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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA DEPARTAMENTO DE LETRAS – DELET PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM – PPgEL MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E MEMÓRIA CULTURAL RELAÇÕES FAMILIARES E FORMAÇÃO INDIVIDUAL: dilemas e aprendizagens das heroínas de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO NATAL-RN 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA

DEPARTAMENTO DE LETRAS – DELET PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM – PPgEL

MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E MEMÓRIA CULTURAL

RELAÇÕES FAMILIARES E FORMAÇÃO INDIVIDUAL: dilemas e aprendizagens das heroínas de Ciranda de Pedra e Verão no

Aquário

MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO

NATAL-RN 2015

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MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO

RELAÇÕES FAMILIARES E FORMAÇÃO INDIVIDUAL: dilemas e aprendizagens das heroínas de Ciranda de Pedra e Verão no

Aquário

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – PPgEL, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de mestre em Literatura Comparada, sob a orientação da Profa. Dra. Rosanne Bezerra de Araújo.

NATAL-RN 2015

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MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO

RELAÇÕES FAMILIARES E FORMAÇÃO INDIVIDUAL: dilemas e aprendizagens das heroínas de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da

Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a

conclusão do curso de Mestrado em Literatura Comparada.

Data da defesa: 23 de março de 2015.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________

Dra. Rosanne Bezerra de Araújo

Orientadora – UFRN

___________________________________________

Dr. Derivaldo dos Santos

Presidente da banca – UFRN

___________________________________________

Dr. Andrey Pereira de Oliveira

Examinador interno – UFRN

___________________________________________

Dra. Cássia de Fátima Matos dos Santos

Examinador externo – UERN

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À minha família

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AGRADECIMENTOS

O final de uma trajetória sempre indica que o percurso de formação foi

acompanhado não só de obstáculos, mas também (e principalmente) de muitos

aprendizados. Por isso, é muito importante agradecermos aqueles que no decorrer

de uma etapa nos apoiaram e nos ajudaram de alguma maneira.

Assim, agradeço a Deus em primeiro lugar, porque minha fé n’Ele é a força

que me mantém firme todos os dias.

À minha orientadora, professora Rosanne, pela paciência, pela delicadeza,

pelo apoio e por ter despertado em mim o interesse pelo Bildungsroman, o qual foi

essencial para o norte do meu trabalho.

Ao querido amigo Thiago Gonzaga, por ter sido o primeiro leitor do meu

texto e pelas observações preciosas.

À escritora Lygia Fagundes Telles, por ter proporcionado fruição e formação

à minha vida por meio de sua literatura.

Aos professores Derivaldo e Andrey, pelas contribuições dadas à minha

pesquisa na qualificação.

À professora Cássia, por acompanhar minha jornada acadêmica desde a

graduação e especialização e por ter aceitado participar da minha banca.

Aos amigos conquistados nas salas de aula do Mestrado.

Aos meus professores.

Muito Obrigada!

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Me leia enquanto estou quente. (Lygia Fagundes Telles)

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RESUMO

Esta dissertação apresenta um estudo comparativo entre os romances Ciranda de Pedra (1954) e Verão no Aquário (1963), de Lygia Fagundes Telles (1923 -), com o objetivo de analisar a representação da família e a formação individual das protagonistas ante as tensões familiares e afetivas. Esses primeiros romances da escritora paulista têm em comum o fato de trazerem como heroínas duas jovens mulheres, Virgínia e Raíza, respectivamente, que sofrem violentas crises de identidade ocasionadas, sobretudo, pelos conflitos provenientes das relações familiares. Em ambas as obras, a família é marcada pela ausência de afetos e pela desordem em sua estrutura: os laços parentais são frágeis e o amor é quase inexistente. Nesses lares, em que reina a hipocrisia, o modelo de família nuclear burguesa é desconstruído e as consequências dessa desestruturação é o surgimento de filhos perturbados emocionalmente e carentes de referências para formarem-se como indivíduos autônomos. Sendo assim, sob a perspectiva do Bildungsroman, foi realizada a análise da construção das personagens Virgínia e Raíza com a intenção de verificar como se estabelece o aperfeiçoamento individual dessas heroínas ante o desajustado ambiente familiar. Nas duas narrativas, a trajetória de aprendizagem das personagens principais é complexa, contudo, mesmo com as adversidades em decorrência da família, a bildung/formação das protagonistas culmina em desfechos positivos. Como suporte para análise e desenvolvimento desta pesquisa, o trabalho teve como orientação os estudos de Antonio Candido (2004, 2008), Luiz Costa Lima (2000) e José Guilherme Merquior (1997), quanto aos pontos referentes à representação social da literatura, e ainda Mikhail Bakhtin (1997), Marcus Vinicius Mazzari (2010) e Cristina Ferreira Pinto (1990) sobre as definições e estrutura do Bildungsroman. Palavras-chave: Romance lygiano. Família burguesa. Bildungsroman. Personagem.

Formação.

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ABSTRACT

This master’s thesis presents a comparative study between Lygia Fagundes Telles (1923 -)’s novels Ciranda de Pedra (1954) and Verão no Aquário (1963) and its main objective is to analyze the protagonists of such novels when it comes to family representation as well as the individual shaping of the protagonists towards familial and affective clashes. These first novels of the São Paulo writer portray two young women as heroines like a common factor, Virginia and Raíza, respectively, who happen to go through violent identity crisis mainly due to conflicts brought up by family relationships. Both novels depict family households strongly enhanced by the absence of affection and structural disarray as well: parental ties are fragile and love is almost nonexistent. In these homes, where hypocrisy reigns, the model of a traditional bourgeois nuclear family is deconstructed and the consequences of this disruption is the emergence of emotionally troubled and needy children who lack references in order to beacon themselves as autonomous individuals. Thus, from the Bildungsroman perspective, an analysis on the way the characters Virginia and Raiza are built was carried out with the purpose to verify how the individual improvement of such heroines was established within their uncanny family atmosphere. Moreover, the learning course of the main characters is complex, however, even with the adversities due to their family household, the bildung/shaping of the protagonists is reached out with positive outcomes. Throughout the analysis and development of our academic research, we used the work of Antonio Candido (2004, 2008), Luiz Costa Lima (2000) and José Guilherme Merquior (1997) on the social representation of literature, as well as Mikhail Bakhtin (1997), Marcus Vinicius Mazzari (2010) and Cristina Ferreira Pinto (1990) on the definitions and the structure of the Bildungsroman concept.

Keywords: Telles’ novels. Bourgeois family. Bildungsroman. Characters. Shaping.

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RESUMEN

Esta disertación presenta un estudio comparativo entre los romances Ciranda de Pedra (1954) y Verão no Aquário (1963), de Lygia Fagundes Telles (1923 -), con el objetivo de analizar la representación de la familia en la formación individual de las protagonistas frente a las tensiones familiares y afectivas. Esos primeros romances de la escritora tienen en común el fato de traer como heroínas dos jóvenes mujeres, Virgínia y Raíza, respectivamente, que sufren violentas crises de identidad ocasionadas, sobre todo, por los conflictos provenientes de las relaciones familiares. En ambas obras, la familia es marcada por la ausencia de afectos y por el desorden en su estructura: los lazos parentales son frágiles y el amor es casi inexistente. En estos hogares, en que reina la hipocresía, el modelo de familia burguesa es deconstruida y las consecuencias de esa desestructuración es el surgimiento de hijos emocionalmente perturbados y carentes de referencias para se formaren como individuos autónomos. Siendo así, sobre la perspectiva de Bildungsroman, fue realizada el análisis de la construcción de los personajes Virgínia y Raíza con la intención de verificar como se establece el perfeccionamiento individual de esas heroínas ante el desajustado ambiente familiar. En las dos narrativas, la trayectoria de aprendizaje de los personajes principales es compleja, con todo, mismo con las adversidades en recurrencia de la familia, la formación/bildung de las protagonistas culmina en deshechos positivos. Como soporte para el análisis y desarrollo de esta investigación, el trabajo tuvo como orientación los estudios de Antonio Candido (2004, 2008), Luiz Costa Lima (2000) y José Guilherme Merquior (1997), cuanto a los puntos referentes a la representación social de la literatura, y Mijail Bajtin (1997), Marcus Vinicius Mazzari (2010) y Cristina Ferreira Pinto (1990) sobre las definiciones y estructura do Bildungsroman. Palabras Clave: Romance lygiano. Familia burguesa. Bildungsroman. Personajes. Formación.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................... 10

CAPÍTULO I – A ESCRITA DA DISCIPLINA, A TESSITURA DO AMOR:

particularidades da prosa lygiana .............................................................................. 15

1.1 Dentro da obra, o pulsar da vida ......................................................................... 17

1.2 Do medo ao mistério: a escritora por si mesma .................................................. 25

CAPÍTULO II – DUAS CASAS, UM MESMO RETRATO: a desconstrução da família

burguesa ................................................................................................................... 30

2.1 Romances Representativos: O desvelar da família por meio do espaço-simbólico

.................................................................................................................................. 32

2.2 Os Laços de família: a família burguesa em desordem ..................................... 40

CAPÍTULO III – ITINERÁRIOS DE APRENDIZAGEM: o Bildungsroman lygiano ..... 51

3.1 O Bildungsroman e algumas definições teóricas ................................................. 53

3.2 A trajetória de formação das heroínas lygianas .................................................. 59

3.2.1 Virgínia ou “A Pergunta” ............................................................................. 64

3.2.2 Raíza ou “A Catedral Submersa” ............................................................... 74

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 86

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 89

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Para escrever é preciso ter a competência, que junta percepção e paciência, e o amor, aquela entrega total que significa convivência. (...) A literatura pode melhorar as pessoas sim. Pode desviar do vício, da loucura. Pode estancar a loucura através do sonho. Eu tenho um impulso cristão pelo próximo. Eu tenho vontade de servir ao próximo verdadeiramente. E a literatura me proporciona isso. No fundo, a literatura é uma forma de amor.

(Lygia Fagundes Telles)

Nos estudos da literatura lemos muito sobre o seu papel na sociedade;

sobre o seu efeito; o seu poder. Mas afinal, a literatura pode alguma coisa? Como

vimos na epígrafe acima, na concepção lygiana de literatura, ela pode muito, visto

que é uma forma de amor que pode melhorar o outro a partir do interior. Nessa

perspectiva, vemos em muitos críticos que a literatura é uma ponte para o

conhecimento de si e do outro, para a reflexão do mundo e, segundo Antonio

Candido (2011b), é também um instrumento de humanização. Por ser transfiguração

da vida real, a literatura pode ser uma experiência capaz de lapidar personalidades,

transformar psíquico e moralmente uma pessoa, tanto de acordo com as

convenções sociais como contrária a elas, isso porque a literatura é “força

indiscriminada de iniciação na vida” (CANDIDO, 2011b, p. 176). Ela nos faz

conhecer e vivenciar experiências de uma realidade distante da nossa, tanto no

tempo como no espaço, uma vez que, como nos mostra Tzvetan Todorov (2009, p.

77) “a realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente a experiência

humana”.

É partilhando dessas ideias que situamos este trabalho, visto que Ciranda de

Pedra (1954) e Verão no Aquário (1963) são narrativas que nos permitem refletir

sobre as angústias existenciais de seres em formação frente aos estilhaços da

estrutura familiar, que se apresenta fragmentada pelas tensões afetivas, sociais,

morais e financeiras. Esses romances representam o contexto patriarcal burguês em

decadência e trazem personagens perpassadas por sentimentos de culpa e rejeição.

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Nessas obras, Lygia Fagundes Telles escreve sobre medos, loucura, amor, perdão,

busca e descoberta do eu; assuntos tão intrínsecos à natureza humana e seus

mistérios.

Dona de uma vasta obra, a qual abrange desde romances e contos a

crônicas, Lygia sempre atraiu a crítica literária e acadêmica por sua qualidade

estética e temática. A prosa lygiana seduz e fascina pelos recursos linguísticos

escolhidos com perfeição e por sua aguçada sensibilidade para escrever sobre a

vida. A sua ficção, segundo Alfredo Bosi (2010, p. 167), vai além da análise apurada

do cotidiano, pois ela explora a interioridade das personagens abordando temas

universais sobre a existência humana. Ainda conforme esse autor, “as palavras, os

gestos e o silêncio ameaçador”, que circundam a prosa de Lygia, vão além do

delinear da angústia, da assolação do dia a dia, pois “decompõem os mecanismos

implacáveis que não cessam de operar dentro do sujeito e da sociedade que nele se

introjetou. É um realismo cru, cruel, cruento”.

Também na narrativa de Lygia Fagundes Telles, os espaços simbólicos são

eloquentes; entrelaçados ao destino das personagens estimulam as emoções,

gerando complexos momentos de divagações e descobertas. Conforme nos afirma

Régis (1998, p. 96), é grande a capacidade de Lygia de imergir intimamente na alma

de suas personagens e de envolvê-las em cena com os objetos do ambiente,

ligando-os de maneira a constituir “uma estrutura simbólica coesa”. Deste modo, os

espaços e os objetos sempre apontam para os sentimentos particulares ou

“surpreendem o instante de convulsão das personagens, desafiando sua realidade”.

Os primeiros romances dessa escritora paulista, Ciranda de Pedra e Verão

no Aquário, respectivamente, se enquadram nessa linha introspectiva. Lygia dedica-

se ao registro das particularidades que constroem o eu das heroínas1, Virgínia e

Raíza, a partir de sucessivos embates nos relacionamentos familiares, os quais são

decisivos para o desencadeamento do mundo interior dessas personagens,

contribuindo para a realização e formação particular destas.

Em Ciranda de Pedra, encontramos o “avesso na descrição de uma família”,

como nos afirma Silviano Santiago (2009, p. 205). Nesse romance prevalece a

hipocrisia no núcleo familiar, assim como na educação e nos relacionamentos

amorosos. Em Verão no Aquário, a heroína vive um tenso relacionamento com a

1 Neste trabalho o uso do termo heroína “designa, genericamente, protagonista, ou personagem principal”, conforme definição de Massaud Moisés (2013, p. 225).

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mãe; cativa das lembranças da infância, Raíza sofre com a saudade do colo paterno

e do calor familiar de outrora.

A falta de calor humano e afetivo da família, que desestrutura as jovens

heroínas dificultando a construção do eu, é transfigurada nos romances Ciranda de

Pedra e Verão no Aquário como fatores preponderantes para o desencadear das

ações do enredo. Em ambos os romances, as crises familiares e afetivas das

protagonistas são simbolicamente resumidas nos títulos. Segundo Paes (1998, p.

76), as palavras que formam os títulos dessas obras “não foram agenciados num rol

de metáforas convencionais, mas tomados in loco à própria circunstancialidade da

ação dramática”. Em Ciranda de Pedra acompanhamos o drama de Virgínia frente à

rejeição do círculo inacessível formado por sua família e amigos íntimos, além da

batalha interior da protagonista para ingressar a qualquer custo nesse grupo

simbolizado pela ciranda dos cinco anões de jardim: “‘Quero entrar na roda

também!’, exclamou ela apertando as mãos entrelaçadas dos anões mais próximos.

Desapontou-se com a resistência dos dedos de pedra. ‘Não posso entrar? Não

posso?’” (TELLES, 2009, p. 79)2. Na obra Verão no Aquário é a crise existencial

causada pelo conturbado relacionamento familiar que desestrutura a personagem

Raíza; nessa narrativa, mãe e filha não conseguem entender uma a outra, cada uma

vive no seu recôndito particular carregado de ressentimentos e silêncios.

Por sua vez, o pequeno aquário com dois peixes em cima da prateleira da cozinha ganha destaque ao ser transferido para cima da mesa. Ali assume funções figurativas a partir de uma troca de palavras entre Raíza e Patrícia, sua mãe; aquela o vê como lugar de proteção, esta como um lugar de estagnação (PAES, 1998, p. 76).

A proteção familiar, desejada pelas jovens protagonistas, não é alcançada e

essa falta de apoio as obriga a saírem da inércia e a crescerem. No caminho da

aprendizagem Virgínia e Raíza sofrem avanços e recuos; o caminho é pedregoso,

os obstáculos são gigantes, mas em meio aos entraves ocasionados especialmente

pela família o destino das heroínas é esperançoso.

Esses romances de maneira simultânea tanto representam como revelam os

costumes de uma sociedade e de um tempo histórico, por isso buscamos, neste

trabalho, compreender como o texto literário foi construído no intuito de desvendar

2 A partir desta nota, toda citação da obra Ciranda de Pedra terá a abreviatura CP seguida do número da página.

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as questões: como se constrói a impressão de realidade comunicada nessas obras?

Como as relações familiares são representadas? As famílias interferem no processo

de amadurecimento das protagonistas? Há formação positiva mesmo em meio ao

caos familiar?

Assim sendo, nesta dissertação nosso objetivo é fazer uma análise

comparativa das obras Ciranda de Pedra e Verão no Aquário, de Lygia Fagundes

Telles, averiguando como os laços familiares são representados esteticamente

nesses romances e ainda investigar a trajetória de formação pessoal das heroínas, a

partir da perspectiva do Bildungsroman. Em suma, buscamos, fazer uma reflexão

sobre a representação da esfera familiar observando como se estabelece a relação

entre forma literária e processo social.

A abordagem da relação forma e conteúdo, neste trabalho, parte do

pensamento de Candido (2004, 2008), o qual propõe uma crítica dialética e

integradora entre esses dois elementos, a qual seja “capaz de mostrar [...] de que

maneira a narrativa se constitui a partir de materiais não literários, manipulados a fim

de se tornarem uma organização estética regida por suas próprias leis” (CANDIDO,

2004, p. 9). Em uma obra literária é a conexão inseparável da mensagem com o

código, os quais formam um todo organizado, que garante o efeito da criação

literária. A forma permite a lógica textual e significativa do conteúdo, proporcionando

ao intérprete uma maior apreensão do conteúdo, intensificando assim a

sensibilidade para “ver e sentir”. Portanto, almejamos interpretar e compreender o

elemento social “família” como um artifício de construção artística, considerando que

o externo “importa, não como causa nem como significado, mas como elemento que

desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se interno”

(CANDIDO, 2008, p.14).

Ante o exposto, nesta dissertação, nossas reflexões foram organizadas em

três capítulos: no primeiro, fazemos uma leitura sumária de como se caracteriza a

prosa lygiana, discorrendo sobre os principais assuntos presentes em seus

romances e contos e ainda apresentamos o ponto de vista da autora sobre a sua

criação e sobre a maneira como os seus textos são elaborados.

No segundo capítulo, damos início a nossa análise sobre as obras

escolhidas como corpus, discutindo sobre a crise na família burguesa, que aparece

de maneira intensa nos romances em estudo. Nossa interpretação parte das

definições sobre verossimilhança e representação social na literatura, segundo

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Antonio Candido (2004, 2008), Luiz Costa Lima (2000) e José Guilherme Merquior

(1997). Assim, construímos a análise observando o desenvolvimento simbólico dos

espaços e a desenvoltura das personagens frente aos desajustes do lar.

O terceiro capítulo é dedicado à análise da construção das personagens

principais de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário, observando como se dá a

formação das heroínas perante as complicadas relações familiares e afetivas pelo

viés do Bildungsroman. Por conseguinte, a partir da composição destes capítulos

traçamos nossas considerações finais observando se os objetivos deste trabalho

foram alcançados.

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CAPÍTULO I

A ESCRITA DA DISCIPLINA, A TESSITURA DO AMOR:

particularidades da prosa lygiana

A função do escritor? Escrever por aqueles que muitas vezes esperam ouvir da nossa boca a palavra que gostariam de dizer. Comunicar-se com o próximo e se possível, mesmo por caminhos ambíguos, ajudá-lo no seu sofrimento. Na sua fé. Isso requer amor, o amor e a piedade que o escritor deve ter no coração.

(Lygia Fagundes Telles)

A escritora paulista Lygia Fagundes Telles (1923), tem expressado

continuamente em entrevistas, que o seu ofício literário é movido pelo princípio do

amor. Interessada por testemunhar seu tempo, seu povo, seu país, a escritora

costuma afirmar que tem com o leitor certa relação de cumplicidade. Com cerca de

vinte obras publicadas3, Lygia tem a disciplina como lema, assim, trabalha em seus

textos como uma tecelã, fio a fio vai montando a densa estrutura de suas obras.

A ficção lygiana possui características que possibilitam ao seu leitor o prazer

e a angústia de “vivenciar o sofrimento das opressões, sentir o peso dramático das

casualidades a desviar os planos individuais, aceitar nossa fragilidade e sorrir das

idiossincrasias do nosso comportamento” (RÉGIS, 1998, p. 88). Por essa razão, a

intensidade de sua obra ultrapassa os limites do enredo, pois de acordo com Paes

(1995) continuamos interessados nas ficções lygianas mesmo após a leitura

“quando, vivas ainda na memória a ressonância das situações emblemáticas

representadas no livro, ficamos a matutar no esquivo significado das figurações que

enriquecem a semântica do dito com as investigações do não-dito ou do quase-dito”.

3 Ciranda de Pedra (romance, 1954), Histórias do Desencontro (contos, 1958), Verão no Aquário (romance, 1963), Antes do Baile Verde (contos, 1970), As Meninas (romance, 1973), Seminário dos Ratos (contos, 1977), A Disciplina do Amor (contos, 1980), Mistérios (contos, 1981), As Horas Nuas (romance, 1989), A Estrutura da Bolha de Sabão (contos, 1991), A Noite Escura e Mais Eu (contos, 1995), Invenção e Memória (contos, 2000), Durante Aquele Estranho Chá (ensaios e crônicas, 2002), Meus Contos Preferidos (contos, 2004), Histórias de Mistério (contos, 2004), Meus Contos Esquecidos (contos, 2005), Conspiração de Nuvens (crônicas, 2007), Passaporte para a China (crônicas, 2011), O segredo e outras histórias de descoberta (contos, 2012), Um Coração Ardente (contos, 2012).

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Preocupada não apenas com a sua criação literária, mas também com a

recepção, com o efeito dos seus textos sobre o público, a escritora sempre

demonstra determinação para envolver o leitor com a sua arte, para atraí-lo ao seu

emblemático universo das palavras. Por isso, sua participação em feiras literárias,

em programas de TV, congressos, seminários e eventos científicos é ainda tão ativa,

mesmo com a avançada idade4. Lygia não só é uma inventora de histórias

extraordinárias, como também é uma encantadora de leitores. Seu jeito de

conversar sobre o texto literário, de falar sobre como produz os seus contos, como

arquiteta as suas personagens, como idealiza cada novo enredo, é sublime e

excêntrico. Quando vemos uma de suas entrevistas, ou um dos seus depoimentos

ou mesmo uma de suas palestras ficamos estonteados sem sabermos ao certo se o

que é falado por ela faz parte do real ou da fantasia.

Assim sendo, como método de trabalho, para a confecção deste capítulo

fizemos a leitura de alguns livros da escritora, a fim de conhecermos o seu estilo

literário. Também analisamos algumas de suas entrevistas, depoimentos e palestras

recolhidos em livros, jornais, sites e programas de TV. E consultamos a fortuna

crítica sobre a autora com o propósito de entendermos como se estrutura a obra

lygiana.

Em suma, nesta seção, abordaremos sobre o fazer literário de Lygia, sobre

sua relação com a sociedade e seu engajamento, buscando compreender como os

fatores externos se internalizaram na sua obra. Para isso observaremos as

características da sua narrativa e quais temas são mais explorados pela autora.

Uma vez que, como nos esclarece Candido (2008, p. 83), embora os fatores internos

sejam os mais significativos para a compreensão da obra literária, porque é onde

habita o mistério da palavra escrita, os fatores externos servem como explicação

para os elementos sociais presentes na obra tornando-se, então, necessários para a

“sondagem profunda das obras e dos criadores”.

4 A autora tem atualmente 92 anos, porém, mesmo cansada, ainda participa de alguns eventos para os quais é convidada.

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1.1 Dentro da obra, o pulsar da vida

Quando perseguido, o polvo se fecha nos tentáculos e solta uma tinta negra para que a água em redor fique turva e assim, camuflado, ele possa então fugir. A negra tinta do medo. Viscosa, morna. Mas o escritor precisa se ver e ver o próximo na transparência da água. Tem que vencer o medo para escrever esse medo. E resgatar a palavra através do amor.

