regulamentar para credibilizar

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O agregador da advocacia 26 Maio de 2011 www.advocatus.pt Regulamentar para credibilizar Não se deverá impedir a actuação dos mercados e o desenvolvimento da auto-regulação, nem excluir os códigos recomendatórios de boa governação, mas uma regulamentação, mesmo que imperativa, poderá contribuir para uma nova credibilização e confiança no sistema Numa altura em que surge uma crise financeira de dimensões his- tóricas, com uma recessão eco- nómica generalizada e de grande incerteza, com o desmoronar de diversas empresas e instituições financeiras, será esperável assis- tir, nos próximos tempos, a um acentuar progressivo de ques- tões judiciais relacionadas com a responsabilidade civil contra ad- ministradores de sociedades. As importantes alterações legislativas ocorridas por força do DL n.º 76- A/2006, de 29 de Março, com a maior explicitação dos deveres fun- damentais dos administradores, “Há que reagir e tentar prevenir escândalos financeiros por má governação, pois não existe uma cultura de responsabilidade dos administradores e há um subaproveitamento dos preceitos vigentes, verificando-se escassas sentenças condenatórias contra titulares de órgãos de administração” “A problemática jurídico- societária da governação das sociedades tem sofrido uma evolução bastante grande, e leva-me a questionar se deverá existir uma primazia das regras de mercado ou se, pelo contrário, deveremos continuar a reconhecer o papel da lei e a sua função reguladora” e a consagração da BJR no art. 72.º, n.º 2, do CSC, criaram novas condições que possibilitam novas perspectivas de responsabilização e análise da conduta dos adminis- tradores e uma maior sindicabilida- de por parte dos tribunais. Desta forma, com todas as altera- ções e debates a que vimos assis- tindo, há uma maior exigência de rigor, transparência, clareza, res- ponsabilização das partes, que em muito se deve à crescente influên- cia da Corporate Governance. Há necessidade de reagir ou tentar prevenir escândalos financeiros por má governação (má gestão) Corporate Governance João Ribeiro/WHO

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Regulamentar para credibilizar

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Page 1: Regulamentar para credibilizar

O agregador da advocacia26 Maio de 2011

www.advocatus.pt

RegulamentarparacredibilizarNão se deverá impedir a actuação dos mercados e o desenvolvimento da auto-regulação, nem excluir os códigos recomendatórios de boa governação, mas uma regulamentação, mesmo que imperativa, poderá contribuir para uma nova credibilização e confiança no sistema

Numa altura em que surge uma crise financeira de dimensões his-tóricas, com uma recessão eco-nómica generalizada e de grande incerteza, com o desmoronar de diversas empresas e instituições financeiras, será esperável assis-tir, nos próximos tempos, a um acentuar progressivo de ques-tões judiciais relacionadas com a responsabilidade civil contra ad-ministradores de sociedades. As importantes alterações legislativas ocorridas por força do DL n.º 76-A/2006, de 29 de Março, com a maior explicitação dos deveres fun-damentais dos administradores,

“Há que reagir e tentar prevenir escândalos financeiros por má

governação, pois não existe uma cultura de responsabilidade dos administradores e há

um subaproveitamento dos preceitos vigentes, verificando-se escassas sentenças condenatórias contra titulares de órgãos

de administração”

“A problemática jurídico- societária da governação

das sociedades tem sofrido uma evolução

bastante grande, e leva-me a questionar se deverá existir uma

primazia das regras de mercado ou se, pelo contrário, deveremos

continuar a reconhecer o papel da lei e a sua função reguladora”

e a consagração da BJR no art. 72.º, n.º 2, do CSC, criaram novas condições que possibilitam novas perspectivas de responsabilização e análise da conduta dos adminis-tradores e uma maior sindicabilida-de por parte dos tribunais. Desta forma, com todas as altera-ções e debates a que vimos assis-tindo, há uma maior exigência de rigor, transparência, clareza, res-ponsabilização das partes, que em muito se deve à crescente influên-cia da Corporate Governance. Há necessidade de reagir ou tentar prevenir escândalos financeiros por má governação (má gestão)

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Page 2: Regulamentar para credibilizar

Maio de 2011 27O agregador da advocacia

www.advocatus.pt

Filipe Barreiros

Advogado e Mestre em Direito das Empresas. Autor do livro “Responsabilidade Civil dos

Administradores: os Deveres Gerais e a Corporate Governance”, editado pela Coimbra Editora, grupo Wolters Kluwer

“Subverteu-se, a meu ver, o sentido original

da Business Judgement Rule, invertendo o

ónus da prova e a sua orientação. Desta forma, em vez de proteger os gestores, agrava a sua

situação jurídica”

“informação, transparência,

cooperação, rigor, clareza, razoabilidade,

bom senso são as palavras de ordem

a ter em conta”

