relações luso-nipónicas nos sécs. xvi e xvii – (1) · pretendido identificá-lo com algumas...

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Carlos Jaca 1 Relações Luso-Nipónicas nos sécs. XVI e XVII – (1) Carlos Jaca Professor de História A opção e publicação deste tema, já desenvolvido na Revista “História” quando das comemorações (1993) dos 450 anos da chegada dos Portugueses ao Japão, considerei- a oportuna pelo facto de estar a decorrer no “País do Sol Nascente”, entre 25 de Março e 25 de Setembro, a primeira Exposição Universal do século XXI. A participação de Portugal num dos eventos culturais mais importantes do planeta é uma presença justificada e significativa. Acerca deste acontecimento já o suplemento “Cultura” deu a relevância necessária e suficiente, no passado dia 23 de Março, dois dias antes da abertura da Exposição Universal de Aichi 2005, Japão. As relações entre o Japão e Portugal, que datam da chegada de uma nau portuguesa ao lugar de Tanegashima no século XVI, são das mais antigas estabelecidas pelos portugueses no Oriente. E mais, é o primeiro contacto de um País Europeu com o Japão.O “Vocabulário da Língoa de Japan”, o primeiro dicionário de japonês em língua estrangeira, da autoria do Padre João Rodrigues, da Companhia de Jesus, foi o primeiro passo para a aproximação entre as duas culturas que Portugal, no momento presente da sua História, deseja manter e intensificar. Finalizando esta breve explicação, pode dizer-se que, nos referidos séculos, coube a Portugal o papel de representante do mundo ocidental e introdutor da cultura europeia.Este influxo da cultura ocidental que o Japão foi absorvendo, adoptando e adaptando, durante os dois séculos seguintes poderá, em grande parte, explicar a rapidez com que o Japão se ocidentalizou no século XIX, tornando-se no século passado o país mais progressivo e de mais alto índice de crescimento económico do mundo. Assim, periodicamente, e durante algum tempo, irei abordar (com ligeiras modificações em relação aos textos de 1993), os aspectos que me pareceram mais notáveis e marcantes da presença portuguesa em terras nipónicas durante os sécs. XVI e XVII.

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Carlos Jaca 1

Relações Luso-Nipónicas nos sécs. XVI e XVII – (1)

Carlos Jaca

Professor de História

A opção e publicação deste tema, já desenvolvido na Revista “História” quando

das comemorações (1993) dos 450 anos da chegada dos Portugueses ao Japão, considerei-

a oportuna pelo facto de estar a decorrer no “País do Sol Nascente”, entre 25 de Março e

25 de Setembro, a primeira Exposição Universal do século XXI.

A participação de Portugal num dos eventos culturais mais importantes do planeta

é uma presença justificada e significativa. Acerca deste acontecimento já o suplemento

“Cultura” deu a relevância necessária e

suficiente, no passado dia 23 de Março, dois

dias antes da abertura da Exposição

Universal de Aichi 2005, Japão.

As relações entre o Japão e Portugal,

que datam da chegada de uma nau portuguesa ao lugar de Tanegashima no século XVI,

são das mais antigas estabelecidas pelos portugueses no Oriente. E mais, é o primeiro

contacto de um País Europeu com o Japão.O “Vocabulário da Língoa de Japan”, o

primeiro dicionário de japonês em língua estrangeira, da autoria do Padre João

Rodrigues, da Companhia de Jesus, foi o primeiro passo para a aproximação entre as duas

culturas que Portugal, no momento presente da sua História, deseja manter e intensificar.

Finalizando esta breve explicação, pode dizer-se que, nos referidos séculos, coube a

Portugal o papel de representante do mundo ocidental e introdutor da cultura

europeia.Este influxo da cultura ocidental que o Japão foi absorvendo, adoptando e

adaptando, durante os dois séculos seguintes poderá, em grande parte, explicar a rapidez

com que o Japão se ocidentalizou no século XIX, tornando-se no século passado o país

mais progressivo e de mais alto índice de crescimento económico do mundo.

Assim, periodicamente, e durante algum tempo, irei abordar (com ligeiras

modificações em relação aos textos de 1993), os aspectos que me pareceram mais notáveis

e marcantes da presença portuguesa em terras nipónicas durante os sécs. XVI e XVII.

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Notícias do Japão antes de 1543.

Para além da própria riqueza da cidade a conquista de Malaca, em 1511,

incluída no plano de Afonso de Albuquerque para se apoderar das posições-chave

marítimas, abria aos portugueses os mares da China e fazia deles os pioneiros do

Extremo-Oriente.

Pela sua situação geográfica privilegiada, Malaca prestava à expansão

portuguesa pelo Oriente um apoio insubstituível, porquanto passava de terminus a base

de operações, donde partiam os navios de exploração das ilhas indonésias, das Molucas,

da China e do Japão.

O primeiro europeu que nos informa acerca do Japão é Marco Polo.Com efeito,

a edição portuguesa de 1922 do Livro de Marco Polo por Francisco M. Esteves Pereira,

correspondente à versão portuguesa,

feita pelo próprio impressor Valentim

Fernandes, em 1502, refere-se no seu

capítulo II à grande ilha de Cipango:

«Agora nos cheguemos a demostrar e

decrarar as terras de Índia e

começarey em a ilha Grande de

Cipangu.Esta ylha da parte do oriente

he alongada no alto mar da ribeyra de

Mangi per mill e quinhentas milhas e he muyto grande.Os moradores della som alvos e

de convinhavel estatura.Som ydolatras e tem rey próprio, mas nom som tributários a

outro alguu.Ha hy ouro em muy grande abastança, mas el rey nom leyxa levar de

ligeyro fora da ilha, pella qual cousa vam la poucos mercadores e assi muy poucas vezes

som levadas las naaos de outras partes… Ally há aljofar em avondança muy grande, ho

qual he redondo e grosso e de coor vermelho, que em preço e valor sobrepoja ho aljofar

branco.Ha hy outrosy muytas perlas e muytas pedras preciosas.E por esto a ylha de

Cipangu he muy rica a maravilha».

