relatório final pesquisa sobre soluções alternativas para conflitos fundiários urbanos

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  • SOLUES ALTERNATIVASPARA CONFLITOS

    FUNDIRIOSURBANOS

  • PROJETO BRA/05/036 - FORTALECIMENTO DA JUSTIA BRASILEIRA -

    CONVOCAO 01/12

    REA TEMTICA: ATUAO DA JUSTIA NOS CONFLITOS FUNDIRIOS

    URBANOS

    PESQUISA SOBRE SOLUES ALTERNATIVAS PARA CONFLITOS

    FUNDIRIOS URBANOS

    RELATRIO 4

    FINAL

    GOVERNO FEDERAL

    MINISTRIO DA JUSTIA - SECRETARIA DE REFORMA DO JUDICIRIO

    PROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD)

    SO PAULO/BRASLIA

    JULHO DE 2013

  • RELATRIO N 4 FINALSOLUES ALTERNATIVAS PARA CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS

    EQUIPE DE PESQUISA

    COORDENADORES:

    DR. NELSON SAULE JNIOR

    DANIELA CAMPOS LIBRIO DI SARNO

    PESQUISADORES:

    ISABEL GINTERS INSTITUTO PLIS;

    PAULO S. ROMEIRO INSTITUTO PLIS;

    HENRIQUE BOTELHO FROTA INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO

    URBANSTICO (IBDU);

    LIGIA MELO DE CASIMIRO - INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO

    URBANSTICO (IBDU);

    CRISTIANO MULLER CENTRO DE DIREITOS ECONMICOS E SOCIAIS

    (CDES);

    ESTAGIRIAS:

    PAULA FERREIRA TELLES INSTITUTO PLIS

    KRISTAL MOREIRA INSTITUTO PLIS

    SO PAULO/BRASLIA

    JULHO DE 2013

  • SUMRIO1 INTRODUO 11

    2 OBJETIVOS DA PESQUISA 13

    3 METODOLOGIA DA PESQUISA 15

    4 DOS CONCEITOS 19

    4.1 CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 19

    4.2 SOLUES ADEQUADAS 19

    4.2.1 Princpio da Funo Social da Propriedade 21

    4.2.2 Princpio das Funes Sociais da Cidade 22

    4.2.3 Princpio do No Retrocesso Social 23

    5 TRAANDO UMA TERMINOLOGIA: CONFLITO FUNDIRIO AMPLO E CONFLITO FUNDIRIO ESTRITO 25

    6 NORMAS APLICVEIS PARA A SOLUO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 29

    6.1 NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS 29

    6.2 NORMAS CONSTITUCIONAIS E LEGISLAO NACIONAL

    APLICVEIS PARA A SOLUO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 33

    6.3 NORMAS ADMINISTRATIVAS REFERENTES

    AOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 36

    6.4 O CASO PARTICULAR DA LEI N 15.056, DO ESTADO DO CEAR 39

    7 O ESTGIO DO TRATAMENTO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS NO GOVERNO FEDERAL 41

    8 RESOLUO DOS CONFLITOSFUNDIRIOS URBANOS ESTRITOS PELA MEDIAO 45

    8.1 MEDIAO COMO MTODO DE SOLUO ALTERNATIVA DE CONFLITOS 45

    8.2 PRINCPIOS DA MEDIAO 46

    8.3 MEDIAO COMO SOLUO ALTERNATIVA PARA CONFLITOS

    FUNDIRIOS URBANOS ESTRITOS 49

    9 INDICADOS DE TRATAMENTOADEQUADO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS ESTRITOS 53

    9.1 VALORIZAO DA VIABILIDADE SOCIAL DOS EMPREENDIMENTOS

    GERADORES DE IMPACTOS NAS COMUNIDADES 53

    9.2 PRTICAS DE GESTO SOBRE IMPACTOS ECONMICOS,

    SOCIAIS, AMBIENTAIS E CULTURAIS 55

    9.3 POSSIBILIDADES DE MELHORIA DA QUALIDADE DE VIDA DAS COMUNIDADES 56

    10 RECOMENDAES PARA O TRATAMENTOADEQUADO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 57

    10.1 PARA CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS AMPLOS 57

    10.1.1 Reconhecimento e valorizao dos direitos humanos 57

    10.1.2 Reconhecimento da complexidade do tema dos conflitos fundirios 57

    10.1.3 Combate Invisibilidade Proposital 57

  • 10.2 PARA CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS ESTRITOS 58

    10.2.1 Instrumentos Jurdicos Processuais 58

    10.2.2 Em casos de conflitos ocasionados por obras 60

    10.2.3 Em caso de reintegrao de posse 60

    10.2.4 Mediao 61

    10.3 CONSIDERAES SOBRE O BOLSA ALUGUEL 61

    CONCLUSO 63

    REFERNCIAS 65

    ANEXO A TABELA ANALTICA SOBRE A SITUAO DOS ESTADOS PESQUISADOS 69

    ANEXO B MANUAL DE PROCEDIMENTOS: PREVENO E SOLUES ADEQUADAS AOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS 74

  • 11

    A pesquisa sobre solues alternativas

    para conflitos fundirios urbanos, Projeto

    BRA/05/036 Fortalecimento da Justia Bra-

    sileira Convocao 01/12 resulta no presente

    relatrio que tem como ncleo aprofundar o

    tema dos conflitos fundirios urbanos sob a

    perspectiva da identificao, mapeamento, ca-

    talogao e definio de conceitos e critrios

    capazes de configurar verdadeiramente tais

    situaes, bem como produzir soluo pro-

    cessual-normativa que estabelea a resoluo

    alternativa de conflitos como rotina para casos

    desse tipo, considerando as especificidades de

    cada um com base em uma tipologia prpria,

    inclusive a ser indicada no manual anexo que re-

    presenta a parte final da produo da pesquisa.

    O tema dos conflitos fundirios urbanos

    configura-se como um grave problema social

    brasileiro, com significativas repercusses na

    gesto das cidades e na vida das pessoas. En-

    carados at bem pouco tempo apenas como

    um problema de ordem privada a ser resolvido

    na esfera judicial (aes possessrias) e com

    recursos policiais (esbulho possessrio), os

    conflitos fundirios, desde a promulgao do

    Estatuto das Cidades Lei 10.257, de 10 de julho

    em 2001 passaram tambm a ser tratados

    como ponto nevrlgico dos problemas sociais

    e urbanos que precisa ser enfrentado de modo

    planejado, em conjunto com as demais polticas

    pblicas urbanas que envolvem a moradia, o

    uso e a ocupao do solo, o saneamento am-

    biental e a mobilidade urbana.

    As solues judiciais aplicadas, geralmen-

    te, para os conflitos fundirios urbanos limi-

    tam-se a definir a parte vencedora da lide com

    base na legislao civil e processual civil, sem

    que seja efetivamente solucionado o conflito

    que gerou o litgio. Tal conduo gera, a cada

    processo, salvo raras excees, novos e mais

    passivos sociais e jurdicos.

    Sobre o tema da pesquisa que se apre-

    senta, cabe fazer a vinculao com outra pes-

    quisa, realizada entre os anos de 2008 e 2009,

    que versou sobre Conflitos Coletivos sobre a

    Posse e a Propriedade de Bens Imveis, Con-

    vocao 02/2008 da Secretaria de Assun-

    tos Legislativos do Ministrio da Justia, em

    parceria com o PNUD. Na referida pesquisa

    foi realizado estudo da doutrina, legislao e

    jurisprudncia em mbito internacional sobre

    direitos humanos, com foco na proteo jur-

    dica dos direitos a terra; a garantia do devido

    processo legal apontando, tambm, para as

    protees e as garantias legais dispensadas

    aos indivduos e grupos afetados por conflitos

    coletivos de posse e propriedade; e a proteo

    contra a tortura e o abuso de autoridade. Foi

    tambm realizada anlise da jurisprudncia

    de Tribunais brasileiros que lidam, frequente-

    mente, com a questo, quais sejam: o Tribunal

    do Estado de So Paulo, o Tribunal do Estado

    do Paran, os Tribunais Regionais Federais da

    3 Regio e da 4a Regio, com foco nas refe-

    rncias doutrinrias e legais utilizadas como

    fundamento de suas decises. Esse trabalho

    permitiu a identificao do comportamento

    e do entendimento jurdico ptrio majoritrio

    acerca das aes petitrias e possessrias que

    envolvem os conflitos fundirios coletivos.

    Dentre as consideraes finais do projeto

    supracitado est o entendimento de que h um

    significativo distanciamento entre os processos

    judiciais, suas decises e as realidades que lhes

    so afetas. A pesquisa detectou a ausncia de

    terminologias tcnicas com contornos concei-

    tuais claros para definir se o conflito fundirio

    refere-se ou no s questes coletivas. Sendo

    uma pesquisa quantitativa e qualitativa, tambm

    no restou claro se a demanda judicial refere-

    se a um momento, ou permanncia no tempo,

    de conflitos e quais as suas naturezas. As de-

    mandas judiciais analisadas so construdas

    1 INTRODUO

  • 12

    pelas partes e suas competncias tcnicas e

    fazem parecer que o magistrado no as con-

    duz de maneira clara a objetivos e parmetros

    que podem ser extrados diretamente do Texto

    Constitucional.1

    Sob tal perspectiva, o projeto atual tem

    muito a contribuir com o tema e o debate que

    o cerca, inclusive dando continuidade s pro-

    vocaes inicialmente feitas pela Secretaria

    de Assuntos Legislativos SAL/MJ quando

    da Convocao para uma pesquisa especfica

    sobre conflitos fundirios.

    O presente relatrio prope a anlise acu-

    rada do tema dos conflitos fundirios urbanos

    de acordo com a descrio feita na proposta

    de pesquisa submetida ao Ministrio da Justia,

    abordando como o Poder Pblico, ao intervir em

    tais demandas, poderia propor solues adequa-

    das que respeitem os direitos fundamentais dos

    envolvidos. Almeja-se tambm indicar maneiras

    de identificao dos conflitos com o apontamen-

    to de algumas questes que transcendem o co-

    nhecimento jurdico, mas que podem auxiliar na

    efetividade dos direitos, dada as origens socioe-

    conmicas, geogrficas e ambientais do proble-

    ma e da precarizao das ocupaes urbanas.

    A pesquisa realizada apresenta os re-

    sultados a seguir, desdobrando-se entre este

    relatrio final e um manual (anexo) que expe

    como resultado recomendaes sobre a so-

    luo de conflitos, tendo por base premissas

    conceituais que auxiliem na identificao dos

    mesmos, traando procedimentos que (i) evi-

    tem o surgimento de conflitos fundirios urba-

    nos; (ii) incorporem os conflitos fundirios no

    planejamento urbano com a participao dos

    habitantes das cidades; (iii) lidem de forma

    justa e no-violenta com os conflitos j esta-

    belecidos e, (iv) sugiram formas de eficcia

    sociojurdicas para a resoluo dos mesmos.

    1 Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia. Convocao 02/2008, Conflitos coletivos sobre a posse e a propriedade de bens imveis. Srie PENSANDO O DIREITO n 7/2009. Braslia: Ministrio da Justia, 2009, p. 106.

