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REVISTA TEXTUS | São Cristóvão - ano 1, n. 1, p. 81-92, abr. 2019 81 REGISTROS DE LIBERDADE DE CRIANÇAS ESCRAVAS DO SÉCULO XIX EM SÃO CRISTÓVÃO/SE: EDIÇÃO SEMIDILOMÁTICA E ESTUDO SOCIO- HISTÓRICO Joana Santos Rocha Marylon Max Balbino Muniz Resumo: Este artigo busca compreender o porquê da soltura de algumas crianças escravas em meados do século XIX, época na qual essas crianças eram elementos de extrema importância para a construção e evolução econômica do Brasil. Para isso, é apresentada uma proposta de edição conservadora de três registros de liberdade concedidos a cativos menores, datados dentre os anos de 1855 e 1870, sendo então anteriores à Lei do Ventre Livre. As teorias são fundamentadas com base nos pressupostos teóricos da História Social e da Filologia, visando à reconstrução do contexto no qual os documentos foram escritos. O artigo revela o quão difícil é lidar com textos manuscritos antigos, cujos autores materiais ou intelectuais não se encontram mais presentes. No entanto, o estudo desse tipo de documentação abre um leque de possibilidades e justificativas para a pesquisas em torno de fatos históricos ainda não totalmente esclarecidos ou suficientemente debatidos, como, por exemplo, como se dava a libertação de escravos menores, as relações de afeto em torno das crianças filhas de escravos e os interesses financeiros por trás da concessão de liberdade. Palavras-chave: Filologia. Edição. História Social. Registros de Liberdade. Crianças Escravas. Abstract: This article aims to comprehend why some slave children were freed in the mid-nineteenth century, time when those infants were elements of extreme importance to the construction and economic evolution of Brazil. For that, it is presented a conservative editing proposal of three release documents preceding the Law of the Free Womb granted to underaged captives, dated from 1855 to 1870. The theories are based on theoretical assumptions of the social history and philology, seeking the reconstruction of the context in witch those documents were written. The article reveals how hard it is to deal with old manuscripts when their material or intellectual owners are no longer present. However, the study of this type of documentation leads to a great range of possibilities and justifications to researchs of historical facts that haven't been totally enlightened or sufficiently debated, such as: how did the manumission of underaged slaves happened, the relations of affection around slaves's children, or the financial interests behind the conception of freedom. Keywords: Philology. Editing. Social History. Release Documents. Child Slavery. INTRODUÇÃO A busca pelo corpus, o qual consta e constrói as variantes propostas neste artigo, se deu em decorrência da participação do Grupo de Estudos Filológicos em Sergipe (GEFES), do qual somos membro, que propôs uma busca a documentos antigos acerca de histórias ocorridas Graduanda do curso de licenciatura em Letras Português da Universidade Federal de Sergipe. Email: [email protected]. Membro do Grupo de Estudos Filológicos de Sergipe GEFES (CNPq-UFS). Graduando do curso de licenciatura em Letras Português da Universidade Federal de Sergipe. Email: [email protected]. Membro do Grupo de Estudos Filológicos de Sergipe GEFES (CNPq-UFS). Trabalho realizado sob orientação técnica da Profª Drª Renata Ferreira Costa (DLEV/UFS).

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REVISTA TEXTUS | São Cristóvão - ano 1, n. 1, p. 81-92, abr. 2019

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REGISTROS DE LIBERDADE DE CRIANÇAS ESCRAVAS DO SÉCULO XIX EM

SÃO CRISTÓVÃO/SE: EDIÇÃO SEMIDILOMÁTICA E ESTUDO SOCIO-

HISTÓRICO

Joana Santos Rocha

Marylon Max Balbino Muniz

Resumo: Este artigo busca compreender o porquê da soltura de algumas crianças escravas em meados do século

