva a uma tentativa de negao dos direitos
dessas comunidades. Esse processo de invisi-
bilizao, ao longo do tempo, foi e to sig-
nificativo que, para aquelas pessoas que esto
na iminncia de serem removidas de forma
-
21
arbitrria e/ou violenta de suas moradias, h
dificuldades de aplicao dos Direitos Huma-
nos. Por isso, o magistrado ou o administrador
pblico, por exemplo, compreendem legtima
uma ordem de remoo cujo cumprimento de-
mande uso da fora e da violncia Da porque
tambm concluir que o processo de desquali-
ficao levado a efeito contra essas comunida-
des to forte que se tem por consequncia
a violao de Direitos Humanos.
Nesse sentido, a soluo adequada a que
essa pesquisa se props buscar deve dialogar
com o tema dos conflitos fundirios denuncian-
do a primazia do formalismo e encontrando
ferramentas que garantam o respeito imediato
dignidade da pessoa humana, ao direito
moradia digna, ao direito cidade e partici-
pao popular nos processos decisrios de pla-
nejamento das cidades. alternativa a soluo
que procure resolver de maneira gil e desbu-
rocratizada situaes de conflitos, deixando a
judicializao como a ltima alternativa.
Nos casos de conflitos fundirios urba-
nos, as solues adequadas sero aquelas
que salvaguardem o direito moradia digna,
considerem os princpios da funo social da
propriedade, das funes sociais da cidade e
do no retrocesso social.
As solues adequadas, portanto, de-
vem reconhecer o direito moradia digna
como um Direito Fundamental garantido pelo
artigo 6 da Constituio Federal e delimita-
do pelo Comentrio Geral n 4 do Comit de
Direitos Econmicos, Sociais e Culturais das
Naes Unidas.
4.2.1 PRINCPIO DA FUNO SOCIAL
DA PROPRIEDADE
Entre os princpios da ordem econmica
estabelecidos no artigo 170 da Constituio
Federal, esto previstos os princpios da jus-
tia social, e da funo social da propriedade,
que devem ser aplicados para concretizar a
dignidade da pessoa humana, que se mostra,
ao mesmo tempo, uma finalidade e um funda-
mento do Estado Brasileiro.
O direito de propriedade garantido
como um direito individual que deve atender
a uma funo social, esta ltima configurando-
se como um direito coletivo, de acordo com o
artigo 5, incisos XXII e XXIII, do Texto Consti-
tucional. A funo social da propriedade, em
consonncia com os demais princpios consti-
tucionais, o mandamento principal do regime
da propriedade que deve ser disciplinado pelo
direito pblico.
A funo social tem a natureza de princ-
pio bsico que incide no contedo do direito,
fazendo parte de sua estrutura. O exerccio
do direito de propriedade somente ter ga-
rantia constitucional se for condizente com os
princpios e objetivos fundamentais do Estado
Brasileiro. Essa vinculao passa pela sintonia
da funo social da propriedade com o exer-
ccio da cidadania, com a realizao da justia
social e com o objetivo da construo de uma
sociedade justa e solidria.
A partir da determinao da Constitui-
o de 1988 de que toda propriedade seja
ela pblica ou privada deve submeter-se ao
princpio da funo social, esse princpio tam-
bm um comando diretivo para a soluo dos
conflitos fundirios urbanos.
Pelo tratamento constitucional sobre a
poltica urbana cabe aos Municpios estabele-
cer, por meio do plano diretor, as exigncias
fundamentais de cada cidade para a proprie-
dade urbana cumprir a sua funo social. De
acordo com o artigo 182, pargrafo segundo,
da Constituio, a propriedade urbana cumpre
sua funo social quando atende as exigncias
fundamentais de ordenao da cidade expres-
sas no plano diretor.
Como princpio norteador do regime da
propriedade urbana, a funo social permite
que o Poder Pblico Municipal possa exigir
o cumprimento do dever do proprietrio em
-
22
benefcio da coletividade, o que implica na
destinao concreta dos imveis para atender
um interesse social.4
Esse preceito abrange tambm a pro-
priedade pblica e, portanto, os bens imveis
urbanos da Unio, dos Estados e Municpios
que, em muitos casos, so objeto de conflitos
fundirios. Os entes federativos devem ob-
servar as diretrizes do plano diretor sobre o
cumprimento da funo social da propriedade
urbana para a definio da forma de uso e
ocupao de seus bens imveis urbanos.
Cabe aos Municpios estabelecer pelo
plano diretor as exigncias para os bens im-
veis urbanos atenderem as seguintes finalida-
des sociais que devem ser consideradas para
a soluo dos conflitos fundirios urbanos:
- acesso moradia para todos;
- justa distribuio dos benefcios e nus
decorrentes do processo de urbanizao;
- regularizao fundiria e urbanizao
das reas ocupadas por populao de
baixa renda;
- recuperar para a coletividade a valori-
zao imobiliria decorrente da ao do
Poder Pblico;
- proteo, preservao e recuperao
do meio ambiente natural e construdo;
4.2.2 PRINCPIO DAS FUNES SOCIAIS
DA CIDADE
Como questo preliminar relevante ter
o entendimento de que se trata de um princpio
dirigente para a promoo da poltica urba-
na, nos termos do artigo 182 da Constituio
Federal, e no de uma diretriz desta poltica.
O Estatuto da Cidade deixa claro esta opo
constitucional em seu artigo 2, ao dispor que
a poltica urbana tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funes sociais da
cidade e da propriedade com base nas dire-
trizes gerais previstas no mesmo dispositivo
legal. Verifica-se um tratamento muito claro no
sentido de diferenciar, nesta norma, os princ-
pios e as diretrizes gerais da poltica urbana.
