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1 RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO SOCIAL NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: PROBLEMAS PARA EFETIVAÇÃO DE UMA POLÍTICA REFORMISTA Jones Manoel da Silva Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) [email protected] GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO RESUMO Iremos analisar criticamente a partir do materialismo-histórico as transformações recentes do capitalismo mundial com foco na reestruturação produtiva do capital, financeirização da economia, reconfigurações do fundo público e mudanças políticas e geopolíticas após o fim da União Soviética e do “campo socialista”, procurando demonstrar, através de várias mediações, como essas transformações dificultam sobremaneira os ganhos redistributivos das classes exploradas e a construção de direitos no cenário atual da luta de classe. PALAVRAS-CHAVE: Neoliberalismo. Reformismo. Luta de classe. Estado de bem-estar social. INTRODUÇÃO Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo estava dividido em dois grandes blocos: o mundo capitalista e o “campo socialista”. O primeiro tinha como principal representante os Estados Unidos, e o segundo a União Soviética. A competição entre os blocos envolvia, dentre outras coisas, a apresentação dos padrões de vida de cada “sistema” como os melhores possíveis. O “campo socialista” conseguiu eliminar o desemprego, a miséria, os índices mais significativos de desigualdade social, e exibia uma robusta rede de proteção social; o mundo

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1

RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO SOCIAL NO CAPITALISMO

CONTEMPORÂNEO: PROBLEMAS PARA EFETIVAÇÃO DE UMA POLÍTICA

REFORMISTA

Jones Manoel da Silva

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

[email protected]

GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO

RESUMO

Iremos analisar criticamente a partir do materialismo-histórico as transformações recentes do

capitalismo mundial com foco na reestruturação produtiva do capital, financeirização da

economia, reconfigurações do fundo público e mudanças políticas e geopolíticas após o fim

da União Soviética e do “campo socialista”, procurando demonstrar, através de várias

mediações, como essas transformações dificultam sobremaneira os ganhos redistributivos das

classes exploradas e a construção de direitos no cenário atual da luta de classe.

PALAVRAS-CHAVE: Neoliberalismo. Reformismo. Luta de classe. Estado de bem-estar

social.

INTRODUÇÃO

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo estava dividido em dois grandes

blocos: o mundo capitalista e o “campo socialista”. O primeiro tinha como principal

representante os Estados Unidos, e o segundo a União Soviética. A competição entre os

blocos envolvia, dentre outras coisas, a apresentação dos padrões de vida de cada “sistema”

como os melhores possíveis.

O “campo socialista” conseguiu eliminar o desemprego, a miséria, os índices mais

significativos de desigualdade social, e exibia uma robusta rede de proteção social; o mundo

2

capitalista exibia os padrões de consumo do americanwayoflife e o Estado de bem-estar social

europeu como o ápice da humanidade.

A organização política dos trabalhadores em cada país e a pressão ideológica e

política exercida pela existência da União Soviética impulsionaram respostas políticas,

econômicas e institucionais das classes das dominantes dos países capitalistas que, em maior

ou menor medida, proporcionaram ganhos salariais, construção de uma rede de direitos

econômicos, sociais e trabalhistas, e mecanismos de estabilidade no emprego.

O Estado de bem-estar nos países centrais do capitalismo e o desenvolvimentismo

nos países da periferia expressaram estratégias adequadas ao padrão existente de reprodução

do capital para, sem superar o capitalismo, fazer frente ao “campo socialista”, produzindo

melhoras relativas nos níveis de consumo e padrão de reprodução das classes exploradas.

A partir dos anos 70, a contrarrevolução neoliberal consegue não só varrer dos países

centrais do capitalismo o “consenso keynesiano”, como derrotar o “campo socialista” e o

movimento terceiro-mundista. A classe operária de todo o mundo mergulhou num longo

período histórico de perdas salariais, retirada de direitos e regressão nos seus padrões de

subsistência e consumo (IAMAMOTO, 2010).

