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Relacionando Conceitos sob a Perspectiva Cultural do Consumo: Podemos Comparar Consumo de Luxo e Materialismo? Autoria: Daiane Scaraboto, Fernanda Pagliarine Zilles, Jorgelina Beltran Rodriguez Resumo: O consumo é um fenômeno essencialmente cultural. Não é simples, no entanto, compreender a construção e elaboração do universo simbólico dos consumidores. Assim, a proposta do presente artigo é deliberar a respeito do tema e da possibilidade de construir relações sobre construtos distintos: o consumo de luxo e o materialismo, através de uma perspectiva que enfatiza a natureza cultural do consumo. A condução e o desenvolvimento do ensaio apresentam reflexos diretos desta visão: ao salientar-se a capacidade dos bens de traçar os limites que diferenciam e classificam grupos de indivíduos, e a capacidade dos objetos de comunicar e expressar símbolos de status e prestígio social, referencia-se diretamente o sistema de significação inerente a determinadas categorias de produtos e ao comportamento dos indivíduos que os consomem. Com uma forma de construção em espiral, que contraria a estrutura rígida e linear de artigos comumente publicados em nossa área, a proposta deste ensaio é gerar muito mais reflexões do que respostas. Os leitores, a cada momento, são convidados a refletir sobre pontos interessantes enquanto a teoria lhes é apresentada, sendo responsáveis pela elaboração de um capítulo ainda não escrito; o das conclusões! 1 INTRODUÇÃO Pode-se pesquisar o comportamento do consumidor anos a fio sem se deixar influenciar pelo fato. No entanto, após notado pela primeira vez, este jamais renderá comodidade aos pesquisadores mais conscienciosos: o consumo é um fenômeno essencialmente cultural. A preocupação dos consumidores em escolher, arranjar, adaptar e expor suas posses e bens de modo a produzir uma afirmação estilística a seu respeito demonstra o quanto as práticas de consumo são carregadas de significados culturais. Esses significados expressam categorias, princípios, ideais, estilos de vida, identidades e projetos coletivos – aspectos culturais do indivíduo e de sua sociedade – que, devido à subjetividade inerente, não podem ser compreendidos simplesmente mediante concepções de valor econômico e de trocas racionais e instrumentais. Há de se destacar que, no entanto, o abandono do viés utilitarista, prevalecente na teoria econômica, não é uma proposição defendida apenas pelos pensadores pós-modernos, mesmo parecendo ter ganho notoriedade recente no meio acadêmico. Já no final do século XIX e início do século XX, autores como Thorstein Veblen e Marcel Mauss acenavam com as primeiras tentativas de explicação para o consumo conspícuo, sustentando a idéia de que as práticas de consumo não poderiam estar atreladas somente a razões econômicas e defendendo a prevalência da dimensão simbólica do consumo sobre a utilitária. Não é simples compreender a construção e elaboração do universo simbólico centrado no consumo – tanto que a proposta do presente artigo é deliberar sobre o tema sem a intenção de alcançar um ponto previamente determinado. Com propriedade acadêmica e um toque de imaginação, é possível pensar livremente nas relações do consumidor com seu mundo, onde produtos e símbolos se confundem; onde conceitos assumem diferentes interpretações – dependentes da perspectiva e do contexto.

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Relacionando Conceitos sob a Perspectiva Cultural do Consumo: Podemos Comparar Consumo de Luxo e Materialismo?

Autoria: Daiane Scaraboto, Fernanda Pagliarine Zilles, Jorgelina Beltran Rodriguez

Resumo: O consumo é um fenômeno essencialmente cultural. Não é simples, no entanto, compreender a construção e elaboração do universo simbólico dos consumidores. Assim, a proposta do presente artigo é deliberar a respeito do tema e da possibilidade de construir relações sobre construtos distintos: o consumo de luxo e o materialismo, através de uma perspectiva que enfatiza a natureza cultural do consumo. A condução e o desenvolvimento do ensaio apresentam reflexos diretos desta visão: ao salientar-se a capacidade dos bens de traçar os limites que diferenciam e classificam grupos de indivíduos, e a capacidade dos objetos de comunicar e expressar símbolos de status e prestígio social, referencia-se diretamente o sistema de significação inerente a determinadas categorias de produtos e ao comportamento dos indivíduos que os consomem. Com uma forma de construção em espiral, que contraria a estrutura rígida e linear de artigos comumente publicados em nossa área, a proposta deste ensaio é gerar muito mais reflexões do que respostas. Os leitores, a cada momento, são convidados a refletir sobre pontos interessantes enquanto a teoria lhes é apresentada, sendo responsáveis pela elaboração de um capítulo ainda não escrito; o das conclusões!

1 INTRODUÇÃO Pode-se pesquisar o comportamento do consumidor anos a fio sem se deixar influenciar pelo fato. No entanto, após notado pela primeira vez, este jamais renderá comodidade aos pesquisadores mais conscienciosos: o consumo é um fenômeno essencialmente cultural. A preocupação dos consumidores em escolher, arranjar, adaptar e expor suas posses e bens de modo a produzir uma afirmação estilística a seu respeito demonstra o quanto as práticas de consumo são carregadas de significados culturais. Esses significados expressam categorias, princípios, ideais, estilos de vida, identidades e projetos coletivos – aspectos culturais do indivíduo e de sua sociedade – que, devido à subjetividade inerente, não podem ser compreendidos simplesmente mediante concepções de valor econômico e de trocas racionais e instrumentais.