(Lygia Fagundes Telles )

“Comecei a escrever antes de aprender a escrever”, disse Lygia Fagundes

Telles em Durante aquele estranho chá (2010d, p. 69) sobre o princípio da sua

vocação para a literatura, quando sua principal motivação era o “medo” causado

pelas histórias assombradas narradas por suas pajens. Como superar então o

medo? Para Lygia, a melhor maneira era transferindo-o para o outro, por meio da

contação das histórias aprendidas e transformadas conforme a sua imaginação

permitia. A passagem da oralidade à palavra escrita veio com uma dificuldade: na

hora de escrever a trama “o que era importante e o que não era importante?” E

assim a pequena autora usava as últimas páginas em branco do seu caderno

escolar para a sua, até então, “inocente criação”.

Mais tarde, aos 15 anos, a moça de boina publica seu primeiro livro Porão e

sobrado (1938), renegando-o posteriormente assim como rejeita também as obras

Praia viva (1944) e O cacto vermelho (1949), consideradas por ela como joviais e

imaturas. Essa rejeição por seus primeiros livros de contos mostra o capricho com

que a escritora organiza e trata a sua obra, evidenciando o seu trabalho artesanal

com as palavras. Deste modo, por exigência da própria Lygia, o conjunto da sua

obra passou a ser contado a partir de Ciranda de pedra (1954), “o divisor de águas

dos livros vivos e dos outros” (TELLES, 2010d, p. 84). Decisão também aprovada

pelos críticos, como Candido (2011a, p. 249) que considera o primeiro romance

lygiano como o marco do amadurecimento literário da escritora e também Vicente

Ataíde (1974, p. 91), para quem foi a partir dessa obra que Lygia Fagundes Telles

“se aperfeiçoou, conquistou palmo a palmo o terreno em que se projeta sua criação

ficcional”.

Com histórias de cunho dramático ou cômico, social ou fantástico, de

suspense ou de tragédia, oriundas da memória ou da invenção, o universo ficcional

lygiano possui múltiplas tendências. No entanto, alguns temas são constantes em

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seus livros, existe certa predileção por assuntos como loucura, morte, solidão e

desencontros, presentes nos quatro romances da escritora e também em muitos dos

seus contos. Atreladas a essas temáticas, outras vão sendo desencadeadas; todas

impulsionadas por um único objetivo: desvendar ou mesmo revelar o mais profundo

da alma humana por meio da ficção. Daí a presença tão forte da introspecção em

toda a obra de Lygia.

A veia intimista da literatura lygiana, mostra a característica contemplativa da

autora ante a pulsão da vida. Por meio dos intensos diálogos das personagens com

elas mesmas, os sonhos e as frustrações, as dúvidas e os medos – que há também

em um mundo real – aparecem na ficção de Lygia para nos deixar inquietos e ao

mesmo tempo fascinados pela inteligência e humanidade com que são

representados. Em muitas das suas narrativas, o grande dilema das personagens

está no encontrar-se, na busca pelo eu, perdido em algum tempo ou lugar, longe ou

perto. Por essa razão, prevalece nas histórias de Lygia Fagundes Telles, o foco

narrativo em primeira pessoa e um tempo que oscila entre o presente e o passado

sem que o leitor seja avisado sobre isso.

O tempo, que na narrativa lygiana tem sua ordem cronológica desfeita, é

concebido “segundo a existência temporal da personagem”, conforme nos explica

Ataíde (1974, p. 102). Por isso, seja no presente ou rememorando o passado, as

experiências desses seres fictícios são desveladas ante o leitor por meio de

monólogos ora lúcidos, ora delirantes; ora densos, ora límpidos em um violento fluxo

de consciência.

No posfácio de Um coração ardente (2012), Ivan Marques chama a atenção

para o fato de o eu narrativo lygiano ser semelhante a um eu lírico, isto é, carregado

pelo lirismo confessional de um mundo interior “em frangalhos”. Para o crítico, as

personagens de Lygia são seres mascarados que vão se descobrindo ante o leitor,

que aos poucos vão se desnudando, retirando as máscaras. Em contos como “As

cartas”, “O noivo”, “O encontro” e “As cerejas”, presentes na coletânea supracitada,

as minúcias do interior das personagens são reveladas nas entrelinhas, no não dito,

no que é insinuado. Semelhante ao estilo machadiano, na prosa de Lygia nem tudo

é enunciado. Muitas informações pairam no silêncio, deixando situações abertas,

sem desfecho, suscitando o mistério: afinal, quem era o tal Renato que escreveu as

cartas para Luisa, em “As cartas”? E quem era a noiva esquecida, em “O noivo”?

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O mistério é mais um dos recursos de Lygia Fagundes Telles, usado para

“seduzir o leitor, esse leitor que gosta do devaneio. Do sonho.” (TELLES, 2010d, p.

81). E é também nesse mundo onírico, de delírios ou de fantasias que várias

personagens lygianas se deparam. É o que podemos observar no conto “As

formigas”, no qual a fantasia e o suspense vão sendo construídos a partir da

descrição do espaço: “um velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos

tristes” (TELLES, 2009f, p. 9). Nesse lugar sinistro, típico de filme de terror, duas

jovens estudantes são tomadas pelo medo depois que veem formigas reconstruindo

o esqueleto de um anão, esquecido em um caixão, no sótão da velha hospedaria. O

mesmo clima de mistério também é visto nos contos “A caçada”, “Natal na barca”, “A

chave na porta”, “O crachá nos dentes”, “A fuga” e “A mão no ombro”, os quais são

envoltos pelo sobrenatural e o fantástico.

E por falar em espaço, na literatura de Lygia Fagundes Telles esse elemento

da narrativa aparece carregado de poder simbólico. Sempre reduzido, fechado e

reservado, o espaço envolve a personagem na sua interioridade, tocando-a no

instante de divagação e, em alguns momentos, fundindo-se a ela. São os jardins, os

sótãos tão tenebrosos e escuros como as almas das personagens, ou mesmo

quartos e escritórios que em suas minúcias refletem o eu dos seus donos. Como

podemos observar no romance As horas nuas (1989) quando as características da

personagem Ananta são refletidas na descrição do seu consultório, o qual “era de

uma profissional sem vaidade. Disciplinada. Refletindo (como num espelho) o seu

despojamento” (TELLES, 2010c, p. 69). Por conseguinte, quando saem do ambiente

privado, os espaços na prosa de Lygia recorrentemente envolvem a natureza ou

lugares sombrios como os cemitérios, é o que vemos em “Venha ver o pôr do sol”,

conto que discorre sobre o ciúme doentio de um ex-namorado que escolhe o

cemitério para enclausurar a moça amada, deixando-a a própria sorte ou morte.

Nesse espaço propício ao tema fúnebre, vemos a representação do amor de uma

maneira que mais se aproxima do mal posto que culmina na crueldade.

A respeito do amor, na narrativa lygiana, tanto podemos vê-lo de forma

branda como intensa. Ele pode aparecer belo e puro como em “Herbarium”, mas

também pode surgir trágico e vingativo como já mencionamos em “Venha ver o pôr

do sol”, ou possessivo e incondicional como em “Pomba enamorada ou Uma história

de amor”. Tudo isso porque, para Lygia, o amor é semelhante a uma bolha de

sabão: fina e transparente, que mesmo pequena ou grande é majestosa, aliás,

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quanto maiores mais correm perigo (TELLES, 2010b, p. 07). E com essa metáfora a

autora vai tecendo as suas histórias de amor. Amores profundos como o de um

menino órfão pelo seu cachorro, em “Biruta”, ou cegos como o do velho professor

pela sua esposa assassina em “Anão de Jardim”. Há também o amor ao próximo,

que surge ardentemente quando a escritora denuncia em sua obra o sofrimento

humano e as opressões sociais.

Ainda sobre a temática lygiana, também merece destaque o caráter

engajado da sua ficção. A escritora é enfática ao declarar que sua obra “não é

inocente”, ao contrário, é comprometida com a sociedade da qual ela é testemunha

(TELLES, 2010d, p. 107). Quer de maneira lírica e com delicadeza, como na história

fantástica do anão de pedra que observa, sem poder reagir, a trama de um crime em

“Anão de Jardim”. Quer em uma linguagem crua e angustiante, como em “O X do

problema”, conto que mostra a realidade de uma família miserável que vive em uma

situação desumana; o social na prosa de Lygia retrata as consternações dos que

jazem à margem de uma sociedade discriminatória, opressiva, repressora, racista,

desigual.

Consciente de que o seu dever como escritora é o “de apontar as chagas da

sociedade e não curá-las” – como declarou em entrevista a Helton Gonçalves de

Souza, no programa Vereda Literária (1996) – Lygia opta por uma forma de

engajamento que segundo Noemi Jaffe (2010, p. 208), é diferente porque “não se

trata de militância escancarada, mas de posições perfeitamente integradas à

atmosfera geral de ficção e de enigma”. De tal modo, a consciência política de Lygia

Fagundes Telles se manifesta em sua obra sem partidarismos; de maneira

fascinante, sua literatura denuncia a realidade movida por valores éticos e

humanitários.

É assim que em As meninas (1973), seu romance mais político, os dilemas e

os dramas de três jovens mulheres são narrados paralelamente ao contexto histórico

da ditadura militar no Brasil. As três moças: a burguesa Lorena, a drogada Ana Clara

e a subversiva Lia, vivem as suas consternações pessoais em sincronia com o

momento de agonia pelo qual passava o país, cada uma com as suas fragilidades,

cada uma com a sua voz narrando mundos diferentes, que se encontram e colidem

na mesma condição, no mesmo desespero. Conforme disse Paulo Emílio Sales

Gomes (1973), na orelha da primeira edição, As meninas é, portanto,

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um livro perturbador, de uma inocência que emociona porque é pura. [...] Livro tão belo quanto inquietante - vivo e corajoso testemunho de um tempo com suas perplexidades, suas paixões, sua atmosfera cotidiana de tensão e suspense como se a sorte da própria condição humana estivesse em jogo a cada minuto.

Em seu engajamento, Lygia busca representar a realidade social usando a

palavra artística como denúncia através de uma privilegiada heterogeneidade

linguística; diversidade que é social e se concretiza por meio das vozes particulares

que formam o enredo. É o que podemos observar na linguagem dos marginalizados

dos contos “Pomba enamorada ou Uma história de amor”, “O X do problema” e “A

confissão de Leontina”. Este último, narra a história de uma moça pobre que sai do

interior para a cidade grande à procura de uma vida melhor, mas acaba se

envolvendo com a prostituição e com o assassinato de um homem rico e influente.

Nesse conto, a protagonista, que fora condenada moralmente pela sociedade, nunca

teve a oportunidade de ter sua voz ouvida, somente no cárcere ela faz sua

confidência para um interlocutor sem nome, sem ação na narrativa, mas que, pela

primeira vez, a escuta sem fazer censuras: “Já contei esta história tantas vezes e

ninguém quis me acreditar. Vou agora contar tudo especialmente pra senhora que

se não pode ajudar pelo menos não fica me atormentando como fazem os outros”

(TELLES, 2010b, p. 75). E é por meio do seu discurso de marginalizada, com sua

linguagem rude e precária que a personagem narra os tortos trajetos de sua

existência.

Que Leontina misture expressões espontâneas com lugares-comuns populares ou extraídos da cultura de massa não devem causar estranheza: é o que acontece quando se tenta fazer história oral a partir de depoimentos de homens e mulheres iletrados. O que vale é aquele mínimo de coerência moral, que vai se constituindo ao longo do relato dando notável dose de verossimilhança. [...] Esta ficção de Lygia Fagundes Telles traz a voz do povo ao âmbito da obra literária (BOSI, 2010, p. 171, grifo nosso).

Com predomínio da voz do marginalizado, em especial a da mulher, Lygia,

por meio desse conto, proporciona um diálogo sobre a precária condição na qual

muitas mulheres são impelidas à exploração, sem nenhuma oportunidade para

escolha.

O crítico Fábio Lucas (1985, p. 35), ao escrever sobre o caráter social da

ficção brasileira diz que nas escolas literárias anteriores ao século XX, a mulher era

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uma minoria e como tal era submetida ao silenciamento. Logo, com sua voz abafada

ela era subjugada pelos desejos masculinos, “despojada de volição”. Por

conseguinte, Lucas nos explica que foi somente com a literatura de Clarice Lispector

e Lygia Fagundes Telles que a “manifestação da consciência feminina” se expandiu.

Lygia, que se diz feminista antes mesmo de saber o que era feminismo, não

abre mão de em seus livros abordar sobre a situação da mulher brasileira ante a

sombra do patriarcalismo, seja para desvelar a opressão feminina ou para revelar o

surgimento da sua nova face, isto é, a de mulher livre dos estereótipos patriarcais.

Assim, a autora escreve além de temas como o aborto em “Que se chama solidão” e

“A sauna”, também sobre a liberação sexual, a educação e participação política das

mulheres, assuntos presentes em “A dança com o anjo” e “Nada de novo na frente

ocidental”. Nesses dois últimos contos, narrados em plena Segunda Guerra Mundial,

enquanto o planeta era definhado pelo sangue e a paz parecia perdida, as moças

não podiam pensar em participar da luta armada, elas deveriam lutar sim, mas para

não perderem a virgindade antes do casamento:

o mito da castidade ainda na plenitude, nem o mais leve sinal da bandeira feminista hasteada nestas palmeiras. E o nosso sabiá ainda não sabia da pílula, não sabia de nada. O anunciado mercado de trabalho para O segundo sexo (que Simone de Beauvoir ainda nem tinha inventado) estava apenas na teoria (TELLES, 2009e, p. 25).

Mesmo que a revolução feminina caminhasse lentamente, as protagonistas

de “A dança com o anjo” e “Nada de novo na frente ocidental” sabiam o que queriam

e não era só o casamento, mas a conquista dos seus direitos como cidadãs, a

conquista da liberdade. E para isso era necessário ingressar no universo dos

homens, apesar das reações contrárias: “o que significava aquilo? As mocinhas

também iam combater?” (TELLES, 2009e, p. 116). Não bastava ser escritora e

estudar em uma escola só de homens? Não! Para a heroína de “Nada de novo na

frente ocidental” era preciso também ser soldado, se necessário ir à guerra,

defender a pátria e ser capaz de fazer a diferença.

Ao utilizar a literatura para tornar visível ao leitor as mazelas sociais, Lygia

deixa transparecer a sua esperança por um mundo mais digno e por meio da sua

palavra engajada ela se arrisca dando à sociedade a oportunidade de se

autoanalisar e, por conseguinte mudar. Sobre isso, o filósofo Sartre em Que é

Literatura? (2004, p. 65) diz que se a sociedade se vê na literatura “e sobretudo se

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ela se vê vista, ocorre, por esse fato mesmo, a contestação dos valores

estabelecidos: [...] o escritor lhe apresenta a sua imagem e a intima a assumi-la ou

então a transformar-se”.

Tudo isso pode parecer utópico se considerarmos o público de leitores do

nosso país, visto que na nossa cultura a leitura ainda é privilégio de poucos e a

grande massa não tem o hábito de interagir com o universo literário. Como então

alcançar esse público tão distante para que possamos acreditar, de fato, em uma

transformação social? Segundo Sartre, para que isso aconteça, é preciso escrever

para esse público, aproximá-lo da literatura.

O escritor se lançará então no desconhecido: falará, no escuro, a pessoas que desconhece, a quem nunca ninguém falou, a não ser para mentir-lhes; emprestará a sua voz às cóleras e inquietações dessa gente; através dele, homens que nunca se viram refletidos em espelho algum, e que aprenderam a sorrir e a chorar como cegos, sem se ver, encontrar-se-ão de súbito em face da própria imagem (SARTRE, 2004, p. 198).

O escritor engajado lança-se então a uma “esperança cega”, como afirma

Lygia, que resiste às adversidades do subdesenvolvimento protestando e

participando da realidade do seu tempo com tudo o que há de positivo e negativo na

sociedade: “inspiração para os escritores é o que não falta” (TELLES, 2009e, p.138).

E é inspirada no cotidiano, que Lygia Fagundes Telles traça os seus enredos.

Contemporânea de duas ditaduras (Vargas e Militar) a autora amadureceu em meio

a repressão, a censura; participante ativa da vida política do país vivenciou na sua

época de estudante muitas manifestação em favor de mudanças sociais; também foi

às ruas pedir pela instauração da democracia, pelas eleições diretas e pela

liberdade de expressão: “Assim é Lygia. Da vida para a literatura, e daí para a vida

de novo” (MONTEIRO et. al., 1980, p. 5).

Além dessa forte inspiração na contemporaneidade histórica do Brasil, outra

marca muito presente na construção dos enredos lygianos é a presença da

intertextualidade. Em Invenção e Memória (2000), por exemplo, em todos os contos

do livro há referências diretas a outros textos e a partir deles as tramas vão sendo

construídas: seja à cantiga de roda “Se essa rua fosse minha” e o poema “Navio

Negreiro”, de Castro Alves, em “Que se chama solidão”, ou o conto “Príncipe Feliz”,

de Oscar Wilde, em “O Cristo da Bahia”, também o poema “Se”, de Rudyard Kipling,

em “Se és capaz”, ou mesmo o romance Nada de novo na frente Ocidental, de

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Remarque, no conto homônimo, muitos outros grandes textos e escritores são

citados como elemento estético para o desdobramento e compreensão das

narrativas.

Dentre esse diálogo intertextual destacamos o conto “Dia de dizer não”,

presente na coletânea mencionada, que faz alusão à Cidade de Deus, de Santo

Agostinho e também ao poema “A flor e a Náusea”, de Carlos Drummond de

Andrade (2003, p. 27). Dessa relação dialógica entre esses textos Lygia vai

delineando a sua indignação ao “invasor da vontade”, isto é, o “político-invasor” que

não respeitando os nossos direitos invade a nossa liberdade, comprometendo-a. E

ante o sim do “comodismo e da servidão” dos que não conseguem reagir ao invasor

resta apenas a desesperança e o medo nessa “cidade dos homens” maus,

inescrupulosos de onde não se pode fugir: “Mas fugir para onde se a Miséria e a

Violência (as irmãs gêmeas) estão em toda parte num só galope, montadas nos

pálidos cavalos do Apocalipse”. E daí paira a dúvida “o homem ficou mais cruel ou

ele foi sempre desse jeito mesmo?” (TELLES, 2009e, p. 59-60). A isso podemos

também acrescentar a indagação de Drummond: “Devo seguir até o enjoo? Posso,

sem armas, revoltar-me?”.

Contra a ênfase ao capitalismo dessa nauseante sociedade materialista,

nesse conto, Lygia Fagundes Telles dá à narradora a oportunidade de dizer “Não!”.

Não ao político falando na rádio. Não ao hospital sem estrutura para acomodar os

doentes. Um não que urge como uma revolta à marginalização do outro. Uma

pequena palavra que é usada como “resistência de ferro” às injúrias da opressão

política, um não que representa uma ação contra o sistema desumano que assola o

terceiro mundo: “Não, Não... vou repetindo e no cansaço faço agora apenas um

gesto meio vago para o mendigo que me aborda na calçada e que fixa em mim um

olhar interpelativo” (TELLES, 2009e, p. 65).

Por conseguinte, o não em evidência nesse conto lygiano reflete não

somente uma resistência do ser perante a desordem social, também é uma forma de

resistência da palavra artística, ou seja, é a própria literatura reagindo contra a

ideologia dominante tal como uma flor que brota no asfalto e vai perfurando-o ao

mesmo tempo em que abranda “o tédio, o nojo e o ódio”, conforme escreveu

Drummond.

E é por meio dessa palavra de resistência que Lygia Fagundes Telles

constrói uma prosa de impacto e de ânsia, mas que também deleita-nos por sua

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intensidade e profundidade ao escrever tão bem sobre a condição humana. Que

seria, então, essa condição humana narrada na obra lygiana? Ora, segundo Hannah

Arendt (2007, p. 17), todo ser humano já nasce condicionado porque tudo no qual,

no decorrer de sua vida, ele entra “em contato torna-se imediatamente uma

condição de sua existência”. Logo, na literatura lygiana, como na vida, todas as

pequenas e grandes coisas, tanto no âmbito existencial como social, que de alguma

maneira tocam a vida humana ou entra “em duradoura relação com ela, assume

imediatamente o caráter de condição humana”.

Assim sendo, a narrativa de Lygia faz jus às palavras de Alfredo Bosi (2002,

p. 135) quando afirma que a literatura “descobre a vida verdadeira, e que esta

abraça e transcende a vida real”, uma vez que “por ser ficção, resiste à mentira. É

nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da

fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente”.

1.2 Do medo ao mistério: a escritora por si mesma

Os leitores pedem explicações, são curiosos e fazem perguntas. Respondo. Mas se me estendo nas respostas acabo por pular de um trilho para outro e começo a misturar a responsabilidade com o imaginário, faço ficção em cima da ficção, ah!

(Lygia Fagundes Telles)

Lygia Fagundes Telles em depoimentos sobre o seu ofício e a sua obra

costuma dizer que prefere ser amada a ser compreendida. Isso porque, para a

ficcionista a recompensa do seu trabalho é o amor dos seus leitores, o que a faz se

sentir honrada ainda em vida, enquanto que a compreensão de uma obra é difícil de

ser alcançada, pois o sentido da palavra literária é bastante ambíguo, uma vez que

“o escritor pensa em ambiguidade, o escritor contorna, ele também não abre muito o

jogo, ele joga” (TELLES, 1996a). E assim, Lygia confessa: “eu sou uma jogadora”.

Seu vício? A invenção. Sua aposta? As palavras.

A escritora, então, atrai o leitor para o jogo conquistando-o por meio da

palavra, deixando-o à vontade para construir suas reflexões sobre o que está

explícito no texto e também sobre o que se encontra implícito. Aqui, autor e leitor

interatuam como coniventes, como parceiros do ato criador “que é ansiedade e

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sofrimento. Busca e celebração” (TELLES, 2010d, p. 84). Mesmo sabendo que o

público não é tão grande como o desejado – amarguras do subdesenvolvimento –

Lygia, então, lança as suas fichas à sorte: “Se este livro não der certo. O outro dará.

Lembro do meu pai: ‘Amanha a gente ganha’. É o jogo, é o jogo” (TELLES, 1998, p.

43). A autora arrisca-se porque para ela escrever é buscar “paraísos perdidos”, mas

também é encontrar-se.

Deste modo, ao tentar reconstituir um universo perdido, Lygia perscruta da

memória às motivações que no início surgiram do medo e depois eclodiram no

mistério da invenção. Assim sendo, para a ficcionista, “a invenção e a memória se

misturam muito. É impossível fazer uma separação fria, calculada” (TELLES, 2014).

Isso porque o imaginário se apodera do real, acrescentando-o, modificando-o,

tornando a realidade em fantasia e nos deixando a dúvida: a memória se transforma

em invenção ou a invenção se disfarça de memória? A resposta da escritora, é

imprecisa: “Minha memória pode não ser minha memória, não tem importância o fato

da realidade existir ou não ali. O importante é a sedução com o leitor” (TELLES,

2014).

Quando questionada sobre a origem das suas histórias, a ficcionista

costuma responder que as ideias de suas narrativas não têm uma procedência

certa, algumas vezes pode ser fruto de um sonho, outras vezes de algo vivenciado

por ela, também pode surgir a partir de uma frase ou notícia lida em algum lugar e

até de uma imagem: “tudo é sombra. Mistério” (TELLES, 2010d, p. 116). Para Lygia

não é simples explicar a raiz da sua criação, porque tudo parece meio obscuro e os

detalhes são muitos, com “indevassáveis signos e símbolos”. Partindo do princípio

de que o texto literário é formado a partir de três elementos essenciais: a ideia, o

enredo e a personagem; a autora elabora uma metáfora a fim de ilustrar o seu

processo criador:

a ideia é representada por uma aranha. A teia dessa aranha seria o enredo. A trama. E a personagem, o inseto que chega naquele voo livre e acaba por cair na teia da qual não consegue fugir, enleado pelos fios grudentos. Então desce (ou sobre) a aranha e nhac! prende e suga o inseto até abandoná-lo vazio. Oco (TELLES, 2010d, p. 82).

Na urdidura lygiana, portanto, a ideia pode ser despontada de qualquer

lugar, a qualquer momento, da realidade ou da própria ficção. Sua trama é

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disciplinadamente tecida, revisada e se preciso reescrita, mas sem danos a essência

primária do texto. Suas personagens, mesmo presas ou sugadas pela ideia (aranha)

clamam pela liberdade, algumas até ressurgindo com novas faces, recusando o

desfecho de suas histórias: “como se me pegasse pela manga e dissesse: olha, não

fui bem aproveitada” (TELLES, 2007).