O Estatuto da Cidade estabelece prin-
cpios e diretrizes que expressam uma nova
concepo dos processos de uso, desenvol-
vimento e ocupao do territrio urbano que
deve orientar a ao dos agentes pblicos e
privados na reconstruo das cidades sob a
tica da justia, da democracia e da sustentabi-
lidade. Oferece, assim, respaldo para uma nova
maneira de realizar o planejamento urbano. Sua
funo garantir o cumprimento da funo
social da cidade e da propriedade urbana, o
que significa o estabelecimento de normas
de ordem pblica e interesse social que regu-
lam o uso da propriedade urbana em prol do
bem coletivo, da segurana e do bem-estar dos
cidados (art. 1). A cidade e a propriedade
adquirem novo significado e alcance no con-
texto da ordem jurdico-urbanstica brasileira
frente exigibilidade constitucional de que
ambas devem atender a funes sociais quan-
to ao acesso, utilizao e distribuio de suas
riquezas e possibilidades. Para isso, o Estatuto
da Cidade coloca disposio dos Municpios
uma srie de instrumentos de interveno no
mercado de terras e nos mecanismos de pro-
duo da excluso.
O Estatuto da Cidade introduz no campo
dos direitos fundamentais uma inovao rele-
vante com a incluso e definio do direito a
cidades sustentveis, entendido como o direito
terra urbana, moradia, ao saneamento am-
biental, infraestrutura urbana, ao transporte e
aos servios pblicos, ao trabalho e ao lazer, para
4 Eros Grau na busca de explicitar a ideia de funo social como funo social ativa, enfatiza o fato de que o princpio da funo social da propriedade impe ao proprietrio - ou a que detm o poder de controle, na empresa - o dever de exerc-la em benefcio outrem. Isso significa que a funo social da propriedade atua como fonte da imposio de comportamentos positivos - prestao de fazer, portanto e no, meramente, de no fazer - ao detentor do poder que deferi da propriedade. Vinculao inteiramente distinta, pois daquela que lhe imposta merc de concreo do poder de poltica (1990 op. cit. pg. 250).
-
23
as presentes e futuras geraes (art. 2, I). Des-
taque-se tambm o preceito da gesto demo-
crtica das cidades, por meio da participao da
populao e de associaes representativas dos
vrios segmentos da comunidade na formulao,
execuo e acompanhamento de planos, pro-
gramas e projetos de desenvolvimento urbano.
Esta definio jurdica do direito cidade
contm uma caracterstica semelhante a do
direito ao meio ambiente, por estabelecer que
os seus componentes, como a moradia, devem
ser assegurados para as presentes e futuras
geraes. O desenvolvimento das funes
sociais da cidade, por ser interesse de todos
os seus habitantes, enquadra-se na categoria
dos interesses difusos, pois todos so afetados
pelas atividades e funes desempenhadas
nas cidades: proprietrios, moradores, traba-
lhadores, comerciantes e migrantes. Logo, a
relao que se estabelece entre os sujeitos
com a cidade, que um bem de vida difuso.
Devido a esta definio jurdica, so su-
jeitos que tem proteo jurdica com base no
direito cidade, por exemplo:
- os grupos de habitantes e as comunida-
des que tenham formado a identidade e
memria histrica e cultural da cidade ,
- os grupos sociais e comunidades que
vivem em assentamentos urbanos infor-
mais consolidados que podem deman-
dar do Poder Pblico, aes e projetos
de urbanizao e regularizao fundiria
de interesse social.
O direito cidade o paradigma para a
observncia das funes sociais da cidade, que
sero respeitadas quando as polticas pblicas
forem voltadas para assegurar, s pessoas que
vivem e s que vivero nas cidades, o acesso
terra urbana, moradia, ao saneamento am-
biental, infraestrutura urbana, ao transporte
e aos servios pblicos, ao trabalho e ao lazer.
O respeito ao direito cidade o principal
parmetro que permite verificar em que estgio
as cidades brasileiras se encontram quanto ao
desenvolvendo das funes sociais que devem
permitir ao cidado circular, habitar, trabalhar e
ter acesso ao lazer. Quanto maior for o estgio
de igualdade, de justia social, de paz, de demo-
cracia, de harmonia com o meio ambiente, de
solidariedade entre os habitantes das cidades,
maior ser o grau de proteo e implementao
do direito cidade e das suas funes sociais.
4.2.3 PRINCPIO DO NO
RETROCESSO SOCIAL
O princpio do no retrocesso social diz
respeito proibio de se retornar a uma situ-
ao de menor proteo de direitos do que a
atual. O Pacto Internacional sobre os Direitos
Econmicos, Sociais e Culturais, reconhecido
pelo Brasil pelo Decreto n 591 de 06 de julho
de 1992, estabelece:
ARTIGO 5
1. Nenhuma das disposies do presente
Pacto poder ser interpretada no sentido
de reconhecer a um Estado, grupo ou
indivduo qualquer direito de dedicar-
se a quaisquer atividades ou de praticar
quaisquer atos que tenham por objetivo
destruir os direitos ou liberdades reco-
nhecidos no presente Pacto ou impor-
lhes limitaes mais amplas do que aque-
las nele prevista.
2. No se admitir qualquer restrio ou
suspenso dos direitos humanos funda-
mentais reconhecidos ou vigentes em
qualquer Pas em virtude de leis, conven-
es, regulamentos ou costumes, sob pre-
texto de que o presente Pacto no os re-
conhea ou os reconhea em menor grau.
Ao aplicar essa disposio da norma interna-
cional aos casos de conflitos fundirios, con-
clui-se que as famlias afetadas no podem
restar menos protegidas e com menos direitos
do que gozavam anteriormente ao conflito. Na
prtica, o que se v justamente o contrrio,
-
24
j que, quando um conflito fundirio enfren-
tado sem mediao, ou os atingidos perdem
totalmente seu direito moradia digna ou esse
direito reduzido com o pagamento de uma
indenizao que no lhes garante nem ao me-
nos o estado anterior de direitos.
Assim como o direito moradia digna e
o princpio do no retrocesso social, a funo
social da propriedade e da cidade vo ser ele-
mentos formadores da soluo adequada para
os conflitos fundirios.