Há de se destacar que, no entanto, o abandono do viés utilitarista, prevalecente na teoria econômica, não é uma proposição defendida apenas pelos pensadores pós-modernos, mesmo parecendo ter ganho notoriedade recente no meio acadêmico. Já no final do século XIX e início do século XX, autores como Thorstein Veblen e Marcel Mauss acenavam com as primeiras tentativas de explicação para o consumo conspícuo, sustentando a idéia de que as práticas de consumo não poderiam estar atreladas somente a razões econômicas e defendendo a prevalência da dimensão simbólica do consumo sobre a utilitária. Não é simples compreender a construção e elaboração do universo simbólico centrado no consumo – tanto que a proposta do presente artigo é deliberar sobre o tema sem a intenção de alcançar um ponto previamente determinado. Com propriedade acadêmica e um toque de imaginação, é possível pensar livremente nas relações do consumidor com seu mundo, onde produtos e símbolos se confundem; onde conceitos assumem diferentes interpretações – dependentes da perspectiva e do contexto.

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A condução e o desenvolvimento deste ensaio apresentam reflexos diretos desta visão simbólica, e portanto cultural, do consumo. Ao salientar-se que bens são capazes de traçar os limites que diferenciam e classificam grupos de indivíduos, da mesma forma com que se salienta a capacidade dos objetos de comunicar e expressar símbolos de status e prestígio social, referencia-se diretamente o sistema de significação inerente a determinadas categorias de produtos e ao comportamento dos indivíduos que os consomem. Sob essa perspectiva é possível relacionar construtos e aspectos do comportamento do consumidor, descortinando novas descobertas, buscando elucidação no emaranhado de construtos, conceitos e divisões que tem caracterizado a construção de conhecimento na área. A natureza cultural do consumo será a linha mestra de nossas elucubrações (incluídos aqui os leitores) a respeito do consumo de luxo e do materialismo, dois temas que interagem de modo intrigante – afastando-se um do outro tanto quanto possível e voltando a tangenciar-se conforme o ponto de comparação. Esse desenvolvimento nos permitirá demonstrar a possibilidade de obter ligações teóricas entre dois construtos distintos através da análise de elementos culturais.

Os bens de luxo, que nos servirão de exemplo ao longo desse ensaio, são procurados e valorizados por suas características de qualidade superior e pela experiência autotélica que proporcionam àqueles que os possuem. No entanto denotam, ao mesmo tempo, a persistência do código de diferenciação social e da busca por distinção em um mundo no qual renda e poder aquisitivo não são mais os únicos determinantes da hierarquização de consumidores. No contexto atual, o status não é mais protegido pela restrição das possibilidades de troca e, em se tratando de artigos de luxo, seja pelo aumento do poder de compra da população, seja pela ampliação da facilidade geográfica de acesso a produtos, o que passa a diferenciar as pessoas é o gosto (FEATHERSTONE, 1995) e o conhecimento ou capital cultural empregados na experiência de consumo (HOLT, 1998; BOURDIEU, 1988). O gosto e o capital cultural são atributos que capacitam grupos para a compreensão e identificação das mercadorias mais adequadas na representação do universo de luxo, bem como da melhor maneira de utilizá-las ou consumi-las.

O segundo elemento da análise aqui proposta é um tema de características ainda controversas: o materialismo. Grande parte dos estudos acadêmicos adota uma postura defensiva ante o materialismo, tomando-o por negativo e destrutivo, visão esta responsável pela dificuldade e atraso na compreensão plena da significação cultural do consumo nas sociedades modernas (McCRACKEN, 2003). Em sua concepção popular, o termo está associado à importância atribuída pelos consumidores às suas posses, que, por sua vez, assumem uma posição central na vida dos indivíduos materialistas, sendo também sua principal fonte de satisfação (e insatisfação). Sob esta ótica, os materialistas não apenas tendem a consumir mais, mas também a consumir bens de maior preço, prestígio e visibilidade pública.

Agora que estamos suficientemente curiosos, procuremos conhecer, criticar e debater as principais teorias a respeito dos temas propostos, buscando sempre a natureza cultural do consumo como referência e fornecedora de perspectivas para construir ligações entre os temas, pois nossa questão central está em explorar a suficiência desses argumentos para relacionar materialismo com o consumo de produtos de luxo.

2 OS VALORES E SIGNIFICADOS ASSOCIADOS AO CONSUMO DE LUXO

A concepção do consumo como meio de expressão implica em que alguns produtos, de simplesmente funcionais e utilitários, se tornam igualmente bens e os objetos de representação.

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Os mais representativos pertencem ao universo de produtos de luxo, que assumem, ao mesmo tempo, uma função subjetiva, de prazer pessoal, e uma função de representação social – sendo portanto utilitários e simbólicos de uma só vez.

Se, antes, quando Veblen (1965) apontava o consumo como uma forma riquíssima de comunicação (sendo a opção escolhida pelas pessoas para exibir uma imagem de detentores de status) os bens de luxo eram a expressão de um modo de vida e de um nível de vida, contemporaneamente traduzem a busca por um estilo de vida; são a expressão permanente da satisfação pessoal e social. Mediante a leitura das posses e dos comportamentos exibidos pelos indivíduos podemos inferir sobre o poder, o status e o prestígio social dos mesmos. Dessa forma, percebe-se que as propriedades simbólicas das mercadorias passam a ser utilizadas e negociadas no mercado para enfatizar diferenças de estilo de vida e, assim, demarcar relações sociais (FEATHERSTONE, 1995). As preferências de consumo e estilo de vida envolvem julgamentos discriminadores que “identificam nosso próprio julgamento de gosto e, ao mesmo tempo, o tornam passível de ser classificado pelos outros” (FEATHERSTONE, 1995 p.38).