Em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira (1998), a escritora fala

de sua vocação exaltando o prazer de fazer o seu trabalho, assim como a imensa

paixão que sente pela tessitura de seus textos e a atenção que dá à forma de suas

narrativas. Minuciosa e rigorosa, Lygia considera seu ofício de escritora uma luta

diária que se assemelha a uma luta de boxe: com a mesma garra para vencer,

caindo e levantando para começar de novo, suando, dando o seu sangue, o seu

melhor. Segundo Eric Nepomuceno (1997, p. 12), nessa batalha o adversário da

ficcionista “são as emoções do leitor. Quando ele percebe, está exaurido, e

nocauteado. Tudo feito de forma delicada, suave, misteriosa”.

A delicadeza da escritura lygiana, no entanto, não impede a autora de tratar

com crueza e realismo os problemas sociais, o que leva-a em Durante aquele

estranho chá a pedir desculpas ao leitor “por não ser mais otimista quando lido com

a crueldade. Com a violência e com o medo” (TELLES, 2010d, p. 83). Ante isso, a

ficcionista usa uma estratégia para não perder o leitor, caso ele fique aborrecido com

as chagas da sociedade sendo desveladas por meio da literatura: “recorro ao humor,

quero a graça da ironia para que o leitor não fuja entediado, Espera um pouco! Eu

peço a esse leitor. Espera que posso até ficar engraçada mesmo em meio dos

acessos de indignação, afinal, não estamos no Terceiro Mundo?” (TELLES, 2010d,

p.83).

E vivendo na realidade de um país subdesenvolvido, Lygia, na condição de

escritora e de mulher, sofreu com as repressões no decorrer do seu processo de

crescimento pessoal e profissional. Na sua juventude, ela enfrentou preconceitos por

escolher fazer duas faculdades consideradas de exclusividade masculina – Direito e

Educação Física – e também por decidir escrever em prosa, o que para época era

ofício reservado especialmente para os homens. Em entrevista a Ana Lúcia

Vasconcelos, no ano de 1980, a escritora diz que nos quatro primeiros decênios do

século XX,

havia menos mulheres ousando escolas de homens, e ousando profissões masculinas. Poetisa podia, prosadora já era uma coisa

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esquisita, o pessoal estranhava. Havia naquela época poucas mulheres que quebravam este preconceito, este convencionalismo. A mulher quando escrevia devia ser uma poetisa para falar do homem, exaltar seu amor através dos versos. A mulher não podia ser a prosadora que tentasse trazer uma realidade que só os homens traziam. Elas tinham que se circunscrever a temas mais pueris, mais inocentes. Eu, quando comecei a escrever já fui tentando meus temas todos. O que, aliás, causou estranheza num crítico que disse: mas esta moça, esta menina – eu era muito jovem – escreve como um homem. Para mim foi o maior elogio (TELLES, 1980).

Ao longo de sua vida e carreira literária, Lygia rejeita os estereótipos

atribuídos à mulher se distanciando do título de “mulher-goiabada” – expressão

criada pela escritora para referir-se às mulheres acomodadas à submissão – e

lutando pela libertação social e individual destas. A autora também prefere não falar

de sua obra como uma “ficção feminina” que se diferencia ou se distancia da

literatura masculina, porque, para ela, “em literatura, não se deve fazer distinção de

sexo, só de qualidade” (TELLES, 1998). Visão compartilhada por Clarice Lispector

(2010, p. 116), que, ao entrevistar Lygia Fagundes Telles, declara: “Lygia é também

entre os homens escritores um dos escritores maiores”. Essa competência da

ficcionista é autêntica porque ela não se limita a tratar em seus livros apenas das

agruras femininas em uma sociedade patriarcal, ao contrário, sua literatura aborda

sobre as aflições e também as alegrias do ser humano, independente do gênero.

É pensando a condição humana que, com prudência e comprometimento,

Lygia enfatiza que mesmo ante o azedume da vida é necessário não perder a fé,

nem a capacidade de sonhar. Considerando-se uma espiritualista, a autora acredita

no amor ao próximo como desencadeador de mudanças, por essa razão põe sua

literatura como “uma ponte” entre ela e o outro e por meio dos seus escritos

ambiciona: “Se eu puder ajudar o meu próximo, veja bem, no seu sofrimento, no seu

medo, na sua luta que é a minha luta também, que é o meu medo, que também é o

meu sofrimento, se eu puder ajudar com essa palavra, missão cumprida!” (TELLES,

1996a).

Esse medo que é tão mencionado por Lygia e tão real na sua obra é o

sentimento essencial da sua criação, porque através dele as fragilidades humanas

ficam translúcidas e o contato com o outro se torna mais tangível. Se para a

escritora a literatura é uma forma de amor, ao falar sobre nossas fraquezas ela

mostra o poder da literatura de alcançar o nosso íntimo e nos inquietar,

transformando-nos de alguma maneira. Deste modo, declara a escritora: “Diante de

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si mesmo, diante do papel o escritor se sente grande porque sua tarefa é digna.

Pode ser corrompido mas não corrompe. Pode ser louco mas não vai enlouquecer o

leitor, ao contrário, poderá até desviá-lo da loucura” (TELLES, 2010a, p. 150). Daí

então, o mistério.

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CAPÍTULO II DUAS CASAS, UM MESMO RETRATO: a desconstrução da família burguesa

A família é o lugar donde se procura desesperadamente fugir e o lugar onde nostalgicamente se procura refúgio.

Mark Poster

A família, como o primeiro grupo social ao qual o indivíduo é instigado a se

adaptar, é a responsável também pelos seus primeiros conflitos. No seio doméstico

o ser em formação é posto diante de regras e limitações que o leva, muitas vezes, a

querer evadir-se do lar em busca de caminhos próprios, longe da proteção ou

imposições dos familiares. No entanto, como mostra Poster (1979, p. 9) na epígrafe

deste capítulo, a família tanto pode ser ambiente de prisão como de abrigo, um fardo

ou consolo: “E assim transcorrem as coisas no que tange à família, ora progredindo,

ora retrocedendo, sem sinais de acordo no horizonte”.

É exatamente essa falta de acordo que culmina mais na decadência do que

na evolução da família que encontramos como temática recorrente na literatura de

Lygia Fagundes Telles. Com ênfase voltada especialmente à questão dos

desencontros afetivos entre os membros dessa instituição, as relações familiares na

obra lygiana são instáveis, os laços não são firmes, ao contrário, são tão frágeis que

chegam ao esfacelamento, muitas vezes sem esperança de serem refeitos. Como

pode ser observado no conto “Antes do Baile Verde”, no qual uma filha opta pelo

carnaval ao invés de ficar em sua casa cuidando do pai moribundo. Ou ainda no

conto “A medalha”, em que mãe e filha vivem o dilema da incompreensão, do

preconceito e do rancor, sem expectativa de reconciliação. Da mesma maneira, o

conto “O espartilho” retrata a história de desentendimentos entre avó e neta, relação

na qual imperam as mentiras, traições e o desejo por manter viva uma tradição

familiar já perecida. Somando-se a essas narrativas e que também podem ser

analisados sob essa temática destacamos os contos “Você não acha que esfriou?”,

“O menino”, “Uma branca sombra pálida”, dentre muitos outros que trazem à

reflexão a representação da família como uma instituição em decadência: uma

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família geralmente burguesa que apresenta uma estrutura abalada e principalmente

dissimulada pela hipocrisia.

Sendo assim, o argumento deste capítulo baseia-se na análise da

representação literária da família nuclear burguesa, esta compreende um modelo

que surgiu no século XIX e se consolidou no decorrer do século XX, que

estruturalmente tinha no centro a figura do pai, como chefe, seguido da esposa/mãe

e dos seus descendentes diretos, isto é, os filhos legítimos do casamento. Nesse

tipo de família os papéis sociais do homem e da mulher eram bem delimitados: o pai

era o símbolo máximo de autoridade e a mãe era o símbolo da ternura e devoção ao

lar. Enquanto ao pai era dado o dever de prover o sustento financeiro da família, a

mãe era a responsável por todas as atribuições domésticas: limpar e decorar a casa

ou orientar os empregados quanto a isso, cuidar da alimentação e da saúde do

esposo e dos filhos, educar a prole. Por essa razão, “as relações internas da família

burguesa eram consideradas fora da jurisdição da sociedade. A família era um

microcosmo privado, um santuário em cujos recintos sagrados nenhum estranho

tinha o direito de entrar” (POSTER, 1979, p. 188). Nesse ninho doméstico, que tinha

em sua base o princípio do amor romântico primeiramente entre o casal e depois se

expandindo para os filhos, crescia os valores e preconceitos da nova classe

dominante, fundamentada pelo capitalismo. E assim, no ambiente privado do lar

burguês, pais e filhos construíam uma relação de ambivalências e contrastes:

autoridade paterna versus subserviência materna; autonomia dos pais versus

obediência e insatisfação dos filhos. A esse respeito, Poster (1979, p. 195) explica

que:

A família burguesa deve ser entendida não apenas como um progressivo e moralmente benéfico ninho de amor, de domesticidade, de “desejo de ser livre” e de individualismo, mas também na medida em que constituiu um padrão emocional particular que serviu para promover os interesses da nova classe dominante e registrar de um modo sem paralelo os conflitos de idade e sexo. Na família burguesa, nasceram novas formas de opressão de crianças e mulheres que dependiam de mecanismos críticos de autoridade e amor, de intensas emoções ambivalentes.

Ante o exposto, vale ressaltar que esse modelo de família na narrativa

lygiana não é sólido e aos poucos vai sendo desconstruído. Em sua obra, Lygia

Fagundes Telles problematiza a questão das relações familiares em meio às

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grandes mudanças sofridas pela sociedade no século XX, transformações essas que

surgiram especialmente por causa da globalização que, segundo Anthony Giddens

(2007, p. 16), contribuiu grandemente “para o estresse e as tensões que afetam os

modos de vida e as culturas tradicionais”, ameaçando também a estrutura da família.

Assim, a autora traz à tona questões como a ausência e o esmaecimento da figura

paterna; também coloca a mulher, mãe ou filha, no cerne da sustentação familiar,

tanto econômica como moralmente; escreve sobre a falta de diálogo e de amor entre

pais e filhos e mostra o quanto as relações parentais vão se tornando cada vez mais

frias, distantes enquanto os seres estão cada vez mais individualizados, cada vez

mais solitários.

Deste modo, a crise na família é o conteúdo social que movimenta os

enredos de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário, sendo, portanto, essencial para a

estrutura e interpretação dessas obras. Isto posto, neste capítulo examinaremos de

que maneira esse conteúdo é desenvolvido por Lygia, de modo a causar no leitor o

efeito da verossimilhança. Para tanto, veremos como são construídos os laços

familiares nesses romances lygianos, isto é, como são organizadas as famílias e de

que maneira essas obras se constituem como romances representativos da vida e

da sociedade, considerando o social “como fator da própria construção artística,

estudado no nível explicativo e não ilustrativo” (CANDIDO, 2008, p. 17).

2.1 Romances representativos: o desvelar da família por meio do

espaço-simbólico

Com efeito não é a representação dos dados concretos particulares que produz na ficção o senso da realidade; mas sim a sugestão de uma certa generalidade, que olha para os dois lados e dá consistência tanto aos dados particulares do real quanto aos dados particulares do mundo fictício.

(Antonio Candido)

Lygia Fagundes Telles (2005), em uma de suas entrevistas, comenta que

seu processo criativo parte de “uma observação apurada” da sociedade para em

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seguida entrar em ação “a imaginação”. A escritora que diz arquitetar suas

denúncias sociais de maneira “disfarçada” por “certa névoa de sombra ou de

mistério” demonstra ter consciência da integração artística entre o estético e o real.

A respeito da consciência social do escritor e de sua liberdade criadora, Candido

(2008, p. 83), em Literatura e Sociedade, esclarece que o escritor “é não apenas o

indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade [...], mas alguém desempenhando

um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e

correspondendo a certas expectativas dos leitores”. Assim, ao construir seu universo

literário a partir de reflexões sobre a realidade, organizadas por meio de um método

particular, o escritor abre o caminho das possibilidades para que o leitor possa ser

instigado pela impressão de verdade ocasionada pelo texto, isto é, pela

verossimilhança.

A verossimilhança que, de acordo com Luiz Costa Lima (2000), é bastante

“subjetiva” é, de igual modo, ambígua, isso acontece porque em literatura não é

necessário que a representação parta de algo concretamente verdadeiro para que

“pareça” verdade. Para o crítico, é a semelhança do fictício com o mundo real que

eterniza o fascínio de uma obra de arte sobre o público, uma vez que “a imanência

da obra sempre dependerá de um argumento que a aproxime do verossímil” (LIMA,

2000, p. 67). É desse ‘parecer sem ser’ que nasce o paradoxo entre mímesis e

verdade, pois ao mesmo tempo em que elas se assemelham também se

diferenciam, visto que a ficção não reproduz a verdade: “basta a mímesis manter um

resto da verdade [...], para sobre este resto, criar sua diferença” (LIMA, 2000, p. 63).

Sobre esse assunto, Candido (2004, 2008) explica que a verossimilhança é

motivada pela organização coerente do texto literário, assim, a relação da mimese

com a realidade só se torna eficaz quando o artista consegue transpor esse

paradoxo por meio da técnica. Isso significa que o objeto da representação literária é

proveniente da realidade, no entanto, ele somente torna-se verossímil quando se

transforma em parte integrante da estrutura da obra. Os elementos sociais atuam

como “formadores da estrutura” e são relevantes para a compreensão da obra

literária, mas não são determinantes, pois a impressão de verdade causada pela

ficção “pressupõe o dado real, mas não depende dele” (CANDIDO, 2004, p. 39).

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De igual modo, José Guilherme Merquior (1997, p. 21) esclarece que não é

a verdade quem estabelece a mímese5, mas sim o verossímil. A representação

literária não é uma cópia fiel do mundo real: ela parte de uma realidade particular e

concreta, porém, exibe o “universal”. O efeito da literatura, isto é, o resultado do seu

poder de causar interesse no leitor mesmo a obra tendo sido produzida em épocas e

contextos distintos do momento da recepção, é o que mantém a sua universalidade.

Por meio da “representação não servil de particulares é que se busca transmitir

significações de ressonância universal. Por uma espécie de astúcia da mímese, a

representação do singular logra significação universal” (MERQUIOR, p. 22). Assim, o

modo como a representação é arquitetada dentro do texto é o que garante o jogo

entre o imaginário e o mundo concreto, isso acontece porque o texto literário se

diferencia dos outros pelo fato de imitar a vida por meio de certo “fingimento” que faz

parecer real o que não é.

Como vemos, a maneira como esses três críticos literários abordam as

questões da verossimilhança e da mímesis é bastante semelhante, pois eles partem

do princípio de que o externo é apenas um dos elementos que constituem o texto

literário e, portanto, é a construção interna que garante a verossimilhança da obra,

uma vez que a literatura é um sistema linguístico simbólico. Ante essas acepções, a

partir de agora observaremos em Ciranda de Pedra e Verão no Aquário como a

realidade é representada no interior do texto e como se constrói a impressão de

verdade nesses livros.

Esses dois romances apresentam um esquema de intriga que se concentra

exclusivamente no ambiente familiar. As ações incidem dentro do lar, assim como os

espaços, que se restringem aos cômodos da casa das famílias principais, com

poucas ressalvas ou destaques para os espaços de fora desse círculo doméstico.

Segundo Gilbert Durand (2012, p. 243), como um espaço simbólico a “casa inteira é

mais do que um lugar para se viver, é um vivente. A casa redobra, sobredetermina a

personalidade daqueles que a habita”. Portanto, há nesses livros entre os espaços

da casa e as personagens um paralelismo que faz com que esses elementos

narrativos se confundam pela semelhança.

5 Cada um dos autores aqui estudados utiliza uma grafia diferente para essa palavra que é oriunda do grego mímesis – imitação, representação –, assim sendo, manteremos as formas gráficas correspondentes à maneira como os críticos as usam: Lima – mímesis; Candido – mimese; Merquior – mímese.

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O início das duas obras tem em comum o fato de ambas protagonistas

estarem trancadas em seus quartos, observando as frestas das portas. Esse lugar

simbólico que em Ciranda de Pedra vai indicar a solidão de Virgínia na sua primeira

fase de formação, em Verão no Aquário vai servir de contraste entre o mundo

exterior e o mundo interior da heroína, enquanto o sol irradiava lá fora, Raíza se

fechava na penumbra do seu quarto, como um ser que, mesmo estando vivo, se

recusava a viver: “Na escuridão do quarto, só a porta tinha o contorno marcado pela

frincha de luz que se filtrava por baixo: era como a tampa do enorme caixão de um

enterrado vivo acordando com a noite em redor. E vendo pelas frestas o sol a brilhar

lá fora” (TELLES, 2010e, p. 13)6.

Além de ser um espaço de intimidade e descanso, o quarto também é

descrito como um recôndito de melancolia: para Virgínia é o esconderijo onde ela

pode chorar e fugir dos problemas domésticos e também é o lugar que melhor

demonstra a sua posição de marginalizada dentro da sua própria família, visto que,

mesmo sendo filha de uma família financeiramente abastada, Virgínia está sempre

herdando as sobras da irmã mais velha, nenhum objeto desse lugar, nenhum móvel

foi escolhido ou comprado para ela. Já para Raíza é no quarto que começam os

sonhos e os pesadelos que a transportam para o passado onde ela encontra o

falecido pai, por meio dessas lembranças as ações do presente da narrativa são

desencadeadas e os conflitos familiares desvelados.

No espaço onírico de Raíza o sótão é o lugar no qual ela se sente mais

segura e confortável por ter ao seu lado o pai Giancarlo e o tio Samuel. Essas três

personagens – um alcóolatra, um louco e uma criança ingênua – representam a

parte mais decadente da família que não pertencia ou não se ajustava ao cenário de

perfeição – mesmo que de aparências – herdado pelo lado materno e simbolizado

pelo casarão.

Para que as duas ficassem em paz – minha mãe com seus livros e minha tia com suas costuras – era preciso que os dois irmãos ficassem longe de suas vistas. No sótão, por exemplo. Sim, a casa era enorme mas nós três não cabíamos dentro dela (VA, p. 17).

Segundo Durand (2012, p. 245), o sótão é um espaço que, embora esteja

localizado na parte superior da casa, tem o sentido de declínio e de anacronismo por

6 A partir desta nota, toda citação da obra Verão no Aquário terá a abreviatura VA seguida do número da página.

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ser “matizado de isolamento, regressão e intimidade” e por isso indica “sempre os

esquemas da descida, da escavação, da involução”. Em Verão no Aquário esse

lugar ilustra a involução da família, a separação do casal e o deslocamento da filha.

Em toda a narrativa vemos apenas uma cena em que a mãe e o pai estão juntos e

nessa única menção há a descrição de uma briga, presenciada pela menina às

escondidas. Ao recolher-se no sótão, o pai de Raíza se entrega ao abismo da

bebida, se afasta da família e tem sua imagem social inferiorizada, enquanto isso,

Patrícia, mãe da heroína, por meio do seu trabalho, cresce em importância dentro e

fora do lar.

A imagem do pai de Raíza, tão presente no espaço dos sonhos e da

memória, é sempre associada ao “cheiro de hortelã” uma marca que vai colocar a

sua fraqueza pela bebida alcoólica em contraste com o símbolo da força de Patrícia,

isto é, o “barulho da máquina de escrever”. Se o pai é lembrado pelo vício a mãe é

sempre citada pelo trabalho, assim sendo, os espaços que caracterizam a

personagem Patrícia destacam o seu ofício de escritora: há no escritório

simplicidade na organização destacando-se apenas a mesa de trabalho e a máquina

de escrever, no quarto da mãe tudo é discreto, não há objetos decorativos, não

existem fotos expostas, nada que indique alguma ligação de afeto entre ela e a

família: “Andei até o meio do quarto sóbrio e cálido. Faltava ali qualquer coisa de

mais pessoal, mais íntimo. Retratos, por exemplo” (VA, p. 163). Tudo isso enfatiza o

caráter forte de Patrícia, o seu desprendimento pelo sentimentalismo mostra uma

mulher decidida, prática, com personalidade estável, tranquila e lúcida.

Essas características da mãe, que são completamente opostas às da filha

Raíza, são também as molas propulsoras para o embate entre elas: suas diferenças

as mantêm distantes uma da outra e até a maneira como se comunicam –

fundamentadas em ironias e metáforas – sinaliza o quanto o relacionamento das

duas é problemático.

Encarei-a. Via agora que assim nos tratávamos há anos variando apenas a gradação da ironia que podia chegar até ao sarcasmo. Uma simples conversa de rotina, como tantas outras nas quais as estocadas mais ou menos profundas era iniciadas por mim. E ela se defendia ou não se defendia, o que era pior ainda (VA, p. 137).

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Assim, a partir dos espaços em Verão no Aquário podemos concluir que o

esquema mostra o decaimento da imagem do

pai, enquanto o diagrama coloca em evidência

o perfil da mãe, que tem grande êxito fora do lar como uma mulher independente,

mas vive dentro de casa um insucesso no relacionamento com a sua filha única.

Diferente de Verão no Aquário, em Ciranda de Pedra o “quarto azul” de

Laura, mãe da protagonista, não indica força, nem segurança ou lucidez, ao

contrário o que encontramos é loucura, melancolia, fragilidade. Semelhante a obra

homônima de Picasso, que foi pintada em sua fase mais pessimista, o quarto de

Laura evoca morbidez e tristeza. Observamos ainda que a referência à pintura de

Picasso não se dá apenas no título do quarto da doente, ao descrever a mãe e o

quarto azul, Virgínia nos coloca diante de um cenário comparável ao pintado pelo

espanhol: “O quarto estava na penumbra, [...]. A doente [...] deixava entrever o colo

magro, da brancura seca do gesso. O rosto parecia tranquilo em meio à cabeleira

em desordem, de um louro sem brilho” (CP, p. 22).

"O Quarto Azul", pintura de 1901, de Pablo Picasso.

escritório → trabalho → sucesso

sótão → isolamento → involução

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A semelhança entre o quarto da mãe da heroína e a pintura revela-se tanto

na aparência física entre a descrição de Laura – com sua pele branca e cabelos

louros – e a moça a banhar-se no quadro, como na ordenação dos objetos

encontrados nesses espaços: a mesa com flores, o divã, a janela cerrada. Segundo

o dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2012, p. 107), o azul

quando é disposto em algum ambiente desperta a tranquilidade e a calma. Essas

qualidades da cor têm grande relevância para a construção simbólica do espaço no

qual habitava a mãe da protagonista, visto que, para Laura era conveniente um lugar

onde ela pudesse descansar sem perturbações devido à sua saúde delicada. No

entanto, os autores também mostram que o azul é a mais “profunda” e “fria” entre as

cores, por isso, quando relacionada à densidade, seu significado é negativo e

sombrio evocando assim “a ideia de morte”. Deste modo, ao fazermos essa analogia

entre o “quarto azul” de Ciranda de Pedra e o da pintura de Picasso ressalvamos

para o fato de que a presença da temática da morte é tão profunda na “fase azul” do

pintor quanto na casa da heroína.

O clima mórbido tão forte na casa da infância de Virgínia também aparece

na casa puerícia de Raíza. Se em Ciranda de Pedra o tom tenebroso da morte se

faz presente pela aparência de deserto e pelos sons estridentes escutados no lugar;

em Verão no Aquário são os objetos e as fotos dos mortos da família, dispersas pela

sala, que dão a aparência de túmulo ao casarão.

Virgínia sentou-se na cama. Sentia a boca seca, as mãos molhadas de suor. Olhou na direção da porta. Aquele grito... Seria sonho? Enrolou-se tremendo no cobertor, saltou da cama e na ponta dos pés foi até o corrimão da escada. A casa inteira parecia dormir. Que horas seriam? Ah, se ao menos já fosse dia! (CP, p. 75).

Estávamos os dois na sala dos retratos da nossa antiga casa, sala dos retratos e das visitas que por sinal não nos visitavam nunca. Os móveis suntuosos, os objetos, os quadros [...]. Havia na sala um delicado cheiro de mofo e eu me perguntava se esse cheiro vinha dos panos puídos das cadeiras ou dos vestidos negros das damas dos retratos (VA, p. 126).