  • 13

    2 OBJETIVOS DA PESQUISA

    Em conformidade com a Convocao

    n 01/2012 do PROJETO BRA/05/036, a pes-

    quisa tem por objetivos mapear, catalogar e

    avaliar experincias alternativas de resoluo

    de conflitos fundirios urbanos que envolvam

    iniciativas de interao entre os rgos pbli-

    cos, os atores sociais e as partes envolvidas,

    especificamente nos Estados do Cear, So

    Paulo e Rio Grande do Sul, bem como propor

    recomendaes para a adoo de processos

    e procedimentos na esfera judicial e adminis-

    trativa para a soluo adequada dos conflitos

    fundirios urbanos.

    Os objetivos especficos cuidam de:

    i. Definir conceitos e critrios capazes de

    identificar situaes de conflito fundirio;

    ii. Construir uma tipologia adequada

    caracterizao da espcie do conflito;

    iii. Construir, com base nos critrios e na

    tipologia desenvolvida, uma metodologia

    adequada ao mapeamento dos conflitos

    fundirios;

    iv. Identificar, com base em experincias

    existentes e na legislao vigente, o re-

    positrio de possibilidades de atuao

    do Estado em conflitos fundirios;

    v. Criar um campo de amostra de con-

    flitos fundirios significativamente im-

    portantes, contendo cinco exemplos re-

    ferenciais;

    vi. Propor solues de ordem processual

    e procedimental que proporcionem a so-

    luo adequada para casos de conflitos

    fundirios urbanos.

    Para atingir seus objetivos, a pesquisa

    contou com quatro etapas distintas: 1) a defini-

    o da metodologia de pesquisa a ser adotada

    e dos critrios para seleo dos casos a se-

    rem estudados; 2) estudo de casos concretos,

    bem como da legislao incidente sobre os

    mesmos e o posicionamento da doutrina e

    jurisprudncia em casos afins; 3) realizao de

    debate sobre o tema e os resultados prelimi-

    nares da pesquisa, com a finalidade de colher

    contribuies para sua concluso; 4) elabo-

    rao de manual informativo sobre o tema,

    apontando possveis novos procedimentos e

    repertrios de possibilidades para a soluo

    adequada de conflitos fundirios urbanos.

    Busca-se embasar o enfrentamento dos

    conflitos fundirios com seriedade e rigor

    cientfico a partir de conceitos, compreenso

    da natureza jurdica e definies que envol-

    vem o tema, no intuito de melhor esclarecer

    o papel do Estado, seja por meio do Poder

    Executivo, do Poder Legislativo e (ou) do

    Poder Judicirio, na regulao, mediao e

    soluo de tais conflitos. Busca-se, assim,

    estabelecer propositivamente um marco de

    definies que possam identificar esses con-

    flitos e conferir a eles um tratamento no

    violento, em observncia aos direitos fun-

    damentais da pessoa humana, de acordo

    com a legislao ptria e internacional e as

    garantias do regular acesso moradia, ao

    acesso justia. As polmicas e relevantes

    questes que envolvem o tema carecem de

    discusso e anlise envolvendo o papel do

    Poder Pblico, sem prejuzo de uma discus-

    so aprofundada com posicionamentos, ex-

    positivos e crticos, permitindo uma viso

    panormica de todo o tema.

    A pesquisa procurou promover, por con-

    seguinte, a abertura de novas perspectivas e

    alternativas de resoluo de conflitos ora re-

    correntes nas cidades brasileiras, provocados

    pelo modelo de urbanizao caracterizado pela

    fragmentao do espao e pela excluso scio-

    territorial. proposta da pesquisa, tambm e

    de maneira objetiva, auxiliar no processo de

  • 14

    desenvolvimento social e econmico brasileiro

    a partir do Direito, o qual como regulamenta-

    dor das relaes sociais, no pode se furtar a

    estar presente e nem a permitir que haja um

    retrocesso social no acesso aos direitos funda-

    mentalmente garantidos.

  • 15

    3 METODOLOGIA DA PESQUISAPara atingir os objetivos descritos no item

    acima, o desenvolvimento do projeto contou

    com quatro etapas distintas que pretenderam

    abranger a definio da metodologia de pes-

    quisa adotada, envolvendo a (i) combinao

    da anlise de casos concretos existentes em

    cada Estado, (ii) avaliao das questes que

    envolvem os casos, (iii) o estudo dos conceitos

    doutrinrios sobre conflitos fundirios, (iv) bem

    como a postura do Poder Judicirio diante de

    tais casos.

    Ao longo da execuo do projeto, foram

    realizados trs debates para melhor compreen-

    so dos resultados obtidos. Dois deles foram

    promovidos pela Secretaria de Reforma do

    Judicirio do Ministrio da Justia, envolven-

    do todas as equipes de pesquisa do Projeto

    BRA/05/036 Fortalecimento da Justia Bra-

    sileira para troca de experincias. O terceiro

    evento foi realizado pela prpria equipe da

    pesquisa sobre conflitos fundirios urbanos,

    com a participao de atores diversos que

    atuam ou so afetados por tais conflitos. Os

    debates auxiliaram na compreenso do tema,

    coleta de dados, elucidao de conceitos usu-

    ais e construo de um novo marco jurdico

    legal na soluo alternativa de conflitos fun-

    dirios urbanos.

    Os componentes da pesquisa desenvol-

    vidos foram os seguintes:

    I. mapeamento sobre a situao de con-

    flitos fundirios urbanos envolvendo o

    Estado, nas suas variadas funes (Po-

    der executivo, Poder Legislativo, Poder

    Judicirio, Ministrio Pblico), e os di-

    versos atores sociais;

    II. estudos de casos de processos judiciais

    referentes s modalidades de conflitos

    fundirios urbanos analisados pelo Poder

    Judicirio Estadual e/ou Federal;

    III. sistematizao de estudos jurdicos

    e outras reas do conhecimento refe-

    rentes aos conflitos fundirios urbanos,

    envolvendo a legislao existente e o

    tratamento que lhes conferido.

    A seleo dos casos estudados foi es-

    tabelecida, inicialmente, a partir do conceito

    de conflitos fundirios urbanos previsto na

    Resoluo n. 87 do Conselho Nacional das

    Cidades (CONCIDADES)2. Em seguida, em

    cada um dos Estados pesquisados, foram so-

    licitadas informaes aos Tribunais de Justia,

    Ministrio Pblico Estadual e Federal, Defen-

    sorias Pblicas Estaduais e da Unio, Escrit-

    rios Modelo e Ncleos de Prtica Jurdica de

    Instituies de Ensino Superior, entidades de

    defesa dos Direitos Humanos e movimentos

    sociais urbanos. Os casos coletados sinteti-

    zam a realidade da aplicao da legislao,

    dos regulamentos e procedimentos existen-

    tes, as solues apresentadas diante dos con-

    flitos e o posicionamento do Poder Judicirio

    nos litgios que lhe so apresentados sobre

    a questo.

    Os estudos e debates do grupo de pes-

    quisa so orientados por diagnsticos, no

    plano administrativo e judicial, doutrinrio e

    legal, que revelam o tratamento da questo na

    atualidade e servem como base de reflexo e

    apontamento de solues prticas. O mtodo

    de anlise tem como premissa a produo de

    um conhecimento interdisciplinar capaz de

    2 A Resoluo n. 87 do Conselho Nacional das Cidades (CONCIDADES) recomenda ao Ministrio das Cidades a instituio da Poltica Nacional de Preveno e Mediao de Conflitos Fundirios Urbanos, apresentando princpios, diretrizes, identificaes e aes de monitoramento, preveno e mediao de conflitos fundirios urbanos, considerando relevante a interlocuo ampla entre o Poder Executivo Federal, os demais Poderes e entes federados com vistas implementao desta Poltica. De acordo com o art. 3 da Resoluo, considera-se conflito fundirio urbano a disputa pela posse ou propriedade de imvel urbano, bem como impacto de empreendimentos pblicos e privados, envolvendo famlias de baixa renda ou grupos sociais vulnerveis que necessitem ou deman-dem a proteo do Estado na garantia do direito humano moradia e cidade.

  • 16

    associar as propostas jurdicas realidade

    social de fato em que estaro inseridas.

    Na sequncia, observa-se o que foi cons-

    trudo pela pesquisa a partir de seus objetivos.

    A etapa 1 teve como objetivo a cons-

    truo de metodologia para identificao e

    mapeamento dos conflitos fundirios urba-

    nos, bem como quais os critrios para sua

    identificao, o que envolveu a compreen-

    so e definio da tipologia a ser utilizada

    nessa pesquisa, apontada mais a frente em

    tpico prprio.

    A equipe de pesquisadores considerou

    como base referencial o levantamento das

    tipologias de conflitos fundirios dos resulta-

    dos do Projeto Pensando o Direito - Confli-

    tos coletivos sobre a posse e a propriedade

    de bens imveis, Projeto 07/004-MJ/SAL/

    PNUD, desenvolvido pelo Instituto Plis, Ins-

    tituto Brasileiro de Direito Urbanstico (IBDU),

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    (PUC/SP) e demais entidades j designadas

    anteriormente, bem como do cadastramento

    feito pela Secretaria Nacional de Acessibili-

    dade e Programas Urbanos do Ministrio das

    Cidades sobre conflitos urbanos e tambm

    o levantamento realizado pelo Observat-

    rio das Metrpoles vinculado ao Instituto de

    Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

    (IPPUR), da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro (UFRJ).

    Durante essa etapa, ocorreram os semi-

    nrios citados no tpico anterior, oportunidade

    em que se discutiu sobre os impactos urba-

    nos nas cidades-sede dos eventos esportivos

    previstos para os prximos anos no Brasil. Os

    encontros auxiliaram tambm na definio de

    uma metodologia comum para identificao e

    caracterizao de conflitos fundirios urbanos

    no sentido de aprofundar o mapeamento de

    acordo com os critrios estabelecidos.

    Dentre os rgos que se envolvem di-

    retamente em casos de conflitos fundirios

    urbanos, foram identificados como interlocu-

    tores fundamentais a prpria Secretaria de

    Reforma do Judicirio do Ministrio da Justia,

    o Conselho Nacional de Justia, os Tribunais de

    Justia dos Estados envolvidos, as Defensorias

    Pblicas Estaduais e da Unio, os Ncleos de

    Prticas Jurdicas das Instituies de Ensino

    Superior, o Observatrio das Metrpoles, os

    movimentos sociais urbanos e as organizaes

    no governamentais que atuam na assessoria

    e apoio das comunidades afetadas. H, contu-

    do, em virtude da complexidade dos conflitos,

    muitos outros atores sociais envolvidos, dire-

    tamente ou no, que foram igualmente consi-

    derados medida que foram identificados no

    levantamento dos casos pesquisados.