Nascido em Veneza no ano de 1254 partiu, no de 1271, com seu pai e tio, por

terra, para a China, onde conseguindo as boas graças do rei dos Mongóis foi

governador de Yangiu entre 1282 e 1287.Durante a sua permanência na corte mongol,

Marco Polo terá ouvido falar de uma tal ilha de Ji-pan-ku, nome que ele corrompeu e

divulgou na forma de Cipango ou Zipango, e que se encontra representada em várias

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cartas anteriores a 1500, como a carta mural da Salla delle Scudo do Palácio do Doge,

em Veneza, a Carta Catalã de 1375, a Carta Bórgia, o Mapa-Múndi de Fra Mauro

(1459), o Globo de Nuremberga de Martim Behaim (1492), o Mapa-Múndi de Martellus

(1492) e o Globo de Laon (1493).

Quando Cristóvão Colombo descobriu em 1492 a ilha de Haiti, pensava ele que

tinha aportado à “ilha do Ouro”, ao misterioso

Cipango de Marco Polo, «julgando ver em Cuba

o Cataio e na América Central a terra firme da

Ásia.Mas, em 1513, Nunes de Balboa atravessou

o Istmo de Darien e descobriu o mar do Sul.Não

podia portanto o continente americano ser Ásia,

nem as Antilhas as 7448 ilhas do Mar da China,

nem Haiti o Cipango».

Desde Marco Polo encontramos nos

cartógrafos numerosas ilhas a oriente da China

e, entre elas, uma com o nome de Cipango,

porém, até ao séc. XVI em nenhum dos grandes

viajantes, como Fr.Odorico de Pordenone (1330) ou Nicolo de Conti (1415-1439) parece

encontrar-se qualquer referência ao Japão, conquanto vários historiadores tenham

pretendido identificá-lo com algumas ilhas por eles apresentadas.

Nos “Commentarios do Grande Afonso Dalboquerque” há referência aos

“gores” que o Vice-Rei encontrou em Malaca, os quais traziam ouro «de huma ilha, que

esta perto delles, que se chama Perioco». C. R. Boxer admite que estes “gores” sejam os

nipões e que, assim, o primeiro encontro de portugueses com japoneses date

de1511.Outros autores têm exprimido opinião semelhante, mas também há quem

suponha que os “gores” sejam os coreanos.

O primeiro texto do século XVI que tem o nome do Japão é a “Suma Oriental”

de Tomé Pires. Farmacêutico de profissão, nasceu em Leiria nos meados do séc. XV,

esteve na Índia com Afonso de Albuquerque que, depois da conquista de Malaca em

1511, aí o deixou como escrivão e contador da feitoria. Aqui, em Malaca, escreveu Pires

a sua “Summa Orientall que Trata do Mar Roxo athee aos Chijs”, notável documento

para a história da geografia, sem dúvida a mais importante e completa descrição do

Oriente produzida na primeira metade do séc. XVI, pois foi escrita em 1512-1515. É a

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primeira descrição das Índias Orientais feita, em grande parte, pelo que ele próprio viu,

e do maior interesse. Para a descrição da China e do Extremo-Oriente dependia

geralmente dos outros.

Efectivamente, na “Suma Oriental”, Tomé Pires já emprega a forma malaia

Japun ou Japang, referindo-se à ilha de Japaon de que, provavelmente, tivera

conhecimento através dos mercadores muçulmanos, os “luções” das Filipinas.

No planisfério de Canério (1506?), de inspiração portuguesa, encontra-se

desenhada a ilha Chingirica, no extremo oriental da Ásia, que possivelmente representa

o Japão.

De qualquer modo, só a partir de meados do séc.XVI, e com base nas relações

jesuítas e na experiência de viajantes portugueses, se alargam e definem os

conhecimentos cartográficos sobre o Japão. Precisamente em carta de 1550, atribuída a

Giacomo Gastaldi, aparece já a antiga Cipango denominada Giapam, porém, ainda sem

grande modificação em relação às representações anteriores.

A primeira representação cartográfica do arquipélago japonês, de autêntico

valor geográfico, assente em dados positivos de lá trazidos por portugueses, que em

meados do séc.XVI já frequentavam regularmente aquelas ilhas, corresponde à carta

do Atlas de 1558, de Diogo Homem. Embora ainda de uma maneira confusa,

reconhecem-se já as três ilhas principais do arquipélago – Hondo, Sikoko e Kiosio – e se

encontra bastante exacto o desenho da cadeia de ilhas que ligam o Japão à Formosa. De

Diogo Homem conhece-se também outra carta do Japão do Atlas de 1561,existente em

Viena, onde a nomenclatura é mais desenvolvida… Por outro lado, a influência das

relações jesuítas encontra-se documentada no Planisfério de Bartolomeu Velho, de

1561,que representa de uma maneira particularmente notável o arquipélago japonês.

De 1568 data a primeira carta especial do Japão, desenhada pelo grande

cartógrafo Fernão Vaz Dourado e que se encontra no Atlas do Duque de Alba, de 1568.

Provavelmente elaborada antes de 1563, inclui apenas a parte sul do Japão, faltando

parte da ilha de Hondo e a ilha de Iedo

Directa, ou indirectamente, as fontes dos missionários jesuítas, através dos

portugueses que serviam de intermediários aos cartógrafos italianos ou flamengos, e até

as próprias fontes nipónicas, irão exercer notável influência sobre a cartografia

europeia do Japão na 2ª metade do séc.XVI que se seguirá ao desembarque português.

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Conclui-se este capítulo recorrendo a uma das maiores autoridades em

japonologia. Refiro-me ao alemão Georg Schurhammer S.J., correspondente da

Academia Portuguesa de História.

Schurhammer ao tratar o tema sobre o descobrimento do Japão recorreu a

textos de autores ocidentais, árabes e persas, que acerca do Japão nos deixaram

relações de supostas ou verdadeiras notícias.Estes textos, depois de rigorosamente

interpretados, deveriam provar que os portugueses foram os primeiros ocidentais que

alcançaram o Japão e que a eles se deviam as primeiras, minuciosas e certas

informações daquele longínquo arquipélago e reino do Sol Nascente.