-
25
5 TRAANDO UMA NOVA TERMINOLOGIA: CONFLITO FUNDIRIO AMPLO E CONFLITO FUNDIRIO ESTRITO
A partir dos estudos de caso realizados
nesta pesquisa, dos resultados do recente
projeto Conflitos coletivos sobre a posse
e a propriedade de bens imveis realizada
no mbito do Projeto Pensando o Direito n
07/004-MJ/SAL/PNUD, e dos depoimentos
dos participantes do seminrio realizado
com a participao de atores sociais envol-
vidos no tema e (ou) com ele, verificou-se
a necessidade de ser adotada institucional-
mente uma tipologia dos conflitos fundi-
rios urbanos, para que seja possvel pensar
estratgias mais objetivas e especficas para
a sua soluo.
A ocupao do solo urbano no Brasil
sofreu e sofre a imposio de seus limites
territoriais consequentes do grande status
dado propriedade privada (IMPARATO,
2008). Todo esse culto pela propriedade
privada fez com que o planejamento das
grandes cidades ocorresse de forma a excluir
aqueles que no eram proprietrios de bens.
A cidade supre queles que podem pagar
por servios, transporte, escolas, hospitais,
etc. Aqueles que no possuam tal possibi-
lidade moram em situaes extremamente
precrias e, muitas vezes, realizam autocons-
truo de moradias em zonas perifricas,
onde a lei, o planejamento e os servios no
chegam adequadamente.
Entende-se que as cidades pesquisadas,
as cidades exemplificadas pelos participan-
tes dos seminrios e todas aquelas definidas
por uma gesto excludente de seu territrio,
tm em comum uma iminente situao de
conflito causado pela segregao espacial
ou ambiental.
A extenso das periferias urbanas (a par-
tir dos anos de 1980 as periferias crescem
mais do que os ncleos ou municpios
centrais nas metrpoles) tem sua expres-
so mais concreta na segregao espacial
ou ambiental configurando imensas regi-
es nas quais a pobreza homogenea-
mente disseminada. (MARICATO, 2003).
Esta situao de constante excluso s-
cio-territorial para boa parte da populao que
vive nas cidades pode ser configurada como
situao de conflito sobre o uso e ocupao
de seus territrios, que formadora da tipolo-
gia do conflito fundirio amplo, que pode ser
considerada como uma situao tipificada pela
violao da ordem urbanstica incorporada no
ordenamento jurdico ptrio.
No entanto, o conflito fundirio eminen-
temente ligado apropriao desigual pela
populao do territrio, no exclusivamente
fruto do processo chamado exploso das pe-
riferias. Esse , sem dvida, um fenmeno co-
mum s grandes cidades brasileiras, mas pos-
svel verificar tambm uma disputa desleal por
localidades centrais. perceptvel, no modelo
urbanstico das grandes cidades brasileiras,
centralidades (que no necessariamente so
centralidades geogrficas, mas sim centralida-
des econmicas) dotadas de infraestrutura, e
disputadas por alguns atores - pela populao
que deseja morar nessas regies, pela popula-
o que pode pagar muito para morar nessas
regies, por pequenos comerciantes e pelos
atuais conglomerados econmicos - fazendo
com que, na sua grande maioria, essa disputa
seja bem mais favorvel aos detentores do
capital econmico. O resultado so regies
centrais dotadas de infraestrutura, oferta de
-
26
trabalhos, lazer e servios expulsando a popu-
lao que no consegue pagar pelo preo do
metro quadrado, que se torna cada vez mais
caro. A ttulo de exemplo temos os dados da
cidade de So Paulo: segundo pesquisa reali-
zada pela Secretaria Municipal de Finanas em
2005, o valor do metro quadrado em Perus,
bairro ao extremo noroeste da cidade, tem o
valor mdio de R$ 55,00 (cinquenta e cinco
reais). J em Pinheiros, esse valor estimado
em R$ 1.220,00 (mil, duzentos e vinte reais) o
metro quadrado, no mnimo. Sabe-se que, na
prtica, o valor venal do metro quadrado na
regio do chamado centro expandido de So
Paulo chega a R$ 10.000,00 (dez mil reais)5, o
que comprova que poder morar nessa regio
central privilgio para muito poucos.
Alm dessas duas situaes de apropria-
o desigual e excluso territorial nas cidades,
deve-se levar em considerao a realidade das
pequenas e mdias cidades, pois, conforme
Maricato (2003):
Para completar uma sntese sobre as ca-
ractersticas da rede urbana no Brasil
preciso lembrar que a maior parte dos
municpios brasileiros cujas sedes so
definidas como cidades ou mais exata-
mente 72%, tm menos de 20.000 habi-
tantes, e que as cidades que mais crescem
aps os anos 90 so as de porte mdio
cuja populao est situada no intervalo
entre 100.000 e 500.000 habitantes.
Em suma, nas cidades brasileiras, pos-
svel se deparar com situaes de disputa oca-
sionadas pela (entre outras) excluso territorial,
em que no se confere relevncia da posse
como um direito e se verifica a criminalizao
dos movimentos de moradia.
A regularizao fundiria de interesse
social como uma prioridade nos Municpios, a
redistribuio da riqueza e da populao no
territrio de forma a garantir moradia digna
em locais com infraestrutura, com oferta de
trabalho prximo de escolas e instituies
de ensino tcnico e superior, de servios de
qualidade de sade, so aes necessrias
para a soluo do conflito causado por essas
apropriaes desiguais do territrio, tendo
como objetivo a construo de cidades jus-
tas, democrticas e sustentveis tendo como
fundamento o direito cidade preconizado
na ordem jurdico-urbanstica brasileira.
A esse conflito eminente, fruto do plane-
jamento excludente, da priorizao do direito
de propriedade em detrimento do direito
moradia, atribuiremos a terminologia de Con-
flito Fundirio Amplo.
No entanto, h situaes de conflito com
partes nominveis, proprietrios versus ocu-
pantes, ou Poder Publico versus particulares,
com instaurao de aes judiciais e iminn-
cia de remoo. So situaes causadas por
reintegrao de posse ou por realizao de
grandes obras, empreendimentos ou por mero
interesse econmico. A este tipo de conflito,
caracterizado pelo momento da instaurao
nominvel do mesmo, chamaremos Conflito
Fundirio Estrito.