    A etapa 2 ocorreu a partir do mapea-

    mento realizado na etapa anterior e cuidou

    de analisar com mais profundidade trs casos

    de conflitos fundirios urbanos que foram sig-

    nificativos no sentido da soluo alternativa

    proposta. No desenvolvimento do mtodo

    qualitativo utilizou-se o estudo de caso com

    vistas anlise de condies que envolvem

    os conflitos fundirios e os atores envolvidos,

    de acordo com a recomendao adotada pela

    Resoluo 87 do Conselho Nacional de Cida-

    des (CONCIDADES).

    A partir da escolha dos casos: i) Jardim

    Edith, em So Paulo / SP; ii) Razes da Praia,

    em Fortaleza / CE; iii) Vila Floresta , em Porto

    Alegre / RS, foi feito um roteiro de questes

    visando o aprofundamento das informaes

    necessrias elaborao do estudo dos casos

    de conflitos fundirios urbanos nos Estados

    indicados, junto a rgos pblicos e atores

    sociais envolvidos.

    Sobre cada caso em especfico, a escolha

    se justifica pelas razes seguintes:

  • 17

    O CASO DO JARDIM EDITH, NA CIDADE DE SO PAULO, ESTADO DE SO PAULONo municpio de So Paulo foi encontrada certa dificuldade para a definio de um caso emblemtico e com a soluo adequada nos parmetros que foram construdos pela pesquisa. Se entendido que o mnimo para uma soluo ser considerada como adequada a no remoo das famlias, o caso do Jardim Edith j seria exclu-do. No entanto, decidiu-se por traz-lo como emblemtico pela resistncia de algumas famlias l residentes e pela atuao da Defensoria Publica do Estado que, em ao junto aos moradores conseguiu um acordo com a Prefeitura de So Paulo para urbanizao da comunidade. O papel da Defensoria no foi o de mediador, mas sim de agente fortalecedor da parte hipossuficiente no conflito, a comunidade ameaada. No caso de So Paulo, os indicativos de soluo alternativa foram o fortalecimento da parte mais fraca do conflito, por meio da assessoria jurdica, e o respeito e validao do direito de resistncia. Depois de mais de 30 anos de disputa, parte da comunidade do Jardim Edith reside na mesma localidade, agora, em conjuntos habitacionais, com 100% de urbanizao e tima infraestrutura, em uma rea de extrema especulao imobiliria em So Paulo.

    O CASO RAZES DA PRAIA, NA CIDADE DE FORTALEZA, ESTADO DO CEARDentre os casos pesquisados no Estado do Cear, o conflito envolvendo a comunidade Razes da Praia foi ob-jeto de maior destaque porque, alm de sintetizar fatores representativos que esto presentes na maioria dos demais casos, tem algumas peculiaridades que o tornam singular quanto tentativa de mediao do conflito.Em sentido estrito, o conflito se estabeleceu em razo de uma ocupao realizada por setenta e cinco famlias de baixa renda, organizadas pelo Movimento dos Conselhos Populares (MCP), em imvel vazio na cidade de Fortaleza pertencente famlia Otoch, detentora de um grupo empresarial de grande expresso econmica. Es-tima-se que o imvel possua cerca de quatro mil metros quadrados. As famlias buscavam no apenas reivindicar seu direito a uma moradia digna, mas tambm, por meio da ocupao, evidenciar o descumprimento da funo social da propriedade do imvel em questo e, por consequncia, a violao do Plano Diretor Participativo de Fortaleza (Lei Complementar n 62/2009). Dessa forma, percebe-se uma articulao ntida entre o conflito em sentido estrito e o conflito em sentido amplo, na medida em que o dficit habitacional confrontado com uma realidade marcada pela especulao imobiliria e pelo no aproveitamento adequado do solo urbanizado na cidade de Fortaleza.Na maioria dos casos identificados no Cear, os conflitos fundirios esto associados disputa por imveis privados. Em todas as situaes, houve judicializao do conflito, em regra, por meio de aes de reintegrao de posse com concesso de liminar inaudita altera pars. A anlise do caso Razes da Praia possibilita uma viso de como o Poder Judicirio vem tratando tais situaes.O que torna o caso merecedor de destaque, entretanto, a sua singularidade no que diz respeito interveno do Poder Pblico no processo de mediao do conflito. Ao contrrio do que ocorreu em outras situaes, a Pre-feitura Municipal, por meio da Fundao de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (HABITAFOR), mesmo no estando diretamente envolvida no conflito em sentido estrito, props a compra do imvel para posterior construo de um conjunto habitacional destinado aos ocupantes. Esse processo resultou na permanncia das famlias no imvel, ainda que a sentena judicial da ao de reintegrao de posse tenha sido procedente. Por-tanto, houve um aparente sucesso no processo de mediao, pois o conflito imediato referente desocupao do imvel foi cessado. Contudo, decorridos quatro anos, no foi efetivada a compra por parte do Municpio e no existe sequer projeto para construo de unidades habitacionais na rea, de forma que as famlias permanecem em situao de extrema precariedade. A relevncia do caso se justifica pelo fato de permitir uma anlise crtica sobre a soluo do conflito, que, em primeiro momento, parecia ser satisfatria, mas que se mostrou insuficiente em virtude da no efetivao do direito moradia adequada.

    O CASO DE VILA FLORESTA, NA CIDADE DE PORTO ALEGRE, ESTADO DO RIO GRANDE DO SULTal caso trouxe para pesquisa importantes especificidades relacionadas ao fenmeno dos conflitos fundirios urbanos. A primeira delas diz respeito ao fato de que o conflito fundirio teve incio porque a rea onde est assentada a Vila Floresta foi desapropriada com a finalidade de ampliao do Aeroporto Internacional Salgado Filho. Essa obra est figurando na Matriz de Responsabilidade de Porto Alegre para a realizao da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Outra peculiaridade importante o fato de haver uma significativa quantidade de imveis alugados na comu-nidade, isto , as 42 (quarenta e duas) famlias ameaadas de remoo eram locatrias, o que encontra pouco respaldo no direito positivo para fins de defesa dentro de um processo de desapropriao levado a efeito por um rgo pblico, no caso a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroporturia (INFRAERO). Por ltimo, o caso da Vila Floresta teve ainda a especificidade de passar por um processo de mediao/concil-iao conduzido pelo Poder Judicirio, que liderou a aproximao das partes, sendo finalizado o acordo pelo Centro Judicirio de Conciliao e Soluo de Conflitos e Cidadania (CEJUSCON), do Tribunal Regional Federal da 4 Regio, em Porto Alegre.

  • 18

    Na Etapa 3, foi promovido um seminrio

    com o tema solues alternativas para con-

    flitos fundirios urbanos com o objetivo de

    provocar o debate e permitir o cruzamento

    de informaes vindas da sociedade civil. Na

    ocasio, a equipe de pesquisa apresentou os

    resultados preliminares e fomentou o debate

    com os atores sociais presentes para captar suas

    contribuies, buscando o aprimoramento da

    pesquisa a partir de uma postura dialgica com

    todos os sujeitos que podem ser envolvidos na

    resoluo de conflitos fundirios urbanos, seja

    por previso legal, seja pelo entendimento de

    que a multidisciplinaridade e a intersetorialidade

    podem garantir maior xito na soluo de tais

    conflitos, para alm do balizamento normativo.

    O Seminrio permitiu a definio mais

    precisa das tipologias identificadas pela pes-

    quisa at o momento, contribuindo com mais

    informaes advindas dos setores pblicos e

    da sociedade civil, bem como das experincias

    presenciadas pelas entidades e movimentos

    que lidam diretamente com tais conflitos, como

    os que integram o Frum Nacional de Refor-

    ma Urbana, por exemplo. Os resultados do

    seminrio ofereceram as ideias fundamentais

    relativas sugesto de uma nova terminologia

    para tratamento do tema: o Conflito Fundirio

    Amplo e o Conflito Fundirio Estrito.

    A Etapa 4 se comps da avaliao das

    informaes levantadas ao longo da pesquisa,

    destacando a compreenso sobre os critrios

    para a identificao dos conflitos e os fatores

    que influenciam seu surgimento, bem como a

    proposio de solues envolvendo questes

    de ordem doutrinria, procedimental e pro-

    cessual para os conflitos fundirios urbanos.

    Como resultado, produziu-se um quadro

    analtico da realidade de cada Estado pesquisa-

    do (Anexo A), indicando especificamente: i) a

    situao vigente; ii) o tratamento inadequado;

    e iii) as recomendaes diante da situao ve-

    rificada, considerando a efetivao dos direitos

    fundamentais dos grupos atingidos.

    Por fim, foi elaborado um Manual de Pro-

    cedimentos e Repertrio de Possibilidades para

    a Soluo Alternativa de Conflitos Fundirios

    (Anexo B), sintetizando os resultados e con-

    tribuies da pesquisa em.

  • 19

    4 DOS CONCEITOS

    4.1 CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS

    A equipe de pesquisadores do projeto

    decidiu ter como base as definies obtidas

    nos conceitos descritos no artigo 3 da Reso-

    luo n. 87 do CONCIDADES3, indicados para

    fins de ao da Poltica Nacional de Preveno

    e Mediao de Conflitos Fundirios Urbanos,

    tendo em vista a ausncia, por parte da dou-

    trina jurdica, de conceitos especficos sobre

    tais temas.

    Conflito fundirio urbano: disputa pela

    posse ou propriedade de imvel urbano, bem

    como impacto de empreendimentos pblicos

    e privados, envolvendo famlias de baixa ren-

    da ou grupos sociais vulnerveis que neces-

    sitem ou demandem a proteo do Estado

    na garantia do direito humano moradia e

    cidade.

    Preveno de conflitos fundirios urba-

    nos: conjunto de medidas voltadas garantia

    do direito moradia digna e adequada e

    cidade, com gesto democrtica das polticas

    urbanas, por meio da proviso de habitao

    de interesse social, de aes de regularizao

    fundiria e da regulao do parcelamento, uso

    e ocupao do solo, que garanta o acesso

    terra urbanizada, bem localizada e a segurana

    da posse para a populao de baixa renda ou

    grupos sociais vulnerveis.

    Mediao de conflitos fundirios urba-

    nos: processo envolvendo as partes afetadas

    pelo conflito, instituies e rgos pblicos

    e entidades da sociedade civil vinculados ao

    tema, que busca a garantia do direito mora-

    dia digna e adequada e impea a violao dos

    direitos humanos.

    4.2 SOLUES ADEQUADAS

    As solues adequadas aos conflitos

    fundirios urbanos partem inevitavelmente de

    uma viso crtica em relao ao tema e de uma

    compreenso da necessria considerao dos

    direitos humanos e fundamentais dos grupos

    atingidos. Nesse sentido, preciso questionar

    o tratamento conferido aos conflitos fundirios

    urbanos sob algumas categorias tericas que

    os encaram a partir de premissas que passam

    por: a) primazia do formalismo; b) viso redu-

    cionista da complexidade do tema dos conflitos

    fundirios urbanos; c) desqualificao da posse;

    d) negao incidental dos Direitos Humanos.

    Comeando pela questo da primazia do

    formalismo, percebe-se que os conflitos fun-

    dirios so encarados majoritariamente como

    um problema meramente judicial ou de polcia.