Assim dos textos propostos e exaustivamente analisados por Schurhammer,

consta:

1) Os Gregos e os Romanos não tinham conhecimento nenhum do Japão.

2) Os Persas tinham relações comerciais com o reino de Silã na Coreia e ouviam

falar do Japão. O antigo nome do Japão Wa-koku ( no dialecto de Cantão Wo-kwok )

encontra-se pela primeira vez, cerca de

886, no geógrafo persa Ibn

Khoordâdzbeh sob a forma de

Wâkwâk. As suas notícias repetem-se

fantasticamente enfeitadas pelos

geógrafos persas e árabes.Nas obras

deles tornou-se Wâkwâk em ilha

fabulosa, cuja situação ninguém

conheceu.

3) Marco Polo esteve na China, na corte do Grão-Cão dos Mongóis, quando este

mandou contra o Japão duas mal afortunadas expedições. Aí ouviu ele falar desse país

com o nome chinês Ji-pan-ku, e foi dos europeus o primeiro que deu notícias do Japão

como de uma ilha chamada Cipango. Da sua obra, muito lida, passou a ilha para a

cartografia do séc.XV e princípio do XVI, sem que se soubesse a posição exacta da ilha.

4) Encontra-se, pela primeira vez o nome malaio Japung para Japão na “Summa

Oriental” de Tomé Pires; e desta forma veio o nome português do Japão.Mas antes de

1543 era desconhecida aos europeus a posição exacta da ilha.

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Descobrimento do Japão pelos Portugueses (1543). É ideia corrente, e unanimemente se aceita, terem sido os Portugueses os

primeiros europeus a pisarem o solo do Japão cabendo, assim, aos nossos viajantes e

missionários inaugurar a era moderna da história da região do “Sol Nascente”,

estabelecendo o seu contacto com o mundo ocidental.

Se bem que date de 1543 a mais antiga viagem

conhecida que levou os portugueses a aportar ao Japão,

não é de rejeitar a possibilidade de lá terem chegado

anteriormente em qualquer navegação ignorada. Nada tem

de extraordinário que, propositadamente ou arrastados por

temporal, houvessem chegado ao Cipango de Marco Polo.

Muito mais que pelas vagas indicações de venezianos, os

portugueses tiveram conhecimento real da existência do

Japão por referências colhidas nos portos da Índia e da

China, dos navegantes árabes e entre os vários marinheiros

e comerciantes asiáticos.Afonso de Albuquerque, Gaspar

Correia, Lopes de Castanheda, João de Barros, Tomé Pires, falam dos Gores ou

Léquios, naturais do arquipélago de Riukiu, ao sul do Japão. Em 1517, Jorge de

Mascarenhas tenta desembarcar na ilha Léquia, e Simão de Andrade, em Agosto de

1518, aconselha D.Manuel a descobrir as “ilhas dos Léquios”.

É muito provável que os portugueses tivessem encontrado japoneses, sobretudo

na costa da China onde por vezes apareciam barcos nipónicos.

A proibição de entrar na China, que em 1480 o imperador deste país havia

decretado contra os piratas japoneses, não foi observada pelos nipónicos até ao tempo

de Oda Nobunaga e Toyotomi Hideyoshi.

Portugueses e japoneses viviam por 1540, dois ou três anos antes da chegada dos

portugueses ao Japão, nas pequenas ilhas à entrada de Liampó (Ning-Po) porto situado

na embocadura do rio Chekiang, em frente da costa japonesa, onde costumavam

ancorar. Ali, portugueses e japoneses, construíram pequenas casas e cabanas. A este

porto de Liampó se dirigia o junco (barco oriental) proveniente do Sião que, na versão

tradicional, uma violenta tempestade desviou e fez ir dar à ilha de Tanegashima, ao sul

do Japão

Carlos Jaca 7

Se, como já foi dito, a descoberta do Japão pelos portugueses é hoje

unanimemente aceite, o mesmo não acontece em relação ao ano da descoberta e à

identidade dos descobridores, problema que ao longo dos anos tem sido objecto de

discussões e divergências.

Quanto à data da descoberta, as principais fontes históricas apontam para o ano

de 1542 ou 1543; quanto ao nome dos portugueses que primeiro aportaram a

Tanegashima a questão consiste em considerar o imaginativo e aventureiro Fernão

Mendes Pinto como um deles, ou atribuir a prioridade a António da Mota, Francisco

Zeimoto e António Peixoto, argumentando que a

1ª viagem de Mendes Pinto não podia ter

acontecido antes de 1544; há, ainda, quem associe

o nome de Fernão Mendes Pinto não aos

portugueses acima referidos, mas a Cristóvão

Borralho e Diogo Zeimoto. Por outro lado, o

Cardeal Saraiva, ilustre historiador dos nossos

descobrimentos, adopta uma solução ecléctica

sustentando que os dois grupos de portugueses deviam ter alcançado o Japão pelo

mesmo tempo, negando qualquer direito de prioridade

A versão vulgarizada pertence ao historiador António Galvão, governador das

Molucas, que dá como descobridores do Japão os três portugueses António da Mota,

Francisco Zeimoto e António Peixoto, os quais teriam arribado à praia da ilha de

Tanegashima, num junco, por via de uma tempestade: «No anno de1542 achando-se

Diogo de Freytas no Reino de Siam na cidade Dodra capitam de hum navio, lhe fogiram

três portugueses em um junco que hia pêra a China; chamavam-se António da Mota,

Francisco Zeimoto e António Peixoto.Hindo de caminho para tomar porto na cidade de

Liampo, que está em trinta e tantos graus de altura, que lhe deu tal tormenta a popa,

que os apartou da terra e em poucos dias ao Levante viram huma ylha em trinta e dous

graus, a que se chamam os Japões, que parecem ser aqueles Sipangas de que tanto

falam as escripturas, e suas riquezas: e assi estas também tem ouro e muita prata e

outras riquezas».