Contudo, as tentativas de reconstruir o Estado de bem-estar social e o

desenvolvimentismo não cessam: na Europa Ocidental, o grego Syriza, e o espanhol Podemos, e

na periferia capitalista, sobretudo na América Latina, os governos de centro-esquerda e esquerda

do chamado “ciclo progressista”, representam expressões de esperança e nostalgia em conseguir

uma nova “era de direitos” no capitalismo contemporâneo.

No entanto, essas experiências não vêm conseguindo obter êxito. O capitalismo atual

parece muito menos suscetível a reformas redistributivas e a construção de uma rede de direitos

sociais e econômicos. A metamorfose do Syriza de principal partido anti-austeridade na Europa

em gestor da austeridade em meses1 e as diversas derrotas do chamado “ciclo progressista” na

América Latina, impõem ao pensamento crítico uma reflexão sobre os limites e possibilidades

de uma política reformista no século XXI.

Nosso artigo pretende incidir, não sobre o debate relacionado à estratégia e tática das

organizações de esquerda, ou a política econômica dos governos ditos neoliberais ou

conservadores, mas procurar analisar os determinantes estruturais da dinâmica capitalista atual

que dificultam sobremaneira ganhos redistributivos da classe trabalhadora e reformas de grande

significação dentro da ordem do capital.

1Sobre a trajetória do Syriza no governo conferir:

http://resistir.info/brasil/edmilson_grecia_03ago15.html - Acessado em 02/03/2017.

3

Abordaremos os processos de reestruturação produtiva e a flexibilização das relações

de trabalho, o processo de financeirização da economia, as novas formas de configuração do

fundo público e a dinâmica política e geopolítica do mundo capitalista na era pós-soviética.

Acreditamos que esses processos e sua dinâmica de interação e complementaridade complexa

criaram uma situação na luta de classe que restringem as possibilidades das vitórias parciais

da economia política do trabalho contra o capital forjando uma situação política cingida: o

momento histórico de brutal desarme organizativo, teórico e político das classes exploradas é

ao mesmo tempo o que lhes impõe uma prática política revolucionária como a necessária para

conseguir garantir patamares mínimos de sobrevivência.

1 - A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E A FLEXIBILIZAÇÃO DO TRABALHO

Lênin em seu clássico Imperialismo, etapa superior do capitalismo (2012) mostrou

que na passagem do século XIX para o XX houve uma profunda transformação no tipo

capitalista de empresa. As pequenas e médias unidades passaram a ser substituídas por

grandes monopólios com integração vertical dos diversos componentes do processo

produtivo: o mesmo grupo econômico controlava, desde a extração da matéria-prima e a

produção das fontes de energia, até o acabamento final do produto, configurando um processo

de concentração e centralização do capital.

Esse tipo de grande empresa vertical normalmente mantinha uma forte base nacional,

porque nas economias centrais, na fase imperialista, o Estado assumia maior protagonismo

através de políticas protecionistas e expansivas, isto é, as economias capitalistas adotaram

fortes políticas protecionistas para seus mercados internos e procuraram aumentar os

mercados disponíveis, através do colonialismo e neocolonialismo, e os trabalhadores, por

meio de suas lutas, mas também como uma possibilidade objetiva da fase imperialista do

capitalismo, passaram a ter um papel maior no fechamento do ciclo do capital através de

ampliado consumo operário.

Os países centrais do capitalismo formaram uma estrutura produtiva dominada por

essas grandes empresas verticalizadas que, na divisão internacional do trabalho, assumiram

uma posição de domínio frente aos capitais nos países coloniais, semicoloniais e dependentes,

e garantiram às economias imperialistas assumir a posição eixo de recepção de valor e

aguentar níveis redistributivos maiores, sem comprometer – ainda que por tempo limitado – a

taxa média de lucro do capital (ARRIGHI, 2008).

4

A contraface desse tipo de empresa eram as plantas industriais gigantescas, com

milhares de operários que, principalmente ao final da Segunda Guerra Mundial, passaram a

gozar de maior estabilidade no emprego, através da política keynesiana de “pleno emprego”.