Corporate Governance

dos administradores e fazer face aos novos problemas que surgem com a globalização económica (e dos mercados), pois não existe uma cultura de responsabilidade dos administradores e há um su-baproveitamento dos preceitos vigentes, verificando-se escassas sentenças condenatórias contra titulares de órgãos de administra-ção. Na sua génese, o princípio da BJR designa uma regra que limi-ta a apreciação judicial do mérito das decisões empresariais, de forma a não inibir a adopção de decisões arriscadas e dinamismo empresarial. Numa tradução livre, podemos designá-la por regra de análise e julgamento da conduta e mérito das decisões empresariais do gestor (gerentes ou administra-dores). A BJR proporciona, desta forma, um maior grau de protec-ção aos administradores, limitan-do a sua responsabilidade às de-cisões empresariais irracionais (e não irrazoáveis). Verificamos, contudo, que em Portugal a sua recepção teve um diferente enquadramento na lei. Se, por um lado, o legislador pre-tendeu consagrar a BJR no nos-so ordenamento jurídico no n.º 2 do art. 72.º, por outro modificou o seu sentido e orientação. Em vez de consagrar uma presunção de licitude, parece estabelecer, pelo contrário, uma “quase” presunção de ilicitude. No art. 72.º, n.º 2, exige-se que o gestor prove ter cumprido os de-veres que lhe são impostos no n.º 1 do art. 64.º do CSC. Tem o ónus de provar que agiu de acordo com os critérios, deveres de cuidado e diligência previstos, pois se não o conseguir fazer, a sua conduta será qualificada como ilícita, não se excluindo a sua responsabili-dade. O administrador que prove terem-se verificado as condições indicadas no n.º 2 do art. 72.º do CSC, não será responsabilizado, por ausência de ilicitude. Veio assim estatuir-se uma pre-sunção de ilicitude da conduta do gestor, sendo a ele que competirá o ónus de provar que “actuou em termos informados, livre de qual-

quer interesse pessoal e segun-do critérios de racionalidade em-presarial”. De realçar que não se exige ao administrador prova que foi uma boa decisão de gestão, mas apenas a demonstração dos requisitos e que os critérios a que obedeceu são, em termos empre-sariais, racionais. Subverteu-se, a meu ver, o senti-do original da BJR, invertendo o ónus da prova e a sua orientação. Desta forma, em vez de proteger os gestores, agrava a sua situação jurídica. Acresce que a remissão na parte final do n.º 2 do art. 72.º do CSC para “critérios de racionalidade empresarial” acaba, na verdade, não só por tornar a prova para o administrador bastante difícil, como também implica para o tri-bunal uma maior investigação e avaliação da conduta do adminis-trador, dando margem a indesejá-veis interpretações subjectivas. Quais são estes critérios? Perante uma potencial violação dos deve-res de cuidado e de “critérios de racionalidade empresarial”, como poderá o tribunal apurar a verdade dos factos, se não for pela ava-liação do mérito desses mesmos actos (objectivamente contrários aos critérios de racionalidade em-presarial)?A efectivação da responsabilida-de civil dos administradores para com a sociedade, por violação do dever de cuidado, será bastante difícil fora dos casos em que se possa, com grande certeza e rigor, ajuizar e provar a falta de cuidado ou a pouca diligência da conduta dos administradores. Desta forma, em vez de se afastar dos tribu-nais o julgamento do mérito das decisões empresariais, acaba por aproximá-lo cada vez mais da via judicial. A problemática jurídico-societária da governação das sociedades tem sofrido uma evolução bastan-te grande, e leva-me a questionar se deverá existir uma primazia das regras de mercado, da liberda-de negocial e da auto-regulação, ou se, pelo contrário, deveremos continuar a reconhecer o papel da Lei e a sua função reguladora.

Se há uns anos atrás o caminho era para a progressiva auto-regu-lação societária, dúvidas surgem se, face à conjuntura actual com uma crise económica sem prece-dentes e com os mediáticos casos actuais, como o caso Madoff, en-tre outros, em que não só se vis-lumbram notórios casos de gestão negligente, mas outros em que a supervisão das entidades regula-doras, e supostamente responsá-veis, falharam redondamente, não se assistirá a uma vontade de um maior controlo e sindicabilidade por parte dos tribunais do mérito das decisões empresariais, um retorno a uma regulação feita por entidades estaduais e judiciais, até por imperativos de pressão social e a uma maior exigência de responsabilização por parte dos administradores. Não se deverá impedir a actuação dos mercados e o desenvolvimen-to da auto-regulação, nem excluir os códigos recomendatórios de boa governação, mas reconheço que uma regulamentação, mesmo que imperativa, poderá contribuir para uma nova credibilização e confiança no sistema. Informação, transparência, coope--ração, rigor, clareza, razoabilida-de, bom senso são as palavras de ordem a ter em conta.