Embora a tradição corrente na história seja a que foi consagrada por A. Galvão

no referente à identidade dos descobridores (Diogo do Couto e outros autores antigos e

modernos são do parecer de Galvão) o cronista terá apontado erradamente para 1542

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como o ano da descoberta, uma vez que os testemunhos referentes a 1543 são

inegavelmente mais ponderosos.

Na colectânea de estudos de vários autores japoneses intitulada “Acceptance of

Western Cultures in Japan From the Sixteenth Century to the Mid – nineteenth

Century (The Centre for East Asian Cultural Studies”, Tokio, 1964), todos os autores

sem excepção, dão a data de 1543 para a chegada dos portugueses ao Japão.

O “Teppô – ki”, crónica japonesa sobre a história da introdução da espingarda

no Japão, escrita em 1606 pelo Nampo Bunshi, padre budista da seita Zen de Satsuma,

é a fonte mais minuciosa e a única que designa o dia, o mês, o ano, bem como o lugar

exacto do desembarque: a praia de Nishimura Ko-oura em Tanegashima.

O “Teppô – Ki”, dá como dia de desembarque dos portugueses no Japão o dia 23

de Setembro de 1543, indicando o número dos recém-chegados, o nome do intérprete

chinês (Gohô), do chefe da aldeia japonesa próxima (Oribenojó), e até o pormenor das

perguntas e respostas trocadas entre estes e o processo como comunicavam, escrevendo

na areia.

Reforçando a data de 1543, é o que parece

deduzir-se do testemunho proporcionado por S.

Francisco Xavier. A primeira notícia que se deu com

mais exactidão sobre o descobrimento do Japão pelos

portugueses é uma carta ditada por S. Francisco e por

sua mão assinada, e cujo original se conserva no

Arquivo Geral da Companhia de Jesus. Datada de

Cochim, 29 de Janeiro de 1552, é dirigida aos seus

irmãos da Europa: «Esta terra de Japão hé muito

grande em estremo, são ilhas… há oyto ou nove annos que forão descobertas estas ilhas

de Japão pelos portugueses».

Em 8 de Abril do mesmo ano escrevia de Goa a Simão Rodrigues, referindo que:

«Os japões tem para si que não há outros homens em o mundo senão elles, isto hé

porque nunca conversarão com outra gente, até que os portugueses novamente

descubrirão aquelas ilhas, que faz agora oito ou nove annos».

A informação de Francisco Xavier, de Janeiro e Abril de 1552, não deixa de

estar de acordo com a data do “Teppô-ki,” porquanto de Setembro de 1543 até Janeiro

de 1552 vão oito anos e quatro meses, e até Abril de 1552 oito anos e sete meses.Saliente-

se que o Padre Mestre Francisco conheceu pessoalmente os portugueses que naqueles

Carlos Jaca 9

primeiros anos mantinham comércio com o Japão e , além disso, permanecera um ano

inteiro em Kagoshima, não longe de Tanegashima.

O ilustre orientalista Schurhammer, após ter reunido uma interessante e

exaustiva colectânea das supostas ou reais notícias sobre o Japão e dos textos relativos

ao descobrimento pelos portugueses, procedeu à análise critica das fontes portuguesas e

japonesas, concluindo que os portugueses só em1543 foram pela primeira vez ao Japão.

E mais, Fernão Mendes Pinto nunca lá estivera antes de 1544.

Fernão Mendes Pinto. A “Peregrinação”e, obviamente, Fernão Mendes

Pinto, constituem um tema demasiadamente vasto (e até

complexo) para poder ser tratado aqui e agora, não podendo

assim conferir-lhe a dimensão que merece.

Conforme se pode concluir da carta de Malaca,

Dezembro de 1554, dirigida aos Padres e Irmãos da

Companhia de Jesus em Portugal e do capítulo 1º da sua

“Peregrinação”, Fernão Mendes Pinto nasceu entre 1509 e

1511, na vila de Montemor-o-Velho.

Afirma ter passado os seus primeiros anos na «miséria e estreiteza da pobre

casa» de seu pai, até que um tio desejoso de lhe garantir melhor futuro o encaminhou

para Lisboa.Insatisfeito com a mediocridade da sua situação, Fernão Mendes embarca

para a Índia com pouco mais de vinte anos.

A vida aventurosa do autor da “Peregrinação”, tal como ele a descreve, inicia-se,

precisamente, a 11 de Março de 1573, quando embarcado numa das naus que naquele

ano partiram de Portugal, veio a desembarcar na barra de Diu a 5 de Setembro de 1537

(e não de 1538 como, por lapso, se diz na “Peregrinação.”)

Após algumas aventuras que o deixaram desiludido troca, sem saudades, a Índia

pelo Extremo – Oriente entrando para o serviço do capitão da fortaleza de Malaca,

Pedro de Faria, recentemente nomeado.Por volta de 1539 parece ter-se fixado em

Malaca, servindo o capitão à maneira de uma espécie de embaixador itinerante, sendo

enviado em missões diplomáticas oficiais aos pequenos reinos de Samatra, que eram à

época aliados dos portugueses contra os muçulmanos de Achin, no norte de Samatra.

Essas missões permitiam-lhe comerciar por sua conta, olhando simultaneamente pelos

Carlos Jaca 10

interesses comerciais dos funcionários que servia, muitos dos quais, conforme observa

maldosamente, enriqueciam comerciando por sua conta, em detrimento do rei e dos

seus aliados, que vão sendo derrotados.

Por mandado de Pedro de Faria foi, segundo diz, parar a Patane onde se

encontra com um grupo de compatriotas – nesta cidade viviam numerosos portugueses

que mercadejavam no Sião e na China.Levantando âncora de Patane e levando consigo

o feitor Cristóvão Borralho, «homem entendido no negócio da mercância», e que por

longo tempo o acompanhará, Fernão Mendes Pinto «teria percorrido as costas da

China até à região fria do norte, penetrando na Coreia e na Manchúria; atravessado o

seu interior em várias direcções, até atingir a Mongólia e o Tibete; medido aos palmos

com as suas próprias mãos a muralha da China; pertencido ao primeiro bando de

portugueses que desembarcaram no Japão; penetrado na ilha Formosa.Teria sido

muitas vezes mercador, e outras pirata, outras vagabundo a pedir pelos caminhos,

ainda, escravo».