Esse tipo de relação empregatícia facilitava a instituição de uma rede de proteção social com

base na contribuição empregatícia e o financiamento, via fundo público, de serviços como

saúde e educação.

Para o capital, a regulação estatal só faz sentido quando gera um aumento da taxa de

lucros, intervindo como um pressuposto do capital em geral. Dentro disso é que se

torna aceitável certa redistribuição horizontal e limitada na forma de salários

indiretos, assegurados pelas políticas sociais. A demanda contraditória sobre o

Estado, por sua vez, é a expressão da contradição interna do capitalismo entre o

desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção (BEHRING,

BOSCHETTI, 2006, p.91).

Durante os “anos dourados” do capitalismo, as relações de trabalho nas economias

centrais tinham como características centrais: a) modelo de estabilidade regular no emprego;

b) grandes plantas industriais, que concentravam milhares de operários no mesmo ambiente

de produção, com grandes grupos econômicos controlando as diversas fases do processo

produtivo, através de integração vertical; c) um conjunto de políticas estatais que visavam

manter os níveis de emprego, salário e consumo; d) forte rede de proteção social e serviços

públicos, que era um dos principais símbolos do “pacto” de “humanização do capitalismo”; e)

intensa atuação dos sindicatos nos acordos de negociação coletiva, dos partidos operários

socialdemocratas e comunistas na formação e aplicação da política econômica dos Estados

capitalistas.

A contrarrevolução neoliberal marcou um período de profundas transformações nas

relações de trabalho, na forma da empresa capitalista e na divisão internacional do trabalho.

Acerca desse processo:

As raízes da crise, afirmavam Hayek [teórico pioneiro do neoliberalismo] e seus

companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de

maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de

acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua

pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais

(…) Esses dois processos destruíram os níveis necessários de lucros das empresas e

desencadearam processos inflacionários que não podiam deixar de terminar numa

crise generalizada das economias de mercado. O remédio, então, era claro: manter

um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no

controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções

econômicas. (ANDERSON, 1995, 10-11).

O neoliberalismo potencializou a transferência de fases inferiores do processo

produtivo para a periferia do capitalismo. Ao final da Segunda Guerra Mundial, o processo de

5

inovação tecnológica no setor de bens de capital acelerou-se de tal forma que não era

possível, só pelo consumo nas economias centrais, amortizar o valor investido na produção e

tornou-se comum determinado equipamento já estar obsoleto pela média de produtividade.

Para resolver esse problema, foi necessário criar um mercado consumidor de bens de capital

de menor complexidade (MARINI, 2013)

Os investimentos nas economias periféricas, que antes da Segunda Guerra eram

basicamente na compra de matérias-primas e empréstimos, passaram a centrar-se em

investimento direto na instalação de plantas industriais. Esse movimento do capital criou

polos intermediários de produção industrial que não ameaçaram a centralidade produtiva e

tecnológica da tríade EUA, Japão e Alemanha, mas reduziram os níveis de emprego nos

países centrais. A partir dos anos 70 temos uma nova fase de deslocamento das plantas

industriais para o Sudeste Asiático, o que debilitou ainda mais os níveis de emprego na

Europa Ocidental e EUA (MARINI, 2013; BAMBIRRA, 2013).

As mudanças na divisão internacional do trabalho foram combinadas com uma

transformação na empresa capitalista. De grandes empresas com integração vertical, passou-

se para unidades menores com integração horizontal, de uma rede de fornecedores

formalmente “independentes” que iriam gerir seus custos e riscos, mas, em última instância,

dependentes completamente do grande capital controlador do processo, e com tendência

constante a reduzir a quantidade de força de trabalho, através da instituição de círculos de

controle, modernização tecnológica, aumento do número de funções médias dos operários e

produção de estoques mais enxutos, adaptados às necessidades imediatas de venda – o

chamado Just in time (ANTUNES, 1999).

A reestruturação produtiva do capitalismo, como uma das estratégias para retomar

um patamar médio de lucratividade e combater o poder da classe operária, produziu

desemprego em massa, redução do poder dos sindicatos e um período histórico de retirada de

direitos. A terceirização e o trabalho precário substituíram o padrão fordista como o

dominante nas relações de trabalho nos países centrais do capitalismo.