Mal começamos a pensar no assunto e dezenas de perguntas já nos assomam, não?

Quando se toma o consumo de luxo como meio para atingir determinadas metas, quais são essas metas?

Quais as crenças, pessoais ou de grupo, que definem o que é ou não adequado em relação à moda, às marcas, à interação com artigos de luxo?

O que é subjetivamente apreendido da relação com um objeto de luxo – o que se deseja transmitir através da compra e uso desses bens?

Como o universo do luxo é interpretado por seus consumidores? Que rótulos se lhe atribuem?

Como compreender as ações, escolhas, atitudes e comportamentos de consumidores deste universo particular e fascinante que é o segmento de bens de luxo?

A compreensão dos significados atribuídos pelos consumidores a esses produtos e dos valores que se agregam à busca do prazer na motivação para a compra e consumo de artigos de luxo pode trazer luz a determinados aspectos do consumo de luxo que, já podemos imaginar, tem em comum com o materialismo algo mais que o alto investimento financeiro envolvido.

Antes de qualquer coisa, precisamos constatar que, com a democratização do luxo, não apenas o número de pessoas com condições de fazer compras de luxo se tornou muito maior, como essas pessoas passaram a constituir um grupo mais variado demograficamente que nunca Gardyn (2002). Alguns autores propõem a distribuição dos consumidores de luxo em categorias, de acordo com critérios diversos, mas sempre levando em consideração a evidência de que, cada grupo, com suas características próprias, possui valores - e atribui significados - distintos ao consumo de luxo. A diferenciação mais usual, entre quem consome e quem não consome, ou seja, os afluentes e excluídos, não permite que se alcance a compreensão das gradações possíveis entre esses dois extremos.

Um exemplo de classificação mais refinada é a proposta por Dubois e Laurent (1995), com base na freqüência de compra, que sugere existir atualmente, além dos excluídos e afluentes (sendo os últimos divididos em velhos e novos ricos), uma nova categoria de consumidores de produtos de luxo: os excursionistas, cuja aquisição e consumo desses bens é ocasional. Além da

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classificação pela freqüência de compra, diversas outras categorizações são possíveis, como a compreensão de que os ricos são diferentes entre si, dividindo-se em “elegantes, aventureiros, conservadores e utilitários” (Triplett, 1994), os agrupamentos de acordo com as características demográficas, a personalidade e mesmo o estado de espírito do consumidor (GARDYN, 2002). Conforme Gardyn (2002), existem três grupos de consumidores com motivações distintas: o primeiro grupo é composto por indivíduos para quem o luxo é funcional; o segundo por quem considera o luxo uma recompensa e, o terceiro, composto pelos que entendem o luxo como indulgência.

De modo geral, a literatura que aborda o consumo de luxo sob a perspectiva dos valores e significados a ele associados é escassa, tendo sido identificados apenas dois estudos (D’ANGELO, 2004 e ZILLES et al., 2005) que compreendem ambos os aspectos. Assim, com base nesses estudos, identificou-se um conjunto de valores e significados associados ao consumo de luxo que podem nortear nossas elaborações posteriores:

VALORES SIGNIFICADOS

Valorização pessoal Qualidade intrínseca

Distinção Hedonismo Sofisticação Aparência

Adequação Prazer

Distinção Hedonismo

Irresistibilidade (impulsividade/compensação)

Tabela 1 – Relação de valores e significados relacionados ao consumo de luxo

Valorização pessoal: Em contraposição ao consumo racional, os artigos de luxo também são valorizados devido à capacidade de proporcionar benefícios emocionais e psicológicos aos consumidores – emoções, sentimentos e sensações prazerosas obtidos através da compra ou uso. As pessoas valorizam produtos de luxo por acreditar que esses valorizam sua aparência, tornando-as mais atraentes e denotando um estilo de vida glamouroso (ZILLES et.al., 2005). Os aspectos relacionados à valorização pessoal envolvem vaidade e narcisismo, estando também fortemente vinculados à busca por valorização e reconhecimento dos outros indivíduos com os quais se convive. Tem-se ainda que alguns consumidores gostam que as demais pessoas percebam o quanto jóias ou artigos de vestuário de luxo os tornam melhores, mais bonitos e desejáveis.

Qualidade: Um dos mais disseminados valores associado ao consumo de luxo é o da qualidade superior desses produtos. De acordo com Zilles et.al. (2005), artigos de luxo são tidos como mais duráveis, mais bem acabados e produzidos com matéria-prima superior aos produtos convencionais. Todas essas características são benefícios tangíveis, decorrendo disso a colocação do luxo em uma “perspectiva racional, na qual predomina uma avaliação pragmática da relação custo-benefício envolvida na aquisição” (D’ANGELO, 2004).

