relaÇÕes de dominaÇÃo/subordinaÇÃo de gÊnero no conto de...
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Campina Grande, REALIZE Editora, 2012
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RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO/SUBORDINAÇÃO DE GÊNERO NO
CONTO DE FADA TRADICIONAL “CINDERELA”
Ladyana dos Santos Lobato – Universidade Federal do
Pará/UFPA
Carlos Augusto Sarmento-Pantoja – Universidade Federal do
Pará/UFPA (Coautor)
RESUMO: Na presente comunicação nos propomos a identificar as relações de
dominação/subordinação de gênero que estão reproduzidas no conto de fada tradicional
“Cinderela”. Para isso utilizaremos três versões diferentes do conto de fada selecionado:
Reuniremos, nesta comunicação, discussões teóricas sobre Ideologia e Relações de Gênero a
fim de justificar a análise que pode ser feita sobre o referido conto de fada, em especial, sobre o
perfil físico e psicológico dos personagens. Perceberemos que a reprodução de estereótipos
socialmente atribuídos aos gêneros pode ser identificada através do enredo, das falas e da
representação gráfica dos personagens, por isso nesta comunicação identificaremos,
justificaremos com a fundamentação teórica e comprovaremos com passagens do próprio conto,
concepções que denotam para inferioridade feminina e relação estreita da mulher a vida familiar
e doméstica, ressaltando a contribuição deste artefato literário (o conto) na formação da
identidade de gênero das crianças.
Palavras-Chaves: contos de fada, relações de gênero, ideologia, dominação/subordinação.
INTRODUÇÃO
Como foco de análise desta comunicação, discorreremos sobre os estudos de
dominação de gênero presentes nos contos de fada tradicionais, uma vez que
identificamos, nesses contos, a representação de determinados perfis de masculinidade e
de feminilidade que estão reproduzindo e propagando um tipo de sujeito social
normalizado pela sociedade e que acaba legitimando certas práticas de discriminação à
mulher que ainda emergem no interior de diversas instâncias sociais, de forma bastante
sutil.
Entre essas instâncias, encontramos a família, a escola, a igreja, a política e em
especial, as instâncias culturais, tais como os contos de fada, os quais foram destacados
para esta análise porque são considerados clássicos da literatura infantil, estão
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carregados de simbolismo, retratam figuras femininas e fazem com que facilmente nos
identifiquemos com eles. A abordagem que discorremos sobre os contos de fada seguiu
os estudos teóricos de Figueiredo (2006), WIKIPÉDIA (2007), Rogel (1985), Vieira
(2005), Coelho (2005), Oliveira (2006), Oliveira (2007), Abramovich (1997) e
Abramowicz (2006).
O que queremos destacar, no entanto, quando falamos em contos de fada, é que
estes, desde sua história, sempre estiveram ligados a instrução das crianças. Entre os
conteúdos “ensinados” pelos contos de fada, aquele relacionado a questões de gênero
foi o que mais nos chamou atenção porque este aspecto retoma todo um processo
histórico e social que acompanhou a trajetória da mulher até os dias atuais. Relembrar a
forma como esse processo foi desencadeado, desde a segregação da mulher até as lutas
dos movimentos feministas contemporâneos, as lacunas deixadas por eles, além da
emergência do gênero, foi de fundamental importância para se melhor situar e adequar a
presença feminina nos contos de fada, mais especificamente, no conto “Cinderela”.
Contribuíram com essa fundamentação sobre gênero a abordagem teórica de Louro
(1997), Duarte (2004) e o GTPOS (2001), os quais nos ajudaram a perceber, através da
análise desse conto que a mulher, de um lado, assume um espaço social tradicional, no
qual é destinada a vida doméstica e a submissão ao homem, e de outro, é apresentada
segundo um modelo padrão de características físicas e psicológicas.
Essas questões que circundam a figura feminina nos contos de fada se devem a
uma ampla ideologia que ainda perpetua sobre o perfil da figura feminina. Dividida em
relações de dominação, não só de gênero, mais também de classe, de raça e idade, a
sociedade utiliza-se de diversos mecanismos para manter esses tipos de relações. Neste
caso usa a ideologia para divulgar certos tipos de concepções e acaba contribuindo com
a construção de um pensamento unificado, envolto em formas invertidas da realidade,
que devem ser aceitas naturalmente. O discurso ideológico representa, portanto, um
elemento mantenedor das relações sociais atuais, nas quais a mulher conquistou um
espaço antes restrito ao masculino, modificou diversas práticas de discriminação, mas
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ainda continua a ser vista como inferior e de uma forma preconceituosa por diversas
instâncias sociais. Utilizamos para falar sobre ideologia os estudos de Lowy (1988),
Aranha (1993) e Chauí (2002).
Em síntese, os contos de fada estão contribuindo com a propagação de
ideologias que manifestam uma dominação masculina e estabelecem um lugar
secundário para a mulher, fato que se dá de forma bastante implícita e a reprodução
desse tipo de relação social acaba sendo “ensinadas” às crianças, escondida pos trás de
sua suposta inocência. Consequentemente, com isso, não só as crianças, mas todos os
leitores e ouvintes dos contos de fada estão formando sua forma de ver, entender e
reproduzir as relações sociais ocorridas na sociedade de que fazem parte.
Dessa forma, falar sobre relações de gênero, ideologia e dominação sempre nos
conduzirá para uma discussão extremamente útil e necessária devido à atualidade de tal
temática. Analisá-los, no entanto, como artefatos culturais amplamente reconhecidos,
fazem dessa pesquisa um estudo bastante interessante e de elevada relevância e
necessidade social. A concretização dessa pesquisa não só nos ajudou a compreender as
relações sociais existentes entre homens e mulheres que ocorreram ao longo de todo um
processo histórico e social de conquistas e opressões femininas, mas também nos atentar
para a precisão de se repensar as relações entre os gêneros levando em consideração
diversos questionamentos sobre que feminismo se quer e de que masculino estamos
falando.
Este trabalho também se faz importante porque percebemos que as relações de
dominação de gênero precisam ser estudadas mais intensificadamente e analisadas sob
diversos ângulos, inclusive do ponto de vista das instâncias destinadas às crianças, pois
uma vez que identificamos concepções ideológicas de dominação reproduzidas
naturalmente pelos contos de fada, em especial, pelos contos “Cinderela”, “Branca de
Neve” e “A Bela e a Fera”, nos quais percebemos a disseminação de perfis
estereotipados de feminino e masculino, ficamos cientes de que os contos de fada estão
contribuindo com a internalização e propagação de modelos que ideologicamente são
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impostos para os indivíduos. Dado esta ciência, esta pesquisa estará se transformando
num espaço de revelação, crítica e análise para servir de suporte as pessoas interessadas
na educação das crianças, pois o referencial teórico abordado contribuirá efetivamente
na análise descritiva dos contos, uma vez que este nos esclarece para informações que
encontraremos implícitos e explícitos nos contos de fada e que antes nos era desprovido
por conta da falta de embasamento teórico e por nos encontrarmos envolvidos por tais
ideologias.
Assim esta pesquisa, objetivou identificar as relações de dominação de gênero
nos contos de fada “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A Bela e a Fera”, além disso,
observar quais os discursos ideológicos presentes nestes contos de fada contribuem para
que a mulher seja considerada submissa ao homem e destinada ao mundo doméstico;
caracterizar as mensagens e as representações gráficas dos contos de fada que associam
a mulher a um ideal de corpo, cor, beleza física e atributos psicológicos; perceber nos
contos de fada os aspectos ideológicos de universalização, naturalização e inversão; e
estabelecer a definição de características gerais que podem ser comuns a todos os contos
de fada.
No entanto, para que estes objetivos fossem alcançados, utilizou-se como
procedimento metodológico a pesquisa qualitativa, a qual consiste num método de
investigação que busca definir os aspectos problematizadores, levantando dados e
obtendo informações adicionais, antes que se possa desenvolver uma abordagem
discursiva sobre o referido tema. Por isso, baseando-se nos dados oferecidos pelo
levantamento bibliográfico pertinente ao assunto, o referencial teórico será aplicada aos
contos de fada tradicionais, “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A Bela e Fera”, onde
manipularemos os próprios contos, cada um em três versões: “Cinderela”, da Coleção
Clássicos Encantados, Coleção Cochrane e Coleção o Mundo Encantado das Princesas;
“Branca de Neve”, da Coleção Clássicos Encantados, Coleção Clássicos Adoráveis e
Coleção Bauzinho Encantado; e “A Bela e a Fera”, da Coleção Clássicos Encantados,
Coleção Clássicos Adoráveis e Coleção Fairy Tales Castle. A análise desenvolvida será
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justificada com passagens e gravuras dos contos de onde obteremos diversas
informações, comparando, diferenciando, ratificando, indagando e refletindo sobre os
conceitos teóricos que fundamentam esta análise.
O trabalho de pesquisa em questão está organizado em três capítulos. No
capítulo I, conceituaremos toda fundamentação teórica que está relacionada com o tema,
por isso abordaremos, inicialmente, a temática dos Contos de Fada, na qual
discorreremos sobre o contexto histórico, a conceituação e as características dos contos
de fada. Em seguida abordaremos a temática Ideologia e trataremos das características
de Universalização, Naturalização e Inversão afim de melhor entendermos de que forma
a concepção ideológica se reproduz e fica subentendida por trás de diversas práticas
sociais consideradas naturais, mas que acabam supondo algum tipo de dominação.
Concluiremos o referencial teórico destacando o que concerne às Relações de Gênero,
temática pela qual resgataremos um pouco das lutas dos movimentos feministas
contemporâneos, das lacunas deixadas por estes movimentos e das concepções
ideológicas que contornavam e ainda contornam a figura feminina.