O Conflito Fundirio Amplo no se
relaciona apenas com uma nica situao
especfica, mas tem uma abrangncia terri-
torial que pode englobar vrios bairros, ou
regies de uma cidade, um grande nmero
de habitantes no identificveis contendo
uma somatria de situaes de segregao
social e territorial de repercusso simult-
nea em um mesmo intervalo temporal. J
o Conflito Fundirio Estrito diz respeito a
um caso especfico e nominvel, no qual se
identificam as partes claramente.
5 Secretaria Municipal de Finanas/Departamento de Rendas Imobilirias. PGV, 2005 agregao por quadra fiscal e TPCL, 2005; Secretaria Municipal de Habitao Sehab/Superintendncia de Habitao Popular Habi/Departamento de Regularizao de Par-celamento do Solo Resolo; IBGE. Censo Demogrfico 2000. Projeo Estatstica da Amostra.
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27
Ambos os conflitos podem tambm
ser tipificados por uma relao temporal. O
Conflito Fundirio Amplo ocorre de maneira
contnua em cidades de formao excludente,
e sua soluo adequada tange muito mais o
mbito de polticas pblicas, estratgias de
gesto e do modelo de cidades que se quer.
J aos Conflitos Estritos, atribumos um mo-
mento especfico da situao de conflito que
pode ser a partir do conhecimento da reali-
zao de uma obra, de um empreendimento,
de uma ao administrativa ou judicial que
poder resultar na remoo da populao da
rea objeto do conflito.
-
29
6 NORMAS APLICVEIS PARA A SOLUO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS
6.1 NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS
HUMANOS
No tocante s normas internacionais, a
Declarao Universal dos Direitos Humanos,
adotada pela Organizao das Naes Unidas
em 10 de dezembro de 1948, traz em seu bojo
direitos humanos fundamentais, essenciais a
todos os seres humanos, delimitando o sentido
das expresses liberdades fundamentais e di-
reitos humanos, aludidos na Carta da ONU.
Em relao presente pesquisa, a Declarao
Universal foi o primeiro documento a reconhecer
o direito moradia como um Direito Humano
universal, aceito e aplicvel em todo o mundo
como um dos direitos fundamentais para a vida.
O efeito vinculante da Declarao Uni-
versal um assunto bastante debatido. No
entanto, encontra-se na doutrina argumentos
que caminham para este entendimento. Pode
ser citado, neste caso, Flvio Konder Compa-
rato que entende que restringir a Declarao
Universal ao seu carter de recomendao seria
pecar por excesso, medida que
Reconhece-se hoje, em toda a parte, que a
vigncia dos direitos humanos independe
de sua declarao em constituies, leis e
tratados internacionais, exatamente por-
que se est diante de exigncias de respei-
to dignidade humana, exercidas contra
todos os poderes estabelecidos, oficiais
ou no. (COMPARATO, 1999, p. 210)
Ressaltando ainda mais a argumentao
do efeito vinculante da Declarao Universal,
Flvia Piovesan preceitua queprevaleceu en-
to, o entendimento de que a Declarao de-
veria ser juridicizada sob a forma de tratado
internacional, que fosse juridicamente obriga-
trio e vinculantes no mbito do Direito Inter-
nacional (PIOVESAN, 2012 pp. 215, 216).Essa
juridicizao se d quando a Declarao ser-
ve de fundamento para uma srie de tratados e
leis internacionais, tendo influenciado tambm
as constituies de diversos pases ao redor
do mundo, alm da elaborao do Pacto In-
ternacional dos Direitos Civis e Polticos e do
Pacto Internacional dos Direitos Econmicos,
Sociais e Culturais, que incorporaram direitos
presentes na Declarao e so formalmente
vinculantes (PIOVESAN, 2012 p. 216).
Seguindo os autores citados, pode-se
dizer que a Declarao Universal possui efeito
vinculante, tanto principiologicamente como
materialmente. Principiologicamente por esta
ser constituda de costumes e princpios gerais
do Direito Internacional que coadunam com o
respeito dignidade da pessoa humana, a qual
deve ser exercida contra todos os poderes,
oficiais ou no (COMPARATO, 1999, p. 210).
Tambm pode se afirmar seu efeito vinculante
de maneira formal medida que esta serviu
como base para a elaborao dos tratados de
significativa importncia na temtica de direi-
tos humanos e que possuem fora legal, os j
citados Pacto Internacional sobre os Direitos
Econmicos, Sociais e Culturais e o Pacto In-
ternacional dos Direitos Civis e Polticos.
O Pacto Internacional sobre Direitos Eco-
nmicos, Sociais e Culturais foi elaborado com
o escopo de assegurar maior juridicidade aos
dispositivos da Declarao Universal dos Direi-
tos Humanos, determinando a responsabiliza-
o internacional dos Estados signatrios na
hiptese de violao dos direitos estipulados.
-
30
O Pacto tambm objetiva estabelecer, sob a
forma de direitos, as condies sociais, econ-
micas e culturais para a vida digna. Indiscutivel-
mente, possui carter vinculante (PIOVESAN,
2012, pp. 215, 216).
Esse pacto foi adotado pela XXI Sesso
da Assembleia-Geral das Naes Unidas, em
19 de dezembro de 1966, tendo sido ratifica-
do, no Brasil, pelo Decreto n 591/1992. Est
organizado em cinco partes, que dizem res-
peito: (I) autodeterminao dos povos e
livre disposio de seus recursos naturais e
riquezas; (II) ao compromisso dos Estados de
implementar os direitos previstos; (III) aos di-
reitos propriamente ditos; (IV) ao mecanismo
de superviso por meio da apresentao de
relatrios ao ECOSOC e; (V) s normas refe-
rentes sua ratificao e entrada em vigor.