O facto é que regressou a Goa, muito rico, em 1554.Um jesuíta que o conheceu,

caracterizava-o nesta época como um mercador da China, que conseguira amealhar

grande fortuna durante dezassete anos de actividade.Entretanto, encontra os jesuítas e

quando chega a Goa depara-se com o cadáver do bem-aventurado S. Francisco Xavier,

que Fernão Mendes tão bem conhecia e com quem tivera excelente

relacionamento.Perante o corpo em perfeito estado de conservação e da enorme

multidão que se comprimia para tocar no Apóstolo, Fernão Mendes Pinto,

possivelmente acometido por um acesso de fervor religioso, propõe-se abraçar a vida de

missionário, como irmão leigo.Logo ali, resolve,

colocar ao dispor da Companhia meios que

viabilizassem uma missão ao Japão e utilizar os

seus conhecimentos para facilitar as relações com

os reis da terra.

A expedição realizou-se (1554-1556) indo

nela o sucessor de Xavier, Padre Belchior Nunes

Barreto, enquanto Mendes Pinto viajava na

qualidade de embaixador do Vice-Rei ao dáimio

ou senhor feudal do Bungo, na ilha de Kiushu, o

qual manifestara desejo de se converter à fé cristã, em carta recebida pouco antes pelo

governador da Índia, só que… «a espectacular enviatura a Bungo não deu os resultados

Carlos Jaca 11

apetecidos, em razão das guerras civis e pôs em cheque a vocação religiosa de Fernão

Mendes, fazendo-o desertar ou, melhor, pedido para ser despedido da Companhia».

Sabe-se de facto que,ou ainda no Japão ou já em Goa, o grande aventureiro foi

dispensado dos votos que contraíra como jesuíta. É duvidoso se teria saído

voluntariamente da Companhia ou, se esta, por qualquer motivo ainda desconhecido, o

compeliu a pedir a dispensa.O certo é que o homem a quem os correligionários

chamavam nas suas cartas «o caríssimo irmão Fernão Mendes», se via agora pouco

menos que pobre e com o seu nome sistematicamente riscado dos documentos da

Companhia.

A renúncia ao voto que tão «levianamente formulara» parece (aparentemente)

não ter originado qualquer incompatibilidade com os padres, embora algo de estranho

se tenha passado no trajecto Goa – Japão – Goa que o levaria a mudar de ideias,

mudança essa em que apenas podemos admitir conjecturas.Conjecturas sugeridas a

partir do próprio espírito da “Peregrinação”, é o que parece ressaltar do juízo

formulado pelo Prof. António José Saraiva quando aventa que, «tanto aquela entrada

como esta saída são golpes de teatro inverosímeis, embora incontestavelmente

verdadeiros.Parecem revelar ao nosso autor interesses que excedem, em geral, a

capacidade de um mercador bem sucedido.Devemos entretanto lembrar-nos de que

Fernão Mendes Pinto não é só mercador, mas também o autor de um livro como a

“Peregrinação”.A hipótese mais provável, é que ele terá ficado profundamente

impressionado pela personalidade excepcional de S. Francisco Xavier e que idealizou

uma Companhia de Jesus à imagem do apóstolo.

Mais tarde, ou porque o conhecimento mais íntimo da Companhia lhe tivesse

amortecido a tensão heróica, ou porque os hábitos de estreme individualismo contraídos

na sua larga aventura se lhe revelassem incompatíveis com a abdicação pessoal que a

Companhia exige dos seus membros, ou por ambas as razões, arrependeu-se do seu

primeiro entusiasmo».

O ambiente em Goa não lhe seria propício.Assim, provido de atestados de bons

serviços passados pelo governador, partiu para Portugal, tendo chegado a Lisboa em 22

de Setembro de 1558.

Fixa residência em Almada, na sua quinta do Pragal, onde, porventura já casado

com Maria Correia de Brito se vai dedicando a escrever as suas “Memórias,”

queixando-se amargamente dos quatro anos e meio a caminhar com os papeis para os

Carlos Jaca 12

oficiais do Paço, por não ter conseguido, ainda, a sinecura real pelos largos anos em que

prestara serviço a Deus e ao Rei.

Pouco tempo antes de morrer conseguiu, finalmente, uma tença de dois moios de

trigo, a partir de 1 de Janeiro de 1583, «em respeito dos serviços que…tem feytos nas

partes da Índia». Pouco tempo a gozou, porquanto veio a falecer em 8 de Julho do

mesmo ano, legando aos filhos (ou à Casa das Penitentes de Lisboa) a sua

“Peregrinação” – «um livro em que a verdade e o mito se confundem a tal ponto que o

mito parece história pura, e a verdade prodigiosa fantasia».

Mendes Pinto, um dos descobridores das Ilhas Nipónicas? Parece-me, agora, ser oportuno abordar a tão

debatida questão: se Mendes Pinto se contou com

verdade entre os “descobridores” das Ilhas

Nipónicas.

Há quem considere como ponto assente que

Fernão Mendes Pinto, com Diogo Zeimoto e

Cristóvão Borralho, foram os primeiros portugueses

de que há conhecimento terem chegado ao Japão.

Citando apenas alguns, referirei H.Haas, S. Puschas,

D. Osborne e Ioxitomo Okamoto entre os historiadores estrangeiros e Cristóvão Aires,

J. Abranches Pinto, Luís Norton e Armando Cortesão entre os portugueses.Outros,

como já foi referido, atribuem a descoberta a António da Mota, Francisco Zeimoto e

António Peixoto, indicados pelos historiógrafos quinhentistas António Galvão e Diogo

do Couto e confirmados por fontes japonesas, como parece também demonstrar Georg

Schurhammer, pela análise minuciosa das informações fornecidas pela própria

“Peregrinação”e por outras relações portuguesas e nipónicas.