No capítulo II, apresentamos uma abordagem descritiva, na qual as informações
teóricas serão aplicadas na análise dos contos “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A Bela
e a Fera”, a fim de aportamos as relações de dominação de gênero e os aspectos
ideológicos de universalização, naturalização e inversão que estão envolvidos,
respectivamente, nesses contos.
Para finalizar nossa pesquisa, no capítulo III, apresentamos o entrecruzamento
dos Contos de Fada que analisamos, considerando o que estes contos possuem em
comum em relação aos elementos da narrativa para que possamos inferir algumas
características aos contos de fada em geral.
Assim, esta pesquisa resulta em um espaço de revelação das ideologias contidas
nas mensagens dos contos de fada, destina-se a identificação de conteúdos que
divulgam concepções que circundam a figura feminina, a fim de refletir sobre o perfil
de mulher que está sendo propagado pelos contos de fada e onde podemos apontar
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relações de dominação. Haja vista a ingenuidade apresentada pelos contos de fada, neste
projeto, existiu o interesse em revelar o que está por trás dessa simplicidade. Contudo,
fazendo um balanço crítico sobre os discursos implícitos e explícitos dos contos de fada
e revelando suas reais ideologias, não queremos fazer disso um problema, mas ao
contrário, queremos intensificar um método de análise a fim de oferece um suporte a
pais e professores na educação das crianças.
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I - O GÊNERO NOS CONTOS DE FADA: UMA RELAÇÃO IDEOLÓGICA
1. 1 OS CONTOS DE FADA
Os contos de fadas existem há século com diferentes versões em diferentes
culturas. Segundo Figueiredo (2006), os primeiros contos de fada identificados pela
história literária são de origem céltica (séc. II a.C.) e fizeram parte da cultura oral
popular até o século XVII quando o francês Charles Perrault coletou e organizou os
contos de fada em um livro. Durante a organização Perrault adaptou os contos ao gosto
da corte francesa, diminuiu os trechos relacionados à cultura pagã e a sexualidade
humana, acrescentou ricos detalhes descritivos e uma espécie de “moral da história”, no
final do conto, diferenciando assim esses contos de sua versão original. De acordo com
Figueiredo (2006), no século XIX, os filólogos e irmãos Jacob e Wilhelm Grimm
preocupados em estudar a língua alemã e registrar seu folclore, também realizaram um
trabalho de coletânea de contos populares, acabaram publicando um livro, o qual
registrou alguns contos de fada na versão original, sem adaptações e lições morais de
Perrault. Essa publicação impulsionou o surgimento da literatura infantil com vários
autores do mundo inteiro escrevendo para crianças.
Dado esse breve contexto histórico, buscamos agora conceituar o que é um conto
de fada. Para isso, separamos o termo conto de fada para se definir inicialmente o que é
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um conto e o que é uma fada e, posteriormente, chegarmos a uma conclusão mais
abrangente.
Segundo Rogel (1985) o conto é uma forma narrativa em prosa de pequena
extensão, possui apenas um núcleo temático, o tempo e o espaço bastante reduzidos,
descreve os personagens e lugares com poucos detalhes e apresenta um conteúdo
bastante significativo que chama a atenção do leitor, muitas vezes, para o plano da
fantasia, pois “parece que podemos estabelecer a sua gênese a partir das narrativas
religiosas, das pequenas histórias sobre a vida de santos ou de personagens míticas.
Mais tarde estas pequenas narrativas foram sendo enriquecidas com elementos oriundos
do folclore, surgindo, então, seres fantásticos, tão ao gosto popular, como os dragões, os
duendes e as fadas.” (ROGEL, 1985, pág. 85). Dessa forma, destinado às narrativas de
mitos e lendas, o conto, originalmente, fazia parte da literatura oral que constituíam o
folclore popular de antigas civilizações.
As “fadas”, segundo Wikipédia (2007), possuem origem pagã e representam um
dos aspectos que caracterizam os contos de fada. São entidades fantásticas,
características do folclore europeu ocidental, apresentam-se como mulheres imortais e
dotadas de poderes sobrenaturais adequados a provocar metamorfoses, além disso,
sempre estiveram relacionadas ao amor, principalmente como elemento mediador entre
os amantes, pois são capazes de intervir na vida dos mortais para resolver problemas
que só encontram soluções através da magia. Etimologicamente a palavra fada vem do
latim fatum que significa destino, fatalidade, fado.
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Com base nesses conceitos em que se tentou definir o que é um conto e o que é
uma fada, podemos chegar ao conceito mais abrangente do que seja um conto de fadas,
propriamente dito. Ao associarmos ambos os conceitos, entendemos, sinteticamente,
que o conto de fadas trata-se de um tipo de estrutura narrativa curta que está ligada a
fantasia. No entanto, os contos de fada possuem uma dimensão que vai muito além
dessa simples associação de termos “se apresentam como a maneira mais significativa
que a humanidade encontrou para expressar aquelas experiências que não encontram
condições de se explicar no esquema lógico-formal da narrativa intencionalmente
objetiva” (VIEIRA, 2005, pág. 8). Isto é, uma forma que a humanidade encontrou de
realizar os desejos que não pode concretizar no plano da realidade, mas somente no
imaginário, através da fantasia.
Mas acontece que os contos de fada não correspondem somente a essa satisfação
de desejos, pois atreladas a essa suposta necessidade humana existem diversas relações
de dominação que são propagadas ideologicamente para constituir a mentalidade das
pessoas. Na própria história dos contos de fada percebemos que estes tinham a
finalidade de instruir moralmente as crianças, portanto seu caráter de entretenimento
pode ser entendido apenas como uma forma de reproduzir um perfil de sociedade
idealizado pelas dominações de classe, de raça ou de gênero.
No geral, os contos de fada são narrativas simples que tratam de questões éticas
universais, valorizam a formação de valores quando ressaltam o bem e denunciam o mal,
desprezando os sentimentos mais banais. É exatamente por lidarem com questões que
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norteiam a essência da condição humana, que os contos de fada perpetuam até hoje.
Meireles apud Coelho (2005, pág.11) nos diz que “os livros que têm resistido ao tempo
são os que possuem uma verdade capaz de satisfazer a inquietação humana, por mais
que os séculos passem”. No entanto, o sentido de verdade adotado nos contos de fada,
deve ser questionado, pois este supõe uma verdade absoluta, produto das mais diversas
relações sociais de poder que acabam reproduzindo ideologias que mascaram e
distorcem a realidade, motivo este que nos leva a discutir o que os contos de fada
tomam como o Bem e o Mal, o Certo e o Errado e que tipo de dominação está sendo
ocultada por trás desses valores.
Os contos de fada também expressam os obstáculos que precisam ser vencidos
para que o herói ou heroína chegue a sua auto-realização. Nos contos de fada o herói é o
personagem masculino conhecido como o príncipe e a heroína é a personagem feminina
protagonista do conto, também identificada como a princesa. Neste sentido, também
perpassa uma relação de poder em que o masculino está sempre determinado a superar
os obstáculos e auxiliar a heroína do conto nesse processo.
Assim, os contos de fada se associam a uma forma ideológica de ver o mundo,
simbolizam o caminho pessoal de desenvolvimento inscrito socialmente, por isso,
encantam as criança e os adultos desde sua criação. Segundo Abramovich (1997), os
contos de fada falam de amor, medos, descobertas, encontros, carências, perdas e buscas.
Entendemos que isso contribui com o fato de que os indivíduos facilmente se
identifiquem com os contos e encontrem neles diversos significados para sua a vida,
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pois todos esses elementos contribuem na constituição do conto e se reúnem para
construir uma intrigante narrativa que não serve apenas de divertimento, mas também
de transmissão de valores e costumes, pois os contos de fada, além de estimular a
imaginação, ajudam-nos a desenvolver o intelecto, a tornar claras as emoções, mesmo
que elas estejam banalizadas nas concepções de poder impostas pela sociedade
patriarcal.
Segundo Todorov apud Oliveira (2006), apesar do termo “conto de fadas”, essas
histórias podem contar ou não com a presença de fadas, no caso de não existirem, a
magia e o encantamento surge de outras fontes. Isto significa que a presença de uma
fada não é elemento indispensável na caracterização de um conto de fada, na verdade o
que distingue o conto de fada dos outros gêneros literários é a sua estrutura escrita, não
o aspecto sobrenatural, isto é, não é a magia de uma fada que caracteriza um conto com
a especificidade de conto de fada, mas a estrutura e o enredo da narrativa que trata de
um problema existencial e sua posterior resolução através da intervenção de um
elemento mágico que faz com que o herói ou heroína cheguem a sua auto-realização, a
qual para a heroína, é válido ressaltar, que está relacionada ao encontro do “par
perfeito”, um príncipe.
Sinteticamente, a estrutura dos contos de fada, segundo Oliveira (2007)
apresenta inicialmente as dificuldades sofridas pelos personagens principais. Em
seguida, os contos de fada passam por um processo de ruptura, na qual a heroína sai de
sua realidade e entra num mundo desconhecido, logo depois, aparece nos contos de fada
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a restauração dos problemas existenciais através da presença da fada ou de outro
elemento mágico, até os contos chegarem ao seu desfecho através da volta à realidade,
um casamento ou a transcendência.