Os direitos econmicos dizem respeito
produo, distribuio e consumo da riqueza,
objetivando principalmente a regulao das
relaes trabalhistas. Os direitos sociais e cul-
turais, por sua vez, esto relacionados ao esta-
belecimento de um padro de vida adequado.
Para o presente trabalho, destaca-se o artigo
11, 1, que prev o direito moradia digna:
Os Estados Partes no presente Pacto re-
conhecem o direito de todas as pessoas a
um nvel de vida suficiente para si e para
as suas famlias, incluindo alimentao,
vesturio e alojamento suficientes, bem
como a um melhoramento constante das
suas condies de existncia. Os Esta-
dos Partes tomaro medidas apropriadas
destinadas a assegurar a realizao deste
direito reconhecendo para este efeito a
importncia essencial de uma coopera-
o internacional livremente consentida.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Polticos tambm foi adotado pela XXI Sesso
da Assembleia-Geral das Naes Unidas, em
19 de dezembro de 1966, tendo sido ratificado,
no Brasil, pelo Decreto n 592, de 6 de julho
de 1992. Tal Pacto tambm prev a proteo
ao direito moradia, ao dispor sobre a invio-
labilidade do domiclio, no artigo 17: Ningum
poder ser objeto de ingerncia arbitrrias ou
ilegais em sua vida privada, em sua famlia, em
seu domiclio ou em sua correspondncia, nem
de ofensas ilegais s suas honra e reputao.
Assim, ningum poder ser alvo de inge-
rncias arbitrrias ou ilegais na sua vida privada
ou na de sua famlia, em seu domiclio ou em
sua correspondncia, nem de ofensas ilegais
a sua honra e reputao.
Diversos tratados internacionais que vi-
sam proteo de grupos vulnerveis tam-
bm salvaguardam o direito moradia digna.
A Conveno Internacional Sobre a Eliminao
de Todas as Formas de Discriminao Racial,
adotada pela Assembleia Geral das Naes
Unidas, em 21 de dezembro de 1965, tendo
entrado em vigor em 4 de janeiro de 1969,
objetiva eliminar as formas constantes de dis-
criminao racial e promover a igualdade. O
direito habitao est protegido no artigo
5, e, III, desta Conveno.
Do mesmo modo, a Conveno sobre a
Eliminao de Todas as Formas de Discrimi-
nao Contra a Mulher tambm objetiva que
os pases que a ratificaram comprometam-se a
uma dupla obrigao: eliminar as formas cons-
tantes de discriminao contra as mulheres e
promover a igualdade entre os gneros. Esta
Conveno prev o direito moradia no seu
artigo 14, 2, h.
Uma srie de outros tratados interna-
cionais que visam proteo de grupos mais
vulnerveis e discriminados, a fim de combater
tal discriminao e promover a igualdade tam-
bm trazem em seu rol o direito moradia, tais
como: Conveno Sobre os Direitos da Crian-
a (no artigo 27, 3); Declarao das Naes
Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas
(artigo 10 e artigo 21, 1); Conveno n 169
sobre Povos Indgenas e Tribais da OIT (artigo
-
31
16); Conveno de 1951 Relativa Ao Estatuto
Dos Refugiados (artigo 21); Conveno Interna-
cional sobre a Proteo dos Direitos de Todos
os Trabalhadores Migrantes e dos Membros
das suas Famlias (artigo 43 1).
fundamental citar a Conveno Ameri-
cana dos Direitos Humanos de 1992, tambm
chamada de Pacto de San Jos de Costa Rica,
instrumento fundante do Sistema Interame-
ricano de Proteo aos Direitos Humanos. A
Conveno foi assinada em 22 de novembro
de 1969, na cidade de San Jos, na Costa Rica,
e ratificada pelo Brasil em setembro de 1992,
sendo que a sua promulgao ocorreu pelo
Decreto N. 678/92. O Pacto de San Jos bus-
ca consolidar entre os pases americanos um
regime de liberdade pessoal e de justia social,
fundado no respeito aos direitos essenciais.
Nesse tratado, o direito moradia digna tem
abrigo nos artigos 11, 24 e 26.
A previso jurdica internacional sobre
o direito moradia ilustra a densidade que
ele possui, identificando-o como inerente ao
exerccio da cidadania, a qual no se completa
sem o acesso moradia adequada. Sua defesa
foi sendo construda, material e juridicamente,
no seio da comunidade internacional, refletindo
os anseios pela sua efetivao at ser incor-
porado no texto constitucional brasileiro ex-
pressamente, em 14 de fevereiro de 2000, por
meio da Emenda Constitucional n 26, embora
j estivesse disposto no texto constitucional
por meio de outras previses de direitos, tais
como o direito sadia qualidade de vida, ao
bem estar social, a cidadania, a dignidade da
pessoa humana. (SAULE JNIOR, 2004).
Percebe-se que os organismos inter-
nacionais elaboraram o conceito de direito
moradia digna com base na defesa de um
adequado padro de vida humano que toda
pessoa tem direito para si e para seus familia-
res. A definio do que moradia sublinha que
a mesma deve ser adequada, estabelecendo
uma forte vinculao com o desenvolvimen-
to sustentvel buscado por todos os pases.
Sua base est no reconhecimento feito pela
Comisso de Assentamentos Humanos e pela
Estratgia Mundial para a Moradia at 2000,
pelo que foi declarado no Comentrio Geral
n. 4 sobre o Direito Moradia Adequada, ex-
pedido pelo Comit dos Direitos Econmicos,
Sociais e Culturais da ONU e descrito tambm
no prembulo da Agenda Habitat (SAULE J-
NIOR, 2004).
O Comentrio Geral n 4 possui em seu
cerne diversos critrios orientadores para de-
finio da moradia digna, que transcende a
questo da unidade da habitao em si. Devem
ser considerados uma srie de elementos, tais
como: a segurana jurdica da posse; a dispo-
nibilidade de servios, materiais, instalaes e
infraestrutura; custo suportvel; habitabilidade;
acessibilidade; localizao e adequao cultural.