XIX, época na qual essas crianças eram elementos de extrema importância para a construção e evolução econômica

do Brasil. Para isso, é apresentada uma proposta de edição conservadora de três registros de liberdade concedidos

a cativos menores, datados dentre os anos de 1855 e 1870, sendo então anteriores à Lei do Ventre Livre. As teorias

são fundamentadas com base nos pressupostos teóricos da História Social e da Filologia, visando à reconstrução

do contexto no qual os documentos foram escritos. O artigo revela o quão difícil é lidar com textos manuscritos

antigos, cujos autores materiais ou intelectuais não se encontram mais presentes. No entanto, o estudo desse tipo

de documentação abre um leque de possibilidades e justificativas para a pesquisas em torno de fatos históricos

ainda não totalmente esclarecidos ou suficientemente debatidos, como, por exemplo, como se dava a libertação de

escravos menores, as relações de afeto em torno das crianças filhas de escravos e os interesses financeiros por trás

da concessão de liberdade.

Palavras-chave: Filologia. Edição. História Social. Registros de Liberdade. Crianças Escravas.

Abstract: This article aims to comprehend why some slave children were freed in the mid-nineteenth century,

time when those infants were elements of extreme importance to the construction and economic evolution of

Brazil. For that, it is presented a conservative editing proposal of three release documents preceding the Law of

the Free Womb granted to underaged captives, dated from 1855 to 1870. The theories are based on theoretical

assumptions of the social history and philology, seeking the reconstruction of the context in witch those documents

were written. The article reveals how hard it is to deal with old manuscripts when their material or intellectual

owners are no longer present. However, the study of this type of documentation leads to a great range of

possibilities and justifications to researchs of historical facts that haven't been totally enlightened or sufficiently

debated, such as: how did the manumission of underaged slaves happened, the relations of affection around slaves's

children, or the financial interests behind the conception of freedom.

Keywords: Philology. Editing. Social History. Release Documents. Child Slavery.

INTRODUÇÃO

A busca pelo corpus, o qual consta e constrói as variantes propostas neste artigo, se

deu em decorrência da participação do Grupo de Estudos Filológicos em Sergipe (GEFES), do

qual somos membro, que propôs uma busca a documentos antigos acerca de histórias ocorridas

Graduanda do curso de licenciatura em Letras Português da Universidade Federal de Sergipe. Email:

[email protected]. Membro do Grupo de Estudos Filológicos de Sergipe – GEFES (CNPq-UFS). Graduando do curso de licenciatura em Letras Português da Universidade Federal de Sergipe. Email:

[email protected]. Membro do Grupo de Estudos Filológicos de Sergipe – GEFES (CNPq-UFS).

Trabalho realizado sob orientação técnica da Profª Drª Renata Ferreira Costa (DLEV/UFS).

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no município de São Cristóvão. Dentre os vários casos mantidos no Arquivo Judiciário de

Sergipe, a particularidade dos registros de crianças libertas entre os anos 1855 e 1870,

desencadeou a necessidade de uma análise socio-histórica.

As datas descritas nos documentos antecedem a Lei do Ventre Livre, o que desperta

indagações sobre as solturas desses cativos menores. A lei Nº 2.040, sancionada no ano 1871,

descreve em seu primeiro artigo o seguinte: “Os filhos de mulher escrava que nascerem no

Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre”. As leis abolicionistas são

datadas a partir de meados do século XIX até o final deste século, o que marcou o período do

segundo reinado com um contraste entre o regime escravocrata e o movimento abolicionista.

Para tanto, abre-se o questionamento a respeito dos interesses existentes nas alforrias

concedidas para crianças antes do ano de 1871, considerando que, provavelmente, provocaria

uma queda referente à questão econômica e mão de obra, assim como Santos (2004, p.70)

destaca: “A escravidão durou muito tempo no Brasil, isso se deve ao fato de que o escravo era

um importante ativo, já que era considerado uma mão-de-obra barata e segura”.