A repetição da problemática e da estrutura narrativa é, portanto, um elemento
básico que caracteriza um conto de fadas. A magia, neste contexto, é só mais um
elemento que surge para desenrolar e dar ao conto de fadas o desfecho esperado. Vieira
(2005, pág. 9) assim conceitua a estrutura geral dos contos de fada:
O herói ou heroína vivem sempre dificuldades grandes e chegam a um momento de
impasse em que alguma coisa extraordinária precisa acontecer para que haja uma
solução satisfatória. Entram então em ação múltiplos poderes naturais e sobrenaturais
ou mágicos, tanto do lado do bem como do lado do mal: inimigos terríveis,
companheiros fiéis, personagens imbuídos de insegurança, de esperteza, de coragem,
figuras transcendentes como fadas, anjos, demônios e dragões. A luta é sempre
extremante difícil, mas, ao final, faz-se a justiça, encontra-se a paz, a harmonia, vence o
bom e o bem.
Além do núcleo narrativo dominante, outra característica importante a destacar
nos contos de fada é o aspecto fantasia, pois ele também representa um ponto
provocador da continua atualidade dos contos de fada. A presença do elemento mágico
na solução de problemas existenciais, muito atrai os seres humanos que por conta de
uma necessidade social, buscam superar os problemas e limitações de sua realidade que
foram impostos pelas relações de poder pertencentes a concepção ética e moral, as quais
são claramente desenvolvida nos contos de fada. Mesmo sabendo que a realidade
imposta socialmente está presente nos contos de fada, entendemos que existe uma
projeção dos desejos não realizados socialmente ao criar um mundo em fantasia,
fazendo com que haja uma disposição natural que o ser humano possui para aceitar o
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sobrenatural. Abromovich (1997, pág. 138), assim se refere a importância do elemento
fantasia:
Pois é só estarmos atentos ao nosso processo pessoal, às nossas relações com os outros
e com o mundo, à nossa memória e aos nossos projetos, para compreender que a
fantasia é uma das formas de ler, de perceber, de detalhar, de raciocinar, de sentir... o
quando a realidade é um impulsionador(e dos bons!!!) para desencadear nossas
fantasias...
A fantasia nos contos de fada possui a função de levar o leitor para um mundo
imaginário onde tudo é possível, inclusive animais e objetos que falam, feitiços,
encantamentos e metamorfoses, a fantasia é, portanto, um importante instrumento em
aguçar a imaginação e oferecer elementos que podem ajudar a estruturar melhor nossos
devaneios, o desenvolvimento das habilidades, o crescimento pessoal e principalmente a
identificação.
Assim, os contos de fada tornam-se um importante instrumento de estudo devido,
principalmente, a prioridade que concedem a presença da figura feminina, pois a mulher
é um elemento central nos contos de fada, todo enredo gira em torno dela. Geralmente é
a princesa da história aquela que exerce o papel de personagem principal. Em outro
plano, e com papel não menos importante, outras figuras femininas também são típicas
dos contos de fada, seja como a madrasta, a bruxa, a fada, a avó ou a irmã, outras
mulheres assumem diferentes funções sociais nesses contos. A presença feminina, além
de ser motivo desse estudo, é mais um, entre tantos aspectos apontados aqui, que
caracterizam os contos de fada. Abramowicz (2006), aponta que esses contos possuem
como temáticas principais histórias femininas de sofrimento e realizações, nos quais, as
mulheres possuem um espaço privilegiado e característico, espaços estes que precisam e
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serão, mais enfrente, questionados, pois acontece que difundidos pelo mundo inteiro, os
contos de fada tradicionais divulgam as mesmas ideologias no que se refere a figura
feminina, principalmente através do perfil das mulheres desses contos. Dessa forma,
para melhor percebermos que tipos de ideologias circundam pelos contos de fada, se faz
necessário que entendamos primeiro, o que é Ideologia e quais as suas formas de
manifestação.
1. 2 IDEOLOGIA
Conceituar o termo ideologia não é uma tarefa tão simples, a pluralidade de
significados e as contradições entre estes fazem do conceito de ideologia algo muito
complexo. No entanto, apesar dessa pluralidade de significados precisamos delimitá-lo
em busca de encontrar o conceito mais adequado a esta pesquisa, já que ela se refere aos
contos de fada e ao modo como as mensagens são transmitidas por estes. Nesse
caminho sabemos que o termo ideologia possui um sentido amplo e diversos outros
sentidos específicos.
Em seu sentido amplo podemos concebê-lo como o conjunto de idéias ou
concepções sobre algum assunto que mereça discussão, ou seja, um posicionamento
crítico sobre determinados fatos. É assim que em sua postura de caráter filosófico,
podemos falar na ideologia de uma escola, na ideologia religiosa, partidária, etc. Já em
relação aos sentidos específicos do termo ideologia, de acordo com Lowy (1988), estes
foram resultados da própria formação histórica dessa palavra por autores como Destutt
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de Tracy, Lenin, Gramsci, Manheim, entre outros. Isso significa que o termo ideologia
não é próprio de Marx, pois conforme este mesmo autor, ele foi literalmente inventado
pelo filósofo francês Destutt de Tracy como um subcapítulo da Zoologia e com um
significado que já estava relacionado à formação de idéias, mas aquelas idéias que se
alcançava através dos órgãos do sentido e da relação entre os seres vivos e o meio
ambiente.
De acordo com os estudos teóricos de Lowy (1988), a palavra ideologia ganhou,
posteriormente, um sentido pejorativo quando Napoleão chamou Destutt de Tracy e
seus seguidores de “ideólogos” no sentido de “deformadores da realidade”. Este autor
acredita que foi com este sentido que Marx encontrou o termo e o utilizou a partir de
1846 em seu livro chamado A Ideologia Alemã, no qual enriqueceu e ampliou o
conceito de ideologia que adquiriu um sentido negativo quando Marx a conceituou
como uma consciência deformada da realidade, um processo ilusório e invertido que
leva a uma falsa justificativa dos conflitos sociais.
Até mesmo após Marx o conceito de ideologia continuou sendo motivo de
debate, na obra de Lenin, por exemplo, o termo deixa de ter um sentido negativo e passa
a designar qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vínculo com uma
posição de classe, ou seja, existe uma ideologia burguesa e uma ideologia proletária,
cada qual defendendo os interesses de sua própria classe social e política.
Desse modo, Gramsci, assim como Lenin, também não vê a ideologia como
ilusória e negativa, mas sim como qualquer ideário de um grupo de indivíduos, o autor
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também cita Karl Manheim, em seu livro Ideologia e Utopia, no qual tenta definir o que
é ideologia, dizendo que se trata de um conjunto de idéias que orientam para
estabilização, legitimização ou reprodução da ordem estabelecida, sentido este que faz
com que o termo ideologia assuma um caráter conservador da divisão de classes.
Apesar dos diferentes sentidos que o termo ideologia adquiriu ao longo dos anos
e que causou um complexo de arbitrariedade em sua definição, existe uma idéia que
Lowy (1988) não deixa escapar desse processo de conceituação, a de que o
desenvolvimento de uma ideologia ou forma de pensamento não ocorre desvinculado do
desenvolvimento histórico e político das classes sociais. Isso significa que seja qual for
o conceito adotado, a formação ideológica dos indivíduos não é um processo isolado,
mas de construção de idéias produzidas junto com a formação da estrutura social.
No entanto, o conceito de ideologia que melhor justifica este trabalho está
relacionado com aquele adotado pela teoria marxista que, em síntese, corresponde a
uma falsa consciência da realidade estabelecida sobre diversas relações de poder.
Adotamos esse conceito porque buscamos nesta pesquisa identificar e interpretar os
discursos presentes no perfil dos personagens dos contos de fada, isto é, se quer
“desvendar” que tipo de ideologia está se propagando através destes contos. A imagem
de desenhos inocentes, repassada pelos contos de fada, referenda uma forma de
dominação que no caso dos contos não se trata essencialmente de uma dominação de
gênero, mas também de uma dominação racial e social.
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Para contribuir com esta compreensão, buscamos Aranha (1993) que diz que a
ideologia marxista é uma forma de conhecimento ilusório que surgiu diante da tentativa
humana de explicar a realidade, mas mascarando os conflitos sociais. A autora também
ratifica que a ideologia recebe influência de vários tipos de relações de poder e serve
para manter a ordem social estabelecida atingindo diretamente a mentalidade e a
consciência dos indivíduos, dominando sua forma de agir e pensar.
No mesmo perfil de conceituação Marxista, é que Chauí (2002, pág.113)
apresenta sua definição de ideologia, a qual considera que:
A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e
valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da
sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar, o que
devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo
explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo,
normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em
classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem
jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir da divisão na
esfera da produção.
Percebemos, portanto, a função da ideologia de adaptar os indivíduos as normas
estabelecidas pela sociedade, camuflando as diferenças de classe, o preconceito, as
injustiças, através da propagação de idéias e regras que nos “ensinam” a pensar e agir,
“com isso é assegurada a coesão dos homens e a aceitação sem crítica das tarefas mais
penosas e pouco recompensadoras, em nome da ‘vontade de Deus’ ou do ‘dever moral’
ou simplesmente como decorrente da ‘ordem natural das coisas’.” (ARANHA, 1993,
pág. 37).
A ideologia apresenta algumas características de essencial importância para
serem destacadas neste trabalho, as quais correspondem, na verdade, a algumas formas
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de manifestação. São elas a naturalização, a universalização e a inversão, as quais serão
abordadas segundo os estudos teóricos de Aranha (1993).
Naturalização é, de acordo com esta autora, a característica que fundamenta a
ideologia, já que justifica como naturais ou adequadas, as situações que são produzidas
pela ação humana. Podemos perceber, nesse sentido, que é por isso que a divisão de
classes, por exemplo, é vista como um processo natural, pois os indivíduos que estão na
condição de dominantes, assim como aqueles que estão na condição de dominados,
exercem seus papéis sociais de forma passiva e espontânea.