Hedonismo: O consumo de luxo contém em si aspectos que o caracterizam como essencialmente hedônico. Segundo Belk (2001), artigos de luxo são exemplos de produtos considerados pelos indivíduos como parte de seu próprio self e com os quais possuem um relacionamento mágico que envolve sentimentos, fantasia e imaginação. Comprar e usar produtos de luxo é, para grande

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parte dos consumidores, uma experiência que envolve todos os sentidos, ativando ainda a emoção e a fantasia (ZILLES et.al., 2005). Ao apelar para os sentidos, envolver o consumidor na fantasia e glamour das lojas, campanhas publicitárias e desfiles e despertar sentimentos diversos nas pessoas, o luxo é hedonismo (D’ANGELO, 2004). O hedonismo pode ser vinculado ao consumo de luxo como valor quando influencia na opção dos consumidores pelos artigos de luxo. Nesse caso, os aspectos hedônicos e prazerosos do consumo de luxo são buscados como um fim em si mesmos, livres de qualquer aspecto econômico ou racional. Também se pode perceber o hedonismo como um significado, devido às características hedônicas que são subjetivamente atribuídas aos produtos e experiências de consumo de luxo tanto por quem consome, quanto pelos demais indivíduos.

Uma intromissão: (possíveis) relações com o materialismo

Quando nos concentrarmos nas concepções a respeito do materialismo, veremos que este apresenta componentes hedônicos e utilitários. Na visão de Richins (1994), indivíduos menos materialistas são mais orientados pelo hedonismo, tendo predileção por bens experienciais, capazes de proporcionais momentos agradáveis e sensações prazerosas. Já os mais materialistas, tendem a valorizar mais benefícios funcionais dos produtos, como aqueles ligados ao design, qualidade e beleza.

Já vimos isso em algum lugar, não? O consumo de luxo também apresenta elementos utilitários e de hedonismo– o que pode nos levar a considerações interessantes mais adiante.

Sofisticação e aparência: Artigos de luxo como roupas, acessórios e jóias são tidos como capazes de aprimorar a apresentação de uma pessoa, tornando sua aparência mais sofisticada – e é amplamente disseminada no universo do luxo a preocupação com a aparência pessoal. O aperfeiçoamento da aparência pode auxiliar em projetos individuais de ascensão social ou aumentar a sensação de bem-estar e pertencimento a um grupo (D’ANGELO, 2004). Os consumidores de luxo valorizam produtos que demonstram os cuidados estéticos que tomam com seu visual, corpo e vestuário e a auto-estima que possuem. O uso de artigos de marcas consagradas e o acompanhamento das tendências internacionais de moda, além da habilidade e conhecimento necessários para saber admirar, valorizar e desfrutar de produtos de luxo são características de sofisticação que os consumidores valorizam e desejam ter reconhecidas em si porque, de acordo com D’Angelo (2004, p. 91.), a aparência é considerada “um retrato da pessoa, um indicativo de suas características e, em última instância, uma pequena síntese de suas virtudes.”

Na sociedade de consumo, abandona-se “o primado da lógica de classes”, emergindo a “era das motivações íntimas e existenciais, da gratificação psicológica, do prazer para si mesmo”, que fomentam um interesse pela estética, pela qualidade e pelo prazer, numa postura francamente narcisista (LIPOVETSKY, 1989, p. 174). Aqui podemos nos deter um pouco em uma questão eminentemente ligada ao consumo de luxo: a moda. Na sociedade de consumo, valoriza-se o novo, assumindo-se sem constrangimentos o prazer na mudança e no efêmero (LIPOVETSKY, 1989). Teremos como causa e conseqüência simultâneas dessa concepção de culto ao novo e à moda um conceito associado ao consumo de luxo: a distinção. Antes dele, os significados associados a esse mesmo consumo:

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Significados do consumo de luxo

Adequação: O consumo de artigos de luxo também traz em si o significado de adequação ao meio, seja esse meio social ou, mais especificamente, profissional. Alguns consumidores buscam manter um certo padrão – em termos de marcas e estilo – em seu vestuário e aparência visando atender à necessidade de estar sempre bem vestidos e apresentados, sem desvios de adequação ao ambiente em que circulam (ZILLES et.al., 2005). Produtos de luxo são capazes de servir como rótulo de maior credibilidade e melhor imagem em alguns ambientes profissionais. Ao valorizar a adequação, os consumidores assumem que o consumo de produtos de luxo não implica, necessariamente, em atitudes de ostentação e exibição de poder aquisitivo. De acordo com Zilles et.al. (2005), para alguns indivíduos, a compra e uso de artigos de luxo é apenas mais um hábito, algo que ocorre “naturalmente”, sem qualquer vínculo a questões de aceitação ou adequação.

Impulsividade/Compensação: Para determinados consumidores, notavelmente dentre os afluentes, o consumo de produtos de luxo assume um caráter de irresistibilidade, levando-os a comprar por impulso, ou mesmo compulsivamente. D’Angelo (2004) associa ao significado de impulsividade do consumo de luxo a utilização das compras como formas de compensação de frustrações e de busca por preenchimento de “sentimentos de vazio”.

Tendo visto os significados, agora sim, podemos retomar esse conceito um tanto mais elaborado; a distinção.

Um caso a parte: Distinção

Os consumidores percebem nos produtos de luxo a capacidade de melhorar sua imagem, refletindo seu conhecimento e bagagem cultural e elevando ainda seu status. D’Angelo (2004) identifica a distinção como um valor e descobre que, dentre consumidores e profissionais do universo do luxo, a busca de status e reconhecimento social, quando tidos como finalidade, são razões para considerar o consumo inadequado (enquanto o consumo adequado é realizado por motivos “certos”, como o emprego de capital cultural superior e de motivações individuais mais desejáveis e respeitáveis). Os resultados de Zilles et.al. (2005), que definem a distinção como um significado, identificam apenas que o consumo do luxo permite a diferenciação das pessoas no meio em que convivem e em relação aos demais através de características inerentes ao produto.