Por meio desses trechos percebemos que os espaços além de refletirem o

interior e as características de seus habitantes também são personificados como

compartes que acompanham a desordem familiar e intensificam a angústia

existencial das protagonistas: “Desceu a escada. O casarão adormecera na

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penumbra” (CP, p. 159). A descrição minuciosa dos quartos, sótão, escritórios e

salas comprovam a distância entre os parentes, além de mostrar uma família

separada e individualizada em seus espaços privados. Em Ciranda de Pedra, a

protagonista quando criança não tem permissão para entrar em nenhum dos

cômodos sozinha: a presença da menina não é permitida no quarto da mãe por

causa da doença mental desta; Virgínia também não tem consentimento para entrar

no escritório do pai para não o atrapalhar com assuntos perturbadores, referentes à

ex-esposa e ao amante; na saleta das irmãs, além de ser tratada com indiferença

por elas, a visita da heroína é vigiada e supervisionada pela governanta da família a

fim de evitar qualquer incidente que a jovem possa causar. Assim, o fato de todas as

personagens secundárias estarem reclusas em seus espaços e somente Virgínia se

locomover entre eles, mostra o desejo da protagonista de unir-se aos seus parentes

de maneira mais íntima e afetuosa, no entanto, a resposta a essa busca por carinho

e união familiar é continuamente negativa e a heroína é atormentada pela deficiência

de amor e indiferença dos seus familiares. Esse constante deslocamento de Virgínia

também indica que a personagem está sempre em mudança, sempre se

transformando e progredindo enquanto seus parentes permanecem no mesmo

isolamento e na mesma disposição à desarmonia.

De modo semelhante, em Verão no Aquário a falta de contato afetivo e a

separação entre os membros da família se dá pelo insulamento de cada indivíduo

em seus refúgios particulares. Cada “metro quadrado” do espaço exterior funde-se

ao interior das personagens que, apesar de estarem cientes da condição de viverem

em grupo, permanecem reclusas em si mesmas.

Era preciso, ao menos, que não continuássemos como ilhas, nós que fazíamos parte de um só todo como aquelas bonecas de mãos dadas que tio Samuel recortava dobrando os jornais: bastava recortar a primeira e as seguintes vinham vindo formando uma corrente de bonecas, os mesmos vícios e as mesmas virtudes a se repetirem nas silhuetas iguais (VA, p. 123).

Essa reflexão da protagonista resume bem o perfil de família que

encontramos em Verão no Aquário e também em Ciranda de Pedra: mesmo sendo

“parte de um só todo”, os elos da corrente não são firmes, os laços são

enfraquecidos e consequentemente destruídos.

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2.2 Os laços de família: a família burguesa em desordem

Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.

Liev Tolstói

Em Ciranda de Pedra a protagonista Virgínia, quando criança, é instigada

por meio de uma tarefa escolar a fazer uma redação sobre a “Descrição de uma

família”, a menina então idealiza a imagem de uma família patriarcal tradicional:

“Podia escrever sobre um homem do campo voltando para casa, a enxada no

ombro, contente porque sabe que à sua espera estão a mulher e os filhinhos” (CP,

p. 30). Tão contrária ao modelo familiar da heroína, essa descrição serve como

ponto de partida para a reflexão sobre os laços de família representados nas obras

em análise. Assim, veremos nesse tópico como é construído o comportamento das

personagens no seio familiar e como suas ações na narrativa desencadeiam o efeito

de verdade das obras.

A família patriarcal, que até o século XIX foi o modelo predominante no

Brasil, segundo Candido (1951), é a base pela qual se desenvolveu a família

burguesa moderna. Em ambas as estruturas, o pai surge como o ser superior que dá

segurança ao lar, toma as decisões quanto ao destino dos filhos e zela pela moral

da família. À mãe compete a responsabilidade de educar os filhos e cuidar das

tarefas domésticas. Os filhos dão continuidade ao sobrenome da família, mantendo

a tradição, seguindo o exemplo do patriarca. Contudo, o que distingue esses dois

modelos familiares é a extensão de membros sob a tutela do pai, que diferente da

nuclear burguesa a família patriarcal é composta pelo esposo, esposa, filhos,

genros, noras, netos, parentes, agregados e empregados, sendo mais comum de

ser encontrada nas áreas rurais que nas urbanas.

Ocorre que no transcorrer do século XX a soberania do pai foi aos poucos

esmaecendo, isso se deu especialmente em decorrência do aumento do número de

mulheres que decidiram trabalhar fora do lar e pela progressiva independência dos

filhos, também por meio do trabalho longe da redoma paterna. De acordo com

Candido (1951, p. 18), a transformação no âmbito familiar teve como característica

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mais expressiva “a diminuição em primeiro lugar, seguido pela decadência, e hoje a

extinção do pai como líder do grupo, graças, sobretudo a divisão do trabalho social”7.

Nas obras Ciranda de Pedra e Verão no Aquário, podemos observar

claramente esse enfraquecimento da figura paterna. À medida que as narrativas vão

se desenvolvendo a imagem do pai vai ficando cada vez mais apagada, vai

desaparecendo das histórias. Seja por preferir o isolamento e se esconder no

trabalho como observamos em Natércio, no primeiro romance, ou por razão da

ausência ocasionada pela morte e sucessivo esquecimento, a exemplo de

Giancarlo, na segunda obra, os laços paternos são os mais frágeis, resultando na

morte social “da figura do pai”, da qual fala Massimo Canevacci (1982, p. 37) em seu

livro Dialética da Família.

Ora, nas famílias de base patriarcal, como é a burguesa, a presença do pai

por meio da sua autoridade representa o alicerce do lar, ele é o ser a quem todos

devem obediência e respeito, acatando as suas ordens e decisões. Logo, sem um

ideal de autoridade a família fica desestabilizada e “se torna um foco de pulsões

destrutivas e autopunitivas” (CANEVACCI, 1982, p. 33). Nos romances lygianos em

estudo, a autoridade dos “chefes de família” é posta em questionamento de um lado

pelo abalo moral causado pelo escândalo da infidelidade da esposa e

consequentemente a separação matrimonial (Ciranda de Pedra) e do outro pelo

alcoolismo e frustração econômica (Verão no Aquário).

Doutor Natércio é de pouca fala, um homem corneado como ele foi não tem mesmo muito assunto (CP, p. 90). [...] Giancarlo... Bem, ele era uma flor mas não tinha mesmo jeito para nada. Perdeu a farmácia, foi lesado numa firma, tudo para ele corria tão mal! E tinha ainda essa coisa de beber [...] (VA, p. 111).

Se em Ciranda de Pedra vemos um pai que por consequência do orgulho

ferido tornou-se mais casmurro, ríspido e fechado para o diálogo com as filhas; em

Verão no Aquário observamos um pai mais carinhoso e presente na vida da filha,

porém, socialmente é um fracassado. Natércio é o advogado bem sucedido e

extremamente rico e que, no entanto, não servia de inspiração para a família.

Giancarlo é o farmacêutico estrangeiro que, com seus gestos delicados e falta de

7 The most significant feature of the change was the diminution at first, followed by the decadence, and today the extinction of the father as a group leader, thanks above all to the division of social labor (CANDIDO, 1951, p.18).

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objetivos, não tinha fibra para manter-se como exemplo e chefe do núcleo

doméstico. Em razão disso, a imagem desses dois pais funciona como reflexo

negativo na formação das filhas, o que ocasiona a instabilidade comportamental das

jovens, em especial das protagonistas, visto que elas são as mais atingidas pela

falta do pai em seus trajetos de crescimento pessoal.

Dentre os estudiosos da família, como, por exemplo, Alexander Mitscherlich

(1982), é comum a ideia de que a ausência paterna acarreta nos filhos certo

desajuste emocional e na conduta social. Isto ocorre porque “os modelos de

comportamento das figuras primordiais, o pai e a mãe, são assumidos e

interiorizados” pelo filho, causando um processo de “identificação-imitação”

(MITSCHERLICH, 1982, p. 237). Desta forma, Virgínia e Raíza em um primeiro

momento da narrativa passam por essa identificação com a figura paterna, com

grande veneração pelo pai o que ocasiona, em contrapartida, um conflito com a

mãe. No entanto, o que a princípio é percebível como deslumbramento ante a

imperiosa imagem do pai, aos poucos vai se transformando em decepção e

frustração.

Ela desviou para o chão o olhar magoado. “Até o pai.” Afinal, esperara tanto que ele viesse recebê-la no portão, tomando-a alegremente nos braços. “Que bom, meu bem, que bom você ter vindo morar comigo!” Corrigiu: meu bem, não, que quem a tratava assim era Daniel. O pai dizia apenas Virgínia. “Sim, Virgínia. Não, Virgínia.” Era até um pouco... A palavra quase veia à tona, mas energicamente a empurrou para o fundo. Não, não é que ele fosse seco, não era isso. Apenas tudo teria sido muito melhor se ele a recebesse mesmo sem dizer nada. Foi saindo na ponta dos pés. Ainda voltou-se para vê-lo, mas ele parecia olhar através da janela. “Por que está sempre fugindo de mim?” (CP, p. 78).

Nesses romances lygianos, o pai idealizado pelas protagonistas na verdade

não corresponde ao pai real. Filha de pais separados, Virgínia percebe, quando

passa a conviver com Natércio, que ele não é o modelo de segurança e amor que

ela sonhara quando estava sob a guarda da mãe e do padrasto. Já Raíza reluta

bastante em desmistificar a imagem de Giancarlo, que falece no período da infância

da heroína. Se prendendo às constantes lembranças dele, a heroína tinha ciência

das falhas paternas, mas ignorava-as: “debaixo da poltrona estava escondido um

copo de vinho tinto. E se minha mãe entrasse de repente e descobrisse aquele

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copo? Escorreguei para junto da poltrona, pousei o sapato e enlacei as pernas.

Agora ela não podia ver o copo” (VA, p. 126).

Contemplamos então, nessas obras, os perfis de dois pais que se

diferenciam na maneira de tratar as filhas (um com frieza e outro com meiguice),

mas que são semelhantes quando se trata da desconstrução do modelo ideal que se

espera de um pai – tão preconizado pela estrutura familiar burguesa –, isto é, o

exemplo que vai servir de referência ética e moral para os filhos. Os laços paternos

que deveriam conferir o aspecto de proteção e equilíbrio ao lar na verdade

representam a falta de harmonia e a vulnerabilidade familiar.

Enquanto em Verão no Aquário a ausência de Giancarlo se dá pela morte

física, em Ciranda de Pedra, Natércio se faz ausente pela morte social, seu túmulo é

o escritório, que semelhante ao dono possui um aspecto tão sombrio quanto

melancólico:

Apagou a luz e o globo voltou à sua opacidade. Assim apagado, sem alma, ele combinava bem com a mesa de Natércio que, à força de recebê-lo todos os dias, acabara adquirindo-lhe a feição: pesada, austera, sem nenhum objeto mais pessoal. Jamais devia ter tido a presença de um retrato. De uma flor (CP, p. 187).

A reclusão de Natércio no escritório, assim como a de Giancarlo no sótão,

evidencia o distanciamento da figura paterna do núcleo familiar. Esses espaços

confirmam a anulação do pai nessas obras, pois são lugares de afastamento e

solidão. Deste modo, o lado paterno não tem o domínio sobre a ordem do lar, ele

não inspira respeito, não decide sobre as regras da casa, não impõe limites às filhas,

e também não as ajuda a enfrentarem o mundo. Daí a crise de identidade das

protagonistas, visto que sem o apoio afetivo do pai elas crescem hesitantes e sem

confiança para se relacionarem com o outro, quer seja parente ou não.

Quanto a essa reação do filho à ausência do pai em sua formação,

Mitscherlich (1982, p. 240-241) explica que sem a ativa presença paterna o filho

transforma-se em um ser fragmentado, com espaços vazios em seu

desenvolvimento, causando-lhes mutilações no âmbito pessoal e social, lacunas

essas que recaem “sobre a formação e sobre a orientação geral que os pais

transmitem aos filhos”. Essa mesma ideia está presente também nos estudos de

Erich Fromm (1995, p. 67), para quem “o pai é aquele que ensina ao filho, que lhe

mostra a estrada do mundo”. Portanto, a formação de Virgínia e Raíza como seres

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autônomos se mostra delicada e complexa, porque a base familiar do lado do pai é

apagada e do lado da mãe é crítica, visto que os laços maternos desses romances

também representam o avesso da idealização sobre a maternidade construída pelo

patriarcalismo e pela ideologia da família nuclear.

Na família burguesa tradicional, a figura da mãe era exemplo de amor e de

cuidado tanto para o marido quanto para os filhos. Ela, como “rainha do lar” tinha a

missão de deixar a sua casa como um verdadeiro paraíso, zelando sempre pelos

bons costumes. Essa imagem da mulher, que perdurou durante o século XIX e início

do século XX, restringia os espaços de atuação feminina unicamente ao lar.

Segundo Maria Ângela D’Incão (1997, p. 230), quando a mulher saía do ambiente

privado para um espaço público era unicamente com o objetivo de “contribuir para o

projeto familiar de mobilidade social através de sua postura nos salões como

anfitriãs e na vida cotidiana, em geral, como esposas modelares e boas mães”.

Contudo, já vimos que nos romances em estudo as mães não seguem esse

ritual burguês, ao contrário, elas desconstroem essa imagem e também se mostram,

assim como os pais, impotentes no processo de crescimento das filhas. Em Ciranda

de Pedra, o delicado estado mental de Laura não a permite ser um exemplo positivo

para as três meninas: Bruna, Otávia e Virgínia. Em Verão no Aquário, Patrícia

assume uma postura idêntica a de Natércio e também se tranca em seu escritório

para garantir o sucesso do seu trabalho como escritora e o sustento da casa.

Tanto Laura quanto Patrícia reagem contra a tradição burguesa, rebelam-se

e desafiam a ordem vigente. A primeira se cansa da tirania do marido, da falta de

carinho das filhas, da vida hipócrita dos parentes e entrega-se ao verdadeiro amor;

deixa a sua casa, abre mão da guarda das filhas e vai viver com o amante Daniel.

Fazia anos que eu não ia a nenhuma festa, a parte alguma, ele [Natércio] detestava sair comigo, nosso passeio era visitar a família, ficar horas e horas na saleta dourada, cheia de mortos e de retratos de mortos, ouvindo as gêmeas tão iguais! Uma recitava, depois a outra cantava, depois a outra recitava, alternadamente... Você tem suas filhas!, ele costumava me dizer. Minhas filhas... Eram minhas? Bruna, que parecia uma inimiga, pronta sempre para me julgar. Tão dura. E Otávia sempre tão distante, lá longe com seus cachos... Era graciosa a minha Otávia com aqueles seus cachos, abracei-a tanto, fica comigo, só tenho você! Então ela choramingava, não, mamã, num quelo, cê dismancha meu tachinho... (CP, p. 37).

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A opressão de Laura na casa de Natércio era tão forte que a levou ao

desajuste mental. A doença, que foi usada como desculpa ante a sociedade

conservadora do livro, para a atitude transgressora da personagem, foi também a

sua libertação das obrigações familiares. Como mãe, Laura não teve a oportunidade

de orientar às suas filhas quanto à vida e de agir conforme os parâmetros sociais de

maternidade, seu tempo na narrativa é curto, no entanto é primordial para

compreendermos os desajustes da família burguesa representados na obra.

O relacionamento extraconjugal de Laura com o médico Daniel é a

complicação que faz Ciranda de Pedra já iniciar de maneira dinâmica porque a força

perturbadora desse ato “impensado” cometido por uma esposa burguesa, que

deveria ser uma mulher de coração dedicado incondicionalmente ao seu lar,

compromete a honra do marido e das filhas perante a sociedade. A separação ou o

desquite, tão assustador para as mulheres dos anos dourados, não foi empecilho

para Laura que mesmo sofrendo por causa dos preconceitos das mulheres e dos

homens honrados não voltou atrás em sua decisão.

Em Verão no Aquário, a mãe Patrícia tem as características que comumente

são atribuídas ao pai: ela controla a família, torna-se a chefe do lar e com a

publicação dos seus livros consegue reerguer a frágil situação financeira da família,

causada pela fraqueza do esposo. A mulher que geralmente é representada pelo

estereótipo da delicadeza e candura, nessa obra aparece exatamente como o

oposto: enquanto Giancarlo é comparado a uma flor, por seu caráter meigo e

romântico, Patrícia é racional, bastante fria, sempre distante, reservada, indecifrável

como uma esfinge: “pena não saber o que era esfinge para então desenhar uma e

seria esse o retrato da minha mãe. ‘É uma esfinge!’, disse dona Leonora à mulher

dos tricôs” (VA, p. 16).

Segundo Chevalier & Gheerbrant (2012, p. 390), a esfinge que na Grécia

antiga tinha o sentido da tirania e da destruição, no decorrer “de sua evolução no

imaginário veio a simbolizar o inelutável”. Essa palavra que quando é aludida

sempre nos “faz pensar em enigma, evoca a esfinge de Édipo: um enigma opressor.

Na realidade, a esfinge se apresenta no início de um destino, que é ao mesmo

tempo, mistério e necessidade”. Deste modo, como a esfinge, Patrícia é – para a

filha – uma mulher autoritária, pois governa a sua família sem opositores à maneira

de um patriarca opressor; seu ofício de escritora e seu estilo de produzir obras

literárias herméticas lembra a sabedoria incompreensível dos enigmas do mito:

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“Minha mãe gostava de colecionar palavras, há anos que as colecionava

cuidadosamente: eram todas belas e cheiravam a dicionário, perfeitas por fora, mas

só a casca intacta desde que por dentro já não havia mais nada” (VA, p. 84).

Dos dois romances em análise, Verão no Aquário é o que possui os laços

maternos mais complicados. Isso acontece porque Raíza vê na imagem da mãe

uma inimiga difícil de vencer. No entanto, diferente da mitologia grega, quem se

entrega ao abismo é a própria filha que não consegue desvendar o segredo da mãe

com o jovem André e por isso se martiriza durante todo o enredo (sobre isso nos

deteremos no terceiro capítulo deste trabalho). Portanto, aos olhos de Raíza a mãe

é, além de esfinge, um ser indiferente aos seus problemas e aos dos demais

membros da família, semelhante ao quadro de Watteau8 – citado na obra – a filha

delineia a progenitora ante o leitor como uma mulher alheia aos conflitos familiares e

dedicada apenas ao seu trabalho:

Minha mãe. Chovia? Fazia sol? Eu ficara grávida? Marfa aparecera bêbada? Tio Samuel fora para o hospício? Meu pai fora para o inferno? Não, nada disso tinha a menor importância. O importante era que ela escrevesse seus livros. Podia um vulcão romper no meio do jardim público e haver um fuzilamento em massa na esquina e a lua dar um grito e se despencar lá do alto... Ela não queria saber de nada. Ou melhor, queria saber mas era como se não tivesse sabido. Ouvia. Calava. E muito tesa e muito limpa, sentava-se diante da máquina, punha os óculos e começava a escrever (VA, p. 67).

Ao queixar-se sobre a falta de envolvimento da mãe nas questões

individuais dos familiares, Raíza deixa transparecer a sua concepção sobre a

maternidade de acordo com o mito feminino construído pela moral burguesa e

relacionado ao amor materno. A mãe burguesa, com seu amor incondicional, jamais

deveria abandonar os passos dos filhos, nem lhes dá liberdade para crescerem

longe de sua proteção, porque a prioridade na vida dessa mãe deveria ser, sempre,

a irrestrita dedicação à sua prole.

Sobre isso, Elisabeth Badinter (1985, p. 238) escreve, em Um Amor

Conquistado: o mito do amor materno, que quando a psicanálise e a sociedade

definiram a mãe como a principal responsável pela promoção da felicidade do filho,

essa obrigação despontou na limitação da atuação social da mulher, porque ao ser

confinada ao “seu papel de mãe, a mulher não mais poderá evitá-lo sob pena de

8 O indiferente – L’indifférent – é uma obra do pintor francês Jean-Antoine Watteau. Pintado em 1717, no estilo rococó, o quadro está atualmente no Museu do Louvre em Paris.

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condenação moral”, uma vez que, “ao mesmo tempo em que se exaltavam a

grandeza e a nobreza dessas tarefas, condenavam-se todas as que não sabiam ou

não podiam realizá-las à perfeição”. Assim, a censura tanto de Raíza quanto de

Bruna – primogênita de Laura, em Ciranda de Pedra – ao perfil de suas mães se dá

justamente a partir dessa concepção sócio-ideológica que considerava esse ideal de

maternidade como inato à “natureza feminina”: “Nossa mãe está pagando um erro

terrível, será que você não percebe? Abandonou o marido, as filhas, abandonou

tudo e foi viver com outro homem. Esqueceu-se dos seus deveres, enxovalhou a

honra da família, caiu em pecado mortal!” (CP, p. 43, grifo nosso).

Os deveres da mãe burguesa, corrompidos por Laura e Patrícia, preconizam

os valores morais cristãos, o qual santifica a imagem da mãe e propagam a ideia da

sagrada família. Então, ao quebrarem a harmonia “sagrada” do lar com seus

comportamentos transgressores essas mães provocam nas suas filhas uma

confusão interior semelhante a que fora causada pelo desamparo do pai. Nesses

lares, em que o desajuste entre os laços paternos e maternos predominam, os que

mais sofrem com as tensões domésticas são os filhos, visto que eles são

testemunhas do fracasso dos pais e não têm neles o melhor exemplo. Apesar disso,

há aqueles filhos que conseguem fazer do fracasso familiar um aprendizado,

enquanto outros repetem os mesmos erros dos pais em uma espécie de

determinismo.

Nos romances em análise, temos exemplos desses dois tipos de reação

entre as filhas das famílias principais: as heroínas, Virgínia e Raíza, amadurecem e

se aperfeiçoam a partir das confusões familiares, enquanto isso Bruna e Otávia, de

Ciranda de Pedra, não conseguem avançar e tornam-se adultas fadadas ao mesmo

destino dos pais. As irmãs mais velhas de Virgínia são as típicas moças burguesas,

educadas para se tornarem mães e mulheres prendadas para o lar. Entretanto,

assim como Laura e Natércio, essas jovens não seguem o caminho traçado para as

suas vidas e também violam a moral patriarcal da família nuclear. As três irmãs são

semelhantes aos “três estilos de mulher” categorizados pela escritora Susana

Pravaz (1981), assim sendo, Bruna, Otávia e Virgínia representam, respectivamente,

a mulher doméstica, a mulher sensual e a mulher combativa.

Para essa autora, a mulher doméstica é àquela que se realiza no lar, como

uma boa esposa e excelente mãe. Ela é fruto de uma extensa tradição de mães

exemplares ou pode surgir “como uma resposta crítica à falta de uma mãe que tenha

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cumprido satisfatoriamente tal papel” (PRAVAZ, 1981, p. 67). Por conseguinte, a

mulher doméstica é responsável por manter a tradição e passá-la adiante às suas

filhas e netas. Seu corpo é exclusivamente templo da procriação, ter filhos é “a

definição de sua identidade, de sua apresentação no mundo” (PRAVAZ, 1981, p.

85).

Já a mulher sensual se caracteriza pela utilização do seu corpo como fonte

de prazer. Sem pretensões para o matrimônio essa mulher tem como objetivo ser

sempre o centro das atenções dos que estão a sua volta, seu alvo é a conquista do

sexo oposto, é fazer o homem perder a razão e dedicar-se a atender aos seus

desejos. De acordo com Pravaz (1981, p. 88), para esse estilo de mulher o corpo é o

seu atributo principal “com ele, por ele, conquistará e dominará o homem, o fará

sentir seu mistério, sua atração, seu chamado inapelável”.

A mulher combativa ou independente possui as características de um

guerreiro: luta até vencer, batalha até conquistar os seus objetivos. Consciente dos

seus direitos sociais, busca por meio do trabalho a sua libertação: “Ela é o

Movimento, a ocupação permanente. Alimenta-se do seu próprio esforço, nutre-se

na busca, renasce em cada vitória” (PRAVAZ, 1981, p. 62). Com ousadia, ela

enfrenta os desafios que são contrários à sua felicidade e aprende com os

fracassos.

Estes estilos, originados na fragmentação e divisão do trabalho e do desejo, se aprendem no seio da família, que ao transmitir os valores da sociedade a que pertence, determina, distribui e outorga os papéis especializados que assumirão seus filhos, neste caso filhas (PRAVAZ, 1981, p. 21).

Embora Bruna e Otávia tenham sido criadas de maneira diferente de

Virgínia, todas foram moldadas pelo mesmo ideal feminino, contudo, nenhuma é

semelhante à outra, cada uma desenvolveu características a partir da posição

conquistada dentro do lar. Desta forma, por serem tão diferentes e por partilharem

de concepções de vida que se opõem, os laços fraternos em Ciranda de Pedra

também são conturbados.