A universalização para Aranha (1993), é responsável pela representação de uma
sociedade una, na qual todos têm os mesmos direitos e deveres e que na verdade
corresponde a uma abstração da realidade, pois quando analisada percebemos a vigência
de oportunidades e interesses divergentes. Assim a afirmação de que a educação é um
direito de todos reproduz uma universalização ilusória, visto que a educação beneficia
uma classe privilegiada, em detrimento de uma classe desfavorecida que enfrenta
maiores dificuldades, tais como aquelas relacionadas ao acesso e permanência na escola.
Já a inversão é a característica da ideologia, na qual o efeito de uma determinada
situação social é considerado como causa, a autora melhor esclarece essa característica,
apontando como exemplo, a função social da mulher, que considerada ideologicamente
como um ser frágil, sensível e paciente fora destinada, “por natureza”, para a vida
doméstica e familiar. Na verdade o que ocorreu historicamente foi investido, a mulher
foi destinada à vida doméstica porque na divisão do trabalho seu lugar foi definido
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levando-se em conta o papel masculino, como este era o papel de domínio, a mulher
recebeu uma função complementar, além disso, devido a importância que se dava ao
nascimento de homens sadios e fortes para a guerra, a mulher também tinha uma função
reprodutora de onde vem sua designação para a maternidade. Neste caso, percebemos o
caráter de inversão da ideologia que propaga um suposto perfil feminino para justificar
a causa da função social da mulher está historicamente relacionado a vida doméstica,
ocultando assim uma forma de dominação masculina.
Vale ressaltar que a inversão nada mais é do que uma conseqüência da
universalização, pois é esta quem primeiro defini um perfil feminino universal para que
a inversão possa tomá-lo como motivo para justificar determinada situação social.
Definir esta terceira característica é de fundamental importância para o contexto deste
trabalho, pois é ela que legitima o conflito de relações de gênero que se pretende
abordar nos contos de fada, nos quais se percebe uma reprodução da realidade social
refletida por essa ideologia invertida.
Dessa forma, a naturalização, a universalização e a inversão vão construindo a
ideologia que Marx chamou de ilusória, ou seja, uma aparência que oculta a realidade
social como ela realmente é e foi construída. A função da ideologia, no entanto, não é
somente ocultar a realidade, mas também impedir-nos de refletir sobre ela e
consequentemente evitar transformá-la. Para Chauí (2002) isso implica no fato de
adotarmos crenças, opiniões ou idéias sem saber de onde vieram, isto porque a
sociedade as reproduzem e nos incurte através das instituições sociais, como a família, a
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escola, os meios de comunicação, as relações de trabalho e a política, as quais acabam
transformando-as em verdades.
A formulação teórica da ideologia, como a abordamos aqui, surgiu da decisão de
Marx de compreender a realidade através da prática social e política da classe operária,
percebemos até aqui o poder exercido por ela na mentalidade das pessoas e chegamos
ao momento de enfatizar que o pensamento humano nunca está totalmente determinado
por sua força. Segundo Aranha (1993) sempre haverá espaço de crítica que possibilite a
elaboração do que chamamos de discurso contra-ideológico, isto é, um discurso teórico
de desvendamento do real, um espaço de crítica e debate que esclareça as contradições
internas do discurso ideológico e sua representação dominante que acredita numa
hegemonia de classe, de raça, de valores, de trabalho e em especial de gênero, os quais
são construídos pela própria classe dominante e estendidos como normas universais as
classes dominadas.
Assim, este trabalho representa um tipo de espaço de revelação dos processos
reais e históricos dos quais se origina um tipo de dominação, que neste caso trata-se de
uma dominação de gênero, refletido através dos personagens dos contos de fada. Como
será abordado um discurso contra-ideológico precisávamos entender inicialmente o que
é e quais as características da ideologia, a fim de entender que tipo de força doutrinária
se está desvendando, por que acontece e o quanto é difícil identificá-la mascarada por
práticas consideradas naturais para constituir o gênero feminino e o gênero masculino.
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Partindo desta análise se faz necessário que nos detenhamos mais nos contos de
fada a fim de entender qual a influência destes na construção ideológica dos indivíduos.
Como queremos, neste trabalho, enfatizar questões que circundam as relações entre
mulheres e homens nos contos de fada, será de fundamental importância que nos
restrinjamos somente a construção ideológica do gênero, pois a ideologia é um processo
complexo que envolve vários marcadores sociais, entre eles o gênero, que neste caso,
torna-se mais um constituinte da formação ideológica dos indivíduos. Portanto, se
abordarmos a influência dos contos de fada na construção do gênero, devemos entender
inicialmente o que seria essas relações de gênero, ou melhor, o que é o gênero e em que
contexto histórico-social ele está envolvido.
1. 3 RELAÇÕES DE GÊNERO
Abordar o conceito de gênero é de essencial importância para o desempenho
deste trabalho, uma vez que a compreensão sobre ele remete-nos ao entendimento mais
rápido do que se quer abordar nos contos de fada quando falamos em papéis femininos e
masculinos. O Gênero ajudará a compreender quais as características sociais, políticas e
ideológicas que circundam historicamente a mulher, e assim perceber que toda essa
análise ainda é fundamental para apontar e justificar o perfil social da mulher do mundo
contemporâneo, perfil esse que precisa ser examinado e que está refletido nas diversas
instâncias culturais da sociedade, inclusive nos contos de fada.
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Poderíamos inicialmente partir de um conceito mais geral e conceituar gênero
como “a forma como se manifesta, social e culturalmente, a identidade sexual dos
indivíduos” (AURÉLIO, 2001, pág. 345). No entanto, deter-se a essa definição seria
uma forma vaga e fugaz onde se perderia a oportunidade de resgatar a história desta
palavra e enfatizar que o conceito de gênero está intimamente ligado, lingüística,
histórica e socialmente as lutas dos movimentos feministas contemporâneos.
Para Louro (1997) o gênero é a forma como homens e mulheres se manifestam
histórica e socialmente como masculinos e femininos. Esta mesma autora é quem nos
ajudará a recuperar um pouco do processo ao qual os movimentos feministas estão
inseridos. De acordo com Louro (1997) a segregação social e política que as mulheres
foram historicamente conduzidas teve como conseqüência uma ampla ideologia na qual
a mulher não era vista como sujeito, por isso foi por tanto tempo ocultada e reduzida ao
mundo doméstico como o seu verdadeiro universo.
Essa segregação se dava por conta de uma suposta relação de poder, baseada na
concepção biologicista, na qual os homens exerciam um papel superior ao das mulheres,
visto que era a anatomia destes sujeitos que definiam seus papéis sociais. Desta forma,
segundo esta concepção, o corpo feminino determina a situação da mulher à vida
familiar e doméstica e o corpo masculino determina a situação do homem ao trabalho
externo e vida pública. Percebemos, portanto, que a concepção biologicista é a visão de
gênero que prevalece nos contos de fada, pois identificamos nestes contos um perfil
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feminino frágil e por isso ligado a meiguice e a ingenuidade e um perfil masculino
robusto ligado a coragem e a força.
Segundo Louro (1997), a própria instituição familiar quando “organiza” as
relações sexuais entre mulheres e homens, utiliza-se de um tipo de controle social no
qual é propagado que a identidade principal da mulher é o de ser mãe e que sua
sexualidade deve ser socialmente aceita na reprodução de filhos legítimos . De outro
modo sabemos que essa forma de ver a distinção de gênero nem sempre se aplica
completamente, a mulher da antiguidade, por exemplo, possuía um perfil feminino
robusto, que em nada corresponde com o perfil fragilizado corporalmente da concepção
biológica do gênero e, ainda assim, estava ligada a vida doméstica. Por outro lado,
podemos citar as Mulheres Amazonas, figuras femininas fortes e valentes que estavam
totalmente ligadas à guerra, função definida por outras civilizações, apenas para o
gênero masculino.
Acontece que a concepção biológica foi a que operou de forma hegemônica por
muito tempo e de acordo com Louro (1997), além de justificar os papéis masculinos e
femininos pela força física, na qual o homem era considerado é um ser forte e a mulher
um ser frágil, apontava ainda para os direitos legais que o marido tinha sobre sua esposa,
por conta de uma tradição histórica, na qual o papel feminino foi construído com base
no papel masculino, de onde a mulher adquiriu uma função secundária que não lhe dava
autonomia, nem direito ao voto, ao estudo, ao trabalho externo. Eram os valores
masculinos que prevaleciam e como não podiam ser ameaçados, a mulher foi silenciada,
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tornou-se dependente da figura masculina, o pai, depois o marido e em seguida os filhos
e recebia uma educação inclinada para o matrimônio e cuidado dos filhos e do lar.
As diferenças estabelecidas socialmente entre mulheres e homens mascaravam
uma relação cada vez mais excludente, Louro (1997), nos diz que isso ocorria através de
uma ideologia de naturalização que estabelecia que o perfil feminino apresentava
características como corpo, emoção, passividade e sensibilidade e o perfil masculino
apresentava características opostas destas como a mente, razão, atividade e objetividade.
De acordo com esta autora, várias ações individuais ou coletivas marcaram a história
das lutas contra esse tipo de opressão das mulheres e aconteceram de forma organizada
no Ocidente a partir do século XIX. Foi através de manifestações feministas baseadas
em grupo de conscientização, marchas e protestos que as mulheres começaram a
contestar e exigir a igualdade de direitos com relação aos homens. O chamado
“sufragismo” foi considerado a primeira onda do feminismo e nele buscava-se estender
o direito de voto as mulheres.