Assim, a crescente flexibilidade do trabalho, em todo mundo do trabalho,

evidenciada na subcontratação (terceirização), no emprego temporário, nas

atividades autônoma, na informalidade, nas cooperativas de trabalho e em outras

formas de trabalho assalariado disfarçado – na prática flexível de emprego e de

mercados de trabalho – constituem formas concretas de flexibilização que se

difundem em todas as atividades e lugares, associadas a processos de

desindustrialização e de descentralização geográfica de fábricas (DRUCK, 2002, 12-

13).

Cumpre destacar que houve bastante resistência dos trabalhadores às mudanças

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impostas pelo capitalismo. A greve dos mineiros na Inglaterra (ANTUNES, 1999) é um

exemplo paradigmático dessa resistência, os governos neoliberais, porém, trataram os

processos de desmonte do poder dos sindicatos como questão de tudo ou nada para a

economia capitalista e conseguiram no geral impor as vitórias do capital.

2 - A FINANCEIRIZAÇÃO DO CAPITALISMO

A contrarrevolução neoliberal também promoveu a financeirização do capitalismo.

Os governos neoliberais adotaram uma política de liberalização do fluxo de capitais,

potencializaram a distribuição de renda regressiva e desregulamentaram o mercado financeiro.

Um volume de capital cada vez maior entrou na esfera financeira-fictícia de valorização:

especulação imobiliária, títulos da dívida pública do Estado, aplicações na bolsa,

investimentos futuros etc.

A partir dos anos 70, temos nos países centrais do capitalismo uma crescente dívida

pública, que era associada ao excesso de gastos públicos, porém, a destruição dos direitos

sociais e econômicos, e a privatização das empresas avançaram, não reduzindo o montante

das dívidas; pelo contrário. A dívida pública passou a tomar o papel de uma alavanca central

no processo de valorização fictícia do capital, e houve deslocamentos em massa de capitais da

esfera produtiva para a especulativa.

Entretanto, há um outro mercado em que a defesa neoliberal pela sua

desregulamentação foi intensa. É nessa época que a lógica de desregulamentação e

abertura dos mercados financeiros, associado à crescente produção de novos

instrumentos financeiros, no que costuma chamar de inovações financeiras, começa

a ganhar corpo. O desenvolvimento dessa lógica nos anos 80 e, principalmente, nos

anos 90, é que dá a característica específica a esta etapa do capitalismo, ao

capitalismo contemporâneo (CARCANHOLO, 2014, p.4).

O peso crescente das finanças também foi sentido no padrão de gestão e

lucratividade dos grandes grupos econômicos do capitalismo. Os grandes conglomerados

passaram a atuar fundamentalmente na lógica de remuneração rápida de ativos, produzindo

fenômenos interessantes. É famoso o caso da empresa italiana que fechou unidades produtivas

lucrativas porque essa ação provocaria uma forte valorização das suas ações no mercado

financeiro (CHESNAIS, 2005).

A financeirização das grandes empresas também passou a colocar o mais-valor

expropriado cada vez mais na esfera financeira do que o reinvestimento na ampliação da

produção ou da produtividade. Grandes grupos econômicos das mais diversas áreas desde a

7

biotecnologia, varejo, produção automobilística, informática, armamentos, alimentação etc.

passaram a ter em operações financeiras especulativas uma porção sempre maior do seu lucro.

O processo de financeirização do capitalismo fragilizou a capacidade do Estado de

tributar e regular o fluxo do capital. A política neoliberal tem como um dos seus dogmas a

liberdade de movimentação do capital e tende a desonerar a tributação de lucros oriundos de

operações financeiras, ao mesmo tempo, contudo, com o processo de financeirização consolidado,

mesmo um governo com interesse numa política de tributação e regulação desse setor enfrentaria

sérios problemas - como as gigantescas somas de capital em paraísos offshore que fogem,

parcialmente, à dimensão de controle do Estado-nação.