A primogênita Bruna desde a infância assume a postura conservadora do

cristianismo. Condena a mãe pelo “pecado” do adultério e é completamente fiel ao

pai. A vocação dessa personagem para mulher doméstica é percebida ainda na

meninice: na ausência da mãe, a filha mais velha torna-se a “rainha do lar”, fica com

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o comando da casa e cuida para que Natércio não sofra mais nenhum desgosto: “Só

comigo que meu pai conta. Como posso ter pena deles? E do pai? Quem tem pena

do pai?” (CP, p. 46). Segundo Pravaz (1981, p. 55), a mulher doméstica constrói sua

imagem a fim de tornar-se conhecida como a “Patroa, a Senhora, a Mulher

Abnegada, enfim, a Mãe de Família”. Destarte, para perpetuar esse status de mulher

exemplar ante a sociedade, Bruna casa-se cedo com Afonso e tem uma filha: “Na

hora em que Berenice nascia, em meio das dores, senti maravilhada que a raiz do

mundo estava no meu ventre!” (CP, p. 135). E como responsável pela continuação

de sua origem burguesa, Bruna constitui uma nova família que, ironicamente, cairá

no mesmo abismo da família de seu pai.

A filha do meio, Otávia, é a mais bela das três. Fútil, desligada e sem

preocupar-se com os julgamentos dos outros ela é o sinônimo da sensualidade que

desperta desejos e paixões por onde passa. Como mulher sensual “é considerada a

graça da vida, a alegria da família” (PRAVAZ, 1981, p. 78). Não tem vocação para

os estudos e nem almeja o casamento, seu comportamento pervertido é motivo de

indignação para a irmã mais velha. Os constantes casos amorosos de Otávia fazem

Bruna ficar estarrecida por causa da afronta à honra e a moral feminina defendida

pela primogênita desde a infância.

— Mais tarde fui procurá-lo no quarto, separo bem a profissão dele de todo o resto. Então me disse um bando de coisas, me estapeou e foi-se embora. O cretino. Eu sabia que acabaria se apaixonando por mim. — Mas Otávia... — repetiu Bruna. O espanto dava lugar à indignação. — Que baixeza! Chegar a um ponto desses! E você ainda conta com essa naturalidade... Otávia voltou para a irmã o rosto cândido. Um anel de cabelo caiu-lhe na testa alta e branca. — Por que esse espanto agora? Entre amantes há intimidade suficiente também para tapas, você sabe disso. — Que desgosto, Otávia, que desgosto. Se papai soubesse — murmurou Bruna saindo do quarto. Estava lívida. — Não sei mesmo como você pode... — E daí? Será que perdi o céu? — perguntou Otávia apontando o teto. Um risinho brando sacudiu-lhe os ombros — Volte sempre, minha querida, volte sempre! (CP, p. 129).

O poder de Otávia estava em seu corpo, por causa da sua beleza, ela

também será motivo de inveja para a irmã caçula, sentimento que causa grande

instabilidade na formação da protagonista.

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No início da trama Virgínia é dominada pelo incondicional amor pelas irmãs

e pelo pai, no entanto todos a tratam com indiferença. Desejosa de integrar-se à

união de Bruna e Otávia, a protagonista de Ciranda de Pedra faz todas as investidas

possíveis para ser parte do pacto de cumplicidade que havia entre as suas irmãs

mais velhas, mas ela sempre tem como resposta o fracasso. Todavia, como mulher

combativa Virgínia mostra a sua força no transcorrer do enredo, superando os

conflitos causados pelos delicados laços familiares ela consegue sobressair-se e

conquistar seu final feliz. Vale ressalvar ainda que no decorrer da narrativa tanto

Virgínia quanto Bruna, em determinados momentos, também ingressam no grupo

das mulheres sensuais e usam o seu corpo como fonte de prazer e de poder. Sobre

isso, Pravaz (1981, p. 22) esclarece que em cada mulher há “aspectos específicos

de Domesticidade, Sensualidade e Combatividade”, isto porque a mulher ocidental é

formada “dentro da crença de que ser mulher é ser Mãe, Fêmea, Guerreira”. Desta

maneira, cada mulher pode assumir um desses estilos dependendo da situação,

conforme podemos observar em Ciranda de Pedra a partir da apreciação do

comportamento feminino na obra.

Ante o exposto, a análise dos laços de família em Ciranda de Pedra e Verão

no Aquário mostra a representação de uma família burguesa em desconstrução,

uma vez que, o fracasso nas relações entre os parentes evidenciam a mudança no

paradigma social da família nuclear. Portanto, ao descontruir os conceitos que

movem as noções de pai, mãe, filhos e irmãos, Lygia Fagundes Telles põe em

desordem a ideia de família sob a óptica do patriarcalismo e questiona a sua

estrutura.

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CAPÍTULO III

ITINERÁRIOS DE APRENDIZAGEM: o Bildungsroman lygiano

A meta da vida não é a perfeição, mas o eterno processo de aperfeiçoamento, amadurecimento, refinamento.

John Dewey

Lygia Fagundes Telles no decorrer da sua carreira literária, de quase oito

décadas, escreveu apenas quatro romances; a maior parte da sua obra é composta

por contos. Esses romances, que não perdem a qualidade e as marcas das suas

narrativas curtas, são, assim como a nova prosa brasileira, de caráter híbrido, visto

que não se encaixam apenas em uma tendência. Portanto, apesar de ser conhecido

pelo caráter intimista ou psicológico, o romance lygiano também pode ser

classificado como de costumes urbanos e ainda de aspecto engajado. Se

pensarmos também na classificação temática dos contos da autora não devemos

nos esquecer do suspense e do fantástico, que também estão bastante presentes

nas suas narrativas longas.

Segundo Afrânio Coutinho (2004, p. 240), as várias tendências, que existem

no conjunto da obra de um determinado escritor no cenário literário contemporâneo,

constantemente apresentam-se entrelaçadas. Por essa razão, os romances surgem

“mistos e difíceis de serem classificados por uma óptica tradicional”. Para Santiago

(2002, p. 35), isso ocorre porque o romance é um gênero literário “bandido”, que por

ter se libertado da tradição poética clássica é, por natureza, moderno, pois “surge

como consequência de uma busca de autoconhecimento da subjetividade racional”.

De igual modo, Ian Watt em A Ascensão do Romance (2010) mostra que o romance

tornou-se distinto dos outros gêneros ou formas literárias clássicas pela maneira

como as personagens são criadas, tendo como característica a individualização

destas, o que as particulariza e as distancia dos tipos generalizados. Assim, Watt

explica que ao dar nome, atributos e uma trajetória temporal às personagens os

romancistas produzem uma representação mais realista da vida.

Por conseguinte, Candido (2002) em seu ensaio sobre A Personagem do

Romance, mostra que os seres ficcionais, devido à lógica estabelecida pelo escritor

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desde o início do romance, são mais perceptíveis do que os seres humanos. Isso

porque o conhecimento que temos do outro nunca é completo, o interior da alma

humana sempre é exposto por “fragmentos do ser”, que percebemos em diferentes

momentos de interação. Por isso, o autor nos aponta esse desejo de descobrir o

outro como “uma aventura sem fim”. No entanto, como essa complexidade humana

(esse mundo interior não revelado) é representada nas personagens de ficção?

Candido (2002, p. 59) explica que por meio da técnica romanesca, o autor “é capaz

de dar a impressão de um ser ilimitado, contraditório, infinito na sua riqueza”,

portanto, um ser que é tão complexo quanto o ser humano apesar de termos todas

as justificações do seu eu ante os nossos olhos, materializadas no livro.

Assim são elaboradas as personagens lygianas; marcadas pela

complexidade interior suas construções não se resumem à caracterização física,

pois a autora prioriza a tessitura do eu dessas personagens, e assim vai

arquitetando-as em seres multifacetados, tendo sempre o cuidado de deixar as suas

verdadeiras faces escondidas no misterioso mundo que há dentro de cada uma

delas, nos surpreendendo quando reveladas. Isso acontece especialmente porque

as personagens de Lygia nunca são completamente boas ou totalmente más. Suas

criaturas são tão verossímeis que, semelhantes aos seres humanos, oscilam entre o

bem e o mal, entre as regras da boa conduta social e o desejo de não segui-las: “Por

que isso da gente ser só uma coisa ou outra? Fica monótono e complicado. Bom é a

gente não querer ser nem anjo nem diabo, é ir sendo o que na hora calhar...” (CP, p.

117).

Desta forma, os três primeiros romances de Lygia Fagundes Telles –

Ciranda de Pedra, Verão no Aquário e As Meninas – têm em comum o fato de terem

como protagonistas moças que passam por toda uma trajetória de aperfeiçoamento

em seus desenvolvimentos individuais no transcorrer dos enredos. Somente no

último romance da escritora – As Horas Nuas – é que a heroína da história é uma

mulher já madura e experiente. Logo, podemos observar mais uma tendência

atrelada à ficção de Lygia que é relacionada ao aspecto de formação das jovens

personagens, característica peculiar do Bildungsroman. Esse tipo de romance tem

como precursor Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (1795) de Goethe e

por muito tempo ficou limitado como um modelo particular da literatura alemã sob os

moldes e padrões exclusivamente masculinos. No entanto, as discussões teóricas

em torno desse gênero ampliaram os limites de sua nacionalidade tornando-o um

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modelo internacional, e a partir do século XX as transformações sociais

conquistadas pelas mulheres também proporcionaram espaço para a expansão dos

estudos do Bildungsroman no cenário feminino.

Isto posto, neste capítulo nos propomos a analisar o percurso de

desenvolvimento individual de Virgínia e Raíza, sob a perspectiva do Bildungsroman.

Portanto, a apreciação das obras é centrada na formação interior das protagonistas

ante às adversidades que lhes são exteriores, visto que nas duas narrativas, as

personagens principais são descritas em uma sequência de acontecimentos que

começa na infância e segue até que elas alcancem a maturidade, sempre em busca

de uma adaptação social e, mais profundamente, de encontrarem a si mesmas.

3.1 O Bildungsroman e algumas definições teóricas

A passagem da infância e adolescência para a vida adulta, o processo de

descobertas, de aprendizagem do mundo envolvendo todas as alegrias, prazeres e

sensações, assim como também as frustrações, os desgostos e desencantos de um

herói em desenvolvimento é o que podemos encontrar no Bildungsroman. Traduzido

para o português como romance de formação, de aprendizagem ou de educação,

esse gênero romanesco narra a trajetória de uma personagem à procura de se

autoconhecer, por isso é comum que no transcorrer dessa jornada ela enfrente

muitos desafios, encontre obstáculos que às vezes tentarão levá-la à ruína; apesar

disso todos esses percalços são degraus para o ápice do seu aperfeiçoamento.

Para um melhor esclarecimento sobre a definição desse tipo de romance, o

russo Mikhail Bakhtin em sua obra Estética da criação verbal (1979) nos mostra que

em muitas variantes tradicionais do romance (como o de cavalaria ou o de viagem,

por exemplo) o herói aparece como uma “imagem pré-estabelecida”, isto é, o

protagonista é apresentado como um ser que não muda, que apenas acompanha as

transformações que ocorrem ao seu redor: “Os acontecimentos modificam-lhe o

destino, a situação na vida e na sociedade, ao passo que ele permanece inalterado,

sempre igual a si mesmo” (BAKHTIN, 1997, p. 237). Neste caso, a dinâmica do

romance ocorre em torno do herói e não dentro dele, porque este permanece

imutável como uma “grandeza constante”, ao passo que os demais elementos da

narrativa, como o ambiente, o espaço e a trama que envolve a vida e o destino do

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protagonista são “grandezas variáveis”. Contudo, essa realidade torna-se diferente

quando se trata do romance de educação, pois nesse caso podemos ver a

representação do homem como um ser “em devir”. Deste modo, Bakhtin explica que

no Bildungsroman o herói é dinâmico, passando, portanto, a ser uma “grandeza

variável”, visto que este sofre transformações fundamentais para a estruturação do

enredo.

Bakhtin também ramifica o Bildungsroman em cinco categorias: na primeira

subdivisão, a do romance de formação idílio-cíclico, o curso de aprendizagem do

herói se dá em uma temporalidade cíclica na qual as mudanças no caráter e na

forma de pensar da personagem vão sendo representadas por etapas, em ciclos.

Obras de Jean Paul, como o Titan, exemplificam essa tendência.

Um segundo tipo é o romance de formação cíclico da descrença e

desilusão, que apresenta algumas características do primeiro, mas com um herói

que ao amadurecer abandona os sonhos e idealismos da juventude transformando-

se em um homem mais contido e sensato. Assim, nessa segunda categoria, o

protagonista “assimila o mundo e a vida a uma experiência, a uma escola pelas

quais todos os homens devem passar para retirar delas um único e mesmo

resultado: a sobriedade acompanhada de um grau variável de resignação”

(BAKHTIN, 1997, p. 239). O livro A história de Agatão, de Christoph Martin Wieland,

é um grande exemplo desse romance.

O terceiro tipo é o romance de formação biográfico ou autobiográfico.

Nele, a formação do herói se dá em um tempo não cíclico e as transformações

ocorrem a partir de casualidades, de eventos que vão alterando a vida e construindo

o caráter da personagem principal. Logo, vida e formação se entrelaçam porque são

narradas ao mesmo tempo. Nessa tendência temos como exemplos as obras Tom

Jones de Henry Fielding e David Copperfield, de Charles Dickens.

A quarta categoria é a do romance de formação didático-pedagógico que

tem a finalidade de instruir, de formar os leitores. A esse tipo de romance serve

como exemplo a obra Emílio, de Jean-Jacques Rousseau.

Por fim, o quinto tipo é do romance de formação realista, o qual, para

Bakhtin, é o que apresenta maior relevância porque a aprendizagem individual do

herói se dá ao mesmo tempo em que ocorrem as mudanças histórico-sociais que o

cercam. Enquanto nos modelos de Bildungsroman anteriores a transformação do

protagonista se dava apenas nele, independente do mundo exterior (que lhe serve

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apenas como escola), no tipo realista do romance de educação ocorrem

transformações tanto no herói como na sociedade. Nessa categoria, os problemas

sociais são expostos de maneira violenta, pois representam uma realidade cruel,

deste modo o herói sai dos conflitos da vida privada para a assimilação de um

mundo real mais catastrófico. Assim, as mudanças do protagonista estão

interligadas ao tempo histórico real e às mudanças deste. Estão relacionadas a essa

categoria as obras de Goethe e Rabelais.

Mesmo especificando cada um desses cinco tipos do romance de formação,

Bakhtin enfatiza que eles estão interligados e para que seja feita uma análise mais

completa de um Bildungsroman de qualquer uma dessas tendências há sempre a

necessidade de recorrer às outras.

Por conseguinte, Bakhtin não foi o primeiro nem o último a discutir em seus

estudos sobre as definições teóricas do romance de formação. Segundo Marcus

Vinicius Mazzari (2010), o termo Bildungsroman foi inaugurado pelo professor

alemão Karl Morgenstern em 1810, mas foi Wilhelm Dilthey quem, em 1870, ampliou

as definições do gênero, consolidando-o na teoria literária.

Dessa maneira, para Morgenstern, o romance de formação se caracteriza

especialmente pelo seu conteúdo, visto que acompanhamos o percurso de formação

do herói até o momento no qual ele atinge certo aprimoramento em seu caráter e

intelecto. Some-se a isso o fato de que, por meio dessa representação literária, o

leitor é estimulado a também aperfeiçoar-se garantindo a sua formação “numa

medida mais ampla do que qualquer outra espécie de romance” (Morgenstern apud

MAZZARI, 2010, p. 99). De outra forma, para Dilthey o Bildungsroman mostra o

herói como representante da sua geração histórica. Nesse tipo de romance é

possível acompanhar a iniciação do jovem protagonista na vida, isto é, o momento

de descoberta dos seus semelhantes, da construção das suas amizades, da

iniciação no amor e também como ele enfrenta as agruras do mundo no seu

caminho de amadurecimento até compreender qual contribuição ele pode oferecer

ao mundo.

De grande relevância também para a construção das balizas teóricas do

Bildungsroman são as contribuições de Jürgen Jacobs, que em 1989, conforme nos

mostra Wilma Patrícia Mass (2000, p. 62): “propõe, uma sistematização das

características capazes de recortar os limites do Bildungsroman em relação a outras

formas de romance”. Para Jacobs são romances de formação aquelas obras que

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estejam centradas especificamente sobre um herói jovem, e que mesmo em meio a

uma série de erros e frustrações ele seja guiado para um “equilíbrio com o mundo”

(MASS, 2000, p. 62). Dessa forma, o aprendizado pode acontecer por meio de

mestres e escolas para onde o protagonista vai por um determinado tempo.

Também pode vir do contato dele com a arte, com a política ou por meio de amizade

e amantes. Não obstante, o herói precisa “ter consciência mais ou menos explícita

de que ele próprio percorre não uma sequência mais ou menos aleatória de

aventuras, mas sim um processo de autodescobrimento e de orientação no mundo”

(MASS, 2000, p. 62).

Ante essas acepções teóricas do Bildungsroman cabe ainda ressaltar que,

entre os estudiosos do gênero, é consensual a ideia de que o romance de formação

é caracterizado não pela sua forma, mas especialmente por seu conteúdo. Nesse

caso, o que dá unidade à estrutura da narrativa de aprendizagem é precisamente a

maneira como o herói reage aos acontecimentos que advém do mundo exterior e

como isso o faz amadurecer. Daí o fato de o desenvolvimento interior do

protagonista estar sempre em evidência.

Além dessas relevantes proposições colocadas desde o primeiro teórico do

romance de formação, cabe ainda observarmos que a tradição do Bildungsroman

sempre destacou as obras que têm em seus enredos a história de formação de

protagonistas masculinos, e que só recentemente houve a ampliação para estudos

em que se analisam personagens femininas e seus itinerários de aprendizagens. A

escritora Cristina Ferreira Pinto (1990, p. 14), em seu livro sobre o romance de

formação feminino, explica que nos últimos anos foram produzidos muitos “trabalhos

que procuram estabelecer a existência de uma tradição feminina do Bildungsroman”,

o que ocasionou uma expansão desse gênero. Segundo essa pesquisadora, um dos

primeiros estudos a abordar sobre a mulher como protagonista do Bildungsroman foi

feito por Ellen Morgan, em 1972, quando escreveu a respeito do romance anglo-

americano de caráter neofeminista. Para essas escritoras, embora sempre tenham

existido romances de aprendizagem feminina, a bildung ou formação das heroínas

nunca era, de fato, concluída. Isto deve-se a fatores sociais que, dominados pelas

ideias do patriarcalismo, até recentemente excluíam a mulher de um papel mais

social e menos doméstico.

A interrupção da “bildung” da personagem feminina se dá frequentemente, portanto, pela aceitação de um papel social que já

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de antemão lhe tinha sido destinado, como o de esposa e mãe. Outras vezes essa interrupção se dá de maneira mais brusca – truncamento, mutilação, física e/ou emocional, de um destino “fracassado”, isto é, o destino de uma mulher que foge aos padrões sociais de feminilidade (FERREIRA PINTO, 1990, p. 17).

Trancadas em seus lares, as heroínas do Bildungsroman do século XIX

construíam sua aprendizagem dentro dos limites que lhes eram permitidos: da

família, da casa. Em contraste com essas heroínas, o protagonista masculino

sempre teve o mundo exterior como escola. Aquelas que ousavam sair da clausura

doméstica em busca de uma formação mais profunda sobre a vida acabavam tendo

desfechos negativos como a morte, a loucura ou o retorno à antiga prisão

doméstica. Tomemos como exemplo a personagem em Madame Bovary (1857), de

Gustave Flaubert9, obra que traz uma mulher em processo de formação didático-

pedagógica por meio de leituras romanescas, que a fazem construir uma idealização

do amor a qual é desfeita depois do casamento. A aprendizagem de Emma Bovary é

então direcionada para a sua sexualidade; descobrindo-se com os amantes, ela vai

se reconstruindo e ao mesmo tempo caminhando para uma (de)formação, visto que

seu comportamento não é lícito para os padrões morais e sociais atribuídos à

mulher, culminando assim no suicídio da personagem. Seguindo essa mesma

trajetória de aprendizagem envolvendo a descoberta do prazer sexual fora do

casamento e a negação das imposições sociais, no romance O Despertar (1899), de

Kate Chopin, também observamos uma trajetória de formação que é consumada

pelo suicídio. Seria a morte a punição dessas protagonistas ou ela surge ao final das

narrativas como símbolo de libertação? Segundo Ferreira Pinto (1990, p. 18):

Tanto a morte como a loucura podem ser entendidas como uma forma de punição da mulher que tentou ir além dos limites sociais normalmente aceitos, ou como a única forma de rejeição desses mesmos limites; como tentativas fracassadas de escapar às imposições do grupo social, ou como fugas realizadas com êxito, recusas que se afirmam através dos únicos canais de expressão que a mulher via abertos.

Apesar de Morgan (1972) e outros estudiosos modernos apontarem como

característica marcante do Bildungsroman feminino a persistência dos finais

negativos ou incompletos e a constante interrupção da formação das heroínas por

9 Mesmo tendo sido escrito por um homem, consideramos essa obra como Bildungsroman feminino por trazer como protagonista uma mulher.

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meio do conformismo destas ao concordarem com um desfecho sempre atrelado ao

casamento, Ferreira Pinto (1990, p. 17) chama a atenção para o fato de esses finais

representarem o pensamento de uma época em que muitas das escritoras

concordavam com o “ideal feminino estabelecido”. É isso o que podemos observar

em Jane Eyre (1847), de Charlotte Brontë; nessa obra acompanhamos a

protagonista em sua atribulada infância como órfã, passando pelos terríveis anos no

colégio interno, até a mudança para a casa do homem que se tornaria, depois de

muitos obstáculos, o seu esposo. Eyre e Mr. Rochester se apaixonam e pretendem o

casamento, entretanto, os sonhos da heroína são desfeitos porque o seu noivo já

era casado. A formação cristã e conservadora da autora do romance, Charlotte

Brontë, não a permitiu desvirtuar Jane Eyre fazendo-a uma amante, assim, a

personagem somente aceita o seu amado depois que ele torna-se viúvo. Seguindo

essa linha de raciocínio, podemos observar que o final feliz de uma heroína no

Bildungsroman é possível, mesmo com o casamento, afinal, esses livros “serviam

como modelos exemplares na formação das leitoras, cumprindo assim a função

didática característica do ‘romance de aprendizagem’” (FERREIRA PINTO, 1990, p.

17). É o que vemos nos romances de Jane Austen: Razão e Sensibilidade (1811),

Orgulho e Preconceito (1813), Emma (1815), Persuasão (1816) – todas essas obras

apresentam moças em processo de crescimento pessoal a partir das tensões

externas que as reprimem e que ao final são superadas.

O truncamento da bildung das protagonistas e a falta de perspectiva para o

ser feminino representada nas obras do período em análise ainda podem ser

encontrados em alguns romances dos primeiros decênios do século XX, como por

exemplo, a obra As três Marias (1939), de Rachel de Queiroz, onde acompanhamos

a formação de Guta (Maria Augusta) que ainda menina é colocada em um internato

e juntamente com as outras duas Marias (Maria da Glória e Maria José) iniciam,

semelhantes à Emma Bovary, uma aprendizagem por meio da literatura, em

especial das histórias que falavam da vida com certo tom de romantismo. Assim,

Guta sai de um ideal romântico para a dureza da vida fora do internato e aprende

com o sofrimento, com o desprezo que é dado à mulher que arrisca a ir além do que

a sociedade determina. Grávida e sozinha, a protagonista encerra sua trajetória sem

perspectiva. Perde o filho que esperava, fruto de uma relação passageira, e conclui

sua jornada voltando para a casa do pai, resignando-se.

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Ante essas reflexões sobre o Bildungsroman feminino, apontadas a partir do

estudo de Ferreira Pinto (1990), ressalvamos que, aos poucos essa realidade está

ganhando novo aspecto e os padrões do romance de formação feminino

contemporâneo estão cada vez mais próximos do Bildungsroman masculino. Assim,

as heroínas modernas passam por mudanças psicológicas, emocionais e sociais,

sofrem transformações no seu caráter, na sua relação com o mundo exterior de

modo semelhante ao que acontece com o herói tradicional, conforme podemos

apreciar nos livros Perto do Coração Selvagem (1943) e Uma aprendizagem ou O

livro dos prazeres (1969), de Clarice Lispector.