Além das preocupações sociais e políticas, os movimentos feministas entram
nas construções teóricas e a problematização sobre o papel da mulher foi disseminado
em livros, jornais e revistas. Louro (1997) nos diz que as ciências humanas, tais como a
Antropologia, a Sociologia, a Educação, entre outras, começaram a discutir sobre as
desigualdades denunciando a opressão e criticando as características estereotipadas
como femininas, além disso, esta mesma autora afirma que mulheres engajadas
politicamente com os movimentos feministas fundaram revistas, promoveram eventos,
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construíram estatísticas, apontaram lacunas na construção ideológica do papel da
mulher e assumiam uma responsabilidade histórica de construir o lugar social da mulher
com pretensões de mudança.
A justificativa biológica para as desigualdades entre mulheres e homens foi
intensamente questionada, Louro (1997, pág. 21) nos diz o que se pretendia com isso:
Demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como
essas características são apresentadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa
sobre elas que vai construir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada
sociedade em um dado momento histórico.
O movimento feminista foi se constituindo, portanto, com anseios de mudança,
entre os quais se discutia uma suposta igualdade entre os gêneros, principalmente no
que concerne ao mercado de trabalho. Acontece que nessa busca por transformações o
movimento feminista deixou muitas lacunas, entre elas a constituição de uma pseudo-
igualdade, pois as feministas apesar de “conquistarem” um espaço no mercado de
trabalho, acabaram, com isso, provocando apenas mudanças setoriais, já que
acumularam mais tarefas, haja vista que lutaram por uma igualdade fora do lar, mas não
lutaram por esta mesma igualdade dentro do espaço doméstico.
O conceito de gênero, no entanto, acabou sendo construído tendo em vista as
concepções feministas e neste sentido não estava se estabelecendo como uma forma de
negar a biologia, mas de mostrar que a construção social e histórica das relações de
gênero é produzida sobre as características biológicas. Isto significa que o gênero
também pode esclarecer que as desigualdades estabelecidas entre as mulheres e os
homens não precisam ser buscadas nas diferencias biológicas, mas na história da
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sociedade, nas formas de representações, nas condições de acesso e oportunidades, nos
interesses de cada grupo social.
O conceito de gênero exige que se pense as relações entre as mulheres e homens
de forma plural, evitando características generalizadas porque segundo Louro (1997)
não só homens se diferenciam de mulheres, como também homens se diferenciam de
outros homens e mulheres se diferenciam de outras mulheres, o que não condiz com a
noção histórica de estabelecer um único perfil masculino e um único perfil feminino. A
construção de características gerais e papéis masculinos e femininos fortalecem uma
suposta oposição entre os gêneros que se relacionam em uma lógica que Louro (1997)
chama de dominação-submissão, a qual deve ser criticada, uma vez que o masculino e o
feminino não podem ser vistos como pólos dicotômicos, mas como pólos que compõe e
contém um ao outro. Percebemos que é dessa dicotomia que surge entre os gêneros
binarismos como o público-privado, razão-sentimento, forte-frágil e outros nos quais
percebemos a prioridade do primeiro elemento em relação ao segundo.
Contudo, os movimentos feministas atingiam seu objetivo de denunciar as
formas de silenciamento e opressão das mulheres, mas nessa luta percebemos que a
principal dificuldade foi a de trazer para nossas práticas sociais o resultado do que se
queria conquistar. A grande limitação estava na derrubada da concepção de dicotomia
que não era só histórica, mas também ideológica e que girava em torno da suposta
superioridade masculina. Nesse contexto, os estudos de Foucault apud Louro (1997),
trouxeram uma grande contribuição para a discussão das relações de poder dos estudos
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feministas. Em seus estudos Foucault apud Louro (1997), situa o poder como uma
estratégia de funcionamento da sociedade que ela própria adota, mas não como um
privilégio que alguém possui e do qual pode se apropriar. O poder é base para garantir
diferenças e desigualdades entre os gêneros e muitas “teorias foram construídas e
utilizadas para ‘provar’ distinções físicas, psíquicas, comportamentais; para indicar
diferentes habilidades sociais, talentos ou aptidões; para justificar os lugares sociais, as
possibilidades e os destinos ‘próprios’ de cada gênero.” (LOURO, 1997, pág. 45).
Assim a emergência do gênero foi complementar as lutas feministas para
estabelecer uma nova relação entre mulheres e homens, relação esta mais integrante e
menos polarizada. A oposição estabelecida entre mulheres e homens foi construída
historicamente, não é um processo inerente ao ser humano, apontada por LOURO (1997,
pág. 33) quando considera que:
Os sujeitos que constituem a dicotomia não são, de fato, apenas homens e mulheres,
[mas] homens e mulheres de varias classes, raças, religiões, idades, etc. e suas
solidariedades e antagonismos podem provocar os arranjos mais diversos, perturbando a
noção simplista e reduzida de “homem dominante versus mulher dominada”.
Percebemos, portanto, que as relações entre os gêneros continuamente foram se
transformando, hoje já não se poderia mais falar em regras de comportamento e perfis
sociais adequados ao homem e a mulher. Além disso, Duarte (2004) salienta que hoje as
mulheres correspondem a maioria da população; no mercado de trabalho dividem
espaço com os homens e assumem cargos antes restritos somente a eles; na vida
acadêmica lhes superam em número de matrícula nas universidades; na estrutura
familiar já não estão mais restritas aos cuidado da casa e dos filhos, inclusive
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conquistaram a livre escolha de ter ou não filhos; além disso, seu comportamento
sexual está mais liberal. Acontece que, se por um lado, a quebra do isolamento do lar e a
participação da mulher no espaço público lhe trouxeram uma gama de conquistas, por
outro lado, no ambiente de algumas práticas sociais, a mulher ainda continua a ser
desvalorizada, submissa e dita como inferior ao homem. O preconceito de inferioridade
feminina ainda é reproduzido através da religião, das leis, dos meios de comunicação e
da família, na qual, no seu dia-a-dia, a própria mulher reproduz a pseudo-superioridade
masculina através da educação de seus filhos quando separa tarefas, umas para os
meninos e outras para as meninas. Não que a mulher seja responsável por isso, mas é
que o aspecto ideológico é tão profundo que ela mesma acaba sendo sujeito dessa
reprodução.
As instituições que, ainda hoje, reproduzem preconceitos de gênero, utilizam-se
da ideologia de que há uma suposta igualdade entre homens e mulheres, porém, por trás
dessa ideologia percebemos diversos discursos e práticas que de forma implícita ou
explícita revelam alguns aspectos discriminatórios que ficaram como resultado das
conquistas femininas. Entre eles podemos citar o que concerne ao mercado de trabalho,
espaço que a mulher adentrou, mas com um salário inferior ao do homem, além disso, a
própria entrada da mulher no mercado de trabalho não foi uma conquista tão intrigante,
pois existia por trás de tudo isso um interesse capitalista pela mão de obra também
feminina.
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Quando analisamos esse panorama, da presença da mulher na relação de
trabalho, com mais profundidade, percebemos que os espaços ocupados pela mulher
representam extensões do setor doméstico, isto é, a mulher ainda é aquela que cuida e
educa só que agora também em um mundo exterior ao doméstico, pois, no geral, a
mulher está no setor de educação, saúde, assistência social, escritório, costura. A
maioria delas segue uma jornada de trabalho externo e quando chega em casa ainda tem
que organizar ou controlar o trabalho doméstico ou ela contrata outra pessoa para fazer
este serviço, que aliás, é comumente outra mulher.
O GTPOS (2000) pode acrescentar a esta análise o que acontece no campo
acadêmico, no qual a realidade nos mostra uma divisão sexista dos candidatos a cerca
da escolha dos cursos, onde os homens, na sua maioria, optam por carreiras que lidam
com máquinas e números, enquanto as mulheres, seguindo a ordem inversa, ficam com
as carreiras na área da educação e saúde. Pode-se citar também o fato de que ainda se
encontram mulheres adotando o sobrenome dos maridos e a crescente e excessiva
obsessão de algumas mulheres pela aparência física, por se manter jovem e magra, e
pela adequação as estações da moda, artifícios que atualmente lhe servem para
concorrer com outra mulher, mas que consciente ou inconsciente “não deixam de ser
outra forma de aprisionamento, como esforço (ainda negado) para atrair o olhar
masculino.” (Duarte, 2004, pág.21).
Assim, apesar das mudanças, o que se desvendou aqui foram algumas lacunas
deixadas pelos movimentos feministas que resultaram em práticas onde as relações de
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gênero ainda acontecem de forma sexista, por conta das instituições sociais que ainda
divulgam ideologias que diferenciam mulheres e homens. Entre essas instâncias é que
situamos os contos de fada, instrumentos utilizados pela sociedade com a finalidade de
“instruir” as crianças estabelecendo as mais possíveis relações de poder. Essa reflexão,
portanto, irá contribuir de forma significativa para que se possamos alcançar o objetivo
de identificar representações explícitas e implícitas de discriminação à mulher
veiculadas através dos contos de fada, uma vez que “o uso do conceito de gênero nos
auxilia a refletir tanto sobre a discriminação da mulher como sobre o preconceito diante
da homossexualidade, passando pelas relações de poder e pela desvalorização do
trabalho”. (GTPOS, 2000, pág. 61).