A segurana jurdica da posse um cri-
trio fundamental que deve balizar as solu-
es adequadas. Independentemente do tipo
de posse, todos os indivduos necessitam ter
uma situao de segurana na posse, a fim de
garantir a proteo legal contra s remoes
e outras ameaas indevidas ou inesperadas.
A disponibilidade de servios, materiais,
instalaes e infraestrutura relaciona-se com as
facilidades essenciais para o conforto, nutrio,
sade e segurana. Alm disso, as pessoas neces-
sitam ter acesso s redes de gua potvel, energia
eltrica, saneamento bsico e gs; devem estar
disponveis servios de emergncia, de transporte
pblico. de coleta de lixo, dentre outros.
O custo suportvel, por sua vez, a ga-
rantia de que o percentual de custos relacio-
nados habitao seja, em mdia, compat-
veis com os nveis de renda de modo que no
comprometa o oramento familiar e permita
tambm o atendimento de outros direitos hu-
manos, como o direito alimentao, ao lazer,
etc. Alm disso, o princpio do custo suportvel
tambm engloba o estimula s polticas de
-
32
subsdio compra de imvel pelos Estados
Partes para a populao que incapaz de obter
habitao a preos acessveis.
Habitabilidade a condio adequada
da habitao, a garantia de um espao ade-
quado, que dever proteger os indivduos que
ali vivem do frio, calor, umidade, chuva, riscos
estruturais, vetores de doenas, contra amea-
as de incndio, desmoronamento, inundao
e qualquer outro fator que ponha em risco a
sade e a vida das pessoas.
Deve-se levar em conta a dimenso da
moradia e o nmero de cmodos (em especial
quartos e banheiros), que precisam ser con-
dizentes com o nmero de moradores. J a
acessibilidade se destina a acessibilidade para
grupos mais vulnerveis (crianas, idosos, defi-
cientes fsicos, doentes terminais, pessoas com
problemas mdicos persistentes, pessoas com
HIV, pessoas que vivem em reas sujeitas a de-
sastres e outros grupos) para que esses tenham
acesso e adequao s suas necessidades nas
suas moradias. Desse modo, as leis e polticas
habitacionais devem priorizar o atendimento
a esses grupos e levar em considerao suas
necessidades especiais. Alis, importante
dizer que, para realizar o direito moradia
adequada, imprescindvel que o direito a
no discriminao seja garantido e respeitado.
A mobilidade urbana uma das motivaes
da localizao, j que as moradias devem estar
em local prximo ao de seu emprego e que
disponha de servios pblicos bsicos e de
equipamentos sociais. Outro desdobramen-
to da localizao a questo da sade dos
habitantes que poder ser prejudicada por
causa do meio: as habitaes no devero ser
construdas em lugares poludos ou prximo
de fontes de poluio que possam ameaar a
sade dos moradores.
Por fim, a adequao cultural consiste na
forma de construir a casa, seus materiais, as po-
lticas de apoio, todas estas precisam habilitar,
de forma apropriada, devendo expressar tanto
a identidade quanto a diversidade cultural dos
moradores e moradoras.
J o Comentrio Geral n 7, do mesmo
Comit, por sua vez, comenta o artigo 11.1 do
PactoInternacional sobre Direitos Econmicos,
Sociais e Culturais especificamente quanto
questo das remoes foradas. Assim, prev
que, nos casos em que a remoo considera-
da justificvel, ela deve ser empreendida em es-
trita conformidade com as previses relevantes
do Direito Internacional dos Direitos Humanos
e de acordo com os princpios gerais de razo-
abilidade e proporcionalidade, no devendo
ocasionar indivduos sem-teto ou vulnerveis
violao de outros direitos. Nas situaes em
que os afetados so incapazes de prover, por
si mesmos, uma moradia digna, o Estado deve
tomar todas as medidas apropriadas, de acordo
com o mximo dos recursos disponveis, para
garantir uma adequada alternativa habitacio-
nal, assegurando reassentamento ou acesso
terra produtiva, conforme o caso.
relevante tambm a Declarao do Mi-
lnio, que impulsionou os Objetivos do Milnio.
A Declarao do Milnio foi adotada em 8 de
setembro de 2000 por 191 Estados. Foi visan-
do sintetizao de tratados internacionais
elaborados em uma srie de cpulas mundiais
sobre diversas temticas, tais como os direitos
das mulheres, desenvolvimento sustentvel,
combate a discriminao racial, meio-ambien-
te e desenvolvimento, etc., que a Declarao
foi elaborada. Alm disso, a Declarao traz
diversas metas concretas que, caso sejam
atingidas nos prazos fixados, de acordo com
os indicadores quantitativos que os seguem,
devero melhorar o destino da humanidade
neste sculo. So oito Objetivos do Milnio
que surgiram a partir da Declarao, sendo
que o direito moradia digna se encontra no
Objetivo 7, meta 11, que prev at 2020, ter
alcanado uma melhora significativa nas vidas
de pelo menos 100 milhes de habitantes de
bairros degradados.
-
33
6.2 NORMAS CONSTITUCIONAIS E
LEGISLAO NACIONAL APLICVEIS
PARA A SOLUO DOS CONFLITOS
FUNDIRIOS URBANOS
A Constituio Federal, alicerce condutor
de todo o ordenamento jurdico, em sua reda-
o de 1988 estabeleceu diversos dispositivos
que afirmam o direito moradia como um ins-
tituto de imprescindvel proteo pelo Estado.
Inicialmente, o art.5 da Constituio, em
seu inciso XI, inclui o direito moradia no rol
de direitos fundamentais, inferindo a este in-
violabilidade e proteo jurdica num contexto
de tutela dignidade humana do indivduo.
Isso ocorre uma vez que a atual ordem jurdi-
ca entende a moradia como pressuposto do
mnimo existencial.
No artigo 6, aps a Emenda Constitu-
cional n 26, a moradia mencionada como
direito social, reiterando sua importncia como
instituto a ser protegido e preservado. Assim,
a ordem jurdica destaca a moradia como um
dos componentes do mnimo existencial.