Sendo assim, considerando a relevância dos escravos para o crescimento econômico

do Brasil, este artigo propõe apresentar hipóteses, por meio de uma edição semidiplomática e

análise sócio-histórica, e levantar a discussão sobre a libertação destas crianças nascidas em

condição de escravas no século XIX. Almejando expor e tornar de fácil acesso as informações

sobre as condições, pouco discutidas, as quais eram expostas pouco antes da sua intitulada

liberdade, além disso, sensibilizar a sociedade atual sobre as questões que circundam a

formação da família brasileira.

Deste modo, para prosperar nos estudos destes registros, o presente texto tenciona

desenvolver análises dos textos à luz dos pressupostos teórico-metodológicos da filologia;

buscar justificativas sobre a autoria material e autoria intelectual; levar em conta as funções

adjetivas do texto e as funções transcendentes da sociedade São Cristovense; e comparar

registros no intuito de extrair informações que dialoguem entre si ou que destoem mostrando

pontos de vista distintos.

1. ESCRAVIDÃO NO BRASIL: UMA PERSPECTIVA SOCIOHISTÓRICA

Um contratempo encontrado ao falar sobre pautas vinculadas a uma época não vivida

pelos leitores atuais, como o período escravagista e toda a importância de distintas culturas para

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a formação da nação, é que, apesar de muita informação escrita, relatada e documentada, poucos

desses dados chegam às nossas mãos, criando uma ruptura entre as fontes documentais e a

sociedade. Diante disso, se faz necessário o traçado de uma linha histórica que procure trazer à

tona alguns pontos importantes para serem discutidos e refletidos, abrindo margem para a

reconstrução ou o conhecimento da memória nacional.

1.1 Conflitos entre povos

Quando nos referimos à composição da nação brasileira, é necessário dialogar sobre

alguns dos seus principais constituintes, como, por exemplo, os portugueses, os povos

originários (indígenas) e os africanos, estes últimos trazidos contra sua vontade, numa situação

de escravidão.

Os portugueses, ao chegarem no Brasil, tiveram que lidar com os povos indígenas que

aqui habitavam, no entanto, por serem um povo caracteristicamente introvertido, ou seja, uma

comunidade intransigente, devido a inexistência de contato com outras culturas, tal como cita

Freyre (1966, p. 401), desencadeou em uma resistência, uma não adaptação e dificuldade de

seu domínio. Já com os negros africanos, que eram comprados e trazidos para o Brasil em

navios negreiros, numa situação completamente desumana e insalubre, com a finalidade de

servir aos europeus, a situação era diferente. Por serem proveniente de uma região

climaticamente diferente, região mais calorosa, é possível que tenha influenciado na formação

de um povo mais resistente as adversidades, na construção de um povo mais energético, mais

ativo, robusto, características essas que, em conjunto com a passividade encontrada nos povos

africanos, os colocavam como indivíduos com uma facilidade maior para se adaptar, com uma

força não vista nos povos originários, aptos para lidar com a lavoura de cana. O que fez com

que, de certa forma, os africanos se tornassem um dos principais fatores para o crescimento

econômico no Brasil, pois representavam mão de obra escrava e um trabalho excessivo,

marcado por crueldade e tortura.

Ainda fundamentando-se em Freyre (1966, p. 402), os africanos possuíam uma cultura

mais desenvolvida em relação aos indígenas, ou, colocando em palavras talvez mais adequadas,

possuíam costumes com aspectos mais próximos do que seria a cultura dos portugueses, assim

facilitando a adaptação, a passagem do conhecimento e costumes apresentados para eles, e a

disseminação do que era aprendido, como, por exemplo, a língua portuguesa e a religião

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católica, que acabara, de qualquer forma, sendo propagada entre os indígenas pelos escravos,

que escapavam, antes mesmo da intervenção do homem branco.