É neste novo estilo do Bildungsroman feminino que Lygia Fagundes Telles,

nas obras Ciranda de Pedra e Verão no Aquário, delineia o processo de

amadurecimento das protagonistas Virgínia e Raíza, respectivamente. Tal percurso

tem início a partir dos conflitos familiares, perpassando também pela formação fora

do ambiente doméstico em espaços sociais, onde, tanto uma quanto a outra são

impulsionadas a descobertas que são integralizadas ao caráter de ambas,

moldando, assim, as suas identidades.

3.2 A trajetória de formação das heroínas lygianas

Ao falar sobre a personagem de ficção, Candido (2002) diz que da leitura de

um romance guardamos, sobretudo, a lembrança dos seres que atuam no enredo,

que vivem as peripécias, os dramas e as aventuras desencadeadas pela trama. E ao

tratar a personagem como um ser, o crítico questiona: “como pode uma ficção ser?

Como pode existir o que não existe?”. Eis o paradoxo da ficção: transformar a

invenção em algo que se assemelha à vida, dando-lhe “a impressão da mais lídima

verdade existencial” (CANDIDO, 2002, p. 55). As personagens, que tanto podem ser

planas como esféricas, isto é, simples ou densas, previsíveis ou imprevisíveis,

efetivam o vínculo entre a fantasia e o real.

No Bildungsroman o foco para onde todos os outros elementos da narrativa

são guiados é o herói ou protagonista. Logo, a verossimilhança da história dá-se

pela coerência estabelecida no percurso individual da personagem principal, a qual

vai sendo moldada para a vida, quer seja para ter seu final feliz ou não. Daí a

importância de estudarmos a psicologia das personagens, analisarmos seus trajetos,

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as motivações de suas ações e de suas escolhas, porque elas são como “certos

poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério”

(CANDIDO, 2002, p. 60).

As personagens principais dos romances Ciranda de Pedra e Verão no

Aquário são protótipos desse herói que está a todo o momento procurando a

realização pessoal, buscando o equilíbrio entre o eu e o mundo que só é alcançado

depois de um longo decurso de aprendizagem. Tão semelhantes quanto diferentes,

cada uma ao seu modo é atraída inicialmente pelo abismo da solidão, da inveja, do

desamparo, da morte, todavia, com essas frequentes contrariedades, elas vão

descobrindo-se, vão tornando-se mulheres maduras.

Virgínia e Raíza são heroínas que nasceram em lares burgueses e tiveram

suas infâncias marcadas especialmente pela carência de afeto. Frutos de um

modelo familiar em declínio, conforme vimos no capítulo anterior, podemos nos

indagar como essas obras podem ser representativas do Bildungsroman, visto que

representam a falência da família e por isso o ser em formação pode,

consequentemente, tornar-se um ser deformado, sem aperfeiçoamento. Todavia,

todo esse transtorno familiar também possibilita às heroínas o crescimento

emocional e a coragem para serem autênticas, visto que, como afirma Rollo May

(1973, p. 186) em O homem a procura de si mesmo, a “coragem é a virtude básica

para todos os que continuam a crescer, progredir”.

Em Ciranda de Pedra, a protagonista tem sua trajetória narrada em terceira

pessoa, cronologicamente dividida em duas partes e em dezessete capítulos. Ela

nos é apresentada logo nas primeiras páginas do romance como uma criança

indisciplinada, perpassada pelos sentimentos de rejeição e solidão: “Enjoou do

brinquedo e olhou em redor. Estava sozinha” (CP, p. 20). Virgínia sofre pela

ausência de amor e de carinho por parte do pai Natércio e das duas irmãs, Bruna e

Otávia. Essas carências são decisivas para exacerbar o vazio existencial da heroína,

a qual busca a todo instante ingressar no círculo fechado formado pela sua família e

pelo pequeno grupo de amigos desta. O eu da personagem é constituído por meio

desses conflitos entre o desejo de ser aceita e a vontade de se libertar do grupo

inacessível e impenetrável, e é nesse ambiente de exclusão afetiva que a

protagonista é impulsionada à busca de significados para sua vida e à descoberta de

si mesma.

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Já em Verão no Aquário, a história de Raíza é exposta em quinze capítulos;

sua trajetória é descrita sem linearidade narrativa, sendo construída por meio de

rememorações, em que infância e juventude vão se entrelaçando até o momento de

maturação da personagem. Dona de uma intensa vida interior, Raíza também tem o

papel de narradora, por isso grande parte do enredo se passa dentro da

personagem, nas suas lembranças, dúvidas e inconstâncias.

A primeira fase de formação dessas duas personagens em algumas

passagens é semelhante e em outras possui caminhos opostos: enquanto a infância

de Virgínia foi atormentada e frustrante por causa da doença da mãe e da decadente

situação familiar, a de Raíza foi feliz e aconchegante porque ela contava com a

cumplicidade e a proteção do pai. Contudo, há algo na etapa infantil das

protagonistas de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário que as aproxima: ambas são

marcadas pela morte e isso faz com que elas sejam conduzidas ao primeiro degrau

da aprendizagem. A primeira passa rapidamente pela fase do luto, entretanto a

segunda estende-o por muitos anos: a morte do pai faz o mundo de Raíza

desmoronar e a perda da mãe faz Virgínia descobrir a sua origem e perceber que

ela precisava encontrar a si mesma longe de tudo que lembrasse a sua situação de

bastarda, o que a leva a decidir por tornar-se interna em um colégio de freiras.

Também é relevante ressaltar que essas duas protagonistas lygianas

passam suas juventudes em um momento histórico referente às décadas de 1950 e

1960 que, em consonância com a realidade, foi marcado pelas mudanças de

comportamento dos jovens. Instigados por um sentimento de rebeldia contra as

injunções familiares e sociais, a mocidade dos “anos dourados” envolvida pelo rock

and roll e pelas figuras “transviadas10”, representadas no cinema, buscava

ardentemente libertar-se das tradições e dos padrões morais dos mais velhos.

Assim, esses primeiros romances de Lygia Fagundes Telles trazem a representação

dessa juventude que buscava o autoconhecimento e o aperfeiçoamento interior

rebelando-se contra as ideias que a faziam sentir-se aprisionada: “Preferível

entregar-me simplesmente como todos os outros, os da minha geração –

acrescentei sorrindo sem saber por que sorria. – A geração esgarçada, não é a

nossa?” (VA, p. 179).

10 Referência ao filme “Juventude Transviada” (1955), estrelado pelo ator James Dean.

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No âmbito do feminino, esse período vê surgir uma nova mulher que fugia da

imagem padrão, que ainda se firmava em comerciais de eletrodomésticos para as

boas donas de casa: esposas abnegadas e mães amorosas. Como nos mostra Del

Priore (2006), o novo perfil de mulher que estava começando a aparecer nos anos

1950 e 1960 era a de transgressora da ordem patriarcal:

Essas transgrediam fumando, lendo coisas proibidas, explorando sua sexualidade nos bancos dos carros, discordando dos pais e, abrindo mão da virgindade e, por vezes, do casamento, para viver um grande amor. A moda do “existencialismo” chega às praias tropicais. Lê-se Sartre e Boris Vian. O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, torna-se a bíblia das moças que se vangloriavam de “certo desgosto em viver”, aproveitando para compensá-la com prazeres (DEL PRIORE 2006, p. 288).

Contudo, era apenas uma pequena parcela de mulheres que se arriscava a

ir contra o padrão feminino que vigorava. Prevalecia nos anos 1950, para as

solteiras, o arquétipo de “moça de família”, casta, com uma boa conduta moral e que

servia como exemplo de comportamento para a sociedade. Em contrapartida, “entre

as décadas de 1960 e 1970 eclode o fruto tão lentamente amadurecido: a chamada

revolução sexual” (DEL PRIORE 2006, p. 300), mesmo com impedimentos sociais,

as jovens que conseguiam esquivar-se do domínio familiar, especialmente nos

grandes centros, se libertavam nos festivais de música, nas boates e universidades.

Era o início do fim de amores que tinham de parar no último estágio: “quero me casar virgem”! Deixava-se para trás a “meia-virgem”, aquela na qual as carícias sexuais acabavam “na portinha”. As mulheres começavam a poder desobedecer às normas sociais, parentais e familiares (DEL PRIORE 2006, p. 302).

Esses eventos históricos são essenciais para compreendermos o

comportamento feminino visto em Ciranda de Pedra e Verão no Aquário. Nesse

ponto, Lygia Fagundes Telles foi ousada para a sua época. Ao lermos essas obras,

vemos nas protagonistas atitudes que apenas se tornaram comuns para as

mulheres brasileiras a partir dos anos 1990. Isto se deve ao fato de a escritora ter

dado às suas personagens, protagonistas ou não, uma liberdade feminina que lhes

permitia decidir sobre o que fazer com o seu corpo, sem dar importância aos

pudores sexuais ainda tão fortes na sociedade do período em que as obras foram

publicadas. Grande parte do aprendizado da fase adulta de Virgínia e Raíza se dá

por meio dos seus vários relacionamentos amorosos, algo que é bastante comum no

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Bildungsroman, visto que uma das características do gênero é o fato de o “herói ter

pelo menos dois casos amorosos ou encontros sexuais”, conforme esclarece Buckey

(apud FERREIRA PINTO, 1990, p. 72). Portanto, ambas protagonistas são livres em

suas sexualidades, belas e sempre desejadas, se envolvem com vários homens,

sendo alguns casados, e, mesmo com as constantes companhias amorosas, ambas

sentem-se ocas e incompletas porque não encontram nos amantes a cumplicidade

necessária, o complemento para preencher o vazio que as corrói.

A respeito da questão feminina, faz-se necessário mencionarmos que dos

estudos acadêmicos sobre as obras Ciranda de Pedra e Verão no Aquário,

encontramos três trabalhos que abordam esses romances como Bildungsroman

focando a perspectiva de gênero. O primeiro deles é a pesquisa – já citada no nosso

trabalho – O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros (1990), de

Cristina Ferreira Pinto, que além de Ciranda de Pedra também analisa as obras

Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira; As três Marias, de Rachel de Queiroz e Perto

do Coração Selvagem, de Clarice Lispector. Na mesma linha de investigação, o

trabalho de mestrado Na contramão da história: o Bildungsroman feminino em Lygia

Fagundes Telles, Helena Parente Cunha e Lya Luft (2007), de Florípedes do Carmo

Coalho Borges, traz o primeiro romance lygiano com uma análise voltada para a

descrição de como a mulher da década de 1950 era representada em contraste com

as ideias do patriarcalismo. E por fim, a tese de doutorado Sombras silenciosas:

estranheza e solidão em Lygia Fagundes Telles e Edward Hopper (2010), de Mabel

Knust Pedra, faz uma análise tanto em Ciranda de Pedra quanto em Verão no

Aquário da formação das protagonistas sob o viés feminista e psicanalista.

Esclarecemos que embora a temática feminista esteja bastante presente nas

obras de Lygia Fagundes Telles, nosso foco, neste trabalho, está voltado para a

formação do ser humano, para o desenvolvimento da personalidade das

protagonistas, independente da ideia de gênero. Porém, isso não significa que esse

assunto ficará de fora da nossa análise, pois poderemos abordá-lo sempre que for

necessário para entendermos o modo de agir de Virgínia e Raíza e como isso

influencia nas suas aprendizagens.

Deste modo, percebemos que nesses dois romances as protagonistas

passam por trajetórias de formação que as transformam em seres aprimorados,

mesmo em meio às crises familiares e turbulências pessoais às quais elas são

obrigadas a enfrentar. Observamos ainda, que apesar das amarguras da vida,

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Virgínia e Raíza são personagens que não se acomodam ou se rendem ao

sofrimento, elas estão sempre em busca do aperfeiçoamento, da felicidade, do

equilíbrio. Por isso, vivem em guerra consigo mesmas, questionando suas ações, a

maneira como tratam o outro e a elas próprias. Ante o exposto, passaremos então à

análise da formação individual das personagens Virginia e Raíza refletindo sobre a

construção da interioridade de cada uma versus o mundo.

3.2.1 Virgínia ou “A Pergunta”

— Ah, Virgínia, Virgínia... Quando é que vai deixar de fazer perguntas? Desde criança você não para de fazer perguntas, perguntas. [...] — Pois farei seu retrato assim mesmo, uma tela preta com um pontinho vermelho no centro. Vai se chamar A Pergunta. Hum? Não é uma ideia? (CP, p.183-191)

Visto que para a compreensão do Bildungsroman se faz necessário termos

em mente a “noção de processo”, que conforme Maas (2000, p. 27), “é a sucessão

de etapas, que compõe o aperfeiçoamento do indivíduo em direção à harmonia e ao

conhecimento de si e do mundo”, em Ciranda de Pedra o processo de formação da

protagonista é densamente marcado pelo sentimento de inadequação familiar, social

e pessoal. Na busca por uma adaptação ao mundo exterior, Virgínia tem como

inimigo interno, em quase toda a sua jornada, o espectro da exclusão.

Sendo assim, a primeira fase de aprendizagem da personagem pode ser

categorizada como a de menina rejeitada. Nesta etapa de sua formação, Virgínia

convive com o drama da separação dos pais e a angústia de ter que habitar entre

duas casas, sentindo-se deslocada em ambas. Separada também das irmãs mais

velhas, Bruna e Otávia, que moram com o pai Natércio, a heroína não aceita o fato

de sua mãe Laura ter escolhido o jovem médico Daniel e a precária vida que ele

pode oferecer às duas. Virgínia deseja a farta vida das irmãs e sonha em ter o

carinho incondicional do pai: “Na casa do meu pai tem prato de ouro. Um dia minha

mãe e eu ainda vamos morar lá” (CP, p. 29).

A menina vai construindo seu aprendizado por meio da amargura e do

descontentamento por não ter as mesmas oportunidades que as irmãs: Bruna e

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Otávia tinham uma mentora alemã que as ensinavam a se comportarem como

verdadeiras damas, estudavam em colégio caro, tinham o conforto e o dinheiro do

pai à disposição. Enquanto isso, Virgínia era educada pelo mau humor de Luciana,

empregada que amava incondicionalmente seu patrão e por causa dele tolerava a

filha da sua rival; a garota não tinha luxos: estudava em uma escola comum, suas

roupas eram velhas e reaproveitadas da mãe, assim como a sua mobília que fora

doada pela irmã primogênita. Neste momento de formação, a protagonista é tomada

pelo sentimento de inferioridade e também de inveja por não conseguir ser

semelhante às irmãs, as quais ela tanto venerava. Adoração, aliás, que se destinava

a tudo que envolvesse a casa paterna.

Que casa! Você precisa ver essa nova casa com um jeito assim bem antigo, lá no fundo de um gramado que não acaba mais. Tem um caramanchão cheio de plantas e perto do caramanchão uma fonte no meio de uma roda de cinco anõezinhos de pedra, você precisa ver que lindo os anõezinhos de mãos dadas! É bom beber aquela água, tão geladinha! A semana passada ele trocou o automóvel por um novo, todo preto, com almofada vermelha, uma beleza de automóvel. Bruna e Otávia parecem duas princesas (CP, p. 25).

Todo o deslumbramento daquele mundo, aparentemente tão distante para “a

rejeitada no fundo da sala” (CP, p. 59) vai aos poucos perdendo o fascínio, pois a

inserção de Virgínia no grupo familiar transformar-se-á, segundo Santiago (2009, p.

210), na “forma mais terrível de aniquilamento de sua personalidade em formação”.

Isso ocorre a priori porque a protagonista se deixa corromper pelas ideias

preconceituosas e conservadoras da irmã mais velha: Bruna é para ela o modelo de

sabedoria e, portanto, sua principal mentora. Em razão disso, a heroína passa a

sentir raiva de Daniel, por pensar que ele era o grande culpado pela destruição de

sua família: “se não fosse ele, a estas horas minha mãe ainda estaria com meu pai e

minhas irmãs, nós todos juntos” (CP, p. 21). Entretanto, o sentimento negativo que a

protagonista nutre pelo “padrasto” é ambíguo: “Mas eu gosto de você, tio Daniel!

Não devo gostar, Bruna proibiu, mas apesar de tudo, eu gosto!” (CP, p. 66). Da

mesma forma, existe ambiguidade em todo o seu modo de agir: quando está na

casa de Natércio vemos uma Virgínia sempre tímida, assustada e inibida; quando

retorna a casa de Daniel surge outra Virgínia, mais livre, inteligente e até perversa.

Essa mutabilidade – comum aos heróis dos romances de formação e que

Bakhtin (1997) titulou de grandeza variável – é recorrente no comportamento da

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protagonista, algumas vezes surpreendendo tanto as demais personagens como

também ao leitor. Conforme podemos observar na cena em que ao sentir-se

sufocada pela rejeição das irmãs e dos amigos íntimos, Virgínia, pela primeira vez,

reage, de maneira inesperada, contra a atitude do grupo:

“Mas eu detesto jogar”, murmurou ela, cruzando os braços. Sentira o alívio com que aceitaram essa desculpa. E a partida começou em meio de zombarias e risos. A princípio ela afetara uma calma absoluta, o olhar vagando distraidamente por entre as pedrinhas coloridas que se cruzavam no tabuleiro. Mas ninguém tomou conhecimento da sua indiferença. Sentindo-se então completamente esquecida, resolveu vingar-se através de uma violência. E acontecera aquilo: de um salto, aproximou-se da mesa, agarrou o tabuleiro e sacudiu-o brutalmente. As pedrinhas rolaram pelo tapete. Então ela recuou. Em meio da nuvem que lhe turvara a visão, pôde distinguir apenas dois rostos, o de Bruna, pálido, rijo, e o rosto de Conrado, mais pesaroso do que interrogativo. Pusera-se, então, a rir, a rir aparvalhadamente. E recuando a rir ainda, fugiu correndo pelas escadas, perseguida pelo próprio riso que ecoava inumano na quietude do casarão (CP, p. 80).

A personalidade impulsiva de Virgínia que sempre era demonstrada na casa

de Daniel, especialmente quando a menina replicava as afrontas de Luciana,

manteve-se contida na casa paterna até esse momento. Essa transformação

repentina, que antes era sufocada pelo desejo incontrolável de ser aceita, aponta

para a perda da inocência da protagonista que ocorre quando ela começa a tomar

consciência de que a imagem a qual ela idealizara daquele grupo não correspondia

à realidade. Logo, a vingança, praticada por Virgínia no trecho acima e que também

acontece em outras passagens na sua etapa de menina rejeitada, é uma resposta

do eu em formação da personagem que para sobreviver às adversidades

enfrentadas nas duas casas – de um lado a loucura da mãe e do outro o círculo de

pedra, formado pela família e amigos – agride, quer seja com palavras ou com

ações.

Pôs-se a folhear afobadamente o volume, procurando uma palavra qualquer que servisse de pretexto para sua presença ali. E de repente lançou a Daniel um olhar malicioso. Começa com e... A palavra é enxovalhar, enxovalhar... Está aqui! E leu triunfante: — Sujar, manchar, enodoar (CP, p. 60).

A ênfase dada ao verbo enxovalhar, que fora insinuado por Bruna, resume

todo o conhecimento que Virgínia possui da suposta desonra da sua família,

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causada por Daniel. Algo que somente vai sendo desconstruído quando a

protagonista passa a morar na mansão, lugar onde ela sai da categoria de rejeitada

para a de bastarda. De acordo com Santiago (2009, p. 208), após a morte de Laura

e Daniel, a heroína é então lançada à condição de órfã: a menina descobre que “ela

era o agente da separação na família e do distanciamento na discórdia”. Revelada a

sua verdadeira origem, Virgínia ver-se então como uma “intrusa” naquele grupo de

seres reservados em suas individualidades.

A orfandade, mais uma das características do Bildungsroman clássico

(FERREIRA PINTO, 1990, p. 123), vem acentuar a solidão da heroína que, cada vez

mais distante das outras personagens, mais recolhida em si, “é mais bicho do que

humana”, porque o “fardo da vida é pesado” (SANTIAGO, 2009, p. 211). O vazio no

interior da protagonista, ocasionado pela perda, abala a alteridade da menina que

passa a ver no outro (família) o seu inimigo. Nesse momento de luto e de incertezas,

sua única arma é provocar o opositor por meio da desobediência: “não sei mesmo o

que está acontecendo com você. Temos feito tudo para que se acomode, para que

se sinta bem mas tenho a impressão de que você piora cada dia que passa. Só quer

ficar aí pelos cantos, roendo as unhas, despenteada feito bicho...” (CP, p. 93).

O sentimento de desamparo de Virgínia refletido em sua aparência física

mostra também a confusão interior em que se encontra a menina bastarda. No

entanto, nesse momento de crise existencial a protagonista também é estimulada a

crescer sentimentalmente e pela primeira vez ela consegue dominar-se e igualmente

guardar seus segredos e, a partir dessa etapa, ela começa a construir-se

independente de sua família: “Virgínia quis então dizer-lhe que sabia da morte de

Daniel, que sabia tudo, ‘Ele era meu pai!’. Conteve-se. Pela primeira vez aprendia a

se calar” (CP, p. 94). Em contrapartida, a heroína também aprende a fingir e a

dissimular, semelhante aos demais integrantes da ciranda de pedra. Nesse

momento da narrativa, a protagonista almejando afastar-se da mansão e da

lembrança insistente de sua condição, decide isolar-se em um colégio interno. Em

busca de uma nova identidade, onde ninguém soubesse de sua história, onde ela

pudesse recomeçar sua trajetória de vida, a personagem fecha mais um ciclo de sua

formação.

Virgínia debruçou-se na janela e ofereceu o rosto à chuva. Ele sabia, Luciana sabia, decerto todos os outros também sabiam. Só as freiras não saberiam nunca. Ia viver num lugar onde ninguém sabia de

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nada, não sabiam do quarto azul onde a mãe via plantas crescendo entre os dedos, “Arranca, Daniel!”. Não sabiam do pai, “Um dia virá um príncipe de um reino vizinho perguntando pela donzela Virgínia...”. Não sabiam de Luciana, “A bala entrou por um ouvido e saiu pelo outro”. Lá ninguém sabia de nada (CP, p. 95).

Os anos de isolamento de Virgínia no internato são narrados em apenas um

capítulo, logo no início da segunda parte do romance. Por meio de lembranças

suscitadas pela releitura das cartas, cartões e bilhetes advindos da família, que

ficara ao longe – “Principalmente longe” (CP, p. 104) –, a protagonista vai

atualizando o leitor sobre o destino de cada uma das personagens secundárias. As

divagações da heroína nesse momento da narrativa também são de grande

relevância para compreendermos como foi a sua terceira fase de formação, isto é, a

sua adolescência, sua etapa como aluna interna.

O crítico Mazzari (2010), ao analisar as obras O Ateneu e As atribulações do

pupilo Törless, explica que o período no qual o adolescente é coagido a passar no

internato é de grandes transformações para o seu eu em formação, por isso, os

dramas causados pelas desventuras desse ambiente fechado em suas regras e

tradições é um grande atrativo para os romancistas. Assim sendo, Mazzari mapeia

algumas particularidades que existem no Bildungsroman que usa como tema o

colégio interno e os infortúnios dos alunos. São elas:

1. Perda da proteção familiar e ingresso num cotidiano de lutas e desafios acirrados;

2. Contato com amplo espectro de tipos humanos, que vai do tirano mais implacável ao inevitável “bode expiatório”;

3. Intensificação da crise da puberdade num meio que impossibilita uma orientação mais segura;

4. Relação conflituosa da sensibilidade artística e consciência crítica emergentes com formas autoritárias de transmissão do saber (MAZZARI, 2010, p. 167)11.

Apesar de Lygia Fagundes Telles não empregar densamente essa

“constelação temática” em Ciranda de Pedra, uma vez que o momento escolar de

Virgínia é contemplado em uma pequena parte da narrativa, essas categorias são

essenciais para nortear nossa análise sobre essa fase da heroína. Portanto, o

“trauma inicial” da personagem ante o mundo que existia entre os muros do internato

11 No decorrer da sua análise, Mazzari resume essas características ou “constelação temática” da seguinte maneira: 1) Trauma inicial; 2) Arena do colégio; 3) A crise da puberdade; 4) A pedagogia do autoritarismo. De igual modo, elencaremos a formação escolar de Virgínia seguindo essa sequência.

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se dá especialmente pelo sentimento de desamparo e solidão que ainda a prende ao

mundo exterior, cheia de mágoas, o começo de Virginia naquele lugar é de pranto:

“Não tenho mais ninguém no mundo, estou sozinha!” (CP, p. 105). O novo cotidiano

também desperta na protagonista o ódio por tudo que envolve aquele ambiente: as

freiras, a alimentação, as imagens dos santos, o espaço físico da escola e até o ar –

“até o ar eu odiei com aquele cheiro característico, mistura de flores murchas e

incenso” (CP, p. 106).