Os trabalhadores similarmente participaram de diversas formas do processo de

financeirização da economia. Nos EUA a ideologia dominante passou a fomentar o

imaginário do pequeno investidor e criar a imagem da bolsa de valores como o lugar de

oportunidades para o empreendedor ousado. O trabalhador que se torna microacionista e

acompanha nos jornais as cotações na bolsa na esperança de obter um bom retorno e garantir

a faculdade do seu filho e sua aposentadoria tornou-se algo comum nos anos 90 (CHESNAIS,

2005).

3 - RECONFIGURAÇÃO DO FUNDO PÚBLICO

O fundo público constitui uma parcela do valor produzido no processo produtivo que

é apropriada pelo Estado capitalista, através de diversos mecanismos – como tributos e

rolagem da dívida pública – e que retorna ao processo de valorização do valor sob diversas

formas. Assim como a luta de classe expressa no seio da produção a disputa de classe pela

apropriação do valor, a disputa pelo fundo público é uma continuidade diferenciada da luta de

classe pela riqueza socialmente produzida. Essa luta não começa na destinação dos recursos

públicos, mas sim na própria configuração desse fundo: no Brasil, por exemplo, a estrutura

tributária é regressiva e incide principalmente nos salários e consumo da classe trabalhadora;

já nas experiências social-democratas, a tendência era uma “contribuição” maior do capital na

composição do fundo público.

As transformações recentes do capitalismo, como já dito, provocaram uma profunda

desoneração do capital na composição do fundo público. Impostos progressivos, tributação sobre

ganhos de capital, lei de remessas de lucros, tributação sobre fusão e aquisição de empresas etc.

passaram a ser políticas raras nos países capitalistas. Ao mesmo tempo, o gasto público não parou

de crescer com serviços da dívida, indústria bélica, renúncias fiscais e políticas de promoção

8

da valorização do capital.

Em especial, a partir da década de 80, os fundos de previdência privada e os fundos

de investimentos passam a aplicar cerca de um terço de suas carteiras em títulos da

dívida pública, tidos como investimentos mais seguros (...) O aumento da dívida

pública combina com a desigual distribuição de renda e a menor tributação das altas

rendas, por razões de ordem política, fazendo com que a maior carga tributária

recaia sobre os trabalhadores (IAMAMOTO, 2010, p. 113).

Essa composição regressiva do fundo público é combinada com um esvaziamento da

soberania popular na esfera eleitoral, na disputa pelas prioridades do fundo público2. O

neoliberalismo consolidou a ideologia de que o gasto público deve ser perenemente

controlado, dado que o déficit público é algo ruim em si e prejudica o saudável

funcionamento da economia. A chamado tripé macroeconômico é a chave para controlar o

gasto público: câmbio flutuante, regime de metas de inflação e meta fiscal. O que significa

esse tripé macroeconômico na prática?

O regime de metas da inflação colocou como prioridade primeira o controle da

inflação e isso significa, por exemplo, que os níveis de emprego ou desigualdade social são

secundários. Para controlar a inflação, o Governo elenca uma expectativa da taxa de inflação a

despeito de todos os outros indicadores da economia e passa a “trabalhar” para deixar a inflação

no centro da meta. A ideologia neoliberal afirma que, para controlar a inflação, a melhor forma de

fazê-lo é aumentar a taxa de juros – afinal toda inflação é de demanda – e reduzir o gasto

público.

O Banco Central - agora tratado como independente, o que na prática significa

independente da soberania popular expressa no voto – e os ministérios econômicos, em

associação com os monopólios de mídia, agências de risco e partidos políticos, passam a

operar numa lógica em que está fora de questão, por serem, em essência, antieconômicas,

políticas de promoção universal do bem-estar social e de pleno emprego.

Na materialidade, o cumprimento da meta fiscal significa garantir como prioridade

do Estado pagar os credores da dívida pública. E, como os juros se mantém sempre altos

como uma forma de “controlar a inflação”, o montante do fundo público destinado ao

pagamento da dívida pública está em constante crescimento.