    Essa leitura da realidade est relacionado a uma

    viso que tem como base e raiz de interpretao

    a propriedade, seja pblica ou privada, como

    um direito que se contrape a todos, inclusive

    em prejuzo dos demais direitos envolvidos. O

    absolutismo da forma conduz a situaes nas

    quais os conflitos sejam resolvidos mediante

    uma prestao jurisdicional, com o implemento

    da fora para cumprir as medidas de desocupa-

    o dos imveis em disputa. Com efeito, essa

    maneira de soluo dos conflitos fundirios ur-

    banos leva a grandes riscos de cometimento de

    danos aos Direitos Humanos, j que tem acar-

    retado medidas de violncia e injustia social,

    como o incremento do nmero de pessoas sem

    teto, sem acesso moradia digna e sem efetivo

    direito cidade, ou at mesmo afetadas no seu

    direito vida e integridade fsica no caso de

    uso excessivo da fora nos atos de remoo.

    3 BRASIL. Ministrio das Cidades. Resoluo Recomendada n. 87, de 08 de dezembro de 2009. Recomenda ao Ministrio das Cidades instituir a Poltica Nacional de Preveno e Mediao de Conflitos Fundirios Urbanos. Dirio Oficial da Unio, Braslia, DF, 25 de maio de 2010. Disponvel em: . Acesso em: mai. 2013.

  • 20

    Apesar da consolidao no ordenamento

    jurdico brasileiro do direito moradia digna

    como uma garantia social, apesar dos princ-

    pios, diretrizes e regras emanadas do Estatuto

    da Cidade e das resolues advindas do Con-

    selho Nacional das Cidades, o Poder Judicirio,

    na maioria dos casos, privilegia a aplicao da

    legislao civil e processual civil para determi-

    nar a desocupao liminar e, por vezes, com

    uso de fora policial das reas submetidas a

    disputa.

    Isso fica claro quando se verificam os

    resultados da pesquisa sobre Conflitos cole-

    tivos sobre a posse e a propriedade de bens

    imveis realizada no mbito do Projeto Pen-

    sando o Direito n 07/004-MJ/SAL/PNUD. Na-

    quela pesquisa, foram pesquisadas decises

    judiciais no Estado de So Paulo por um per-

    odo de 20 anos, desde a Constituio Federal

    de 1988. Assim, a pesquisa apurou que, nesse

    nterim, as aes judiciais com procedncia

    total ou parcial do pedido remontam ao per-

    centual de 71% (setenta e um por cento) dos

    casos, sendo que 27% (vinte e sete por cento)

    dessas decises foi baseada na regularidade

    do ttulo possessrio, 20% (vinte por cento)

    com base na comprovao do esbulho posses-

    srio, e 17% (desessete por cento) com base

    na comprovao da posse anterior do imvel

    objeto da reintegrao. Com efeito, a pesquisa

    deixa claro que a legislao processual civil

    o grande guia das decises judiciais sobre

    os conflitos fundirios, em detrimento das

    normas constitucionais e de toda uma legis-

    lao ptria garantidora do direito moradia

    digna e cidade. assim que a pesquisa se

    manifesta concluindo:

    Os conflitos fundirios de posse e pro-

    priedade, alm de serem compreendidos des-

    de uma perspectiva jurdico-legal no plano

    do direito internacional, devem tambm ser

    considerados desde a perspectiva humanit-

    ria do direito e da legislao criminal relativa

    tortura e ao abuso de autoridade.

    Os dados apontados causam impacto

    quando se estuda o tema dos conflitos fun-

    dirios urbanos. Em primeiro lugar, porque a

    anlise do grave problema social das remoes

    sob o ponto de vista eminentemente jurdico-

    formal-processual ignora outras interfaces ju-

    rdicas e sociais que tambm so importantes

    no momento da deciso de uma demanda

    judicial desse tipo. Compreender os confli-

    tos fundirios urbanos a partir de uma viso

    excessivamente formalista e que privilegia a

    supremacia da propriedade (da segurana

    jurdica e do respeito aos contratos) em de-

    trimento do reconhecimento da funo social

    da posse (em ocupaes consolidadas ou no,

    de seu direito moradia digna, do direito

    cidade, do direito participao na deciso

    pelas comunidades ameaadas de remoo

    do seu prprio destino) diminui consideravel-

    mente as chances de uma soluo alternativa

    e adequada ao conflito fundirio.

    Uma viso crtica dos conflitos fundirios

    a partir dos Direitos Humanos permite com-

    preender os fundamentos tericos e jurdicos

    das violaes. Isso fica claro quando se verifica

    o insistente processo de desqualificao da

    posse e dos indivduos e comunidades que

    so vtimas desses conflitos. Via de regra, es-

    sas pessoas so consideradas culpadas por

    seu prprio drama, seja por serem classifica-

    das como invasoras de imveis privados; pelo

    fato de terem construdo suas casas em locais

    inapropriados e ambientalmente frgeis em

    encostas de morros, margens de rios, mangues

    e arroios, por exemplo; ou porque suas comu-

    nidades so vistas como entraves realizao

    de obras importantes sob a tica do Poder

    Pblico e do mercado imobilirio.

    Todo esse processo de desqualificao

    leva a uma tentativa de negao dos direitos

    dessas comunidades. Esse processo de invisi-

    bilizao, ao longo do tempo, foi e to sig-

    nificativo que, para aquelas pessoas que esto

    na iminncia de serem removidas de forma

  • 21

    arbitrria e/ou violenta de suas moradias, h

    dificuldades de aplicao dos Direitos Huma-

    nos. Por isso, o magistrado ou o administrador

    pblico, por exemplo, compreendem legtima

    uma ordem de remoo cujo cumprimento de-

    mande uso da fora e da violncia Da porque

    tambm concluir que o processo de desquali-

    ficao levado a efeito contra essas comunida-

    des to forte que se tem por consequncia

    a violao de Direitos Humanos.

    Nesse sentido, a soluo adequada a que

    essa pesquisa se props buscar deve dialogar

    com o tema dos conflitos fundirios denuncian-

    do a primazia do formalismo e encontrando

    ferramentas que garantam o respeito imediato

    dignidade da pessoa humana, ao direito

    moradia digna, ao direito cidade e partici-

    pao popular nos processos decisrios de pla-

    nejamento das cidades. alternativa a soluo

    que procure resolver de maneira gil e desbu-

    rocratizada situaes de conflitos, deixando a

    judicializao como a ltima alternativa.

    Nos casos de conflitos fundirios urba-

    nos, as solues adequadas sero aquelas

    que salvaguardem o direito moradia digna,

    considerem os princpios da funo social da

    propriedade, das funes sociais da cidade e

    do no retrocesso social.

    As solues adequadas, portanto, de-

    vem reconhecer o direito moradia digna

    como um Direito Fundamental garantido pelo

    artigo 6 da Constituio Federal e delimita-

    do pelo Comentrio Geral n 4 do Comit de

    Direitos Econmicos, Sociais e Culturais das

    Naes Unidas.

    4.2.1 PRINCPIO DA FUNO SOCIAL

    DA PROPRIEDADE

    Entre os princpios da ordem econmica

    estabelecidos no artigo 170 da Constituio

    Federal, esto previstos os princpios da jus-

    tia social, e da funo social da propriedade,

    que devem ser aplicados para concretizar a

    dignidade da pessoa humana, que se mostra,

    ao mesmo tempo, uma finalidade e um funda-

    mento do Estado Brasileiro.

    O direito de propriedade garantido

    como um direito individual que deve atender

    a uma funo social, esta ltima configurando-

    se como um direito coletivo, de acordo com o

    artigo 5, incisos XXII e XXIII, do Texto Consti-

    tucional. A funo social da propriedade, em

    consonncia com os demais princpios consti-

    tucionais, o mandamento principal do regime

    da propriedade que deve ser disciplinado pelo

    direito pblico.

    A funo social tem a natureza de princ-

    pio bsico que incide no contedo do direito,

    fazendo parte de sua estrutura. O exerccio

    do direito de propriedade somente ter ga-

    rantia constitucional se for condizente com os

    princpios e objetivos fundamentais do Estado

    Brasileiro. Essa vinculao passa pela sintonia

    da funo social da propriedade com o exer-

    ccio da cidadania, com a realizao da justia

    social e com o objetivo da construo de uma

    sociedade justa e solidria.

    A partir da determinao da Constitui-

    o de 1988 de que toda propriedade seja

    ela pblica ou privada deve submeter-se ao

    princpio da funo social, esse princpio tam-

    bm um comando diretivo para a soluo dos

    conflitos fundirios urbanos.

    Pelo tratamento constitucional sobre a

    poltica urbana cabe aos Municpios estabele-

    cer, por meio do plano diretor, as exigncias

    fundamentais de cada cidade para a proprie-

    dade urbana cumprir a sua funo social. De

    acordo com o artigo 182, pargrafo segundo,

    da Constituio, a propriedade urbana cumpre

    sua funo social quando atende as exigncias

    fundamentais de ordenao da cidade expres-

    sas no plano diretor.

    Como princpio norteador do regime da

    propriedade urbana, a funo social permite

    que o Poder Pblico Municipal possa exigir

    o cumprimento do dever do proprietrio em

  • 22

    benefcio da coletividade, o que implica na

    destinao concreta dos imveis para atender

    um interesse social.4

    Esse preceito abrange tambm a pro-

    priedade pblica e, portanto, os bens imveis

    urbanos da Unio, dos Estados e Municpios

    que, em muitos casos, so objeto de conflitos

    fundirios. Os entes federativos devem ob-

    servar as diretrizes do plano diretor sobre o

    cumprimento da funo social da propriedade

    urbana para a definio da forma de uso e

    ocupao de seus bens imveis urbanos.

    Cabe aos Municpios estabelecer pelo

    plano diretor as exigncias para os bens im-

    veis urbanos atenderem as seguintes finalida-

    des sociais que devem ser consideradas para

    a soluo dos conflitos fundirios urbanos:

    - acesso moradia para todos;

    - justa distribuio dos benefcios e nus

    decorrentes do processo de urbanizao;

    - regularizao fundiria e urbanizao

    das reas ocupadas por populao de

    baixa renda;

    - recuperar para a coletividade a valori-

    zao imobiliria decorrente da ao do

    Poder Pblico;

    - proteo, preservao e recuperao

    do meio ambiente natural e construdo;

    4.2.2 PRINCPIO DAS FUNES SOCIAIS

    DA CIDADE

    Como questo preliminar relevante ter

    o entendimento de que se trata de um princpio

    dirigente para a promoo da poltica urba-

    na, nos termos do artigo 182 da Constituio

    Federal, e no de uma diretriz desta poltica.

    O Estatuto da Cidade deixa claro esta opo

    constitucional em seu artigo 2, ao dispor que

    a poltica urbana tem por objetivo ordenar o

    pleno desenvolvimento das funes sociais da

    cidade e da propriedade com base nas dire-

    trizes gerais previstas no mesmo dispositivo

    legal. Verifica-se um tratamento muito claro no

    sentido de diferenciar, nesta norma, os princ-

    pios e as diretrizes gerais da poltica urbana.