Pode-se apreender então que, para alguns consumidores, a ostentação e a busca por status podem ser motivações válidas, enquanto outros optam pelo consumo definido por razões funcionais, estéticas, hedônicas ou racionais. Tomemos a idéia de Feathestone (1995, p.38), segundo o qual a oferta constante de novas mercadorias, objetos de desejo e da moda ou a assimilação dos bens marcadores por grupos mais baixos, resulta em um “efeito de perseguição infinita, segundo o qual os de cima serão obrigados a investir em novos bens de informação a fim de restabelecer a distância social original”. O autor afirma ainda que o topo das classes consumidoras não é definido apenas pelo nível de renda (capital econômico), mas também pela competência para julgar bens e serviços (o que exige capital cultural e simbólico).

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A controvérsia da distinção: Pensemos na seguinte proposição de Lipovetsky (1989, p. 173):

“Mesmo os novos bens que surgem no mercado (...) não chegam a impor-se como material carregado de conotações de status; cada vez mais rapidamente são absorvidos por uma demanda coletiva ávida não de diferenciação social, mas de autonomia, de novidades, de estimulações, de informações”. O autor ressalva que o consumo de luxo pode não ter sofrido essa transformação, sendo consumido ainda por motivações de distinção social.

Podemos acreditar que este segmento de consumo não tenha sido absorvido pelo imperialismo do efêmero? Os valores e significados identificados pelos consumidores de luxo indicam a prevalência do hedonismo sobre a distinção?

3 NOÇÕES AMPLAMENTE ACEITAS SOBRE MATERIALISMO

Julgamo-nos uns aos outros em termos de nossas relações com os objetos e posses. Nesse contexto, a concepção de materialismo popularmente disseminada é a de indivíduos que se preocupam e envolvem exageradamente com bens materiais, centralizando suas atitudes, ações e objetivos na aquisição e posse de bens, enquanto aspectos mais subjetivos ou “espirituais” são desmerecidos.

A primeira definição classicamente utilizada na concepção de materialismo em estudos acadêmicos é a de Belk (1985, p.265), que o descreve como “a importância que o consumidor atribui às posses materiais”. Belk (1984) considera o materialismo um traço de personalidade e altamente materialistas os indivíduos que definem as posses como centro da vida e acreditam ser possível alcançar altos índices de satisfação através das mesmas. O mesmo autor ainda define três traços de personalidade que podem ser considerados subconstrutos do materialismo: a possessividade, a não-generosidade e a inveja.

Possessividade: Definida como uma inclinação ou tendência a manter o controle sobre as posses, incluindo preocupação com a perda das mesmas e rejeição a situações de empréstimo, aluguel ou doação de objetos particulares. A escala para mensuração do materialismo, construída por Belk (1984), apresenta três itens relativos à possessividade: “preocupação com a perda de posses”, “desejo por maior controle de suas posses” e “inclinação para cuidar e reter as posses por um longo período”. Posteriormente, o conceito foi redefinido por Ger e Belk (1994), como “preservação”.

Não-generosidade: define-se na falta de vontade do indivíduo para doar ou dividir suas posses com outras pessoas. Na mesma escala, de Belk (1984), o conceito se define pela “relutância em emprestar ou doar”, por “atitudes negativas em relação à caridade” e pela atitude de “não desejar dividir posses com outros”.

Inveja: Belk assume a definição de inveja de Schoeck (citado por Belk, 1985) que a descreve como um desprazer diante da superioridade de outras pessoas em termos de felicidade, sucesso, reputação ou posse de algo desejável. O autor destaca ainda a diferença entre a inveja e o ciúme que, na língua inglesa, são caracterizados por termos intercambiáveis. Para ele, a inveja é estritamente esse ressentimento em relação às posses de outras pessoas.

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Tomando a definição de materialismo como traço de personalidade, Wong (1997) afirma que o materialismo e o consumo conspícuo estão implicitamente ligados pela inveja. Essa ligação se confirma pelo fato de que só é possível invejar as posses dos outros quando essas são facilmente visíveis e identificáveis. De acordo com a autora, a essência da inveja está em desejar as posses (dos outros) que não se pode obter facilmente, sendo a falta de recursos financeiros um dos principais fatores que impedem a aquisição do bem invejado. Assim, Wong (1997) afirma que a inveja é quase sempre relacionada a bens muito caros ou produtos de luxo.

Primeira ligação entre consumo de luxo e materialismo: a inveja

E caso pensemos no termo “inveja” sob outra perspectiva, definindo-o, enquanto componente do materialismo, como a intenção que um indivíduo tem de despertar inveja em outros através de suas aquisições? Isso nos remete à idéia de que alguém muito materialista deseja ser superior aos outros, conquistando sua admiração e sendo invejado por suas posses. A proposição de Veblen (1965) indica que, conforme a riqueza se expande, o que guia o comportamento dos consumidores não é mais a necessidade de subsistência e conforto, mas a obtenção de estima e da inveja de seus semelhantes. Assim, acreditamos que a ligação proposta por Wong tornar-se-ia mais evidente: o materialista deseja ser invejado pelos outros (como o deseja o consumidor “inadequado” de luxo) e, para tanto, consome bens “invejáveis”, que podem ser ou não artigos de luxo.

Embora determinados traços de personalidade estejam associados ao materialismo, como

sugerido por Belk (1984), algumas questões posteriormente abordadas, como a variação do materialismo ao longo do tempo e as interferências do ambiente em sua mensuração, indicam que a definição do materialismo como, ele próprio, um traço de personalidade, talvez não seja a mais adequada. Com esta compreensão, Richins e Dawson (1992) propõem que o materialismo seja tratado como um valor pessoal.