Dessa forma, a análise que podemos fazer sobre os contos de fada será aqui
apresentada através da investigação dos contos “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A
Bela e a Fera”. Escolhemos esses contos porque são os mais reconhecidos clássicos da
literatura infantil e melhor apresentam os aspectos que queremos enfatizar quando
falamos em relações de dominação de gênero e ideologia, por isso partiremos da
fundamentação teórica para suscitar as características particulares de cada um dos
contos de fada em questão e assim observá-los seguindo suas particularidades.
II - O UNIVERSO FEMININO REITERPRETADO NOS CONTOS
“CINDERELA”, “BRANCA DE NEVE” E “A BELA E A FERA” E SUA
RELAÇÃO IDEOLÓGICA.
2. 1 CINDERELA
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O conto Cinderela, também conhecido como “A Gata Borralheira”, apresenta
inicialmente as dificuldades sofridas pela personagem Cinderela. A trama do enredo
surge porque a mãe de Cinderela faleceu e seu pai se casou com uma viúva que já tinha
duas filhas. Percebemos com isso, portanto, que fazem parte do conto quatro figuras
femininas, sendo que Cinderela é a princesa, isto é, a heroína e a madrasta e suas filhas
são consideradas vilãs.
Cabe iniciarmos essa análise partindo da representação gráfica das personagens
femininas, pois percebemos que esta por si só, marca desigualdades entre as
personagens e define padrões femininos. A protagonista, além de ser adolescente, é
representada por uma figura esbelta, meiga, branca, bonita e com formas suaves. As
vilãs são consideradas mulheres “feias”, suas feições são marcadas por traços mais
fortes e pontiagudos. Podemos perceber essa diferença de perfil gráfico feminino nas
figuras 1 e 2 a seguir:
Figura 1 – Conto “Cinderela”, Coleção Clássicos Encantados.
(A madrasta, à esquerda; suas filhas, no centro; Cinderela, à direita no canto inferior).
Figura 2 – Conto “A Gata Borralheira”, Coleção Cochrane.
(Cinderela, à esquerda e a madrasta e suas filhas, à direita).
Esses tipos de representações ideais de corpo e de aparência fazem da beleza
física um fator fundamental para a mulher nos contos de fada mostra-se adequada,
através de uma ideologia de naturalização, a um padrão que é imposto pela sociedade,
no qual a mulher deve esta constantemente em busca desse “ideal” atendendo, dessa
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forma, também um mercado consumidor, pois percebemos que o perfil valorizado nos
contos de fada tradicionais é o da heroína e por isso não encontramos nesses contos
princesas de pouca beleza ou com peso acima do considerado “normal”.
A representação gráfica serve, também, para diferenciar o que este conto de fada
identifica como personagens “bons” e personagens “maus” fazendo uma relação entre
belo e bondade e feio e maldade, por isso as princesas são sempre figuras femininas
amáveis, enquanto que as vilãs, mulheres de pouca beleza e forma, são orgulhosas e
invejosas. Vejamos essa identificação no seguinte trecho:
As meninas nunca se deram bem porque as filhas da viúva eram egoístas, antipáticas
e feiosas. Cinderela, no entanto, era uma menina muito meiga, boa e bonitinha. (A
Gata Borralheira – Coleção Cochrane1, ver anexo 1.3, pág. 00).
Percebemos, com isso, que a beleza é a principal responsável para que no início
da narrativa Cinderela esteja passando por diversas dificuldades, pois é a sua beleza que
provoca sentimentos de inveja em uma outra mulher, no caso, na madrasta e em suas
filhas, e por isso a obrigam a fazer as tarefas domésticas do castelo e usar roupas velhas
e rasgadas. Percebemos esse aspecto na seguinte passagem:
Tanto a mãe como as filhas sentiram muita inveja da Cinderela e, por isso,
maltrataram-na desde o primeiro dia. A menina era obrigada a fazer todo o trabalho
do castelo: tinha que limpar o chão, cozinhar, cortar lenha, carregar água e dormir
num canto da cozinha, sobre um pobre colchão de palha... (A Gata Borralheira –
Coleção Cochrane, ver anexo 1.3, pág. 00).
Identificamos que esta problemática enfrentada por Cinderela está estreitamente
ligada a um tipo de dominação, que no caso trata-se de uma dominação doméstica.
1 A identificação dos contos analisados será feita pelo nome da coleção, uma vez que não encontramos na
maioria das versões dos contos que estamos analisando, referências às traduções, ano de publicação ou
número de páginas.
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Vemos a mulher destinada a um tipo de segregação e opressão que não vem de um
gênero diferente, isto é, não vem do masculino sobre o feminino, mas do próprio
feminino sobre o feminino. Apesar de o termo opressão adquirir um outro sentido, esta
idéia nos fez lembrar sobre a atual inserção da mulher no mercado de trabalho que
consequentemente, em alguns casos, teve que destinar os serviços domésticos de sua
casa para outra pessoa, que geralmente é outra mulher.
Porém, o que queremos enfatizar realmente é a forma como a mulher nos contos
de fada recebe esse tipo de dominação, pois a representação gráfica do conto
“Cinderela” denota para um trabalho penoso, conforme podemos observar nas figuras 3
e 4:
Figura 3 – Conto “A Gata Borralheira”, Coleção Cochrane.
(Representação do trabalho doméstico realizado por Cinderela)
Figura 4 – Conto “Cinderela”, Coleção Clássicos Encantos.
(Representação do trabalho doméstico realizado por Cinderela)
No entanto, percebemos que neste aspecto, os contos de fada reproduzem o
caráter da ideologia de naturalização, pois apesar da opressão recebida, a mulher realiza
o trabalho doméstico como algo natural, isto é, que lhe é próprio. Percebemos essa
característica no seguinte trecho:
Cinderela aceitava tudo isso com muita paciência e bondade... (A Gata Borralheira -
Coleção Cochrane, ver anexo 1.3, pág. 00).
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Neste outro trecho percebemos também a idéia de conformidade, pois Cinderela
não se entristece por conta do trabalho, mas por conta da falta de relação afetiva, o que
implica dizer que se alguém lhe amasse ela faria o trabalho tranquilamente:
Cinderela fazia todo o serviço de casa. Chorava muito porque sentia-se só, sem
ninguém que a amasse.(Cinderela - Coleção O Mundo Encantado das Princesas, ver
anexo 1.2, pág. 00)
Dessa forma, a beleza física nos contos de fada é um aspecto caracterizador da
personagem feminina, mais especificamente da princesa, percebemos que esta
característica não é responsável somente pelo estabelecimento de determinada relação
de dominação, mas por outro lado, a beleza também é responsável pelo relacionamento
amoroso dos contos de fada. Antes de abordarmos o momento em que o conto de fada
em questão chega a esse primeiro flerte, do qual o príncipe se apaixonará por Cinderela,
ressaltaremos uma interessante relação definida entre homens e mulheres, pois é
possível identificar uma suposta superioridade masculina no fato de que o príncipe é
representado como aquele capaz de atrair várias mulheres, para gozar da autonomia de
escolher entre estas aquela que quer casar-se. A mulher por outro lado, é uma figura
romântica e sonhadora e por isso, em posição de submissão vai ao encontro deste
príncipe em busca de um bom casamento. Vejamos:
Um dia, o rei resolveu dar um baile no palácio e convidou todas as jovens do reino,
pois o príncipe, nesta ocasião, escolheria uma esposa. As filhas da madrasta passaram
o dia provando vestidos para o baile. Cinderela também queria ir ao baile, porém sua
madrasta proibiu. (Cinderela – Coleção O Mundo Encantado das Princesas, ver anexo
1.2, pág. 00).
Certo dia chegou ao castelo uma notícia muito importante, o filho do rei convidaria
todas as jovens solteiras do reino para um grande baile no palácio. Escolheria, entre
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elas, uma jovem bondosa e bonita, com a qual se casaria. Quando as irmãs da
Cinderela receberam o convite, gritaram de alegria:
- Iremos ao palácio do rei – cantavam... (A Gata Borralheira – Coleção Cochrane, ver
anexo 1.3, pág. 00).
Percebemos que essa passagem do conto é resultado de uma ideologia de
universalização, isto é, amplamente aceita, na qual a figura masculina possui autonomia
para tomar atitudes que atraiam a figura feminina para um relacionamento, no entanto, o
contrário não é ideologicamente aceito sem que a mulher não seja criticada por isso.
Seguindo, então, o enredo do conto, sabemos que Cinderela acaba indo ao baile
graças às metamorfoses provocadas por sua fada madrinha que lhe consegue uma
carruagem, um cocheiro, um vestido novo e um sapatinho de cristal, com a condição de
que volte a meia-noite, uma vez que o encanto terminará neste momento. Não devemos,
no entanto, deixar de atentar que a atração do príncipe por Cinderela também foi
resultado da junção desses elementos, pois além da beleza que possuía, Cinderela estava
sobre o efeito de um encantamento, o qual lhe apresentava com um certo status social.
O encantamento, mas principalmente a beleza da princesa surge, portanto, para
justificar o relacionamento amoroso dos contos de fada, pois é por eles que o príncipe
sente-se atraído à primeira vista pela heroína. Percebemos este aspecto nas seguintes
passagens:
No palácio os convidados não tiravam os olhos de Cinderela e, ao vê-la, o belo
príncipe foi imediatamente convidá-la para dançar. (Cinderela – Coleção Clássicos
Encantados, ver anexo 1.1, pág. 00).
Cinderela entrou no palácio e todos ficaram encantados com sua beleza. O príncipe só
dançou com ela. (Cinderela – Coleção O Mundo Encantado das Princesas, ver anexo 1.2,
pág. 00).
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Portanto, a beleza é vista no conto de Cinderela sobre duas óticas que resultam
em diferentes conseqüências, de um lado relações de dominação, de outro um futuro
casamento.