    O Estatuto da Cidade estabelece prin-

    cpios e diretrizes que expressam uma nova

    concepo dos processos de uso, desenvol-

    vimento e ocupao do territrio urbano que

    deve orientar a ao dos agentes pblicos e

    privados na reconstruo das cidades sob a

    tica da justia, da democracia e da sustentabi-

    lidade. Oferece, assim, respaldo para uma nova

    maneira de realizar o planejamento urbano. Sua

    funo garantir o cumprimento da funo

    social da cidade e da propriedade urbana, o

    que significa o estabelecimento de normas

    de ordem pblica e interesse social que regu-

    lam o uso da propriedade urbana em prol do

    bem coletivo, da segurana e do bem-estar dos

    cidados (art. 1). A cidade e a propriedade

    adquirem novo significado e alcance no con-

    texto da ordem jurdico-urbanstica brasileira

    frente exigibilidade constitucional de que

    ambas devem atender a funes sociais quan-

    to ao acesso, utilizao e distribuio de suas

    riquezas e possibilidades. Para isso, o Estatuto

    da Cidade coloca disposio dos Municpios

    uma srie de instrumentos de interveno no

    mercado de terras e nos mecanismos de pro-

    duo da excluso.

    O Estatuto da Cidade introduz no campo

    dos direitos fundamentais uma inovao rele-

    vante com a incluso e definio do direito a

    cidades sustentveis, entendido como o direito

    terra urbana, moradia, ao saneamento am-

    biental, infraestrutura urbana, ao transporte e

    aos servios pblicos, ao trabalho e ao lazer, para

    4 Eros Grau na busca de explicitar a ideia de funo social como funo social ativa, enfatiza o fato de que o princpio da funo social da propriedade impe ao proprietrio - ou a que detm o poder de controle, na empresa - o dever de exerc-la em benefcio outrem. Isso significa que a funo social da propriedade atua como fonte da imposio de comportamentos positivos - prestao de fazer, portanto e no, meramente, de no fazer - ao detentor do poder que deferi da propriedade. Vinculao inteiramente distinta, pois daquela que lhe imposta merc de concreo do poder de poltica (1990 op. cit. pg. 250).

  • 23

    as presentes e futuras geraes (art. 2, I). Des-

    taque-se tambm o preceito da gesto demo-

    crtica das cidades, por meio da participao da

    populao e de associaes representativas dos

    vrios segmentos da comunidade na formulao,

    execuo e acompanhamento de planos, pro-

    gramas e projetos de desenvolvimento urbano.

    Esta definio jurdica do direito cidade

    contm uma caracterstica semelhante a do

    direito ao meio ambiente, por estabelecer que

    os seus componentes, como a moradia, devem

    ser assegurados para as presentes e futuras

    geraes. O desenvolvimento das funes

    sociais da cidade, por ser interesse de todos

    os seus habitantes, enquadra-se na categoria

    dos interesses difusos, pois todos so afetados

    pelas atividades e funes desempenhadas

    nas cidades: proprietrios, moradores, traba-

    lhadores, comerciantes e migrantes. Logo, a

    relao que se estabelece entre os sujeitos

    com a cidade, que um bem de vida difuso.

    Devido a esta definio jurdica, so su-

    jeitos que tem proteo jurdica com base no

    direito cidade, por exemplo:

    - os grupos de habitantes e as comunida-

    des que tenham formado a identidade e

    memria histrica e cultural da cidade ,

    - os grupos sociais e comunidades que

    vivem em assentamentos urbanos infor-

    mais consolidados que podem deman-

    dar do Poder Pblico, aes e projetos

    de urbanizao e regularizao fundiria

    de interesse social.

    O direito cidade o paradigma para a

    observncia das funes sociais da cidade, que

    sero respeitadas quando as polticas pblicas

    forem voltadas para assegurar, s pessoas que

    vivem e s que vivero nas cidades, o acesso

    terra urbana, moradia, ao saneamento am-

    biental, infraestrutura urbana, ao transporte

    e aos servios pblicos, ao trabalho e ao lazer.

    O respeito ao direito cidade o principal

    parmetro que permite verificar em que estgio

    as cidades brasileiras se encontram quanto ao

    desenvolvendo das funes sociais que devem

    permitir ao cidado circular, habitar, trabalhar e

    ter acesso ao lazer. Quanto maior for o estgio

    de igualdade, de justia social, de paz, de demo-

    cracia, de harmonia com o meio ambiente, de

    solidariedade entre os habitantes das cidades,

    maior ser o grau de proteo e implementao

    do direito cidade e das suas funes sociais.

    4.2.3 PRINCPIO DO NO

    RETROCESSO SOCIAL

    O princpio do no retrocesso social diz

    respeito proibio de se retornar a uma situ-

    ao de menor proteo de direitos do que a

    atual. O Pacto Internacional sobre os Direitos

    Econmicos, Sociais e Culturais, reconhecido

    pelo Brasil pelo Decreto n 591 de 06 de julho

    de 1992, estabelece:

    ARTIGO 5

    1. Nenhuma das disposies do presente

    Pacto poder ser interpretada no sentido

    de reconhecer a um Estado, grupo ou

    indivduo qualquer direito de dedicar-

    se a quaisquer atividades ou de praticar

    quaisquer atos que tenham por objetivo

    destruir os direitos ou liberdades reco-

    nhecidos no presente Pacto ou impor-

    lhes limitaes mais amplas do que aque-

    las nele prevista.

    2. No se admitir qualquer restrio ou

    suspenso dos direitos humanos funda-

    mentais reconhecidos ou vigentes em

    qualquer Pas em virtude de leis, conven-

    es, regulamentos ou costumes, sob pre-

    texto de que o presente Pacto no os re-

    conhea ou os reconhea em menor grau.

    Ao aplicar essa disposio da norma interna-

    cional aos casos de conflitos fundirios, con-

    clui-se que as famlias afetadas no podem

    restar menos protegidas e com menos direitos

    do que gozavam anteriormente ao conflito. Na

    prtica, o que se v justamente o contrrio,

  • 24

    j que, quando um conflito fundirio enfren-

    tado sem mediao, ou os atingidos perdem

    totalmente seu direito moradia digna ou esse

    direito reduzido com o pagamento de uma

    indenizao que no lhes garante nem ao me-

    nos o estado anterior de direitos.

    Assim como o direito moradia digna e

    o princpio do no retrocesso social, a funo

    social da propriedade e da cidade vo ser ele-

    mentos formadores da soluo adequada para

    os conflitos fundirios.

  • 25

    5 TRAANDO UMA NOVA TERMINOLOGIA: CONFLITO FUNDIRIO AMPLO E CONFLITO FUNDIRIO ESTRITO

    A partir dos estudos de caso realizados

    nesta pesquisa, dos resultados do recente

    projeto Conflitos coletivos sobre a posse

    e a propriedade de bens imveis realizada

    no mbito do Projeto Pensando o Direito n

    07/004-MJ/SAL/PNUD, e dos depoimentos

    dos participantes do seminrio realizado

    com a participao de atores sociais envol-

    vidos no tema e (ou) com ele, verificou-se

    a necessidade de ser adotada institucional-

    mente uma tipologia dos conflitos fundi-

    rios urbanos, para que seja possvel pensar

    estratgias mais objetivas e especficas para

    a sua soluo.

    A ocupao do solo urbano no Brasil

    sofreu e sofre a imposio de seus limites

    territoriais consequentes do grande status

    dado propriedade privada (IMPARATO,

    2008). Todo esse culto pela propriedade

    privada fez com que o planejamento das

    grandes cidades ocorresse de forma a excluir

    aqueles que no eram proprietrios de bens.

    A cidade supre queles que podem pagar

    por servios, transporte, escolas, hospitais,

    etc. Aqueles que no possuam tal possibi-

    lidade moram em situaes extremamente

    precrias e, muitas vezes, realizam autocons-

    truo de moradias em zonas perifricas,

    onde a lei, o planejamento e os servios no

    chegam adequadamente.

    Entende-se que as cidades pesquisadas,

    as cidades exemplificadas pelos participan-

    tes dos seminrios e todas aquelas definidas

    por uma gesto excludente de seu territrio,

    tm em comum uma iminente situao de

    conflito causado pela segregao espacial

    ou ambiental.

    A extenso das periferias urbanas (a par-

    tir dos anos de 1980 as periferias crescem

    mais do que os ncleos ou municpios

    centrais nas metrpoles) tem sua expres-

    so mais concreta na segregao espacial

    ou ambiental configurando imensas regi-

    es nas quais a pobreza homogenea-

    mente disseminada. (MARICATO, 2003).

    Esta situao de constante excluso s-

    cio-territorial para boa parte da populao que

    vive nas cidades pode ser configurada como

    situao de conflito sobre o uso e ocupao

    de seus territrios, que formadora da tipolo-

    gia do conflito fundirio amplo, que pode ser

    considerada como uma situao tipificada pela

    violao da ordem urbanstica incorporada no

    ordenamento jurdico ptrio.

    No entanto, o conflito fundirio eminen-

    temente ligado apropriao desigual pela

    populao do territrio, no exclusivamente

    fruto do processo chamado exploso das pe-

    riferias. Esse , sem dvida, um fenmeno co-

    mum s grandes cidades brasileiras, mas pos-

    svel verificar tambm uma disputa desleal por

    localidades centrais. perceptvel, no modelo

    urbanstico das grandes cidades brasileiras,

    centralidades (que no necessariamente so

    centralidades geogrficas, mas sim centralida-

    des econmicas) dotadas de infraestrutura, e

    disputadas por alguns atores - pela populao

    que deseja morar nessas regies, pela popula-

    o que pode pagar muito para morar nessas

    regies, por pequenos comerciantes e pelos

    atuais conglomerados econmicos - fazendo

    com que, na sua grande maioria, essa disputa

    seja bem mais favorvel aos detentores do

    capital econmico. O resultado so regies

    centrais dotadas de infraestrutura, oferta de

  • 26

    trabalhos, lazer e servios expulsando a popu-

    lao que no consegue pagar pelo preo do

    metro quadrado, que se torna cada vez mais

    caro. A ttulo de exemplo temos os dados da

    cidade de So Paulo: segundo pesquisa reali-

    zada pela Secretaria Municipal de Finanas em

    2005, o valor do metro quadrado em Perus,

    bairro ao extremo noroeste da cidade, tem o

    valor mdio de R$ 55,00 (cinquenta e cinco

    reais). J em Pinheiros, esse valor estimado

    em R$ 1.220,00 (mil, duzentos e vinte reais) o

    metro quadrado, no mnimo. Sabe-se que, na

    prtica, o valor venal do metro quadrado na

    regio do chamado centro expandido de So

    Paulo chega a R$ 10.000,00 (dez mil reais)5, o

    que comprova que poder morar nessa regio

    central privilgio para muito poucos.