A seguir, o art.182 da Carta Magna dispe
sobre a poltica de desenvolvimento urbano,
determinando que ela tenha por objetivo or-
denar o pleno desenvolvimento das funes
sociais da cidade e garantir o bem- estar de
seus habitantes. Atribui papel primordial aos
planos diretores, reconhecendo que cabe prin-
cipalmente aos Municpios a execuo da pol-
tica urbana. O artigo estabelece, ainda, que lei
federal especfica estabelecer as diretrizes da
poltica urbana, o que veio a ocorrer com a pro-
mulgao do Estatuto da Cidade Lei 10.257,
de 20 de julho de 2001 cujo art. 2 dispe:
Art. 2oA poltica urbana tem por obje-
tivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funes sociais da cidade e da pro-
priedade urbana, mediante as seguintes
diretrizes gerais:
I garantia do direito a cidades susten-
tveis, entendido como o direito terra
urbana, moradia, ao saneamento am-
biental, infraestrutura urbana, ao trans-
porte e aos servios pblicos, ao trabalho
e ao lazer, para as presentes e futuras
geraes;
II gesto democrtica por meio da par-
ticipao da populao e de associaes
representativas dos vrios segmentos da
comunidade na formulao, execuo e
acompanhamento de planos, programas
e projetos de desenvolvimento urbano;
III cooperao entre os governos, a ini-
ciativa privada e os demais setores da
sociedade no processo de urbanizao,
em atendimento ao interesse social;
IV planejamento do desenvolvimento
das cidades, da distribuio espacial da
populao e das atividades econmi-
cas do Municpio e do territrio sob sua
rea de influncia, de modo a evitar e
corrigir as distores do crescimento
urbano e seus efeitos negativos sobre
o meio ambiente;
V oferta de equipamentos urbanos e co-
munitrios, transporte e servios pblicos
adequados aos interesses e necessidades
da populao e s caractersticas locais;
VI ordenao e controle do uso do solo,
de forma a evitar:
a) a utilizao inadequada dos imveis
urbanos;
b) a proximidade de usos incompatveis
ou inconvenientes;
c) o parcelamento do solo, a edificao
ou o uso excessivos ou inadequados em
relao infraestrutura urbana;
d) a instalao de empreendimentos ou
atividades que possam funcionar como
plos geradores de trfego, sem a pre-
viso da infraestrutura correspondente;
e) a reteno especulativa de imvel
-
34
urbano, que resulte na sua subutilizao
ou no utilizao;
f) a deteriorao das reas urbanizadas;
g) a poluio e a degradao ambiental;
h) a exposio da populao a riscos de
desastres.
VII integrao e complementaridade en-
tre as atividades urbanas e rurais, tendo
em vista o desenvolvimento socioeco-
nmico do Municpio e do territrio sob
sua rea de influncia;
VIII adoo de padres de produo e
consumo de bens e servios e de expan-
so urbana compatveis com os limites
da sustentabilidade ambiental, social e
econmica do Municpio e do territrio
sob sua rea de influncia;
IX justa distribuio dos benefcios e nus
decorrentes do processo de urbanizao;
X adequao dos instrumentos de po-
ltica econmica, tributria e financei-
ra e dos gastos pblicos aos objetivos
do desenvolvimento urbano, de modo
a privilegiar os investimentos geradores
de bem-estar geral e a fruio dos bens
pelos diferentes segmentos sociais;
XI recuperao dos investimentos do
Poder Pblico de que tenha resultado a
valorizao de imveis urbanos;
XII proteo, preservao e recupera-
o do meio ambiente natural e cons-
trudo, do patrimnio cultural, histrico,
artstico, paisagstico e arqueolgico;
XIII audincia do Poder Pblico mu-
nicipal e da populao interessada nos
processos de implantao de empre-
endimentos ou atividades com efeitos
potencialmente negativos sobre o meio
ambiente natural ou construdo, o con-
forto ou a segurana da populao;
XIV regularizao fundiria e urbanizao
de reas ocupadas por populao de baixa
renda mediante o estabelecimento de nor-
mas especiais de urbanizao, uso e ocu-
pao do solo e edificao, consideradas
a situao socioeconmica da populao
e as normas ambientais;
XV simplificao da legislao de par-
celamento, uso e ocupao do solo e das
normas edilcias, com vistas a permitir
a reduo dos custos e o aumento da
oferta dos lotes e unidades habitacionais;
XVI isonomia de condies para os
agentes pblicos e privados na promo-
o de empreendimentos e atividades
relativos ao processo de urbanizao,
atendido o interesse social.
XVII - estmulo utilizao, nos parcela-
mentos do solo e nas edificaes urba-
nas, de sistemas operacionais, padres
construtivos e aportes tecnolgicos que
objetivem a reduo de impactos ambien-
tais e a economia de recursos naturais.
O art. 183 da Constituio traz a figura do
usucapio especial de imvel urbano. Esse ins-
tituto nasce da tica constitucional de funo
social da propriedade e promoo da justia
social. Uma vez que o proprietrio no esteja
fazendo uso do seu imvel e outrem esteja
na posse do mesmo por cinco anos, adquirir
este a propriedade do imvel. Este dispositivo
baseia-se na ideia de que a terra deve cumprir
uma finalidade, atendendo s necessidades
dos que precisam de moradia. Tal figura uma
inovao bastante benfica, pois flexibiliza o
formalismo em detrimento da matria, bene-
ficiando o possuidor em uma tica de garantia
de direitos.
Refletindo o entendimento internacio-
nal, a legislao brasileira trata da proteo
ao direito moradia e cidade de maneira
significativa em vrios textos normativos, es-
pecialmente no Estatuto da Cidade; na Medi-
da Provisria n2.220, de 4 de setembro de
-
35
2001, que trata da Concesso Especial de
Uso para fins de Moradia; na Lei n 11.124, de
16 de junho de 2005, que trata do Sistema
Nacional de Habitao de Interesse Social; e
na Lei n 11.977/2009 e alteraes feitas pela
12.424, de 16 de junho de 2011, que tratam
do Programa Minha Casa, Minha Vida e da
regularizao fundiria de assentamentos
localizados em reas urbanas, o que inclui
polticas pblicas de induo ao desenvolvi-
mento socioeconmico.