Aos relatos de Galvão e Couto contrapõem-se as afirmações de Fernão Mendes

Pinto nos capítulos 132 a 137 da sua “Peregrinação”, atribuindo-se a si próprio e aos

dois companheiros, o mérito do “descobrimento”tendo visitado demoradamente a ilha

de Tanegashima, cujo governador seria presenteado com uma espingarda, a primeira

arma de fogo que existiu em qualquer terra japonesa: «E ancorando em frente da ilha

em setenta braças, nos saíram da terra duas almadias pequenas em que vinham seis

homens, os quais, chegando a bordo, depois de fazerem as suas salvas e cortesias ao seu

Carlos Jaca 13

modo, nos perguntaram de onde vinha o junco, ao que se respondeu que da China, com

mercadorias para fazer ali negócios com eles, se para isso nos dessem licença; um dos

seis respondeu-nos que a licença, o Nautaquim, senhor daquela ilha de Tanixumá

(Tanegashima), a daria de boa vontade, se lhe pagássemos os direitos que se

costumavam pagar no Japão, que era aquela grande terra que defronte de nós

aparecia».

Pode afirmar-se que a verdade relatada por Fernão Mendes Pinto, chamando a

si a glória de ser um dos descobridores do Japão é considerada como verídica, pelo

menos, por uma parte dos historiadores japoneses. Assim, Brito Rebelo no prefácio da

sua edição da “Peregrinação”refere um discurso pronunciado pelo médico japonês Dr.

Kamon, no Congresso de medicina realizado em Lisboa, 1906, destacando a seguinte

passagem: «Desde que o português Mendes Pinto, em 1542, como primeiro europeu,

pisou o solo japonês, tem-se, pelo decurso dos séculos, cimentado relações que

asseguram ao Japão um lugar no concurso de todas as nações civilizadas» … Esta

mesma opinião é compartilhada pelo erudito investigador japonês Ioxitomo Okamoto

no seu valioso trabalho sobre a “Origem das relações entre Japoneses e Portugueses.”

Do referido autor japonês em colaboração com o português J. Abranches Pinto é

o artigo publicado em 1929, pela Sociedade Luso-Japonesa, “Mendes Pinto e o

descobrimento do Japão”, onde crêem ter ficado provado que a notícia do Japão dada

pelo autor da “Peregrinação” é verdadeira e que as suas descrições, com excepção de

um ou outro nome estropiado, são exactas.

Armando Cortesão considera que o facto de António Galvão não citar o nome de

Fernão Mendes Pinto, bem como as divergências nos respectivos relatos, têm servido de

argumento aos partidários do estafado trocadilho – “Fernão, Mentes? Minto,» para

afirmarem que o autor da “Peregrinação” não foi o descobridor do Japão e

indignamente se apropriou de glória que a outros pertencia.

Também nenhum dos numerosos jesuítas que se têm dedicado ao estudo do

Japão lhe atribui o seu descobrimento. A este propósito não pode omitir-se que Fernão

Mendes Pinto entrou, em 1554, como irmão leigo para a Companhia de Jesus, onde foi

sempre bem recebido, e citado com frequência em cartas de padres da Instituição de

Stº. Inácio.Em 1556,sem se saber ao certo porquê, Mendes Pinto abandonou a

Companhia. Possivelmente, esta atitude terá sido considerada ofensa grave, sem

perdão, afirmando um dos seus mais ilustres biógrafos que, a animadversão dos jesuítas

Carlos Jaca 14

por Fernão Mendes Pinto, ao ponto de mandarem riscar o seu nome em todos os seus

registos, não teria contribuído em pouco para o descrédito da “Peregrinação.”

O Padre jesuíta Luís Frois que tantas referências lhe fizera nas suas “Cartas”,

nem uma só vez o cita na sua “História de Japão”.

O Prof. Manuel Ramos, reportando-se ao Códice 49-IV-53 da Biblioteca da

Ajuda, intitulado “História do Japão,”refere-se ao

descobrimento do arquipélago dando a versão de

Galvão e Couto que o atribui a Zeimoto, Peixoto e

Mota, acrescentando: «Fernão Mendes Pinto no

seu livro de fingimentos se quer fazer um destes

três – mas é falso, como o são muitas outras coisas

de seu livro, que parece compôs mais para

recreação que para dizer verdades» … «Dum só

golpe, arrancou-se ao antigo irmão leigo a glória

de descobridor e o mérito da veracidade.Livro de

fingimentos! Com este estigma passou o livro à

posteridade e até numa comédia de Shakespeare

encontrou eco aquela terrível denominação».

Alguns autores jesuítas, nomeadamente

Domingos Maurício, rejeitam liminarmente qualquer animosidade em relação a Fernão

Mendes Pinto, ou ainda que se tivesse urdido uma tremenda conjuração, primeiro de

descrédito, e depois de silêncio; o ilustre jesuíta refere uma série de circunstâncias que

descartam o suposto ódio ou ressentimento dos inacianos, e até demonstram a existência

de relações cordiais entre eles e o seu antigo confrade.Isto mesmo se pode depreender

dos termos, sempre respeitosos, em que o escritor montemorense se refere ao Padre

Belchior Barreto, que não só o levou ao Japão, mas foi quem o desligou da Companhia.

A “Peregrinação”

Há quem conteste o valor documental / histórico da obra de Mendes Pinto.No

entanto, nela se relatam muitos factos cuja historicidade é indiscutível, mesmo que

tenhamos que distinguir entre a factualidade dos eventos narrados e o protagonismo do

autor.

Carlos Jaca 15

A “Peregrinação” foi dada à estampa em 1614, isto é, trinta e um anos depois da

morte do autor. Segundo testemunho do Conde da Ericeira, teria sido Francisco de

Andrade quem preparou para a imprensa o manuscrito, ordenando-o em capítulos e

havendo indícios reais de ter alterado o texto aqui e acolá.

O Padre Francisco de Herrera Maldonado, o tradutor espanhol da obra, indica

algumas variantes referindo-se, expressamente ao original manuscrito, «que tinha

diante dos olhos».