    Alm dessas duas situaes de apropria-

    o desigual e excluso territorial nas cidades,

    deve-se levar em considerao a realidade das

    pequenas e mdias cidades, pois, conforme

    Maricato (2003):

    Para completar uma sntese sobre as ca-

    ractersticas da rede urbana no Brasil

    preciso lembrar que a maior parte dos

    municpios brasileiros cujas sedes so

    definidas como cidades ou mais exata-

    mente 72%, tm menos de 20.000 habi-

    tantes, e que as cidades que mais crescem

    aps os anos 90 so as de porte mdio

    cuja populao est situada no intervalo

    entre 100.000 e 500.000 habitantes.

    Em suma, nas cidades brasileiras, pos-

    svel se deparar com situaes de disputa oca-

    sionadas pela (entre outras) excluso territorial,

    em que no se confere relevncia da posse

    como um direito e se verifica a criminalizao

    dos movimentos de moradia.

    A regularizao fundiria de interesse

    social como uma prioridade nos Municpios, a

    redistribuio da riqueza e da populao no

    territrio de forma a garantir moradia digna

    em locais com infraestrutura, com oferta de

    trabalho prximo de escolas e instituies

    de ensino tcnico e superior, de servios de

    qualidade de sade, so aes necessrias

    para a soluo do conflito causado por essas

    apropriaes desiguais do territrio, tendo

    como objetivo a construo de cidades jus-

    tas, democrticas e sustentveis tendo como

    fundamento o direito cidade preconizado

    na ordem jurdico-urbanstica brasileira.

    A esse conflito eminente, fruto do plane-

    jamento excludente, da priorizao do direito

    de propriedade em detrimento do direito

    moradia, atribuiremos a terminologia de Con-

    flito Fundirio Amplo.

    No entanto, h situaes de conflito com

    partes nominveis, proprietrios versus ocu-

    pantes, ou Poder Publico versus particulares,

    com instaurao de aes judiciais e iminn-

    cia de remoo. So situaes causadas por

    reintegrao de posse ou por realizao de

    grandes obras, empreendimentos ou por mero

    interesse econmico. A este tipo de conflito,

    caracterizado pelo momento da instaurao

    nominvel do mesmo, chamaremos Conflito

    Fundirio Estrito.

    O Conflito Fundirio Amplo no se

    relaciona apenas com uma nica situao

    especfica, mas tem uma abrangncia terri-

    torial que pode englobar vrios bairros, ou

    regies de uma cidade, um grande nmero

    de habitantes no identificveis contendo

    uma somatria de situaes de segregao

    social e territorial de repercusso simult-

    nea em um mesmo intervalo temporal. J

    o Conflito Fundirio Estrito diz respeito a

    um caso especfico e nominvel, no qual se

    identificam as partes claramente.

    5 Secretaria Municipal de Finanas/Departamento de Rendas Imobilirias. PGV, 2005 agregao por quadra fiscal e TPCL, 2005; Secretaria Municipal de Habitao Sehab/Superintendncia de Habitao Popular Habi/Departamento de Regularizao de Par-celamento do Solo Resolo; IBGE. Censo Demogrfico 2000. Projeo Estatstica da Amostra.

  • 27

    Ambos os conflitos podem tambm

    ser tipificados por uma relao temporal. O

    Conflito Fundirio Amplo ocorre de maneira

    contnua em cidades de formao excludente,

    e sua soluo adequada tange muito mais o

    mbito de polticas pblicas, estratgias de

    gesto e do modelo de cidades que se quer.

    J aos Conflitos Estritos, atribumos um mo-

    mento especfico da situao de conflito que

    pode ser a partir do conhecimento da reali-

    zao de uma obra, de um empreendimento,

    de uma ao administrativa ou judicial que

    poder resultar na remoo da populao da

    rea objeto do conflito.

  • 29

    6 NORMAS APLICVEIS PARA A SOLUO DOS CONFLITOS FUNDIRIOS URBANOS

    6.1 NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS

    HUMANOS

    No tocante s normas internacionais, a

    Declarao Universal dos Direitos Humanos,

    adotada pela Organizao das Naes Unidas

    em 10 de dezembro de 1948, traz em seu bojo

    direitos humanos fundamentais, essenciais a

    todos os seres humanos, delimitando o sentido

    das expresses liberdades fundamentais e di-

    reitos humanos, aludidos na Carta da ONU.

    Em relao presente pesquisa, a Declarao

    Universal foi o primeiro documento a reconhecer

    o direito moradia como um Direito Humano

    universal, aceito e aplicvel em todo o mundo

    como um dos direitos fundamentais para a vida.

    O efeito vinculante da Declarao Uni-

    versal um assunto bastante debatido. No

    entanto, encontra-se na doutrina argumentos

    que caminham para este entendimento. Pode

    ser citado, neste caso, Flvio Konder Compa-

    rato que entende que restringir a Declarao

    Universal ao seu carter de recomendao seria

    pecar por excesso, medida que

    Reconhece-se hoje, em toda a parte, que a

    vigncia dos direitos humanos independe

    de sua declarao em constituies, leis e

    tratados internacionais, exatamente por-

    que se est diante de exigncias de respei-

    to dignidade humana, exercidas contra

    todos os poderes estabelecidos, oficiais

    ou no. (COMPARATO, 1999, p. 210)

    Ressaltando ainda mais a argumentao

    do efeito vinculante da Declarao Universal,

    Flvia Piovesan preceitua queprevaleceu en-

    to, o entendimento de que a Declarao de-

    veria ser juridicizada sob a forma de tratado

    internacional, que fosse juridicamente obriga-

    trio e vinculantes no mbito do Direito Inter-

    nacional (PIOVESAN, 2012 pp. 215, 216).Essa

    juridicizao se d quando a Declarao ser-

    ve de fundamento para uma srie de tratados e

    leis internacionais, tendo influenciado tambm

    as constituies de diversos pases ao redor

    do mundo, alm da elaborao do Pacto In-

    ternacional dos Direitos Civis e Polticos e do

    Pacto Internacional dos Direitos Econmicos,

    Sociais e Culturais, que incorporaram direitos

    presentes na Declarao e so formalmente

    vinculantes (PIOVESAN, 2012 p. 216).

    Seguindo os autores citados, pode-se

    dizer que a Declarao Universal possui efeito

    vinculante, tanto principiologicamente como

    materialmente. Principiologicamente por esta

    ser constituda de costumes e princpios gerais

    do Direito Internacional que coadunam com o

    respeito dignidade da pessoa humana, a qual

    deve ser exercida contra todos os poderes,

    oficiais ou no (COMPARATO, 1999, p. 210).

    Tambm pode se afirmar seu efeito vinculante

    de maneira formal medida que esta serviu

    como base para a elaborao dos tratados de

    significativa importncia na temtica de direi-

    tos humanos e que possuem fora legal, os j

    citados Pacto Internacional sobre os Direitos

    Econmicos, Sociais e Culturais e o Pacto In-

    ternacional dos Direitos Civis e Polticos.

    O Pacto Internacional sobre Direitos Eco-

    nmicos, Sociais e Culturais foi elaborado com

    o escopo de assegurar maior juridicidade aos

    dispositivos da Declarao Universal dos Direi-

    tos Humanos, determinando a responsabiliza-

    o internacional dos Estados signatrios na

    hiptese de violao dos direitos estipulados.

  • 30

    O Pacto tambm objetiva estabelecer, sob a

    forma de direitos, as condies sociais, econ-

    micas e culturais para a vida digna. Indiscutivel-

    mente, possui carter vinculante (PIOVESAN,

    2012, pp. 215, 216).

    Esse pacto foi adotado pela XXI Sesso

    da Assembleia-Geral das Naes Unidas, em

    19 de dezembro de 1966, tendo sido ratifica-

    do, no Brasil, pelo Decreto n 591/1992. Est

    organizado em cinco partes, que dizem res-

    peito: (I) autodeterminao dos povos e

    livre disposio de seus recursos naturais e

    riquezas; (II) ao compromisso dos Estados de

    implementar os direitos previstos; (III) aos di-

    reitos propriamente ditos; (IV) ao mecanismo

    de superviso por meio da apresentao de

    relatrios ao ECOSOC e; (V) s normas refe-

    rentes sua ratificao e entrada em vigor.

    Os direitos econmicos dizem respeito

    produo, distribuio e consumo da riqueza,

    objetivando principalmente a regulao das

    relaes trabalhistas. Os direitos sociais e cul-

    turais, por sua vez, esto relacionados ao esta-

    belecimento de um padro de vida adequado.

    Para o presente trabalho, destaca-se o artigo

    11, 1, que prev o direito moradia digna:

    Os Estados Partes no presente Pacto re-

    conhecem o direito de todas as pessoas a

    um nvel de vida suficiente para si e para

    as suas famlias, incluindo alimentao,

    vesturio e alojamento suficientes, bem

    como a um melhoramento constante das

    suas condies de existncia. Os Esta-

    dos Partes tomaro medidas apropriadas

    destinadas a assegurar a realizao deste

    direito reconhecendo para este efeito a

    importncia essencial de uma coopera-

    o internacional livremente consentida.

    O Pacto Internacional sobre Direitos Civis

    e Polticos tambm foi adotado pela XXI Sesso

    da Assembleia-Geral das Naes Unidas, em

    19 de dezembro de 1966, tendo sido ratificado,

    no Brasil, pelo Decreto n 592, de 6 de julho

    de 1992. Tal Pacto tambm prev a proteo

    ao direito moradia, ao dispor sobre a invio-

    labilidade do domiclio, no artigo 17: Ningum

    poder ser objeto de ingerncia arbitrrias ou

    ilegais em sua vida privada, em sua famlia, em

    seu domiclio ou em sua correspondncia, nem

    de ofensas ilegais s suas honra e reputao.

    Assim, ningum poder ser alvo de inge-

    rncias arbitrrias ou ilegais na sua vida privada

    ou na de sua famlia, em seu domiclio ou em

    sua correspondncia, nem de ofensas ilegais

    a sua honra e reputao.

    Diversos tratados internacionais que vi-

    sam proteo de grupos vulnerveis tam-

    bm salvaguardam o direito moradia digna.

    A Conveno Internacional Sobre a Eliminao

    de Todas as Formas de Discriminao Racial,

    adotada pela Assembleia Geral das Naes

    Unidas, em 21 de dezembro de 1965, tendo

    entrado em vigor em 4 de janeiro de 1969,

    objetiva eliminar as formas constantes de dis-

    criminao racial e promover a igualdade. O

    direito habitao est protegido no artigo

    5, e, III, desta Conveno.

    Do mesmo modo, a Conveno sobre a

    Eliminao de Todas as Formas de Discrimi-

    nao Contra a Mulher tambm objetiva que

    os pases que a ratificaram comprometam-se a

    uma dupla obrigao: eliminar as formas cons-

    tantes de discriminao contra as mulheres e

    promover a igualdade entre os gneros. Esta

    Conveno prev o direito moradia no seu

    artigo 14, 2, h.