2“Nos países de tradição liberal mais consolidada, afirmou-se um mecanismo eleitoral que – além de

reduzir a competição à disputa entre dois líderes mais ou menos carismáticos e de marginalizar os

partidos organizados com base num programa, e, em primeiro lugar, os partidos ligados às classes

subalternas – não hesita em cancelar o próprio princípio da soberania popular” (LOSURDO, 2004,

p.10)

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A institucionalização desse processo de blindagem constitucional do fundo público

frente aos pleitos da classe trabalhadora pode assumir diversas formas: desde a

tecnocratização das principais instituições de controle da política econômica da União

Europeia3, até a PEC 241/55, aprovada recentemente no Brasil, que congela por vinte anos o

gasto público real com direitos sociais4.

A composição cada vez mais regressiva do fundo público, a constitucionalização de

formas de blindagem do fundo público às demandas da classe trabalhadora e os mecanismos

de sequestro financeiro do Estado respondem não apenas ao nível de política econômica, mas

são também expressões da reestruturação produtiva do capital e da financeirização da

economia. As transformações do capitalismo pedem uma adequação da sua forma-política

para regular e garantir as novas formas de acumulação. Isso não significa, é claro, uma

transformação automática da mudança no “econômico” em espelhamento no “político”. Os

processos de reconfiguração institucional do Estado burguês acontecem através de muitas

lutas e resistências.

A questão que queremos destacar é que qualquer projeto de retorno do Estado de

bem-estar social através de uma reconfiguração do fundo público com política tributária

progressiva e destinação prioritária para direitos sociais e econômicos encontraria uma barreira

estrutural na configuração do padrão de reprodução do capital. Não nos parece coincidência que

as experiências reformistas de maior impacto nos últimos anos (nos referimos à Venezuela,

Bolívia e Equador) promoveram, em maior ou menor medida, ataques à propriedade privada, com

nacionalização de setores estratégicos da economia – especialmente gás natural, petróleo e

derivados –, e distribuição da propriedade da terra, como forma de garantir a efetivação do

seu programa político.

Concordamos com Castelo (2016) ao afirmar que os elogios de instituições como

FMI e Banco Mundial às políticas compensatórias e focalizadas de intra-transferência de

renda, como o Bolsa-família, sinalizam o projeto das burguesias em “responder” à “questão

social” com parcela ínfima do fundo público, e que não necessitam discutir sua configuração e

forma.

4 - POLÍTICA E GEOPOLÍTICA: A ERA PÓS-SOVIÉTICA

3Uma Europa cada vez menos democrática – Le Monde Diplomatique, acessado em 02/03/2017.

4A PEC 241 e a blindagem constitucional da hegemonia rentista – Boitempo, acessado em 01/03/2017.

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Depois da Revolução de Outubro, houve uma onda mundial de criação de Partidos

Comunistas. A classe trabalhadora dos países capitalistas e os povos coloniais alcançaram

novos patamares de organização, com o exemplo entusiástico da Revolução Russa.

Evidentemente, como sabemos, a vaga revolucionária dos anos 20 foi derrotada e a União

Soviética ficou insulada. Mas a existência do primeiro país socialista e a consolidação da

Internacional Comunista como o partido mundial da Revolução foram as expressões concretas

de uma nova conjuntura geopolítica na luta entre burguesia e proletariado.

A grande crise capitalista de 1929, combinada ao período dos grandiosos planos

quinquenais da URSS, marcou uma época onde o mundo capitalista debatia-se na crise e,

aparentemente, a União Soviética construía um mundo novo, sem crises, anarquia na produção,

desemprego, miséria etc. Aliada a isso, durante toda sua existência, a Internacional Comunista

apostou com afinco na revolta dos povos coloniais e semicoloniais, conseguindo com êxito ajudar

na criação e/ou fortalecimento de organizações de resistência nacional, e apoiar rebeliões e

revoltas em curso. Com a vitória sobre o nazifascismo, que à época foi mundialmente visto como

uma vitória dos soviéticos, e a criação das democracias populares no Leste Europeu, a URSS e o

comunismo viviam seu momento de máximo prestígio.