Acrescente-se ainda, que os livros submetidos à Inquisição o eram em

manuscritos, e o segredo das alterações, cortes

ou mesmo acrescentos ficava entre o autor

(neste caso Francisco de Andrade, responsável

pelo texto) e o censor.Desta forma, há que

admitir que o texto que nos chegou não é

exactamente o que Fernão Mendes Pinto

esreveu.Difícil será, a não ser que o acaso nos

traga o manuscrito primitivo, decidir o que na

“Peregrinação” não é da responsabilidade do

autor.E mesmo neste caso haveria que ter em conta a pressão psicológica a que ele

estava submetido, perante uma censura «vigilante, astuta e verrumosa».

Suspeito da falta de verosimilhança, o relato das “vagabundagens” de Fernão

Mendes Pinto apresenta-se como uma autobiografia, memórias, se se quiser, sabendo-se

que nestes géneros o realismo, a objectividade e a fidelidade são características muito

relativas. Saliente-se que Mendes Pinto não pretendeu fazer um trabalho histórico, mas

simplesmente um livro de memórias não deixando, por isso, de ser um notável

repositório documental.

Eduardo Prado Coelho considera que a análise da “Peregrinação”é feita muitas

vezes em termos de verdade ou mentira e, que, embora aceitando a grande margem de

fantasia que existe no texto de Mendes Pinto, verifica tratar-se de um livro com enorme

valor documental e pode-se, muitas vezes, encontrar a referência efectiva a que

corresponde a narração de determinada aventura.

Com efeito, poder-se-á dizer que «a despeito de grande parte das suas descrições

quanto à sua riqueza (ou pobreza) de cada região que ia percorrendo, da sua história

remota ou próxima, dos seus hábitos, costumes, religiões, vida social, e tantos outros

aspectos, resultarem por seu turno de narrações que lhe eram feitas (o que de resto

Carlos Jaca 16

Fernão Mendes não omite); não obstante abundarem transcrições de discursos e de

cartas (em certos casos com uma extensão nada pequena) de dezenas de personagens os

mais variados, que, como é óbvio, o autor poderia reproduzir com fidelidade volvidos

tantos anos…pese embora a todas estas e por certo várias outras observações

semelhantes que se poderiam fazer, a “Peregrinação” ergue-se diante de nós como um

indiscutível monumento de realismo histórico». Porém, como um dos aspectos desta 1ª

parte abrange a polémica questão da primeira viagem de Fernão Mendes Pinto às Ilhas

Nipónicas, o problema que, de imediato, se põe tem muito a ver com a fidelidade

cronológica da”Peregrinação, isto é, se o autor merece confiança quando refere datas,

durações, prazos.

Assim, tem-se procurado investigar se há ou não contradições nas datas

indicadas pelo autor, impossibilidade de determinada acção ou percurso se ter realizado

em tempo tão reduzido ou, ainda, se determinada festa litúrgica terá coincidido com o

dia indicado pelo autor e se haverá ou não coincidência do dia da semana com o dia do

mês mencionado.

As grandes discrepâncias e contradições na cronologia de Mendes Pinto levam a

concluir que, acerca deste aspecto, a “Peregrinação” merece geralmente pouca

confiança.

Foi Brito Rebelo quem melhor demonstrou as frequentes imprecisões de carácter

cronológico ao longo de todo o texto, quando se deu à paciente tarefa de reunir uma

série de casos e concluir pela falta de exactidão da maior parte deles.

Efectivamente, «as datas andam totalmente misturadas umas com as outras.

Estão muitas vezes em contradição directa com as das fontes contemporâneas e seguras,

e consigo mesmo.Se, por exemplo, seguirmos as datas particulares de Mendes Pinto e

somarmos os meses e anos que ele próprio conta para o espaço de tempo de 1542 a 1541,

encontramo-nos com 13 anos em vez de 10; ficam-nos, por conseguinte, 3 anos, pelo

menos, que não podemos acomodar aos acontecimentos». Um exemplo: a viagem de

Mendes Pinto ao interior da China.

Ora, a crítica considera inverosímil, e com razão, tal viagem, pois como ele a

descreve é fisicamente impossível: «Depois de haver dous meses e meio que andavamos

nesta cidade de Pequim, num sábado treze dias do mês de Janeiro de 1544, nos levarão

para a cidade de Quansy a cõprirmos o nosso degredo, onde, chegados, nos mandou o

Chaen levar perante sy» …

Carlos Jaca 17

Pela maneira como se expõe o caso, não se pode calcular que haja entre Pequim

(ao norte) e Quansy (ao sul) uma extensão de 1800 quilómetros em linha recta, que

teriam sido percorridos por Fernão Mendes e companhia de «uma forma misteriosa».

E, parece que há pior…Mas não se pode esquecer que a “Peregrinação” é um livro de

memórias, escrito, portanto, posteriormente, numa situação que já não era a vivida e

não um diário escrito dia a dia, à medida que a vida e a experiência se

desenrolam.Como memórias trata-se de «uma síntese, duma visão global onde é muito

difícil achar uma linha contínua de evolução mental e de transformação de valores, em

que as contradições aparecem surpreendentemente, sem ordem, coisa que certamente

não sucederia num diário».

Em reforço desta pertinente observação, parece-me significativa a opinião do

francês Michel Tournier quando, a propósito da literatura de viagens, e nomeadamente

de Marco Polo, afirma: «ninguém pode evitar que a memória e a imaginação se

misturem inextricavelmente, o que tanto mais se verificará quando espaços mais vastos

e durações mais longas se intercalem entre os factos e a sua relação».

As Viagens ao Japão. Dos inúmeros autores que se têm dedicado à investigação exaustiva de Fernão

Mendes Pinto e da “Peregrinação”, abarcando-os nas suas diferentes facetas, destaca-se

muito justamente o erudito Georg Schurhammer. O eminente orientalista pretende

demonstrar, e parece tê-lo conseguido, que o

autor da “Peregrinação” não fazia parte do

grupo de portugueses que em 1543 aportou à

ilha de Tanegashima, reconhecendo, no entanto,

que Mendes Pinto teria visitado muito cedo o

Japão, talvez por volta de 1544.