Valores expressam as metas que motivam as pessoas e indicam os meios apropriados de atingir estas metas (Rokeach, 1973), desempenhando papel muito importante em suas decisões de consumo. A adoção de alguns valores presume que determinados objetivos ou condutas sejam preferíveis a outros (Solomon, 2002), portanto, o que uma pessoa ou grupo preconiza como ideal e recomendável pode ser considerado um valor (Rezsohazy, 2001). Assim, definir materialismo como um valor é consistente com a noção de que materialismo reflete a importância que uma pessoa atribui à suas posses (e à aquisição destas) como uma necessidade ou forma desejável de conduta em várias situações, inclusive as de consumo, mas não limitadas a estas.

De acordo com Richins e Dawson (1992), o materialismo como um valor possui três dimensões fundamentais: a centralidade da aquisição, a aquisição como busca da felicidade e o sucesso definido pelas posses.

Centralidade da aquisição: Materialistas colocam suas posses e a aquisição destas no centro de suas vidas, assumindo um estilo de vida no qual o alto nível de consumo material funciona como o principal objetivo, gerando um conjunto de planos e dando sentido à vida (RICHINS e DAWSON, 1992). Vinculada a essa dimensão está a crença materialista de que a propriedade ou aquisição de posses é uma chave para a felicidade e o bem-estar.

Aquisição como busca da felicidade: As posses e sua aquisição são essenciais para a satisfação e para o bem-estar na vida dos materialistas. A satisfação e o prazer pessoal são buscados através

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das posses por serem estas consideradas para a construção de sua felicidade e bem-estar. A maioria dos indivíduos está, provavelmente, envolvida de alguma forma com o alcance da felicidade. O que diferencia os materialistas, no entanto, é a busca da felicidade predominantemente através da aquisição de bens (RICHINS, 1994). No entanto, Richins e Dawson (1992) propõem que indivíduos mais materialistas tendem a ser menos satisfeitos do que os menos materialistas, pois o prazer que buscam na aquisição e posse de bens não se mantém por muito tempo, sendo logo substituído pelo desejo de novas posses. Essa relação foi testada por alguns autores, dentre eles Burroughs e Rindfleisch (2002), que descobriram a intervenção de outros valores (mais coletivamente orientados) do indivíduo na geração de conflito com o materialismo, reduzindo assim seu bem-estar.

Sucesso definido pelas posses: De acordo com os autores, as pessoas materialistas tendem a julgar seu sucesso e o dos outros pela quantidade e qualidade das posses acumuladas. Tendem, ainda, a usar suas posses para expressar características de sucesso para si próprias e para os outros (RICHINS, 1994). Essa dimensão enfatiza que pessoas materialistas valorizam as posses muito mais pelo dinheiro que custam do que pela satisfação que trazem. O valor de uma posse não está apenas relacionado com sua habilidade para conferir status, mas também com a capacidade de projetar uma imagem pessoal desejada e identificar a pessoas como vivendo em um mundo perfeito. Materialistas vêem a si próprios como bem sucedidos na medida em que podem possuir produtos que projetam estas imagens desejadas. Richins e Dawson (1992) esperam que, por julgarem a si próprios e outros em termos de suas posses, os materialistas atribuam maior importância a itens que são consumidos publicamente e a objetos que denotem realização material, em função de seu preço ou por serem mais caros em relação aos demais itens da categoria.

Uma pausa: Richins afirma que, para os materialistas, as posses assumem um caráter central e delas depende sua satisfação com a vida. No entanto, a proposição – da mesma autora - de que os indivíduos materialistas buscam itens de consumo público, enfatizando seu valor monetário em detrimento do prazer e da satisfação que poderiam advir deste consumo – leva-nos a crer que a busca da felicidade não se dá através da posse em si (aquisição e uso dos objetos), mas do reconhecimento que pode ser obtido através das posses, dependendo assim, essencialmente, do compartilhamento simbólico entre o indivíduo materialista e os demais.

Surgem, então, mais questões: Ser ou não materialista depende da quantidade de posses? Das características intrínsecas dessas posses? Ou do significado das mesmas?

Terceira ligação entre consumo de luxo e materialismo: o sucesso

Uma das principais características dos produtos de luxo é sua precificação: são sempre mais caros que outros produtos da categoria. Além disso, os itens de luxo consumidos publicamente inspiram, para muitos consumidores, uma oportunidade de exibição de poder aquisitivo e status (o que, conforme visto anteriormente, é tratado como a versão inadequada do consumo de luxo). De acordo com Richins (1994), mesmo os significados privados dos bens mais importantes tendem a ser relacionados com o valor financeiro por materialistas. Assumindo a proposição de Richins (1994), de que indivíduos mais materialistas preferem itens mais caros e consumidos publicamente, Wong (1997) propõe a associação do materialismo com o consumo conspícuo de bens de luxo através do sucesso.

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4 OUSADIA: VENDO O MATERIALISMO COMO ALGO DIFERENTE

Uma visão alternativa a estas duas noções sobre o materialismo é apresentada por Holt (1995;1998), o qual defende um conceito que foge do que considera o tendão de Aquiles das definições tradicionalmente aceitas: a centralidade e a importância das posses na vida dos indivíduos. Tanto Belk quanto Richins, os principais expoentes sobre o tema, concordam que, independente de ser um valor ou um traço de personalidade, o materialismo está diretamente relacionado com a importância que as pessoas atribuem às posses e a aquisição destas.