    Uma srie de outros tratados interna-

    cionais que visam proteo de grupos mais

    vulnerveis e discriminados, a fim de combater

    tal discriminao e promover a igualdade tam-

    bm trazem em seu rol o direito moradia, tais

    como: Conveno Sobre os Direitos da Crian-

    a (no artigo 27, 3); Declarao das Naes

    Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas

    (artigo 10 e artigo 21, 1); Conveno n 169

    sobre Povos Indgenas e Tribais da OIT (artigo

  • 31

    16); Conveno de 1951 Relativa Ao Estatuto

    Dos Refugiados (artigo 21); Conveno Interna-

    cional sobre a Proteo dos Direitos de Todos

    os Trabalhadores Migrantes e dos Membros

    das suas Famlias (artigo 43 1).

    fundamental citar a Conveno Ameri-

    cana dos Direitos Humanos de 1992, tambm

    chamada de Pacto de San Jos de Costa Rica,

    instrumento fundante do Sistema Interame-

    ricano de Proteo aos Direitos Humanos. A

    Conveno foi assinada em 22 de novembro

    de 1969, na cidade de San Jos, na Costa Rica,

    e ratificada pelo Brasil em setembro de 1992,

    sendo que a sua promulgao ocorreu pelo

    Decreto N. 678/92. O Pacto de San Jos bus-

    ca consolidar entre os pases americanos um

    regime de liberdade pessoal e de justia social,

    fundado no respeito aos direitos essenciais.

    Nesse tratado, o direito moradia digna tem

    abrigo nos artigos 11, 24 e 26.

    A previso jurdica internacional sobre

    o direito moradia ilustra a densidade que

    ele possui, identificando-o como inerente ao

    exerccio da cidadania, a qual no se completa

    sem o acesso moradia adequada. Sua defesa

    foi sendo construda, material e juridicamente,

    no seio da comunidade internacional, refletindo

    os anseios pela sua efetivao at ser incor-

    porado no texto constitucional brasileiro ex-

    pressamente, em 14 de fevereiro de 2000, por

    meio da Emenda Constitucional n 26, embora

    j estivesse disposto no texto constitucional

    por meio de outras previses de direitos, tais

    como o direito sadia qualidade de vida, ao

    bem estar social, a cidadania, a dignidade da

    pessoa humana. (SAULE JNIOR, 2004).

    Percebe-se que os organismos inter-

    nacionais elaboraram o conceito de direito

    moradia digna com base na defesa de um

    adequado padro de vida humano que toda

    pessoa tem direito para si e para seus familia-

    res. A definio do que moradia sublinha que

    a mesma deve ser adequada, estabelecendo

    uma forte vinculao com o desenvolvimen-

    to sustentvel buscado por todos os pases.

    Sua base est no reconhecimento feito pela

    Comisso de Assentamentos Humanos e pela

    Estratgia Mundial para a Moradia at 2000,

    pelo que foi declarado no Comentrio Geral

    n. 4 sobre o Direito Moradia Adequada, ex-

    pedido pelo Comit dos Direitos Econmicos,

    Sociais e Culturais da ONU e descrito tambm

    no prembulo da Agenda Habitat (SAULE J-

    NIOR, 2004).

    O Comentrio Geral n 4 possui em seu

    cerne diversos critrios orientadores para de-

    finio da moradia digna, que transcende a

    questo da unidade da habitao em si. Devem

    ser considerados uma srie de elementos, tais

    como: a segurana jurdica da posse; a dispo-

    nibilidade de servios, materiais, instalaes e

    infraestrutura; custo suportvel; habitabilidade;

    acessibilidade; localizao e adequao cultural.

    A segurana jurdica da posse um cri-

    trio fundamental que deve balizar as solu-

    es adequadas. Independentemente do tipo

    de posse, todos os indivduos necessitam ter

    uma situao de segurana na posse, a fim de

    garantir a proteo legal contra s remoes

    e outras ameaas indevidas ou inesperadas.

    A disponibilidade de servios, materiais,

    instalaes e infraestrutura relaciona-se com as

    facilidades essenciais para o conforto, nutrio,

    sade e segurana. Alm disso, as pessoas neces-

    sitam ter acesso s redes de gua potvel, energia

    eltrica, saneamento bsico e gs; devem estar

    disponveis servios de emergncia, de transporte

    pblico. de coleta de lixo, dentre outros.

    O custo suportvel, por sua vez, a ga-

    rantia de que o percentual de custos relacio-

    nados habitao seja, em mdia, compat-

    veis com os nveis de renda de modo que no

    comprometa o oramento familiar e permita

    tambm o atendimento de outros direitos hu-

    manos, como o direito alimentao, ao lazer,

    etc. Alm disso, o princpio do custo suportvel

    tambm engloba o estimula s polticas de

  • 32

    subsdio compra de imvel pelos Estados

    Partes para a populao que incapaz de obter

    habitao a preos acessveis.

    Habitabilidade a condio adequada

    da habitao, a garantia de um espao ade-

    quado, que dever proteger os indivduos que

    ali vivem do frio, calor, umidade, chuva, riscos

    estruturais, vetores de doenas, contra amea-

    as de incndio, desmoronamento, inundao

    e qualquer outro fator que ponha em risco a

    sade e a vida das pessoas.

    Deve-se levar em conta a dimenso da

    moradia e o nmero de cmodos (em especial

    quartos e banheiros), que precisam ser con-

    dizentes com o nmero de moradores. J a

    acessibilidade se destina a acessibilidade para

    grupos mais vulnerveis (crianas, idosos, defi-

    cientes fsicos, doentes terminais, pessoas com

    problemas mdicos persistentes, pessoas com

    HIV, pessoas que vivem em reas sujeitas a de-

    sastres e outros grupos) para que esses tenham

    acesso e adequao s suas necessidades nas

    suas moradias. Desse modo, as leis e polticas

    habitacionais devem priorizar o atendimento

    a esses grupos e levar em considerao suas

    necessidades especiais. Alis, importante

    dizer que, para realizar o direito moradia

    adequada, imprescindvel que o direito a

    no discriminao seja garantido e respeitado.

    A mobilidade urbana uma das motivaes

    da localizao, j que as moradias devem estar

    em local prximo ao de seu emprego e que

    disponha de servios pblicos bsicos e de

    equipamentos sociais. Outro desdobramen-

    to da localizao a questo da sade dos

    habitantes que poder ser prejudicada por

    causa do meio: as habitaes no devero ser

    construdas em lugares poludos ou prximo

    de fontes de poluio que possam ameaar a

    sade dos moradores.

    Por fim, a adequao cultural consiste na

    forma de construir a casa, seus materiais, as po-

    lticas de apoio, todas estas precisam habilitar,

    de forma apropriada, devendo expressar tanto

    a identidade quanto a diversidade cultural dos

    moradores e moradoras.

    J o Comentrio Geral n 7, do mesmo

    Comit, por sua vez, comenta o artigo 11.1 do

    PactoInternacional sobre Direitos Econmicos,

    Sociais e Culturais especificamente quanto

    questo das remoes foradas. Assim, prev

    que, nos casos em que a remoo considera-

    da justificvel, ela deve ser empreendida em es-

    trita conformidade com as previses relevantes

    do Direito Internacional dos Direitos Humanos

    e de acordo com os princpios gerais de razo-

    abilidade e proporcionalidade, no devendo

    ocasionar indivduos sem-teto ou vulnerveis

    violao de outros direitos. Nas situaes em

    que os afetados so incapazes de prover, por

    si mesmos, uma moradia digna, o Estado deve

    tomar todas as medidas apropriadas, de acordo

    com o mximo dos recursos disponveis, para

    garantir uma adequada alternativa habitacio-

    nal, assegurando reassentamento ou acesso

    terra produtiva, conforme o caso.

    relevante tambm a Declarao do Mi-

    lnio, que impulsionou os Objetivos do Milnio.

    A Declarao do Milnio foi adotada em 8 de

    setembro de 2000 por 191 Estados. Foi visan-

    do sintetizao de tratados internacionais

    elaborados em uma srie de cpulas mundiais

    sobre diversas temticas, tais como os direitos

    das mulheres, desenvolvimento sustentvel,

    combate a discriminao racial, meio-ambien-

    te e desenvolvimento, etc., que a Declarao

    foi elaborada. Alm disso, a Declarao traz

    diversas metas concretas que, caso sejam

    atingidas nos prazos fixados, de acordo com

    os indicadores quantitativos que os seguem,

    devero melhorar o destino da humanidade

    neste sculo. So oito Objetivos do Milnio

    que surgiram a partir da Declarao, sendo

    que o direito moradia digna se encontra no

    Objetivo 7, meta 11, que prev at 2020, ter

    alcanado uma melhora significativa nas vidas

    de pelo menos 100 milhes de habitantes de

    bairros degradados.

  • 33

    6.2 NORMAS CONSTITUCIONAIS E

    LEGISLAO NACIONAL APLICVEIS

    PARA A SOLUO DOS CONFLITOS

    FUNDIRIOS URBANOS

    A Constituio Federal, alicerce condutor

    de todo o ordenamento jurdico, em sua reda-

    o de 1988 estabeleceu diversos dispositivos

    que afirmam o direito moradia como um ins-

    tituto de imprescindvel proteo pelo Estado.

    Inicialmente, o art.5 da Constituio, em

    seu inciso XI, inclui o direito moradia no rol

    de direitos fundamentais, inferindo a este in-

    violabilidade e proteo jurdica num contexto

    de tutela dignidade humana do indivduo.

    Isso ocorre uma vez que a atual ordem jurdi-

    ca entende a moradia como pressuposto do

    mnimo existencial.

    No artigo 6, aps a Emenda Constitu-

    cional n 26, a moradia mencionada como

    direito social, reiterando sua importncia como

    instituto a ser protegido e preservado. Assim,

    a ordem jurdica destaca a moradia como um

    dos componentes do mnimo existencial.

    A seguir, o art.182 da Carta Magna dispe

    sobre a poltica de desenvolvimento urbano,

    determinando que ela tenha por objetivo or-

    denar o pleno desenvolvimento das funes

    sociais da cidade e garantir o bem- estar de

    seus habitantes. Atribui papel primordial aos

    planos diretores, reconhecendo que cabe prin-

    cipalmente aos Municpios a execuo da pol-

    tica urbana. O artigo estabelece, ainda, que lei

    federal especfica estabelecer as diretrizes da

    poltica urbana, o que veio a ocorrer com a pro-

    mulgao do Estatuto da Cidade Lei 10.257,

    de 20 de julho de 2001 cujo art. 2 dispe:

    Art. 2oA poltica urbana tem por obje-

    tivo ordenar o pleno desenvolvimento

    das funes sociais da cidade e da pro-

    priedade urbana, mediante as seguintes

    diretrizes gerais:

    I garantia do direito a cidades susten-

    tveis, entendido como o direito terra

    urbana, moradia, ao saneamento am-

    biental, infraestrutura urbana, ao trans-

    porte e aos servios pblicos, ao trabalho

    e ao lazer, para as presentes e futuras

    geraes;

    II gesto democrtica por meio da par-

    ticipao da populao e de associaes

    representativas dos vrios segmentos da

    comunidade na formulao, execuo e

    acompanhamento de planos, programas

    e projetos de desenvolvimento urbano;

    III cooperao entre os governos, a ini-

    ciativa privada e os demais setores da

    sociedade no processo de urbanizao,

    em atendimento ao interesse social;

    IV planejamento do desenvolvimento

    das cidades, da distribuio espacial da

    populao e das atividades econmi-

    cas do Municpio e do territrio sob sua

    rea de influncia, de modo a evitar e

    corrigir as distores do crescimento

    urbano e seus efeitos negativos sobre

    o meio ambiente;

    V oferta de equipamentos urbanos e co-

    munitrios, transporte e servios pblicos

    adequados aos interesses e necessidades

    da populao e s caractersticas locais;

    VI ordenao e controle do uso do solo,

    de forma a evitar:

    a) a utilizao inadequada dos imveis

    urbanos;

    b) a proximidade de usos incompatveis

    ou inconvenientes;

    c) o parcelamento do solo, a edificao

    ou o uso excessivos ou inadequados em

    relao infraestrutura urbana;

    d) a instalao de empreendimentos ou

    atividades que possam funcionar como

    plos geradores de trfego, sem a pre-

    viso da infraestrutura correspondente;

    e) a reteno especulativa de imvel

  • 34

    urbano, que resulte na sua subutilizao

    ou no utilizao;

    f) a deteriorao das reas urbanizadas;

    g) a poluio e a degradao ambiental;

    h) a exposio da populao a riscos de

    desastres.