Se em um primeiro momento Virginia é dominada pelo vazio e pelo rancor,

na “arena do colégio” seu interior vai tornando-se ainda mais negro. Isso acontece

porque como nos mostra Mazzari (2010, p. 170), a integração do adolescente “à vida

do colégio interno significa, pois, submeter-se a leis implacáveis de um microcosmo

em que ‘a razão da maior força é a dialética geral’”. Em Ciranda de Pedra, o mais

forte na relação social se delineia na pessoa da irmã Flora, com o “perfil agudo como

lâmina de faca” (CP, p. 109), ela é a principal perseguidora de Virgínia e a

responsável por aniquilar os poucos momentos de felicidade da protagonista ao lado

da amiga Ofélia.

Por meio das reminiscências de Virgínia, tomamos ciência de que Ofélia fora

sua primeira colega de quarto e também sua primeira e única amizade no internato.

Contudo, pelo jeito “diabrete” (CP, p. 107) da menina e pela cumplicidade das

adolescentes, irmã Flora trama a separação das duas, ocasionando até a proibição

de manterem contato, ainda que distante: “Ofélia fora transferida para outra ala,

quase nem podiam mais se ver, até que um dia, meio vagamente, soubera que os

pais a tinham levado para outro colégio” (CP, p. 107).

A razão de todas as desconfianças e artimanhas da irmã Flora se dera

porque para ela a época da adolescência era uma fase de muito perigo e por isso

era “preciso estar vigilante” (CP, 109). Essas insinuações da freira, assim como a

ambiguidade provocada pelas atitudes e palavras de Ofélia e de Virgínia apontam

para a “crise da puberdade” da heroína da qual nos fala Santiago (2009, p. 211) ao

dizer que no internato “a preferência sexual de Virgínia perde o alvo singular –

Conrado”. Isso ocorre porque entre a protagonista e a amiga “os afetos se

dissimulam e se agigantam à luz da imaginação”, logo, diz o crítico, fica para o leitor

a incumbência da interpretação dos fatos.

O comportamento da irmã Flora e das demais freiras do colégio, que

também seguiam o mesmo parâmetro de moral cristã, mostram o tipo de educação

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que era dada às meninas internas, a saber, “a pedagogia do autoritarismo”. Ali, as

alunas eram submetidas a rígidas regras, e as que ousavam transgredi-las sofriam

longos castigos. Cada passo era controlado pelas educadoras, desde as cartas que

recebiam até as leituras que faziam, além disso, eram obrigadas a seguirem uma

conduta religiosa que, para muitas, ia contra suas próprias convicções, e assim

participavam dos ritos católicos “com o coração vazio de fé” (CP, p. 105). Porém,

também havia as exceções, principalmente quando se tratava de famílias abastadas;

a razão disso, conforme explica Santiago (2009, p. 211), é porque a escola era “tão

hipócrita quanto a família”. Eis o motivo de Virgínia ter sido “aceita como uma

exceção, um caso especial” (CP, p. 106), já que sua condição de filha de pais

separados era uma desordem à paz daquele ambiente santificado.

Apesar de todas as desventuras sofridas na fase de aluna interna, Virgínia

cresceu não apenas fisicamente, mas principalmente em maturidade. As amargas

experiências sofridas naquele “mundo, feito para a criança tornar-se adulto” (BOSI,

2003, p. 76) a transformam em uma jovem mais corajosa e mais segura de si,

mesmo em meio aos preconceitos que sempre a acompanharam. O ódio, que no

início dessa etapa a consumia, deu lugar a apatia: “Indiferença por aquelas imagens

– barro de mau gosto patético – indiferença por aquela comida neutra, por aquelas

hóstias neutras, por aquelas mulheres neutras, que pareciam antigas mortas

esquecidas de partir” (CP, p. 106). De apática, a heroína torna-se branda, e a

menina agressiva que chegara àquele colégio desiludida e desamparada, sai com a

certeza: “Libertei-me” (CP, p. 108). De acordo com Santiago (2009, p. 212), “Virgínia

deixa o colégio reafirmando a verdadeira identidade familiar – ela sai ‘na ponta dos

pés’”.

O regresso da protagonista à casa daqueles que tanto a oprimiram e a

fizeram sentir-se excluída marca o início de Virgínia à sua fase adulta. Certa de que

tinha se libertado de todos os laços que a prendia ao grupo, a protagonista sente

sua segurança abalar-se à medida que vai se aproximando do casarão e da nova

trajetória que a espera. Naquele lugar, nada mais era como antes: “Eis aí, até a casa

está mudada” (CP, p. 113), embora a ciranda dos cinco anões de pedra do jardim

continuasse intacta, assim como os cinco amigos: Bruna, Otávia, Letícia, Conrado e

Afonso. No entanto, a maior mudança estava em Virgínia, principalmente em seu

exterior: a menina despenteada, desarrumada e feia se transformara em uma moça

elegante e muito bela – “Que intrigante! Está visto que eu não podia mesmo

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acreditar em tamanha transformação, afinal, ela era uma menina esquisita, de

cabelos espetados, unhas roídas” (CP, p. 116). É essa nova Virgínia que, nas

palavras de Mabel Knust Pedra (2010, p. 59), vai induzir a “transformação ao grupo,

impondo mudanças no seu cotidiano pelo questionamento que representa a

introdução de sua figura, marcada pela diferença e vinda de um espaço externo,

naquele círculo abrigado”. Isso acontece porque a menina rejeitada transforma-se,

nessa nova etapa, na mulher desejada.

O aprendizado da protagonista que até então fora instigado especialmente

pela perda e pela amargura da exclusão, nessa fase é movido principalmente pela

vingança. Ao perceber que era possível entrar na roda, daqueles seres tão

dissimulados, Virgínia descobre-se como uma fascinante manipuladora; suas

atitudes dão a guinada na narrativa, ela “torna-se curinga” (SANTIAGO, p. 213),

agora é ela o cerne do desejo de todos, que a disputam como gladiadores em uma

arena: “Virgínia, Virgínia, a verdade é que, no fundo, todos nós estamos posando

para impressioná-la” (CP, p. 116). Segundo Ferreira Pinto (1999, p. 124), nessa fase

do enredo, o sexo é a principal arma para a “dominação do Outro”, assim, um a um

vai tombando na arena vingativa da heroína, todos movidos pelo desejo por ela.

A primeira a ceder e a “oferecer um lugar na roda” (CP, p. 122) para a

protagonista é Letícia, personagem que vai descobrindo sua sexualidade no

transcorrer da história até assumir sua “caricatura de rapaz” (CP, p. 147). O contato

entre as duas, que vai se estreitando porque Virgínia é visita constante no

apartamento da moça, culmina no relacionamento íntimo.

Virgínia deteve o olhar mortiço na face árida da amiga. Os cabelos cinzentos eram de Conrado. Os cabelos e os olhos de cantos tristemente caídos. Baixou as pálpebras pesadas. “Faz de conta que é ele. É ele”, repetiu num atordoamento. Afrouxou os músculos e relaxou a posição tensa no momento em que sentiu a boca de Letícia roçar-lhe pelo pescoço e subir lenta até alcançar-lhe os lábios. Entregou-se passiva ao beijo demorado. Fechou os olhos. “Conrado, Conrado...” Sentia agora a boca ávida roçar pelo seu queixo e morder-lhe de leve o lóbulo da orelha, puxando-a para baixo numa sucção úmida e quente. “A âncora”, lembrou-se. Respirou com esforço. A âncora a arrastava para o fundo de um mar verde e denso. Ah! nunca mais viria à tona. “Nunca mais!”, gemeu ao sentir o peso da cabeça prateada resvalar por entre seus seios (CP, p. 153).

Virgínia desvenda o segredo de Letícia, e, a ela se entrega mais por

indiferença a fingida moralidade dos outros amigos, que tentaram persuadi-la a

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afastar-se da moça de jeito masculino, do que por desejo. O prazer da heroína

estava em contrariar as expectativas de todos, por essa razão, envolve-se também

com Afonso, marido de Bruna, com a única intenção de ferir a irmã, de desconcertar

o seu sagrado lar, supostamente tão perfeito. Porém, quanto mais a protagonista vai

penetrando na ciranda mais vai descobrindo as máscaras, as faces obscuras de

seus integrantes. A terceira a se desestabilizar na roda é Bruna, mas não por causa

do seu esposo, sua fraqueza era Rogério, seu amante e também um alvo de Virgínia

no acirrado jogo de seduções, falsidades e mentiras: “Ela desviou-se e tomou

Rogério pelo braço. — Você tem a cabeça de um gladiador romano. Lutará na arena

por mim?” (CP, p. 162).

Entre intrigas, conquistas e relações sexuais, Virgínia consegue tirar o

equilíbrio do grupo, mas ao mesmo tempo ela perde o equilíbrio de si própria. Sua

aprendizagem sofre retrocessos e quanto mais ela deseja liberta-se do passado, dos

traumas da menininha rejeitada, mais ele se faz presente, especialmente quando se

trata de Conrado, seu primeiro e único amor: “Todos os seus sentidos

concentravam-se numa única pessoa: Conrado. Aproximou-se mais. Ah! Era inútil,

inútil, voltara tudo como se não tivesse havido todos aqueles anos de renúncia,

amava-o! Amava-o” (CP, p. 116).

Para chegar ao coração do amado, a protagonista tem como obstáculo sua

irmã Otávia, a mais bela e amoral da ciranda, e que por ser indiferente às

convenções sociais é aparentemente inatingível: “Pois desde a meninice o quarteto

já não estava delineado? Bruna e Afonso, Otávia e Conrado” (CP, p. 112). Na

verdade, Otávia é a perfeita representação da bildung interrompida, de que fala

Ferreira Pinto (1990) e as demais estudiosas do romance de formação feminino.

Essa personagem de atitudes libertinas, que não se envergonha de falar dos “seus

casos” (CP, p. 181) e que sempre fora motivo de inveja para Virgínia, vai se

decompondo ante a protagonista: como punição pela transgressão às leis morais do

patriarcalismo, Otávia herdará a demência da mãe – “Virgínia deteve-se e enxugou

os olhos úmidos. Sim, o mais doloroso é que Otávia sabia. E não fazia nada porque

não havia nada a fazer, deixava-se apenas levar, desligada e inerte como aquelas

folhas que o vento arrastava. Para onde?” (CP, p. 191).

Otávia é então o último mito a desabar naquele círculo de pedra, visto que

Virgínia não tem a intenção de ferir Conrado. Todavia, naquela ciranda tão unida

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pelo elo da hipocrisia era impossível tocar em um sem atingir o outro e é assim que

a protagonista descobre a verdade sobre o homem que ama:

[...] Reserve sua piedade para Conrado, ele se magoou mais do que eu. — Ele tem Otávia. — Otávia? – Letícia inclinou-se para Virgínia e tocou-lhe no ombro. Tinha no olhar uma expressão maligna. – Escuta, minha boneca, por que será que a gente tem que lhe dizer tudo assim, com todas as letras? Então ainda não sabe? Hem? Seu amado nunca conheceu mulher alguma, meu caro irmão é impotente, entendeu agora? Impotente! (CP, p. 178).

Esse momento de revelação faz Virgínia perceber o quanto aquele grupo era

frágil: seus deuses não passavam de simples humanos, falhos e vulneráveis. Assim,

a protagonista passa a enxergar tudo com transparência, “tudo que ali parecera

estranho tornara-se claro” (CP, p. 184), ela nunca seria parte daquele círculo, tão

sujo pelos segredos sombrios de cada um. Segundo Ferreira Pinto (1990, p. 143),

ao querer fazer parte do microcosmo social formado pelas irmãs e os amigos,

Virgínia “só estava negando-se, afastando-se de si mesma”. Deste modo, a bildung

da protagonista ocorre quando ela aprende que as várias Virgínias que compõem o

seu passado e a sua origem socialmente marginal representam o seu verdadeiro eu,

pois tudo que ela viveu, cada aflição, cada fragmento seu formam “um todo, uma

imagem inteira de si” (FERREIRA PINTO, 1990, p. 143).

Via agora que jamais poderia se libertar das suas antigas faces, impossível negá-las porque tinha qualquer coisa de comum que permanecia no fundo de cada uma delas, qualquer coisa que era como uma misteriosa unidade ligando umas às outras, sucessivamente, até chegar à face atual. Mil vezes já tentara romper o fio, mas embora os elos fossem diferentes havia neles uma relação indestrutível. E o fio ia encompridando cada dia que passava, acrescido a cada instante de mais uma parcela de vida. Chegava a senti-lo dando voltas e mais voltas em torno do seu corpo numa sequência sem começo nem fim (CP, p. 172).

O desfecho do plano de formação de Virgínia, traçado por Lygia Fagundes

Telles, aponta para o aperfeiçoamento da personagem, um final positivo no qual a

protagonista conquista a sua paz interior. Ao decidir viajar para longe, “sem

passagem de volta” (CP, p. 188), a heroína de Ciranda de Pedra entrega-se a novas

possibilidades, assim a nova vida de Virgínia tem início pelo mar, “símbolo da

dinâmica da vida” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2012, p. 592). Antes de partir,

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reencontra a fé, perdida ainda na infância, e descobre que o seu grande amor por

Conrado é recíproco – ele também a amara a vida inteira –, entretanto não é com

casamento que a escritora amarra o final feliz de Virgínia. A jovem mulher finalmente

alcança a sua liberdade pessoal, vai em busca de novos aprendizados: “‘Vou

estudar, trabalhar. Em quê? É o que eu vou descobrir’. [...] – E noutro tom: — Ah,

Conrado, ao menos isto eu quero, já que é preciso aceitar a vida, que seja então

corajosamente” (CP, p. 199, grifo nosso).

A coragem, que segundo May (1973, p. 186) é “a virtude da maturidade”,

significa libertar-se da infância, assumir uma independência própria capaz de

abandonar a segurança dada pelos laços familiares e enfrentar as “fronteiras

desconhecidas” do mundo, da vida, na busca por novas conquistas. É com essa

virtude que Virgínia encerra sua trajetória, pronta para enfrentar os riscos do

desconhecido, com um desfecho que na verdade é um recomeço: “Começa hoje

mesmo a vida que te resta” (CP, p. 199).

3.2.2 Raíza ou “A catedral submersa”

— Fernando, vamos ser bons no ano-novo, vamos ser bons! Olha aí, sou a catedral que saiu do mar, os sinos todos tocando, blim, blão !... Ele tomou-me pela cintura e me fez oscilar como um pêndulo. — E não afunde mais. (VA, p. 60)

Imersa em conflitos interiores tão densos quanto os de Virgínia, a

protagonista de Verão no Aquário também percorre uma longa e complexa jornada

de formação. Porém, ao contrário de sua antecessora, a história de Raíza não segue

um curso linear do tempo com começo, meio e fim bem definidos: a narrativa é

arquitetada em flashbacks, intercalando o tempo presente com os fatos da infância e

da adolescência. Outra característica que diferencia as duas obras refere-se ao foco

narrativo, em Verão no Aquário temos uma heroína que também é narradora,

detalhe que dá a esse romance uma maior complexidade para análise, visto que a

narradora/protagonista é um ser cheio de dramaticidade e de profundidade, que se

mostra e ao mesmo tempo se esconde; isso porque ela está constantemente

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simulando: Raíza representa “o tempo todo” (VA, p. 130). E desse jogo de

simulações, observamos na protagonista várias faces das quais algumas podem ser

verdadeiras, enquanto outras não.

A razão de Raíza está a todo o momento encenando e usando máscaras, de

acordo com Marques (2010, p. 222), é uma tendência da protagonista de “ocultar ou

imitar” a realidade. Logo, o caminho de aprendizagem da personagem torna-se turvo

e delicado, porque sua personalidade é instável e por isso constantemente ela

retorna ao ponto inicial do autoconhecimento: “─ [Raíza] Você já rompeu esses laços

milhares de vezes. E milhares de vezes voltou a atar tudo, compreende?” (VA, p.

119).

Sendo assim, adotando o encadeamento didático do Bildungsroman em que

se analisa a infância, adolescência e idade adulta dos heróis, podemos compreender

a primeira fase de Raíza como um momento de felicidade e conforto, uma vez que a

personagem ainda não tinha a noção de vazio existencial e de que sua família

estava em crise. A infância da protagonista é marcada especialmente pela presença

do pai e a forte aproximação entre os dois é o fio que vai sempre impulsionar as

suas reminiscências. Outro ponto de referência nessa etapa de Raíza é a grande

casa onde ela cresceu, herança de uma família tradicionalmente abastada é o lugar

que simboliza a segurança paternal e financeira. Contudo, como é característico do

romance de formação, a heroína, semelhante à Virgínia, também passa pelo

processo da orfandade e o fim da sua infância é marcado pelo falecimento do pai,

acontecimento que vai causar grandes danos à sua personalidade em formação.

Outro estorvo na trajetória de Raíza está relacionado com a sua formação

musical que segue da infância à adolescência. Desde cedo, a protagonista fora

instruída na música clássica por meio do piano e a sua habilidade se mostrara

precocemente: “Deslumbrava-me o fato de não poder controlar meus dedos que se

moviam como por efeito de um sortilégio” (VA, p. 119).

A figura do mentor, que é tão relevante no Bildungsroman, em Verão no

Aquário é uma presença forte que é rememorada sempre quando a protagonista

quer realçar os seus traumas sobre a vocação para a música. De tal modo, Raíza

descreve a postura rígida e inflexível dos seus professores como a impaciente e

severa Dona Leonora que batia com o leque fechado em sua mão “martelando as

teclas do piano: ‘Mais atenção, menina, trata-se de uma valsa, são fadas que

dançam, pense em fadas’” (VA, p. 16). Ou a racional Dona Veridiana, “que antes de

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lecionar piano lecionara lógica” (VA, p. 78). Mas fora pela descrença de Miss Gray e

de Goldenberg que a protagonista viu o seu talento frustrado: em sua primeira crise

de identidade, suas mãos perderam o “alento”. Raíza perdeu o dom e também

perdeu uma parte de si mesma: “Abri minhas mãos. Quando elas voltariam a tocar?”

(VA, p. 91).

Da infância e adolescência da heroína de Verão no Aquário três elementos

são essenciais para a compreensão de sua crise de identidade que percorre por

todo o romance, a saber: a morte do pai, a mudança do espaço (tradicional casa da

família para um apartamento de classe média) e o desencantamento pela vocação

musical. Essa tríade é a razão de Raíza prender-se com tanta veemência ao

passado ao ponto de desarmonizar o seu presente: “Só me restava a infância,

embora de todos esses anos somados tivessem ficado apenas algumas horas de

alegria, mais nada” (VA, p. 46).

Grande parte do desconcerto interior da heroína em sua juventude (presente

da narrativa) está relacionada com o seu conturbado relacionamento com a mãe:

Raíza a culpa pelo fracasso do pai, que, na sua concepção o levou da tristeza

profunda à morte e não a perdoa pela venda da casa de sua infância – “só ficamos

com a casa. Agora vai vender a casa, a minha querida casa com meu sótão e meu

espelho” (VA, p. 47). Assim, sentimentos de rejeição, rivalidade, oposição e ódio

perpassam a protagonista que mantém durante todo o romance uma guerra contra a

matriarca. E é essa luta que faz de Raíza um ser multifacetado, porque na tentativa

de agredir a mãe, ela vai se desdobrando em várias, ao mesmo tempo em que vai

construindo a sua unidade.

Raíza desafia Patrícia utilizando-se de um comportamento rebelde e amoral,

sua conduta desregrada é dividida entre sexo, drogas e festas: “Ela [Patrícia] não

suporta gente como nós” (VA, p. 50). Segundo Régis (2009, p. 112), a protagonista

de Verão no Aquário é uma jovem que traz em si as agruras do seu tempo histórico,

de uma “geração esgarçada” dominada por uma rebeldia, sem nenhuma causa

aparente.

[...] é uma geração sem perspectiva, ainda projetando um espaço para ocupar. Os tempos são de efervescência, de uma geração que se inventa, aprontando-se para uma nova história, para os próximos movimentos da contracultura, para a liberdade do discurso feminino, para a desconstrução da tradição e dos comportamentos modelares.

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Uma geração afeita a problemas de subjetivação, de identidade e de crença.

Como fruto dessa geração em devir, a protagonista constrói seu aprendizado

por meio do contato com os mais distintos tipos de sujeitos transviados: com

Fernando ela aprendeu a filosofia do amor livre, sem preconceitos e sem solidez;

com João Afonso – tão velho quanto casado – ela aprendeu o equivocado sentido

do amor, que na verdade significava luxúria: “E eis que com dezesseis anos e oito

meses apenas, pressenti que viriam outros equívocos” (VA, p. 52). Com o

guerrilheiro Diogo, ela aprimorou a arte de fingir o prazer, apenas para eliminar a

solidão e o vazio intenso que sentia: “Você tem medo de ficar sozinha, Zazá, você

tem medo e por isso me segura embora não me ame. E com isso acaba ficando

mais só ainda” (VA, p. 56). E com Rodolfo, ela descobriu o mundo delirante das

drogas. Logo, Raíza arrisca-se em suas experiências pessoais de maneira

inconsequente com um único objetivo: desestabilizar a serenidade da mãe. No

entanto, a protagonista descobre de forma dolorosa que na tentativa de destruir

Patrícia, devasta a si própria: “─ Quanto mais firo os que amo mais vou ferindo a

mim mesma. Perco os outros e me perco, não é curioso isso?” (VA, p. 100).

Embora tenha consciência dos seus erros, Raíza não tem disposição para

corrigi-los, a sua falta de “fibra” para encarar a verdade é tão intensa quanto à sua

falta de caráter: “É forçada a bondade em mim” (VA, p. 101). Desdobram-se ante o

leitor as máscaras da heroína: irônica, mesquinha, falsa, invejosa e dissimulada. Daí

a complexidade para a interpretação dessa personagem, visto que temos para

análise a perspectiva de um único ponto de vista – o da narradora-protagonista – e a

problemática da narrativa está exatamente na personalidade imprecisa de Raíza.

Sendo assim, o processo de Bildung dessa heroína é mais perceptível

especialmente pelo material simbólico que compõe a trama e pelas sugestões

linguísticas presente nos discursos das outras personagens. Conforme explica Régis

(2009, p. 113), na análise da construção dessa heroína seus traços “vão sendo

desvelados de modo ambíguo ou fragmentário, sem nunca serem completamente

revelados. É um processo em que o leitor monta o quebra cabeça da narrativa,

tentando encaixar as peças”.

Dentre as muitas encenações de Raíza, a sua maior representação é a

“farsa da moça que resolveu ser boazinha” (VA, p. 179), elaborada com a intenção

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de seduzir o jovem, “quase padre”, André. Em torno desse personagem, Raíza

provoca a maior dúvida do romance, tanto para as outras personagens secundárias,

quanto para o leitor: Afinal André era amante de Patrícia? Instigada por essa dúvida,

e pelo capricho de continuar ferindo a mãe, a protagonista faz do rapaz um alvo, um

objetivo para a sua mudança pessoal: “─ Marfa, estou tão animada! Sinto-me à beira

de coisas tão importantes que vão afinal acontecer! É complicado explicar mas é

como se eu estivesse a um passo da metamorfose” (VA, p. 119). Assim como suas

outras tentativas de mudança, a transformação almejada por Raíza, impulsionada

pelo seu suposto amor por André, é frustrada. Ela tenta se refugiar na religiosidade,

abandonando os prazeres carnais, contudo não se contém e acaba por regredir à

promiscuidade, “oscilando entre os extremos da crença exacerbada e da irônica

blasfêmia, a religiosidade de Raíza revela-se uma de suas representações mais

ambíguas” (MARQUES, 2010, p. 223).

O perfil impreciso de Raíza e o constante retrocesso na sua trajetória de

aperfeiçoamento, ocasionado sobretudo pela tríade perdida na infância (pai, casa e

música) e o direcionamento da culpa, pelas suas perdas, para a figura materna,

pode remeter à rápida conclusão de que Verão no Aquário não se trate de um

Bildungsroman. Contudo, Jacobs (apud Mazzari, 2010, p. 123) esclarece algumas

novas concepções a respeito do romance de formação que nos servem como

justificativa para a abordagem dessa obra lygiana segundo essa concepção. A

saber:

Se o gênero romance de formação se define pelo fato de que as obras que lhe são atribuídas narram a história de um jovem que, passando por uma sequência de erros e decepções, chega a um equilíbrio entre as suas ambições e as exigências de seu meio, então fica evidente que o herói de uma tal história, confrontando com as inevitáveis experiências da desilusão, tem necessariamente de tornar-se problemático para si mesmo. Não basta que ele percorra um determinado desenvolvimento como se fosse um processo natural de crescimento; muito mais do que isso, ele tem de conscientizar-se expressamente de seu papel como indivíduo que se constitui na busca. Decorre daí que esse jovem, a exemplo de Wilhelm Meister, sinta-se compelido, nas diversas fases de seu desenvolvimento, a “passar em revista sua própria história”, ou, como Hans Castorp, a converter o seu “complexo de vida” em objeto de reflexão autocrítica, buscando orientação.