Os partidos comunistas cresciam em número de filiados, adesão de intelectuais,

influência nacional e expressão eleitoral em vários países. Na Itália e na França, os partidos

comunistas passaram a estar entre os três principais partidos políticos do país e, no último,

constitui-se uma cultura largamente tendente à esquerda

O partido [comunista] italiano salta de 5 mil membros em 1943 para 2 milhões em

1946; o francês vai a 1 milhão quando tinha 30 mil em 1943. Até mesmo o sempre

pequeno partido comunista inglês consegue triplicar seus adeptos: vai a

aproximadamente 50 mil filiados entre 1944-1945. Em países mais desenvolvidos,

como Áustria, Finlândia, Bélgica, Dinamarca e Noruega, que, agrupados, somavam

mais ou menos 100 mil membros, em 1947 já totalizavam 600 mil (BRAZ, 2011,

p.197-198).

Em Ásia e África, os processos de descolonização eram majoritariamente alinhados,

política e ideologicamente, ao movimento comunista e, em 1949, tivemos a Revolução

Chinesa.

Não é exagero afirmar que, de 1945 até 1968, o capitalismo estava na defensiva.

Crescimento contínuo dos Partidos Comunistas e dos movimentos anticoloniais, e a eclosão

de processos revolucionários vitoriosos em sua primeira fase, em todos os continentes do

mundo, com exceção da Oceania. Nessa situação política e geopolítica os intelectuais e

políticos da burguesia formulavam e explicitavam respostas à contenção do comunismo, que

11

passavam pelo estabelecimento de concessões às classes trabalhadoras5.

Tanto na periferia do capitalismo, quanto nos países centrais, os teóricos da ordem

prometiam justiça social, igualdade e superação das agruras do subdesenvolvimento. Se hoje a

tônica da ideologia dominante é mostrar a brutal desigualdade social como algo natural e até

benéfico, nos anos 60, a promessa era um capitalismo cada vez mais humanizado e menos

injusto, onde não haveria mais motivos para a luta de classe.

Cabe pontuar também que, enquanto existia um “campo socialista”, tínhamos amplas

regiões do mundo “fechadas” ao processo de valorização do valor. A despeito das polêmicas

sobre o caráter socialista das experiências do século passado – especialmente a URSS – e o uso de

categorias polissêmicas como “capitalismo de Estado” para se referir a essas formações sociais, o

fato, expresso em diversos dados sobre o movimento de capital, é que a penetração de capital

estrangeiro provindo do mundo capitalista no “campo socialista” era baixíssima, estando numa

média abaixo de 10% (POMERANZ, 2012).

Esse espaço vedado, ou restrito, ao processo de valorização do mais-valor reduzia,

em nível global, as possibilidades de mobilidade do capital e, portanto, uma das

contratendências fundamentais do capitalismo – a expansão para áreas ou regiões não

incluídas no capitalismo mundial – estava enfraquecida.

Essa configuração política e geopolítica criou algumas tendências aparentemente

contraditórias mas que, na verdade, expressam as duas faces da mesma totalidade. A classe

dominante usou largamente de violência extrema na segunda metade do século XX para deter

projetos reformistas ou revolucionários. Na América Latina, por exemplo, o ciclo de ditaduras

militares patrocinadas pelo grande capital não foram contra projetos revolucionários, mas sim

nacional-reformistas. A burguesia tendia para o tudo ou nada em algumas regiões e, em

outras, aceitava largar concessões, desde que não inviabilizassem traços fundamentais à

acumulação de capital.

Com a derrota do “campo socialista”, a destruição do movimento anticolonial, o

enfraquecimento quase terminal do movimento comunista, a neoliberalização dos partidos

socialdemocratas e o enfraquecimento geral dos sindicatos, não existem mais razões políticas

sólidas, em âmbito geral – claro que podem haver exceções – para o capital aceitar conquistas

mínimas das classes trabalhadoras.