Os documentos investigados atestam, de

facto, que Fernão Mendes Pinto já desde 1540 comerciava na China, que anteriormente

a 1554 estivera mais que uma vez no Japão e que era homem bem conhecido dos reis e

senhores do Japão, principalmente do de Bungo.

Já se referiu, e provou, que o Japão foi descoberto em 1543.Assim, se Mendes

Pinto, como ele pretende, era um dos primeiros, teria navegado forçosamente nesse ano

para o Japão.

Carlos Jaca 18

Porém, as fontes consultadas por Schurhammer levam à conclusão que a

primeira viagem de Mendes Pinto ao arquipélago nipónico não foi em 1543, mas sim em

1544.

Mendes Pinto desde 1540 andava comerciando na China.Assim teve

imediatamente, com certeza, notícia do descobrimento do Japão e entrou no “rush” (a

corrida) do ano de 1544.Informações suas provam que realmente assim sucedeu.

O “rush” de 1544 é testemunhado pela relação de Pero Diez, que nele teve

parte.Que Mendes Pinto tenha entrado no feito, ele próprio o afirma, ainda que invente

junto das ilhas Léquias o naufrágio, que na carta de 1454 ainda não atribui a si mesmo.

É claro que os portugueses nesta segunda jornada seguiram o mesmo itinerário

dos descobridores e navegaram com rumo a Tanegashima atestado por fontes

japonesas.

Mendes Pinto declara que navegou de Tanegashima para Bungo e enumera com

exactidão os portos situados neste caminho, como os encontrámos já em 1547 na relação

de Jorge Álvares, mas esta viagem dos portugueses de Tanegashima para o Bungo

sucedeu na segunda ida dos portugueses, como o atesta Nampo Bunshi, o sacerdote

budista.

Sem dúvida que Fernão Mendes Pinto foi dos primeiros portugueses a pisar solo

japonês, e teria mesmo demandado o arquipélago nipónico por quatro vezes.

A 1ª em 1544.Após desavenças entre si, no porto de Chincheu, na China,

embarcaram os portugueses na companhia do corsário Samipocheca. Desviados por

uma tempestade, e depois de muitos trabalhos no mar, aportaram a Tanegashima, ao

sul da ilha de Kiushu, onde foram muito bem recebidos pelo governador Nautaquim

(Cap. 133) e permanecendo aí cinco meses e meio (Cap.134).

A pedido do rei do Bungo, Fernão Mendes Pinto parte para a ilha de Kiushu

onde se instala em Fucheu, regressando depois, após várias peripécias, entre elas o

acidente que sucedeu com o filho do rei por ter tentado utilizar a espingarda do nosso

escritor. Regressa a Tanegashima e daí volta a Liampó, na costa da China

A 2ª terá ocorrido nos finais de 1546 e princípios de 1547 a bordo de uma

caravela de que era capitão Jorge Álvares (Cap. 200).

Depois deter visitado Tanegashima parte para Fucheu, no Bungo, de onde tem

de abalar apressadamente para Hiamangó (Yamagawa) por via de uma revolta que

naquela cidade havia contra o rei (Cap. 202). Neste mesmo capítulo, Mendes Pinto

conta-nos como foi recebido a bordo da nau um japonês a quem os portugueses

Carlos Jaca 19

chamavam Angiró, e que veio a tomar o nome de Paulo de Santa Fé.Depois de vender

bem a sua mercadoria parte de Hiamangó a 16 de Janeiro da 1547,chegando catorze

dias depois ao porto de Chincheu seguindo de Lamau para Malaca (Cap. 203).

A 3ª realiza-se em 1551.Em Setembro do referido ano está novamente no Bungo,

onde se encontra com o Padre Mestre Francisco Xavier, assistindo aos debates

teológicos do Apóstolo com sacerdotes budistas japoneses e, concedendo-lhe 300

cruzados para a construção da «primeira igreja e casa da Companhia» em Yamaguchi.

No regresso, viajando na nau de Duarte Gama, separam-se: Francisco Xavier seguiu

para Malaca e posteriormente para Goa, enquanto Mendes Pinto

continuaria viagem até ao Sião.

A 4ª e última viagem ao Japão ocorreu em 1556 na

companhia do sucessor de Francisco Xavier, Padre Belchior Nunes

Barreto.Fernão Mendes Pinto viajava na qualidade de embaixador

do Vice-Rei e como noviço da Companhia.

Na descrição desta viagem Mendes Pinto refere uma

grandiosa recepção no paço real em Fucheu, à qual se terá seguido

outra em honra do Padre Belchior Nunes, na mesma capital, e

conseguida por seu intermédio.Recebido pelo rei, o Padre Belchior

diz que o objectivo da sua ida a Fucheu é «mandá-lo o vice-rei para

o servir e mostrar-lhe o caminho certo da sua salvação».

Partiu Mendes Pinto definitivamente do Japão, com o Padre

Belchior, a 14 de Novembro de 1556 desembarcando em Goa a 17 de Fevereiro de 1557.

Em Lisboa, a 22 de Setembro do ano seguinte, tiveram fim as “Peregrinações” de

Fernão Mendes Pinto pelas sete partidas da Ásia.

Curiosamente, dez anos antes da chegada de Fernão Mendes a Lisboa, o capitão

Jorge Álvares que o acompanhara na sua segunda viagem, fornece-nos, saída da sua

pena, uma informação completa que é o primeiro relato directo de um ocidental sobre a

terra e a gente japonesas.

Pelo seu valor e interesse, porquanto fala directamente do que viu e

detalhadamente observou, a informação de Jorge Álvares impõe-nos, em tempo

oportuno, a divulgação das suas mais significativas passagens.

Carlos Jaca 20

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“Tratado, que compôs o nobre e notável capitão Antonio Galvão, dos diversos e

desvayrados caminhos, por onde nos tempos passados a pimenta e especiaria veyo da

Índia às nossas partes, e assi de todos os descobrimentos antigos e modernos, que são

feitos até a era de mil quinhentos e cincoenta” (Lisboa, 1563). Cit. por “Anais”-

Academia Portuguesa de História, II série, Vol. I.Lisboa, MCMXLVI.