Voltando ao enredo do conto percebemos que na hora estabelecida Cinderela é
obrigada a sair do baile às pressas e, por isso, acaba perdendo seu sapatinho de cristal. É
possível identificarmos neste momento toda simbologia que circunda o sapatinho, pois
na análise que fazemos desse objeto entendemos que ele funciona como uma espécie de
“isca” da qual o príncipe se utilizará para chegar à mulher que escolheu como esposa.
Grosso modo, o homem assume o papel de “caçador” e a mulher o papel de “caça”,
conforme podemos perceber nas próprias passagens do conto:
No dia seguinte (o príncipe) enviou seu mensageiro com o sapatinho à procura da
donzela pela qual se apaixonou. (Cinderela – Coleção Clássicos Encantados, ver anexo
1.1, pág. 00).
O príncipe, que tinha se apaixonado por Cinderela, para achá-la, mandou que
provassem o sapatinho em todas as jovens do reino. (Cinderela – Coleção O Mundo
Encantado das Princesas, ver anexo 1.2, pág. 00).
O príncipe acaba chegando até Cinderela através do sapatinho de cristal que foi
testado nos pés de todas as moças do reino, “mas nenhuma das moças tinha os pés tão
pequeninos” (Cinderela – Coleção Clássicos Encantados, ver anexo 1.1, pág. 00) como
os pés de Cinderela. Percebemos, com isso, que a própria simbologia existente em “pés
pequenos” evoca para um ideal de mulher, reproduzido pela ideologia de
universalização, na qual pés pequenos são sinônimos de delicadeza e feminilidade.
Vejamos a figura 5 que mostra o sapatinho de cristal e observemos o tamanho do pé
direito da personagem apresentada como aquela que foge do padrão estabelecido:
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Figura 5 – Conto “A Gata Borralheira”, Coleção Cochrane.
(As irmãs de Cinderela testando o pequeno sapatinho de cristal)
Apesar do encantamento e fantasia presentes no conto Cinderela, existe um fato
curioso em torno do sapatinho de cristal que devemos destacar. Segundo o conto, a
magia realizada pela fada madrinha de Cinderela terminou a meia-noite quando a
carruagem voltou a ser uma abóbora, o cocheiro voltou a ser um gato, os cavalos
voltaram a ser ratos e o vestido de Cinderela voltou a ser o antigo vestido velho. No
entanto, apesar de terminado o encantamento, percebemos que o sapatinho de cristal não
voltou ao que era antes, um velho e simples sapato. Este permaneceu com seu encanto
desde que o príncipe o encontrou nas escadarias do palácio.
A análise que podemos fazer sobre esse fato não se justifica somente porque os
contos de fada são contos de caráter maravilhoso, mas também porque percebemos que
através do sapatinho a figura masculina surge no final do conto com o objetivo de ser a
“salvação” feminina. Isto significa que a mulher, nos contos de fada, passa por diversos
obstáculos, os quais só terminam quando esta encontra o seu “par perfeito”, pois a
mulher na relação de dominada encontra no homem que está na posição de dominador a
realização de seus sonhos. Observamos através da figura 6 que o destino final da
personagem feminina no conto de fada é o casamento:
Figura 6 – Conto “Cinderela”, Coleção Clássicos Encantados.
(Representação gráfica do final dado ao conto, no qual a mulher é conduzida ao
casamento, no qual “viverá feliz para sempre”).
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Implicitamente percebemos que Cinderela é tirada da vida de segregação e
opressão que levava, no entanto, é conduzida ao casamento, pelo qual poderá voltar
novamente à vida doméstica, visto que nos contos de fada as mulheres não possuem
nenhum tipo de realização profissional ou vida exterior a doméstica, conforme os
valores da época em que os contos de fada acontecem, no entanto, desta vez, ela sairá
das responsabilidades do pai para as do marido e viverá, através do matrimônio, “feliz
para sempre”.
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III - ENTRECRUZAMENTO DOS CONTOS DE FADA
Falar sobre os contos de fada, em questão, analisando as particularidades de cada
um, foi importante para melhor identificarmos as relações de dominação de gênero
presentes nesses contos. De forma minuciosa, ressaltamos diversas concepções que
circundam o feminino e o masculino nos contos “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A
Bela e a Fera” e agora se faz necessário que façamos um entrecruzamento destes contos,
analisando os elementos da narrativa, para que possamos inferir características gerais
que definam qualquer conto de fada tradicional conhecido pela história literária.
Percebemos através dos contos de fada que analisamos a existência de várias
características comuns aos contos. Entre essas características, encontramos o tempo e o
espaço, uma vez que correspondem a elementos da narrativa de caráter indefinido, isto é,
os contos de fada podem ter acontecido em qualquer tempo e em qualquer lugar, tal
como podemos perceber nas seguintes passagens:
Há muitos anos vivia, em um longínquo castelo... (A Gata Borralheira –
Coleção Cochrane, ver anexo 1.3, pág. 00).
Era uma vez uma rainha que sonhava com uma filhinha de pele branca como a neve...
(Branca de Neve – Coleção Clássicos Encantados, ver anexo 2.1, pág. 00).
Era uma vez um jovem que vivia em um lindo castelo... (A Bela e a Fera –
Coleção Clássicos Encantados, ver anexo 3.1, pág. 00).
No entanto, apesar do tempo incerto e psicológico do “era uma vez” ou “há
muitos anos”, percebemos na análise que fizemos dos contos, não só através das
transcrições, mas também das gravuras que, de certa forma, os contos de fada remetem-
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se a Idade Média quando identificamos, não o lugar, visto que acontece, por exemplo,
em um “longínquo castelo”, mas as características desse lugar, o qual é formado, além
de castelos, também por aldeias, bosques, florestas. Podemos citar mais um motivo para
a associação dos contos de fada à Idade Média, trata-se de algumas características gerais
que observamos, tais como o tipo de roupa usado pelos personagens, os bailes, o uso
das carruagens e cavalos, a presença da figura do rei e do camponês. Apesar desta
ligação, o caráter de atemporalidade e a falta de identificação espacial são responsáveis
por uma forte característica dos contos de fada, a sua atualidade. Isso acontece porque o
leitor ou ouvinte, principalmente infantil, facilmente pode se identificar com estes
contos trazendo-os para o seu tempo e para o seu espaço. Vale ressaltar que este fato
referenda um tipo de dominação bastante estratégica: a identificação. Recurso que os
contos de fada utilizam-se para fazer com que o seu leitor ou ouvinte identifique-se
facilmente com eles.
Outro elemento da narrativa a considerar nos contos de fada refere-se aos
personagens, pois a maioria destes não possui nome próprio, e quando possui, é
chamado por algum aspecto que lhe identifique. Cinderela, por exemplo, recebe a
denominação de “Gata Borralheira” por ser uma mulher jovem que é obrigada a fazer os
trabalhos pesados de uma casa e costumar sentar-se perto do fogão à lenha. Podemos
perceber essa identificação na seguinte passagem:
Todos os dias, assim que terminava o seu trabalho, a menina sentava-se num cantinho,
perto do fogão à lenha, sobre as cinzas e, por isso, suas irmãs a chamavam de “Gata
Borralheira”. (A Gata Borralheira – Coleção Cochrane, ver anexo 1.3, pág. 00).
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Branca de Neve não possui nome próprio, mas recebe essa denominação pela
tonalidade da pele, tal como é expresso pelo trecho:
Era uma vez uma rainha que sonhava com uma filhinha de pele branca como a neve,
boca vermelha como o sangue e cabelos pretos como a noite. Algum tempo depois,
nasceu a princesa, exatamente como a rainha sonhava. Chamaram-na Branca de
Neve. ( Branca de Neve – Coleção Clássicos Encantados).
Já Os Sete Anões, no geral, são assim denominados para identificar o número de
personagens que apresentam nanismo, mas que possuem identificações próprias que, no
caso, estão relacionadas a sete diferentes características. Vejamos:
Era uma verdadeira casa em miniatura: sete cadeirinhas... sete pratinhos... sete
caminhas... as caminhas com os nomes: Fofura, Sabido, Alegre, Soneira, Espirro, Sr.
Brabo e Pixotinho 2
( Branca de Neve e os Sete Anões – Coleção Bauzinho
Encantado)
Bela, do conto “A Bela e a Fera”, é assim denominada devido a beleza que
possui, conforme percebemos no seguinte trecho:
Era uma vez um comerciante que morava com sua filha. Uma moça tão bonita que o
seu nome era Bela... (A Bela e a Fera – Coleção Clássicos Adoráveis)
A Fera, por sua vez, recebe essa denominação devido ser um príncipe que
acabou sendo transformado em um animal feroz e cruel, vejamos:
Era uma vez um jovem que vivia em um lindo castelo... Certa noite recebeu a visita de
uma velhinha que lhe pediu abrigo. Mas ele negou o pedido e mandou a velhinha
embora... Indignada, ela transformou-o em uma horrível fera...” (A Bela e a Fera –
Coleção Clássicos Encantados).
Vale ressaltar que também encontramos nos contos de fada personagens que não
possuem nome próprio nem recebem nenhum tipo de denominação, são identificados de
2 Apesar dessas denominações atribuídas aos Sete Anões, percebemos que dependendo das versões do
conto “Branca de Neve” elas podem variar, no entanto, por ter sido essa a referência que encontramos nos
contos analisados preferimos mantê-la.