Diante disso, é correto afirmar que quanto mais lucro representava o trabalho dos

escravos descendentes da África, já considerando os filhos de escravas nascidos em território

brasileiro, mais se entendia que aquele regime escravocrata não poderia se extinguir, logo, era

necessário que as crianças negras, nascidas em condição de escravas, estivessem sob domínio

dos portugueses, em um ciclo “interminável” de exploração.

1.2 Fim da era escravagista

Valendo-se de uma abordagem feita por Santos (2004, p. 69), é possível elencar alguns

pontos históricos relevantes para a explicação do declínio do sistema escravista, tais como: “o

estabelecimento do fim do abastecimento de escravos vindos da África”, em 1850, fazendo com

que os senhores de escravos tivessem que lidar com uma questão interna, de como prosperar

com o benefício da mão de obra barata, agora sem ajuda externa na compra de cativos; seguido,

então, da Lei do Ventre Livre, em 1871, também conhecida como Lei Rio Branco, que garantia

a liberdade das crianças filhas de mulheres escravas a partir do momento em que esta entrou

em vigor; a Lei do Sexagenário foi mais um avanço e, promulgada em 28 de setembro de 1885,

garantia a liberdade de escravos com mais de 60 anos, no entanto, ainda não tão satisfatória,

pois poucos escravos chegavam a essa idade por conta dos tratamentos que lhes eram dados; a

cobrança de impostos acerca da compra dos cativos feitas internamente foi o passo final até que

chegasse a abolição, em 1888.

1.3 As crianças após a liberdade

Entre 1850 e 1871, os filhos de escravas passaram a ganhar maior importância, pois, com

a proibição do abastecimento externo de escravos, fazia-se necessária a compra de escravos e a

manutenção desse sistema escravagista de forma interna. No entanto, documentos encontrados

no Arquivo Judiciário de Sergipe testemunham solturas desses cativos entre as datas já

mencionadas.

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Mediante essa perspectiva, discorreremos sobre crianças após sua liberdade. Algumas

questões passam a ser observadas. De acordo com as análises de Araújo (2001, p.123-124 apud

TEIXEIRA, 2010, p.60), o termo “cria” é utilizado para denominar os filhos livres das escravas,

prática que vigorou até o fim do século XIX. Outras denominações eram feitas, divisões até

mesmo por faixa etária, como é destacado por Neves (1993, p.56 apud TEIXEIRIA, 2010,

p.60):

[...] costumeiramente, as idades da criança escrava aparecem assim

escalonadas, conforme atestam alguns autores: as “crias de peito” eram os

bebês até um ano de idade, enquanto as “crias de pé” eram crianças muito

novas, mas que já sabiam andar. “Menino” e “menina” eram termos usados

para designar as crianças até aproximadamente oito anos de idade, e

“moleque” e “moleca” indicavam que a criança tinha entre treze e quatorze

anos.

As cartas de alforrias utilizadas como fontes históricas neste trabalho revelou diversas

realidades e condições referentes à libertação de escravos de idades distintas, revelando a

importância das crianças escravas para a “Casa Grande”.

2. ESTUDO DAS CONDIÇÕES DE LIBERDADE EM CARTAS DE ALFORRIA

DA CIDADE DE SÃO CRISTOVÃO

Os três documentos selecionados para efetuar a análise, além de contarem com o fato

de serem registros lavrados em São Cristóvão - SE, compartilham de semelhanças quando

relacionados a questões como o contexto histórico, época em que a escravidão ainda era

recorrente e quando se pensa em conteúdo, pois todos eles relatam fatos da libertação de

crianças escravas: cartas de alforrias concedidas em uma ocasião controversa, já que, segundo

suas datações, 1855 e 1870, são acontecimentos ocorridos em um momento no qual as crianças

negras precisavam estar sob domínio dos seus senhores para que prevalecesse a escravidão pelo

viés da comercialização interna e, pensando a longo prazo, contribuiriam para o nascimento de

novas crianças escravas.