Em assim sendo, percebe-se o firme arca-
bouo jurdico construdo em torno do direito
moradia, envolvendo todos os setores inte-
ressados. A segurana jurdica caracterstica do
Estado Democrtico de Direito fundamental
para a estabilidade das relaes sociais e a
participao de todos legitima a ao do Poder
Estatal, o que faz das previses legais em torno
do direito moradia conquistas inalienveis.
Embora o Direito esteja em constan-
te mutao para acompanhar e cumprir sua
misso na sociedade, melhor satisfazendo os
interesses pblicos, a previsibilidade uma
necessidade condio humana. Sendo assim,
os ajustes jurdicos promovidos para adequa-
o s novas realidades devem ocorrer obser-
vando procedimentos e limites previamente
estabelecidos, considerando, para qualquer
alterao efetiva, as garantias constitucionais.
Assim, para cada alterao proposta dever
do Estado efetu-la causando o menor trauma
e comoo possveis aos direitos e s relaes
jurdicas estabelecidas.
A lei brasileira no prev a possibilidade
de realizao de remoes, com exceo da
Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, conhecida
como Lei do Inquilinato6. Nem mesmo a Medida
Provisria 2.220/2001, norma federal que trata
de ocupaes em reas de risco de vida e
sade dos moradores, prev a possibilidade
remoo de indivduos ou comunidades.
Tambm relevante a Medida Provisria
n 2.220/2001, porque dispe sobre a Con-
cesso de Uso Especial para Fins de Moradia
mencionada no art.183, 1, da Constituio
Federal, estabelecendo seus requisitos. Cria,
ainda, o Conselho Nacional de Desenvolvimen-
to Urbano (CNDU), integrante da estrutura da
Presidncia da Repblica e com carter deli-
berativo e consultivo para matria de poltica
nacional de desenvolvimento urbano, sendo
composto por Presidente, Plenrio e por uma
Secretaria-Executiva.
Importantes Leis so tambm as de n-
mero 11.481/2007 e 11.952/2009, referindo-se
ambas regularizao fundiria. A primeira
prev medidas voltadas regularizao fundi-
ria de interesse social em imveis da Unio e
a segunda regularizao de ocupaes situ-
adas em terras da Unio, no mbito da Ama-
znia Legal. As disposies de regularizao
fundiria so de extrema utilidade na conse-
cuo da efetivao dos direitos moradia
de populaes socialmente marginalizadas.
Por meio desse procedimento, possvel re-
gularizar e adequar espaos em situao de
ocupao irregular a um modelo que beneficie
as populaes ocupantes e promova desenvol-
vimento econmico e social favorvel ao pas.
Segue-se mencionando a Lei n
11.977/2009, conhecida popularmente como
Programa Minha Casa, Minha Vida. Estabele-
ce critrios para a regularizao fundiria de
ocupaes irregulares, bem como o incentivo
produo de novas unidades habitacionais.
Por meio do disposto nessa lei, famlias carentes
podem ser realocadas para unidades habitacio-
nais construdas pelo programa com inteno
de organizar e garantir seu direito moradia,
bem como ver suas moradias regularizadas
por meio de aes pblicas que envolvem a
6 A Lei 8.245/91 utiliza a expresso despejo para a ao de retomada do imvel promovida pelo locador. Ao longo da pesquisa, pre-feriu-se utilizar de maneira uniforme a expresso remoo para designar as medidas de desocupaes dos imveis com legitimao estatal, pois essa tem sido a linguagem mais usual entre os atores sociais e representantes do Poder Pblico envolvidos.
-
36
utilizam de mecanismos prprios para tais si-
tuaes irregulares.
Importante destacar, que a Lei n
11.977/2009 estabelece princpios que deve-
ro ser observados nas aes de regularizao
fundiria, conforme redao do seu art. 48:
Art. 48. Respeitadas as diretrizes gerais
da poltica urbana estabelecidas na Lei
no 10.257, de 10 de julho de 2001, a re-
gularizao fundiria observar os se-
guintes princpios:
I ampliao do acesso terra urbaniza-
da pela populao de baixa renda, com
prioridade para sua permanncia na rea
ocupada, assegurados o nvel adequado
de habitabilidade e a melhoria das con-
dies de sustentabilidade urbanstica,
social e ambiental;
II articulao com as polticas setoriais
de habitao, de meio ambiente, de sa-
neamento bsico e de mobilidade urbana,
nos diferentes nveis de governo e com
as iniciativas pblicas e privadas, volta-
das integrao social e gerao de
emprego e renda;
III participao dos interessados em todas
as etapas do processo de regularizao;
IV estmulo resoluo extrajudicial de
conflitos; e
V concesso do ttulo preferencialmente
para a mulher.
H, portanto, uma inteno clara da legis-
lao em desestimular medidas de remoo da
populao de baixa renda. Deve-se, na buscar
solues que garantam a integrao dos assen-
tamentos irregulares cidade, privilegiando a
permanncia das famlias no local de moradia
e a conquista de novos direitos.
6.3 NORMAS ADMINISTRATIVAS
REFERENTES AOS CONFLITOS
FUNDIRIOS URBANOS
O CONCIDADES usa de suas atribuies
para emitir orientaes e recomendaes no
tocante aplicao do Estatuto das Cidades
aos normativos que versam sobre estruturao
e desenvolvimento urbanstico, em geral. Das
resolues mais atinentes ao estudo desenvol-
vido na presente pesquisa, as seguintes podem
ser destacadas:
Resoluo n 13: traz em seu corpo uma
srie de recomendaes aos atores sociais
dos governos dos Estados, DF e Municpios
que visam a criao de Conselhos Estaduais
e Municipais.
Resoluo n 31: propem um processo
de discusso entre o Poder Judicirio, o Con-
selho das Cidades e outras instituies que
atuam socialmente no de