Holt, porém, nos provoca com o questionamento: será que as posses das pessoas “não-materialistas”, não podem, também, ser consideradas muito importantes por essas pessoas? Em caso afirmativo, essas pessoas deixam de ser “não-materialistas”? Apesar de baseadas em um raciocínio honesto – embora pareçam soar como uma irônica armadilha de lógica – estas questões não haviam ainda sido discutidas. Entre os antropólogos parece haver um consenso: as posses são de importância crítica para toda a humanidade, justamente por evidenciarem e reproduzirem significados culturais (DOUGLAS e ISHERWOOD 1979; MCCRACKEN, 2003). A evidência antropológica contraria a teoria materialista, apontando para o fato de que aqueles que optam por uma vida de mais simplicidade e que, em função disso, vivem com menos posses, irão designar maior importância aos objetos que já possuem. São pessoas que, embora tenham menos posses do que os materialistas, são muito mais conscientes do valor (inclusive financeiro, mas não limitado a este) da perda ou depreciação de um bem, pois sabem que isso pode representar o fim de sua relação com objeto.

As definições de materialismo com base na importância dada às posses nos fornecem como oposta ao materialismo a frugalidade; a escolha por uma vida de simplicidade material porque se valoriza a responsabilidade moral, o crescimento espiritual e auto-atualização (RICHINS E DAWSON, 1992). No entanto, a simplicidade pode não ser opção, mas limitação financeira. E mais, as poucas posses disponíveis podem ser tão ou mais valorizadas do que as muitas de um indivíduo movido pelo materialismo.

Essas questões estão intimamente ligadas à relação entre materialismo e quantidade de produtos adquiridos e consumidos. Como visto, Richins defende que as práticas materialistas influenciam não apenas a qualidade das mercadorias e bens adquiridos, mas também a quantidade.

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O início de uma nova perspectiva

A importância das posses não parece ser uma medida muito generalizada para capturar a essência do materialismo? Será que o materialismo depende, então, da quantidade de posses? E qual é o oposto do materialismo? O que pode ser o consumo, quando não for materialista?

Devemos ter em mente que uma resposta ousada a essas questões pode contrariar boa parte da teoria que consideramos até então... Belk nos inspira a pensar nessas contradições de outra maneira, ao afirmar: "Somos as coisas que fazemos e as coisas que temos. Então, a relação entre fazer e ter também tem grande importância” (1985, p.276).

Ao sugerir que nossa compreensão de self depende não apenas do que possuímos, mas do que fazemos, Belk (1985) não imaginava que, dez anos mais tarde, sua afirmação poderia servir de estímulo a uma nova compreensão do materialismo, contrária a suas próprias convicções a respeito do tema. Essa nova perspectiva surge no trabalho de Holt (1995), que argumenta ser mais produtivo focar na forma com que as pessoas usam suas posses para definir materialismo do que na importância a elas atribuída.

Holt baseia essa proposição em uma classificação do consumo (Figura 1) que o divide em práticas experienciais, classificatórias, integradoras e interativas. O materialismo seria definido, então, quando o consumo se desse de forma integradora ou classificatória, pois nelas os objetos produzem satisfação como um fim em si mesmos (através da posse) ou através dos significados a eles atrelados. Podemos compreender, dessa forma, que o materialismo ocorre quando, durante o consumo, assume-se que o valor é inerente aos objetos consumidos ao invés de depender da experiência de consumo ou da interação com as demais pessoas.

Figura 1: Tipologia das práticas de consume conforme Holt (1995)

CONSUMO COMO

EXPERIÊNCIA

CONSUMO COMO

INTEGRAÇÃO

CONSUMO COMO

INTERAÇAO

CONSUMO COMO

CLASSIFICAÇÃO

PROPÓSITO DA AÇÃO

Motivações Autotélicas Motivações Instrumentais

ESTRUTURA DA AÇÃO

Consumo de objetos

Consumo de relaçõesinterpessoais

CONSUMO COMO

EXPERIÊNCIA

CONSUMO COMO

INTEGRAÇÃO

CONSUMO COMO

INTERAÇAO

CONSUMO COMO

CLASSIFICAÇÃO

PROPÓSITO DA AÇÃO

Motivações Autotélicas Motivações Instrumentais

ESTRUTURA DA AÇÃO

Consumo de objetos

Consumo de relaçõesinterpessoais

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A tipologia de práticas de consumo proposta por Holt aponta que o consumo não-materialista pode ser de dois tipos: experiencial ou de integração, quando o valor é percebido como proveniente das experiências e da interação com as outras pessoas que fazem parte desta experiência. Isso nos leva a crer que não materialistas podem ter, efetivamente, menos posses que os materialistas, mas não por atribuírem menos valor a essas posses. Ao contrário, sua relativa “falta” de posses pode ser em função daquilo que ele já possui ser suficiente para saciar seus desejos (não materialistas) de experiências divertidas e proveitosas e de interações com outras pessoas. Já os desejos dos materialistas por aquisições e posses são potencialmente insaciáveis, sendo freados apenas por eventuais limites financeiros.

Conforme vimos ao tratar da concepção popular do termo, a predominância de uma visão negativa faz com que não-materialistas sejam preferidos aos materialistas por atribuírem menos importância a objetos de consumo. Porém, com a definição proposta por Holt, essa condenação não se justifica pela importância atribuída aos objetos (porque tanto materialistas como não materialistas podem valorizar as posses), mas pela forma de consumo dos objetos.