    VII integrao e complementaridade en-

    tre as atividades urbanas e rurais, tendo

    em vista o desenvolvimento socioeco-

    nmico do Municpio e do territrio sob

    sua rea de influncia;

    VIII adoo de padres de produo e

    consumo de bens e servios e de expan-

    so urbana compatveis com os limites

    da sustentabilidade ambiental, social e

    econmica do Municpio e do territrio

    sob sua rea de influncia;

    IX justa distribuio dos benefcios e nus

    decorrentes do processo de urbanizao;

    X adequao dos instrumentos de po-

    ltica econmica, tributria e financei-

    ra e dos gastos pblicos aos objetivos

    do desenvolvimento urbano, de modo

    a privilegiar os investimentos geradores

    de bem-estar geral e a fruio dos bens

    pelos diferentes segmentos sociais;

    XI recuperao dos investimentos do

    Poder Pblico de que tenha resultado a

    valorizao de imveis urbanos;

    XII proteo, preservao e recupera-

    o do meio ambiente natural e cons-

    trudo, do patrimnio cultural, histrico,

    artstico, paisagstico e arqueolgico;

    XIII audincia do Poder Pblico mu-

    nicipal e da populao interessada nos

    processos de implantao de empre-

    endimentos ou atividades com efeitos

    potencialmente negativos sobre o meio

    ambiente natural ou construdo, o con-

    forto ou a segurana da populao;

    XIV regularizao fundiria e urbanizao

    de reas ocupadas por populao de baixa

    renda mediante o estabelecimento de nor-

    mas especiais de urbanizao, uso e ocu-

    pao do solo e edificao, consideradas

    a situao socioeconmica da populao

    e as normas ambientais;

    XV simplificao da legislao de par-

    celamento, uso e ocupao do solo e das

    normas edilcias, com vistas a permitir

    a reduo dos custos e o aumento da

    oferta dos lotes e unidades habitacionais;

    XVI isonomia de condies para os

    agentes pblicos e privados na promo-

    o de empreendimentos e atividades

    relativos ao processo de urbanizao,

    atendido o interesse social.

    XVII - estmulo utilizao, nos parcela-

    mentos do solo e nas edificaes urba-

    nas, de sistemas operacionais, padres

    construtivos e aportes tecnolgicos que

    objetivem a reduo de impactos ambien-

    tais e a economia de recursos naturais.

    O art. 183 da Constituio traz a figura do

    usucapio especial de imvel urbano. Esse ins-

    tituto nasce da tica constitucional de funo

    social da propriedade e promoo da justia

    social. Uma vez que o proprietrio no esteja

    fazendo uso do seu imvel e outrem esteja

    na posse do mesmo por cinco anos, adquirir

    este a propriedade do imvel. Este dispositivo

    baseia-se na ideia de que a terra deve cumprir

    uma finalidade, atendendo s necessidades

    dos que precisam de moradia. Tal figura uma

    inovao bastante benfica, pois flexibiliza o

    formalismo em detrimento da matria, bene-

    ficiando o possuidor em uma tica de garantia

    de direitos.

    Refletindo o entendimento internacio-

    nal, a legislao brasileira trata da proteo

    ao direito moradia e cidade de maneira

    significativa em vrios textos normativos, es-

    pecialmente no Estatuto da Cidade; na Medi-

    da Provisria n2.220, de 4 de setembro de

  • 35

    2001, que trata da Concesso Especial de

    Uso para fins de Moradia; na Lei n 11.124, de

    16 de junho de 2005, que trata do Sistema

    Nacional de Habitao de Interesse Social; e

    na Lei n 11.977/2009 e alteraes feitas pela

    12.424, de 16 de junho de 2011, que tratam

    do Programa Minha Casa, Minha Vida e da

    regularizao fundiria de assentamentos

    localizados em reas urbanas, o que inclui

    polticas pblicas de induo ao desenvolvi-

    mento socioeconmico.

    Em assim sendo, percebe-se o firme arca-

    bouo jurdico construdo em torno do direito

    moradia, envolvendo todos os setores inte-

    ressados. A segurana jurdica caracterstica do

    Estado Democrtico de Direito fundamental

    para a estabilidade das relaes sociais e a

    participao de todos legitima a ao do Poder

    Estatal, o que faz das previses legais em torno

    do direito moradia conquistas inalienveis.

    Embora o Direito esteja em constan-

    te mutao para acompanhar e cumprir sua

    misso na sociedade, melhor satisfazendo os

    interesses pblicos, a previsibilidade uma

    necessidade condio humana. Sendo assim,

    os ajustes jurdicos promovidos para adequa-

    o s novas realidades devem ocorrer obser-

    vando procedimentos e limites previamente

    estabelecidos, considerando, para qualquer

    alterao efetiva, as garantias constitucionais.

    Assim, para cada alterao proposta dever

    do Estado efetu-la causando o menor trauma

    e comoo possveis aos direitos e s relaes

    jurdicas estabelecidas.

    A lei brasileira no prev a possibilidade

    de realizao de remoes, com exceo da

    Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, conhecida

    como Lei do Inquilinato6. Nem mesmo a Medida

    Provisria 2.220/2001, norma federal que trata

    de ocupaes em reas de risco de vida e

    sade dos moradores, prev a possibilidade

    remoo de indivduos ou comunidades.

    Tambm relevante a Medida Provisria

    n 2.220/2001, porque dispe sobre a Con-

    cesso de Uso Especial para Fins de Moradia

    mencionada no art.183, 1, da Constituio

    Federal, estabelecendo seus requisitos. Cria,

    ainda, o Conselho Nacional de Desenvolvimen-

    to Urbano (CNDU), integrante da estrutura da

    Presidncia da Repblica e com carter deli-

    berativo e consultivo para matria de poltica

    nacional de desenvolvimento urbano, sendo

    composto por Presidente, Plenrio e por uma

    Secretaria-Executiva.

    Importantes Leis so tambm as de n-

    mero 11.481/2007 e 11.952/2009, referindo-se

    ambas regularizao fundiria. A primeira

    prev medidas voltadas regularizao fundi-

    ria de interesse social em imveis da Unio e

    a segunda regularizao de ocupaes situ-

    adas em terras da Unio, no mbito da Ama-

    znia Legal. As disposies de regularizao

    fundiria so de extrema utilidade na conse-

    cuo da efetivao dos direitos moradia

    de populaes socialmente marginalizadas.

    Por meio desse procedimento, possvel re-

    gularizar e adequar espaos em situao de

    ocupao irregular a um modelo que beneficie

    as populaes ocupantes e promova desenvol-

    vimento econmico e social favorvel ao pas.

    Segue-se mencionando a Lei n

    11.977/2009, conhecida popularmente como

    Programa Minha Casa, Minha Vida. Estabele-

    ce critrios para a regularizao fundiria de

    ocupaes irregulares, bem como o incentivo

    produo de novas unidades habitacionais.

    Por meio do disposto nessa lei, famlias carentes

    podem ser realocadas para unidades habitacio-

    nais construdas pelo programa com inteno

    de organizar e garantir seu direito moradia,

    bem como ver suas moradias regularizadas

    por meio de aes pblicas que envolvem a

    6 A Lei 8.245/91 utiliza a expresso despejo para a ao de retomada do imvel promovida pelo locador. Ao longo da pesquisa, pre-feriu-se utilizar de maneira uniforme a expresso remoo para designar as medidas de desocupaes dos imveis com legitimao estatal, pois essa tem sido a linguagem mais usual entre os atores sociais e representantes do Poder Pblico envolvidos.

  • 36

    utilizam de mecanismos prprios para tais si-

    tuaes irregulares.

    Importante destacar, que a Lei n

    11.977/2009 estabelece princpios que deve-

    ro ser observados nas aes de regularizao

    fundiria, conforme redao do seu art. 48:

    Art. 48. Respeitadas as diretrizes gerais

    da poltica urbana estabelecidas na Lei

    no 10.257, de 10 de julho de 2001, a re-

    gularizao fundiria observar os se-

    guintes princpios:

    I ampliao do acesso terra urbaniza-

    da pela populao de baixa renda, com

    prioridade para sua permanncia na rea

    ocupada, assegurados o nvel adequado

    de habitabilidade e a melhoria das con-

    dies de sustentabilidade urbanstica,

    social e ambiental;

    II articulao com as polticas setoriais

    de habitao, de meio ambiente, de sa-

    neamento bsico e de mobilidade urbana,

    nos diferentes nveis de governo e com

    as iniciativas pblicas e privadas, volta-

    das integrao social e gerao de

    emprego e renda;

    III participao dos interessados em todas

    as etapas do processo de regularizao;

    IV estmulo resoluo extrajudicial de

    conflitos; e

    V concesso do ttulo preferencialmente

    para a mulher.

    H, portanto, uma inteno clara da legis-

    lao em desestimular medidas de remoo da

    populao de baixa renda. Deve-se, na buscar

    solues que garantam a integrao dos assen-

    tamentos irregulares cidade, privilegiando a

    permanncia das famlias no local de moradia

    e a conquista de novos direitos.

    6.3 NORMAS ADMINISTRATIVAS

    REFERENTES AOS CONFLITOS

    FUNDIRIOS URBANOS

    O CONCIDADES usa de suas atribuies

    para emitir orientaes e recomendaes no

    tocante aplicao do Estatuto das Cidades

    aos normativos que versam sobre estruturao

    e desenvolvimento urbanstico, em geral. Das

    resolues mais atinentes ao estudo desenvol-

    vido na presente pesquisa, as seguintes podem

    ser destacadas:

    Resoluo n 13: traz em seu corpo uma

    srie de recomendaes aos atores sociais

    dos governos dos Estados, DF e Municpios

    que visam a criao de Conselhos Estaduais

    e Municipais.

    Resoluo n 31: propem um processo

    de discusso entre o Poder Judicirio, o Con-

    selho das Cidades e outras instituies que

    atuam socialmente no de