No plano das relações internacionais, não há dúvidas sobre o significado reacionário

da virada que ocorreu entre 1989 e 1991. E, exatamente em 1991, ano do colapso da

5Acerca dessas formulações tomando como exemplo a “questão urbana”, conferir (BOTELHO, 2013).

12

URSS e da primeira Guerra do Golfo, uma prestigiosa revista inglesa (Internacional

Affairs) publica no número de julho um artigo de Barry G. Buzan que se concluía

anunciando com entusiasmo a boa nova: “O Ocidente triunfou tanto no comunismo

como no terceiro-mundismo”. A segunda vitória não era menos importante que o

primeiro: “hoje o centro tem uma posição mais dominante e a periferia uma posição

mais subordinada desde o início da descolonização”; podia-se considerar felizmente

arquivado o capítulo da história das revoluções anticoloniais (LOSURDO, 2015, p.

280).

A intransigência do imperialismo alemão frente ao Syriza na Grécia, e o

impedimento operado contra o Governo de Dilma do Partido dos Trabalhadores (PT) no

Brasil exemplificam o modo operante padrão do capital frente aos projetos reformistas.

Não deixa de ser curioso que, historicamente, as correntes socialdemocratas e

“socialistas democráticas” do movimento operário proclamassem sua superioridade sobre as

experiências socialistas, vistas como autoritárias e totalitárias, e muitos partidos e intelectuais

dessas correntes – até vertentes do marxismo – tenham comemorado a derrubada do “campo

socialista”, sem perceber que o fim da União Soviética e a quase destruição do movimento

comunista simbolizava o fim do maior “muro de contenção” das barbáries do capitalismo.

CONCLUSÃO

Esperamos ter demonstrado no decorrer do artigo que as transformações ocorridas no

capitalismo, nas últimas décadas, criaram uma situação econômica e política onde procurar

resgatar uma política keynesiana ou reerguer o Estado de bem-estar social, promovendo

pactos redistributivos com setores da classe dominante, não é algo factível. A nostalgia com o

WelfareStatee com o desenvolvimentismo não pode ser uma resposta adequada para a guerra

de classe que a burguesia opera contra patamares mínimos de civilização e dignidade da

classe trabalhadora.

O desconhecimento das transformações nas relações de produção e reprodução do

capitalismo, e na profunda reengenharia institucional do Estado burguês, induz ao erro de

reduzir a situação atual a uma escolha errada de política econômica, e crer que mais

democracia e “vontade política” são suficientes para reverter o quadro político. Esse tipo de

consciência com frequência enxerga a esfera eleitoral como única possível para os processos

de transformação, aposta emum messias e, quando decepcionada – a exemplo da rápida

metamorfose de Alexis Tsipras, líder do Syriza – recorre à pseudo-categoria de traição, não

percebendo que o desfecho já estava embutido no projeto.

Nossa análise também não objetiva demonstrar a impossibilidade de ganhos da

economia política do trabalho sobre o capital, afirmando que, conseguir aumentos nos salários

13

ou construção de direitos só é possível com a revolução proletária. Isso seria, evidentemente,

esquerdismo teórico e político. A questão se posiciona de maneira diferente. As

transformações capitalistas das últimas décadas reposicionam o papel das lutas econômicas

por direitos e liberdades democráticas, e exigem uma reconfiguração nas táticas, estratégias e

formas-organizativa usadas pelos sujeitos em luta. Recorrendo a uma metáfora: não estamos

negando a possibilidade das vitórias parciais e a utilidade das lutas, mas procurando

esclarecer as condições do confronto.

A teoria crítica que compreende as possibilidades revolucionárias embutidas na

ordem do capital e formula sobre a forma-organizativa adequada para operar esse processo

revolucionário é mais atual do que nunca. Isso significa que o estudo sistemático do

capitalismo, combinado à apreciação de nossas vitórias e derrotas no século XX, devem nos

guiar a criação de bases teóricas para a realização de um novo radicalismo político comunista:

condição indispensável, para responder à guerra da classe dominante aos exploradores, e à

própria existência da humanidade.

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