Porque materialismo envolve como uma pessoa consome e não o que consome, ele não precisa envolver bens materiais. Serviços e atividades como entretenimento, férias e mesmo educação podem ser consumidos de um jeito materialista.

Uma nova possibilidade: a ligação entre consumo de luxo e materialismo através do capital cultural

O como é a chave da ligação entre consumo de luxo e materialismo, sendo, ao mesmo tempo, sua negação. A distinção, conforme compreendemos anteriormente, separa os consumidores de luxo entre os detentores de capital cultural elevado e os novos ricos, que possuem capital predominantemente econômico.

A palavra materialismo é utilizada com tom pejorativo – significando ostentação, vontade de aparecer, falta de refinamento – para denegrir as práticas de pessoas cujos gostos são determinados apenas pelo capital econômico. Assim, teríamos que os consumidores inadequados de luxo, com capital predominantemente econômico, seriam os materialistas.

Será correto equacionar materialismo à busca por status? Se sim, é preciso levar em conta que os idealistas (detentores de capital cultural elevado) procuram adquirir prestígio através de um jogo particular de status (que também é materialismo) estruturado em torno de práticas particulares...

Tanto a separação entre materialistas e idealistas proposta por Bordieu (1988), quanto a distinção entre consumo adequado e inadequado identificada por D’Angelo (2004) se aproximam do que Csikszentmihalyi e Rochberg-Halton (1981) propõem: a classificação do materialismo em instrumental (considerado o “bom materialismo”) e terminal (que seria o “materialismo ruim”). Estes autores argumentam que as posses podem, sim, ser influências positivas na vida de uma pessoa, sendo possível identificar as duas formas de materialismo de acordo com o propósito de consumo:

Instrumental: ocorre quando os objetos agem como meios essenciais para a descoberta e sustentação de valores pessoais e objetivos de vida. Envolve a atualização pessoal e o desenvolvimento de laços mais fortes com a família e com os amigos.

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Terminal: aparece em situações nas quais o consumo não tem outro fim senão a posse em si, com a intenção de gerar inveja ou admiração em terceiros ou servir como símbolo de status.

Através dessa classificação, Csikszentmihalyi e Rochberg-Halton (1981) desobrigam o materialismo do caráter negativo, ficando este dependente da motivação. Ou seja, quando a razão do consumo é a posse em si e a intenção de despertar inveja e obter status, o materialismo é negativo e maléfico. Contudo, quando a motivação é ancorada em valores mais coletivamente orientados, o materialismo não causa danos e não pode ser visto negativamente. Richins e Dawson (1992) criticam essa divisão por ser de difícil operacionalização, já que deposita a determinação do caráter bom ou ruim do materialismo apenas do julgamento do pesquisador. A essa crítica, soma-se a inquietação de Holt (1998): será que, mesmo com motivações “corretas”, as práticas materialistas não implicam em conseqüências sociais negativas?

Com essas proposições, temos um quadro amplo do que se sabe a respeito do materialismo e do consumo de luxo. Nossas suspeitas foram levantadas – a busca pelas respostas das questões aqui propostas pode nos dizer, enfim, se os dois construtos se relacionam ou se estão completamente dissociados.

5 AFINAL, TEMOS ARGUMENTOS SUFICIENTES PARA RELACIONAR MATERIALISMO E CONSUMO DE LUXO? Chegamos ao fim deste ensaio sem uma resposta – sem ter definida a ligação (ou ausência de) entre o consumo de luxo e o materialismo – mas tendo demonstrado que a observação de construtos sob a perspectiva do consumo cultural nos permite levantar tópicos relevantes, capazes de gerar discussões mais amplamente fundamentadas a respeito dos dois construtos. Nossa proposição inicial era justamente essa – e se mostrou verdadeira – o uso desses argumentos é suficiente para relacionar materialismo com o consumo de produtos de luxo. Embora em uma perspectiva mais “dura” da ciência suposições a respeito da teoria não passem de suposições, essas podem ser elementos importantes na construção de instrumentos de pesquisa que sirvam para comprovar relações teóricas entre construtos.

Como nossas questões serão interpretadas? A quem cabe buscar respondê-las?

Deixando perguntas suspensas, é evidente que o presente ensaio tem como um de seus propósitos, questionar – apresentando uma alternativa para – a forma como dados são apresentados e relatados nas ciências sociais. Temos a percepção de que a preocupação demasiada com estruturas rígidas e formas lineares limita a criatividade e a capacidade de explanação dos autores. Gummesson (2001) – não disfarçando ser pós-moderno – critica o fato de os relatórios de pesquisas serem freqüentemente entediantes e de difícil leitura. O mesmo autor vai além, afirmando que, se um texto acadêmico é de fácil leitura ou capaz de inspirar um sorriso e mesmo uma boa risada no leitor, o autor deste tem grandes chances de ser taxado de “não-científico” e acusado de escrever um texto popular – lê-se: não apropriado para a academia.

Sabendo dos riscos inerentes às pequenas liberações e pretendendo antes incitar reflexões que sorrisos ou risadas, espera-se que a forma com que este ensaio foi conduzido tenha possibilitado o alcance dos objetivos a que se propôs cumprir. Como salientado desde o início, os leitores foram convidados a participar junto de todas as indagações, cabendo a todos, como co-autores, levar adiante as propostas feitas, até a verificação de seus próprios resultados. Fim do começo; o debate continua.

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