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forma mais geral pela função que assumem nos contos, por isso são chamados por “o
pai de...”, “a mãe de...”, “a rainha”, “o rei”, “a fada”, “a madrasta”, etc. Também
queremos enfatizar a figura masculina na pessoa do príncipe, pois este, em todos os
contos que analisamos, também não recebem nenhum tipo de denominação.
Percebemos, com isso, que na falta de especificação do nome das personagens
nos contos de fada também apresenta-se uma estreita relação de dominação, pois isto
implica no fato de que qualquer pessoa pode se identificar com os personagens dos
contos e reproduzir, por isso, a relação de dominação ou subordinação propagada por tal
personagem de forma mais sutil.
Os contos de fada também possuem em comum o personagem principal, pois
todos apresentam a mulher, no caso, a princesa, como protagonista do conto. Além
disso, esta personagem é apresentada seguindo um modelo estereotipado de feminino,
pois cabe a mulher, nos contos de fada, assumir atributos vinculados a paciência, a
ternura, a bondade, a sensibilidade, e a fragilidade, intensificando o fato de que
geralmente nos contos de fada existe uma conexão entre feminino e afetividade. O
homem, personagem secundário dos contos de fada, também assumi atributos
estereotipados de masculino que estão vinculados a coragem, a audácia, a força e a
razão, os quais podem denotar para um ideal masculino baseado em uma pseudo-
superioridade.
Outra questão que a análise particular dos contos de fada nos ajudou a identificar,
refere-se ainda aos personagens secundários, pois percebemos nos contos de fada a
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reprodução de outros perfis de sujeitos sociais, entre eles podemos destacar, por
exemplo, a figura da mãe, da madrasta e do pai. A mãe definida como uma pessoa boa,
amável, mas que acaba falecendo e deixando sua filha para ser “cuidada”
posteriormente, se for o caso, pela madrasta, mulher de atitudes ruins e grosseiras. E o
pai que, por sua vez, é apresentado pelos contos de fada como uma figura não tão
relevante na relação pai-filha.
Os personagens dos contos de fada são, portanto, figuras planas, que mantêm
suas características próprias dependendo da função que exercem nos contos. Vale
acrescentar que se os personagens são “bons” ou “maus”, permanecem assim até o final
do conto e são diferenciados com aspectos que estão relacionados a beleza e a feiúra.
Quanto ao enredo, os contos de fada falam da existência de um determinado
problema, enfrentado pela heroína, logo no início do conto, como é o caso de
“Cinderela” e “Branca de Neve” que vivenciam uma dominação doméstica. Ou um
problema que surgirá logo depois, como é o caso do conto “A Bela e a Fera” através da
dominação de aprisionamento. Independente do obstáculo encontrado, ele será superado,
no final da narrativa, pela princesa, mas com a ajuda do príncipe que se apaixonará à
primeira vista pela princesa, mulher provida de uma beleza incomparável que faz com
que o príncipe da história apaixone-se à primeira vista por ela.
Os contos de fada para existirem também apontam certas incoerências no enredo,
tal como percebemos em “Cinderela”, na história do sapatinho de cristal que além de
não ter perdido o encanto depois da meia-noite, calçava apenas os pés de Cinderela; em
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“Branca de Neve”, no qual a heroína não morreu quando mordeu a maçã envenenada,
mas apenas adormeceu; e em “A Bela e a Fera” que convenceu seu pai a voltar ao
castelo da Fera para cumprir sua promessa mesmo sabendo que ela ou pai seriam
aprisionados.
Paralelo às incoerências dos contos de fada, surge o aspecto de encantamento
responsável por defini-los como contos de caráter maravilhoso. O encantamento é uma
característica do enredo imprescindível nos contos de fada. Surge em “Cinderela”
através da presença da fada madrinha e das magias que esta faz para deixar Cinderela
pronta para ir ao baile. Em “Branca de Neve” o encantamento surge através da
transformação da madrasta em uma velhinha e no fato de Branca de Neve acordar de
seu sono profundo através de um beijo do príncipe. Já em “A Bela e a Fera”, o
encantamento surge quando o príncipe é transformado em uma Fera e quando o encanto
é quebrado pelo fato de Bela ter se apaixonado por ele.
Outra característica que os contos “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A Bela e a
Fera” possuem em comum e que podem ser estendidas à maioria dos contos de fada
tradicionais é o destino final dos personagens, pois percebemos que estes contos
chegam ao desfecho com um casamento, tal como observamos nas seguintes passagens:
O casamento foi muito bonito... Cinderela e seu príncipe viveram felizes para sempre.
(A Gata Borralheira – Coleção Cochrane, ver anexo 1.3, pág. 00).
...um príncipe que passava por ali viu Branca de Neve e se apaixonou. Ele deu-lhe um
beijo e ela acordou... Os dois casaram e viveram felizes para sempre. (Branca de Neve
– Coleção Clássicos Encantados, ver anexo 2.1, pág. 00).
Quebrado o encanto, o príncipe e a Bela se casaram e foram felizes para sempre. (A
Bela e a Fera – Coleção Clássicos Adoráveis, ver anexo 3.2, pág. 00).
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A idéia de casamento apresentada pelos contos de fada é vista, portanto, como
uma etapa de realização pessoal das personagens femininas, as quais depois de
passarem por uma determinada dificuldade, são “recompensadas” com um príncipe por
terem sido belas e bondosas. Percebemos com isso a reprodução ideológica de que a
auto-realização feminina só pode ser encontrada no casamento, ou seja, a mulher deve
ser destinada a vida conjugal e está dependente de uma figura masculina para poder ser
feliz. Não percebemos nos contos de fada a realização feminina encontrada, por
exemplo, através da realização profissional, o que implicaria na quebra da formação da
antiga estrutura patriarcal que destina a mulher, automaticamente, à vida familiar e
doméstica.
Conseqüente ao casamento, os contos de fada finalizam com o “viveram felizes
para sempre” que não deixa de ser uma reprodução ideológica religiosa do “até que a
morte nos separe”, isto é, a reprodução da concepção de que o casamento deve ser uma
união eterna, uma aliança sagrada que denota para uma vida de realização pessoal,
principalmente feminina, e que se fundamenta em uma vida de harmonia.
Assim, todos esses elementos da narrativa e suas correspondentes características
são expostos por um narrador em terceira pessoa, o qual é apenas um observador dos
acontecimentos e limita-se ao ato de contar. Além destes, estamos certos que muitos
outros aspectos em comum podem ser encontrados nos contos de fada, mais a partir
destes já é possível definir de forma geral a maioria dos contos de fada tradicionais, não
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só através dos elementos apontados mais também através das ideologias propagadas por
estes contos quanto a presença da figura feminina.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletir sobre as relações de gênero que circundam os contos de fada foi uma
tarefa minuciosa que, por um lado, exigiu atenção a diversos aspectos diferentes desses
contos, tais como o perfil dos personagens, as representações gráficas, os discursos, as
situações por eles vivenciadas, as ações e o encantamento, uma vez que eles expressam
através desses recursos, de forma sutil, os aspectos que queríamos analisar quando
falávamos em relações de gênero presentes nos contos de fada.
Por outro lado, as discussões teóricas apontadas nesta pesquisa das quais fazem
parte a definição, o contexto histórico e as características dos contos de fada, além da
Ideologia e as Relações de Gênero, reuniram-se para justificar e complementar a análise
que fizemos sobre esses aspectos dos contos de fada. A questão que mereceu ser
analisada aqui não correspondia somente ao fato de que os contos de fada divulgam
concepções sobre relações de gênero, mas que estes reproduzem estereótipos
ideológicos socialmente atribuídos aos gêneros, os quais os leitores e ouvintes dos
contos de fada podem internalizar, reproduzir e vivenciar.
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Percebemos que apesar da quantidade significativa de contos de fada e das
particularidades apresentadas por cada um destes, eles poderiam ser analisados de forma
geral, uma vez que, quando comparados, foi possível encontrar um leque de
características comuns, principalmente no que concerne aos elementos da narrativa. O
entrecruzamento dos contos que analisamos possuiu uma função especial neste trabalho:
oferecer uma visão geral sobre os contos de fada tradicionais.
De certo este trabalho ainda pode exigir um estudo mais intenso, uma vez que
pode ser estendido para a análise de outros contos de fada tradicionais, ou até mesmo
ser aprofundado nos próprios contos que analisamos, já que o aspecto ideológico
encontra-se tão difundido nos contos de fada que ainda existem muitas concepções
ideológicas escondidas e que podem ser identificadas em “Cinderela”, “Branca de
Neve” e “A Bela e a Fera”.
Apesar disso, as discussões que levantamos, por si sós, já estabelecem a
ampliação de um conhecimento valioso para os estudos sobre relações de gênero. A
efetivação deste trabalho foi tão significante que ainda durante a sua realização íamos
progredindo na definição de uma visão contra-ideológica, mais realista e menos utópica
sobre as relações sociais estabelecidas entre mulheres e homens. Conseguimos lançar
um olhar mais crítico e minucioso de acordo com os avanços que fazíamos nas leituras
da fundamentação teórica, na leitura das versões dos contos de fada que utilizamos e na
análise descritiva que íamos desenvolvendo sobre os contos, para chegarmos finalmente
a efetivação de um trabalho inovador.
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Assim, não queremos fazer das discussões que levantamos um problema ou uma
oposição exagerada aos contos de fada tradicionais, mas ao contrário, queremos
intensificar um método de análise a fim de oferecer um suporte a pais e professores na
educação das crianças, uma vez que os contos de fada são artefatos culturais que não
precisam, nem queremos que sejam descartados, mas utilizados como recurso precioso
para principiar uma discussão sobre gênero nas instâncias culturais destinadas,
principalmente, as crianças.
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