Apesar das constantes regressões em seu aprendizado, a busca de Raíza

pelo seu eu genuíno, pela formação da sua identidade está fortemente marcada pelo

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simbolismo usado pela autora como recurso para enriquecer ainda mais a

complexidade psicológica da protagonista. Em Verão no Aquário, os símbolos do

espelho e das águas constantemente são mencionados, eles surgem como

elementos indispensáveis para o aperfeiçoamento do eu em formação da heroína.

De acordo com Pedra (2010, p. 78), “o processo de amadurecimento da jovem vai

ter, na simbólica do espelho, por sua recorrência, um dos fios condutores”; além do

espelho, a autora também aponta os espaços da narrativa, como por exemplo, a

casa da infância e consequentemente o sótão como símbolos relevantes para a

compreensão do desenvolvimento da protagonista, porém não nos deteremos a

estes. Portanto, na busca por uma imagem verdadeira de si, em meio às suas

encenações, Raíza vai, por meio do simbólico, construindo a sua alteridade e

consequentemente a sua bildung.

Desencadeador de experiências-limite e propiciador de profunda reflexão sobre o homem e sua condição, o espelho se revela símbolo da consciência, e está presente em diversos mitos e incontáveis narrativas da literatura mundial. Apresentando sentidos opostos por refletir uma imagem simultaneamente idêntica e ilusória, o espelho se configura como espaço projetivo da experiência humana que permite a auto-reflexão e a busca de identidade (PEDRA, 2010, p. 78).

Deste modo, o reflexo no espelho figura como um elemento que nos remete

ao mito de Narciso e abre-nos um caminho de leitura ao vasto campo do mito,

enriquecendo, assim, a natureza da personagem Raíza.

Narciso, que perante a límpida água da fonte, contempla a sua própria

imagem e por ela se apaixona representa, segundo Cavalcanti (1992), o olhar do

homem sobre si mesmo a partir do outro; isso porque frente ao espelho cada um

tem o seu duplo, isto é, o ser que contempla é ao mesmo tempo contemplado. Por

meio do seu reflexo nas águas, esse herói mítico passa a ter consciência de sua

dualidade a partir do momento em que ocorre a revelação da sua imagem no outro e

da imagem do outro em si.

Há em Raíza essa recorrência de procurar a si mesma, de ver sua imagem

no espelho e não reconhecê-la como sua, mas como reflexo dos pais ou o inverso:

“Eu era o espelho da minha mãe, em mim ela se refletia de corpo inteiro” (VA, p. 89).

Se em alguns momentos do romance Patrícia aparece como o duplo da

protagonista, em outros vemos essa dualidade com o pai, Giancarlo. Semelhante a

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Narciso e Eco, que como nos mostra o filósofo Gaston Bachelard (1997, p. 25),

estão incessantemente um com ou outro, assim é com a heroína de Verão no

Aquário: Raíza é a mãe, ela é Raíza ou Raíza é o pai e ele é a filha.

Mas era no sótão que eu queria ficar, sentada ao lado do meu pai que para lá subia quando ficava cheirando a hortelã, ao lado de tio Samuel que se refugiava com sua loucura entre os móveis imprestáveis e caixotes de livros nos quais os bichos cavavam galerias. Era ali o meu lugar. E para certificar-me disso, bastava ver o espelho apoiado na parede, um espelho redondo todo cheio de manchas porosas como esponjas embebidas em tinta. Nele eu ficava amarela também, eu, meu pai, tio Samuel, todos da mesma cor do cristal doente, enfeixados no círculo da moldura dourada. Então meus olhos se enchiam de lágrimas porque eu tinha medo de que um dia o espelho se quebrasse e nos perdêssemos um do outro. Quem cuidaria do meu pai, delicado como uma folha murcha, dessas que caem no primeiro vento?! E do tio, balofo como um fruto que apodreceu antes de amadurecer, quem cuidaria dele, quem? No espelho, só no espelho eu via que fazíamos parte da mesma árvore, a árvore detestável que minha mãe aceitava em silêncio e que tia Graciana, distraidamente, fingia não ver (VA, p. 17).

Segundo Marques (2010, p. 225), em meio a tantos espelhos que aparecem

em Verão no Aquário, o do sótão da antiga casa da família é para Raíza “o que lhe

devolve a imagem que ela mais aprecia”, ou seja, era naquele espelho que ela

tentava se aproximar do seu eu autêntico. O espelho do sótão simbolizava a busca

pela sua verdadeira identidade: “Lancei um olhar ao espelho da mesa de toalete. Eu

teria que procurar minha imagem em outro lugar, lá em meio das manchas do

espelho do sótão e que há anos me guardava intacta, como num retrato” (VA, p. 30).

Era através do espelho do sótão que Raíza mantinha incólume a lembrança

do seu pai. Naquela superfície amarelada ambos permaneciam presos ao passado e

ali ela conseguia manter o seu eu ideal, isto é, aquele eu da época em que era boa

menina, que amava livremente porque não tinha em si tantas mágoas e frustrações.

Contudo, esse espelho ao mesmo tempo em que a impulsionava na busca de si,

também a mantinha presa ao seu duplo, impedindo-a de conseguir a independência

em relação à imagem do outro. Independência essa que era motivada pelo segundo

duplo da protagonista, ou seja, sua mãe. Nos diálogos com a filha, Patrícia deixa

transparecer que a moça precisa amadurecer e encontrar a si mesma. Na analogia

feita com os peixes do aquário com os quais a heroína se identifica, podemos ver no

discurso da mãe esse impulso:

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─ Vou pedir à titia que vista uma roupa de fada e me transforme num peixe. Deve ser boa a vida de peixe de aquário – murmurei. ─ Deve ser fácil. Aí ficam eles dia e noite, sem se preocupar com nada, há sempre alguém para lhes dar de comer, trocar a água... Uma vida fácil sem dúvida, mas não boa. Não se esqueça de que eles vivem dentro de um palmo de água quando há um mar lá adiante. ─ No mar seriam devorados por um peixe maior, mãezinha. ─ Mas pelo menos lutariam. E nesse aquário não há luta, filha. Nesse aquário não há vida (VA, p. 137).

Ora, como afirma Cavalcanti (1992), o olhar da mãe é o primeiro espelho, é

o olhar que confirma a existência do filho logo na infância. Assim, a imagem materna

é de extrema relevância para o eu em formação, porque ela reflete segurança e dá

subsídio ao filho para reconhecer suas próprias necessidades, uma vez que “o

reflexo da mãe é fundamental e indispensável para o estabelecimento da identidade”

(CAVALCANTI, 1992, p. 209). Ao alertar a filha sobre a restrita vida do aquário,

Patrícia mostra que naquele pequeno mundo estagnado não há crescimento.

Entretanto, a protagonista persiste em contrariar o reflexo da sua mãe em si: mesmo

a amando, Raíza a despreza, estabelecendo então um comportamento sádico no

qual a faz vivenciar um amor carregado de dor, um amor masoquista, que mesmo

sendo tão profundo não a impede de ser cruel. E é desse lado perverso que Raíza

almeja se libertar no transcorrer do enredo; ela tenta reagir contra essa

personalidade, todavia faltava-lhe coragem, faltava-lhe força: “Até para o vício é

preciso ter coragem, até para o mal era preciso ter alguma fibra. [...] eu ali estava em

disponibilidade, sem coragem para o mal, sem coragem para o bem, os braços

abertos na indecisão” (VA, p. 66).

Nessa identificação com os pais, Raíza passa pelo processo de

autoconhecimento. Isso acontece porque contíguo ao processo de identificação

incide também a diferenciação do eu por meio de dois processos antagônicos, isto é,

o espelhamento e a frustração. Sobre isso, Cavalcanti (1992, p. 209) nos explica que

no processo de espelhamento ocorre uma colaboração do outro para a formação da

imagem do eu; enquanto que a frustração faz o eu perceber os seus limites e

meditar sobre eles. Ambos os processos são necessários para que o eu possa se

autorrefletir e assim alcançar a sua independência. Segundo o crítico Fábio Lucas

(1999, p. 72), para Raíza a sua autonomia incidiria em sair do aquário simbólico e

assim “ganhar os amplos espaços da vida, seguindo, deste modo, os conselhos da

mãe”; para tanto, ela precisaria mergulhar no mar em busca da sua autorrealização:

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“Estou me despedindo do meu aquário, mamãe, estou me preparando para o mar”

(VA, p. 137).

A alusão às águas tão recorrente em Verão no Aquário também está

intimamente ligada à formação de Raíza. Sejam da fonte, do aquário, do mar, da

chuva ou simplesmente da torneira, as águas marcam cada momento da trajetória

da personagem.

Como símbolo narcísico, a água atua como espelho, o qual, conforme

Bachelard (1997, p. 23), “serve para naturalizar a nossa imagem, para devolver um

pouco da inocência e de naturalidade ao orgulho da nossa contemplação íntima”.

Diferente dos outros espelhos, a água permite uma continuidade porque sua

naturalidade sugere infinitas possibilidades. Nela nosso reflexo pode mudar a um

simples toque das nossas mãos; nas águas também se pode mergulhar. No entanto,

não é possível penetrar o espelho de vidro, ao tocá-lo somos impedidos pela sua

estrutura rígida de prosseguir, visto que esses espelhos “dão uma imagem por

demais estável” e, portanto, só “tornarão a ser vivos e naturais quando pudermos

compará-los a uma água viva e natural, quando a imaginação renaturalizada puder

receber a participação dos espetáculos da fonte e do rio” (BACHELARD, 1997, p.

24).

De tal modo, podemos entender que, em Verão no Aquário, Lygia parece ter

consciência dessa renaturalização dos espelhos comuns. A heroína desse romance

em alguns devaneios oníricos entra no espelho do sótão como se mergulhasse nas

águas: “Corri na direção do espelho, entrei nele e encontrei meu pai e tio Samuel

sentados num rolo de tapete” (VA, p. 77). Vemos aqui a concretização do que

Bachelard (1997, p. 24) diz quando explica que “um poeta que começa pelo espelho

deve chegar à água da fonte se quiser transmitir sua experiência poética completa”.

Experiência essa que é muito bem explorada por essa escritora que escreve prosa

como se fosse poesia.

Por conseguinte, percebemos que nesse episódio de adentrar no espelho,

Raíza vai à busca de uma mudança em seu interior, de um renascimento. Porém,

não era por meio desse espelho que emanaria a vida nova, afinal ele era sujo,

amarelado pelo tempo. Como então, nessas águas sujas, ela poderia se purificar e

nascer de novo? Era preciso uma fonte de águas claras, limpas para que o

verdadeiro eu da personagem aparecesse. Era preciso ficar submersa como a

catedral de Debussy, para depois voltar à superfície renovada, renascida.

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A água que simboliza a essência da vida é também símbolo de purificação,

de regeneração. Raíza em seu contato com as águas está sempre procurando a

pureza que um dia tivera, a inocência que fora destruída pelo seu comportamento

rebelde. Fosse por meio do hábito de lavar as mãos, como se elas refletissem algum

pecado, ou pela vívida lembrança da fonte que secara no dia da morte do pai, o

desejo de renovação interior era profundo:

Abri a torneira da pia e pensei na fonte da minha infância, quando eu me estendia no chão, o livro aberto, ouvindo de olhos fechados o murmúrio da água, imaginando o que poderia fazer para fortalecê-la, ah! Meu Deus será que os outros também tinham notado que a minha fonte estava morrendo? Enquanto só eu soubesse poderia haver um milagre, hein?!... Mas a minha mãe também percebeu quando me disse calmamente, “Ela vai secar, Raíza”. Então corri para o sótão e fui abraçar o meu pai (VA, p. 64).

Aqui, novamente podemos observar que o grande obstáculo no caminho da

protagonista é a lembrança constante do passado. Como símbolo do

rejuvenescimento, a fonte faz Raíza “regredir a infância, encolher-se, ser

‘irresponsável como um feto’ ou minúscula como os peixinhos sem pecado,

passeando na água limpa” (MARQUES, 2010, p. 223). Mesmo que em alguns

momentos Raíza afirme que vai ao encontro do mar, simbolizando a libertação do

recôndito familiar o que acontece é exatamente o contrário, porque para ela “não é o

mar que está em jogo, mas, ainda e sempre, o aquário” (MARQUES, 2010, p. 223).

Entretanto, para a personagem era necessário encontrar o caminho certo, se

descobrir e não se perder mais, assim como Narciso, Raíza precisava mergulhar na

fonte. No mito, a fonte é o caminho para a consciência de si e do outro. O mergulho

do herói nas águas claras “significa a morte simbólica e o renascimento psíquico do

ser diferenciado em outro nível de consciência” (CAVALCANTI, 1992, p. 223).

A morte simbólica e a consciência de individualização, ou seja, da

descoberta de si como ser independente da imagem do outro, acontece para Raíza

depois que ela se deixa purificar pela chuva e pela imersão nas águas. Essa

imersão tanto para Bachelard (1997), quanto para Cavalcanti (1992) significa um

novo nascimento do eu, um recomeço, pois ao passo que purifica a alma, também a

transforma. O sentido do mergulho em busca de si é fazer com que o eu perceba-se

diferente do outro. Com esse gesto, Narciso se reconhece e passa também a

conhecer o outro.

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Em Verão no Aquário, o ato simbólico do renascimento e da futura mudança

da protagonista inicia ainda nos sonhos da personagem quando o espelho do sótão

aparece constantemente sendo quebrado. A repetição dessa ação sugere o

rompimento com os laços paternos para o desabrochar da nova Raíza. A ruptura

acontece quando, por ocasião da morte de André, a chuva surge para lavar a alma

da heroína e o velho espelho é estilhaçado libertando-a do duradouro luto pelo pai.

Na alusão feita a um domingo chuvoso no qual se celebrava a Ressurreição

de Cristo, Raíza indaga se é possível voltar a viver em um dia de chuva. A resposta

de Dionísia não podia ser mais sugestiva: “Precisa haver sol para a gente

ressuscitar?”. Para a protagonista essa réplica era mais um caminho para o

reencontro consigo: “Ela disse a gente. Fiquei em silêncio enquanto tomava café,

deliciada ao pensar que gente como nós também podia ressuscitar com qualquer

tempo” (VA, p. 155).

Entre chuvas, mortes e espelho despedaçado, a jovem heroína, corroída

pelo remorso e sentindo-se responsável pelo suicídio de André, busca o milagre

maior que seria ela nascer outra vez: “Não mais as antigas paixões, as antigas

dúvidas. Não mais o medo” (VA, p. 199). E surgem as águas, símbolo da vida que

em contraste com a morte libertam Raíza ao fazê-la superar o temor de si mesma e

ter consciência da sua verdadeira essência, superando os conflitos com a mãe.

Mergulhei depressa na água. Molhei o rosto e só então pude encará-la. E ela não representava. [...] Provei da água: era rude mas quente o gosto do sal. Aninhei-me no fundo da banheira azulada, ouvindo as vozes de Dionísia e de tia Graciana. [...] Quando saí da água tive um calafrio. [...] Parei na porta do escritório, minha mãe estava de costas diante da janela olhando o céu fechado. Senti que ela estava pensando nele e meu coração se apertou de dor. [...] Fui à sala e abri o piano. Queria afastá-la da janela, fazê-la voltar depressa antes que André a tomasse de novo e desta vez, para sempre. Os primeiros acordes me assustaram, inábeis, confundidos. Prossegui tocando até que a catedral subiu triunfante à superfície. Então consegui dominar o teclado, sustendo as torres mais altas na crista espumejante das ondas. Veio-me uma alegria funda. Toquei com mais força. E voltei-me. Minha mãe estava atrás de mim, sentada no braço da poltrona (VA, p. 210-211).

A purificação e o renascimento por meio das águas simboliza a Bildung da

jovem protagonista. Nos momentos finais da narrativa, Raíza tem a oportunidade de

começar de novo e lhe é revigorado o prazer de viver; pela primeira vez depois de

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anos ela volta a tocar o seu piano e, como a catedral de Debussy, o seu eu ressurge

radiante: “o verão terminara” (VA, p. 213).

Assim como no desfecho de Ciranda de Pedra, nesse romance há a

disposição para o final feliz da protagonista, pois é claro o amadurecimento de Raíza

no encerramento desse ciclo. Ela aceita que jamais será uma pianista de sucesso

sem sentimentos negativos – “Era bom voltar a tocar, acima de tudo era bom voltar a

tocar. Mais nada” (VA, p. 212) –, reconhece que a mãe não era uma inimiga e

propõe-se a conhecer o verdadeiro amor, sugerido pelo surgimento na narrativa de

um novo personagem: o médico que a ajudara após a morte de André.

Destarte, tanto em Virgínia como em Raíza podemos depreender os

princípios do Bildungsroman conforme Mazzari (2010, p. 113) estabeleceu a partir

da obra Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, são eles: “a

Autonomia (formar-se a si mesmo), Totalidade (formação plena) e, ainda, Harmonia

(a ‘inclinação irresistível’ por formação harmônica)”. Isso está visível nos romances

em análise porque a “expansão plena e harmoniosa das potencialidades” das

protagonistas, assim como a concretização de suas totalidades, “são projetadas no

futuro e sua existência apresenta-se assim como um ‘estar a caminho’ rumo a uma

maestria da vida”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No transcorrer deste trabalho, tivemos como intento investigar a

representação da família e a formação pessoal das heroínas nos romances Ciranda

de Pedra e Verão no Aquário. Para tanto, partimos de indagações que foram

norteadoras para a organização teórica e analítica desta pesquisa, a saber: como se

estabelece a verossimilhança nessas obras? Como o elemento social “família” é

abordado no interior dos textos? De que maneira os conflitos familiares influenciam o

processo de amadurecimento das protagonistas? A bildung ou formação de Virgínia

e Raíza assinala para um final feliz?

Constatamos que nesses romances a impressão de verdade se estabelece a

partir da estrutura simbólica que envolve os espaços das narrativas com as

situações de conflitos, dinamizando, assim, o enredo; como também se constitui

pela maneira como as personagens foram construídas. No interior das casas tudo é

descrito de modo a intensificar a ideia da decadência familiar; cada objeto que

ornamenta os cômodos dá vida aos espaços que se assemelham ao interior dos

seus donos. Assim, o elemento social “família” vai sendo lapidado a partir da

integração dos dados da realidade aos elementos estruturais das narrativas; dando-

nos a fruição de enxergar no verossímil a universalidade de uma verdade particular,

possibilitando-nos a “ler o mundo nas malhas [de cada] obra” (MERQUIOR, 1997, p.

25).

As relações familiares representadas nesses romances são bastante

conflituosas, pois existe pouca afeição e cumplicidade entre os parentes. Do lado

paterno os laços apresentam-se em destroços, uma vez que a ausência alimenta o

desamparo e o desafeto. Assim, o distanciamento entre pai e filha seja pelo rancor

(Ciranda de Pedra) ou pela morte (Verão no Aquário) enfraquece o elo familiar e

problematiza o desenvolvimento individual das protagonistas. De igual modo, os

laços maternos, fragilizados pela doença e comportamento social antiquado da mãe,

no primeiro romance, e pela incompatibilidade entre os temperamentos de mãe e

filha, na segunda obra, evidenciam a desordem na estrutura familiar.

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Em Ciranda de Pedra o relacionamento entre as três irmãs Bruna, Otávia e

Virgínia, também não é diferente: análogo aos laços paternos e maternos, os laços

fraternos são extremamente frios e emocionalmente carregados de rejeição,

rivalidade e traição. Cada uma com a sua personalidade, as filhas de Laura

representam os arquétipos femininos presentes na sociedade brasileira dos anos

dourados. Bruna mantinha o perfil da mulher doméstica, caracterizado como aquela

que é boa filha, esposa submissa e amorosa, e também mãe exemplar. Já Otávia

tinha a postura da mulher em fase de libertação dos padrões morais impostos pela

sociedade patriarcal; o seu comportamento sensual e amoral representa a nova

mulher, que na década de 1950 estava começando a descobrir os seus direitos e a

liberdade sobre as suas ações e sobre o seu corpo. Enquanto isso, a protagonista

Virgínia – filha mais nova, bastarda e desprezada –, que inicia sua trajetória de

formação como uma menina cheia de medos e dúvidas, à medida que vai

amadurecendo transforma-se em uma mulher combativa, conquistando a sua

independência ao sair da redoma familiar em busca de uma vida livre das opressões

familiares que a condicionavam ao fracasso.

Como em Verão no aquário não existem laços fraternos, o foco do conflito

familiar recai sobre a disputa entre mãe e filha, tendo início a partir da morte do pai e

se intensificando com a presença de André, o jovem “quase padre” que se torna o

pivô das artimanhas de Raíza contra Patrícia. Assim, a protagonista focaliza toda a

sua competitividade para atingir e descontruir a imagem de “mulher perfeita” da mãe.

Tudo isso é relevante para o aprendizado da heroína, que mesmo atraída pelo

abismo da discórdia, consegue sair da obscuridade e encontrar a harmonia familiar

ao reconciliar-se com a sua progenitora no final da narrativa.

Por conseguinte, o fato de constatarmos que somente as personagens

Virgínia e Raíza sofrem mudanças ao longo das narrativas guiou-nos para a

interpretação das obras sob a perspectiva do romance de formação. A abordagem

de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário a partir do Bildungsroman nos fez

compreender toda a problematização psicológica que Lygia Fagundes Telles dá às

suas heroínas, confirmando, a cada momento de reflexão, o que afirma Sônia Régis

(2009, p. 114) quando diz que as personagens lygianas “não se mostram prontas,

modelares”, uma vez que elas “mudam de pensamento e de projeto de vida como

fazem as pessoas na vida real”.

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Como a maioria das personagens lygianas, as heroínas de Ciranda de Pedra

e Verão no Aquário não são exemplos de perfeição no caráter e na conduta. São

personagens que embora sejam essencialmente boas, são também dominadas pelo

rancor, pela mágoa, pela dor e pela perda o que as deixam em muitas ocasiões

como perversas, como heroínas às avessas. Todavia, na jornada de

aperfeiçoamento, elas vão aprendendo com os próprios erros, vão abrindo a mente

e os olhos para a compreensão do mundo e do outro, vão percebendo o que vale à

pena e como devem continuar os seus itinerários. Deste modo, o desfecho dessas

personagens não acontece necessariamente dentro da narrativa. Diferentes da

maioria dos Bildungsroman femininos, essas obras não possuem finais negativos, ao

contrário, a conclusão da formação de Virgínia e Raíza fica à disposição do leitor,

respaldada por um fio de esperança, deixado por Lygia para indicar a aprendizagem,

o amadurecimento das heroínas.

Quanto à estrutura dos romances, é Ciranda de Pedra que apresenta um

modelo mais próximo do tradicional Bildungsroman, conforme descrito pelos teóricos

do gênero apresentados neste trabalho. Isso porque em Verão no Aquário, a heroína

não segue uma ordem cronológica dos fatos, uma vez que, boa parte da narrativa é

centrada nas suas recordações. Entretanto, nas duas obras está claro o principio

que caracteriza o romance de formação, isto é, descrever “a longa trajetória de um

herói problemático ‘em busca de si mesmo’, passando pelas inúmeras aventuras

que perfazem o seu confronto educativo com o mundo”, segundo explica Mazzari

(2010, p. 93).

Por fim, vemos ainda que, nesses romances, a escritora Lygia Fagundes

Telles constrói as suas personagens habilidosamente de maneira a fazer com que o

leitor interaja com as cenas do enredo, tornando-o um cúmplice da trama. Como diz

Régis (2009, p. 114), a romancista transforma-nos em “testemunhas dos conflitos,

do pensamento e da fala” dessas personagens, fazendo-nos sentir “o intenso efeito

da palavra”, e, assim como Virgínia e Raíza, somos instigados ao mergulho no

nosso interior e transportados a um intenso “passeio pela subjetividade do espírito

humano no constante redesenho da vida”.

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