Entretanto, mesmo contendo essa conformidade, são registros diferentes e possuem suas

particularidades e motivações específicas para que se chegasse ao ato de proporcionar a

liberdade desses cativos, os quais são retratados em suas respectivas cartas. Isto posto, e levando

em consideração que no século XIX existia uma soberania de raça e uma discriminação muito

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presente, forma-se um questionamento sobre o real motivo dessas crianças serem privilegiadas

com o benefício da tão invejada liberdade. Levando isso em conta, algumas hipóteses serão

levantadas para que possamos compreender sobre quais perspectivas eram concedidas as

solturas dessas crianças.

2.1 Registro da carta de liberdade do filho de uma crioula de nome Benedita

A carta é datada em primeiro de março de 1855, período que sucede o fim do

abastecimento externo de escravos no Brasil (1850) e antecede a vigência da primeira lei

abolicionista, Lei do Ventre Livre (1871). O documento narra a história de um garoto, cujo o

nome não é evidenciado, no entanto, é descrito como filho da escrava Benedita, que estava sob

o domínio do casal e senhores José Albino dos Santos e Victorina Maria do Sacramento, estes

concederiam sua liberdade. O registro é escrito pelo escrivão, José Antonio da Ressureição

Pinto e lavrado pelo tabelião Roberto Francisco de Carvalho, ditos juramentados, além destes

são citadas testemunhas no ato de reconhecimento de liberdade: Marcelino Perreira de

Vasconcello, Manuel do Amparo, José de Campos Cajareira e Manuel Cardoso de Loureiro

Trafa. Tanto as testemunhas quanto o escrivão, tabelião e senhores oficializaram o documento

por meio de suas assinaturas, contudo, o senhor José Albino assina em nome da sua esposa

Victorina Maria, visto que nessa época ainda havia uma divisão de poder muito presente entre

homens e mulheres.

Os senhores afirmam ser um caso de afeto e, por não terem outros filhos, o liberta com

a condição de que a criança os acompanhe até o falecimento de ambos, além disso que mantenha

bons comportamentos, para que assim fique gozando de sua liberdade desde a concretude do

registro, deixando para o filho da crioula Benedita a condições para manter sua liberdade, ou

seja, sua liberdade passaria a depender de suas próprias ações.

É possível fazer um paralelo entre concepções de liberdade atual e a que foi concedida

ao filho da crioula Benedita. Liberdade no século XXI, como descrito no quinto artigo

constitucional está vinculado com o direito de ir e vir, diz também que todos podem praticar

sua religião e expor suas opiniões, desde que possua argumentos e justificativas. O que

repudiaria a hipótese levantada por meio da análise deste registro, visto que a soltura foi feita a

partir de uma condição que, mesmo chamando e considerando o indivíduo livre, ele

permaneceria vinculado à família: uma liberdade mascarada.

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2.2 Registro da carta de liberdade da crioula de nome Luisa

Com data dezesseis de agosto de janeiro de 1855, a carta conta a história da crioula de

nome Luisa descrita com idade de mais ou menos doze anos. Luisa obteve sua liberdade

conferida por seu senhor, Marcos Chanher, que ao receber a quantia de seis centos mil reis

(moeda legal da época) de seus pais, Fellippe e Maria, comprou-a de Antonio Cullio de Sousa.

O documento descreve ainda as seguintes personalidades: o tabelião Roberto Francisco

Carvalho, o escrivão José Antonio da Ressureição Pinto, ditos juramentados, e as testemunhas

Ramiro Gonçaloz Valença e José Domingues de Sousa Brandão.

Neste caso, destaca-se a forma com a qual as palavras são escolhidas pelo Marcos

Chanher, antigo dono da escravinha, que, ao solicitar o pedido da sua soltura, utiliza-se de frases

que trazidas para o português atual se configurariam como “gozar de todos os direitos que por

lei são permitidos”, “proibindo aos meus herdeiros presentes e futuros a se oporem” e “peço as

justiças do País que a defendam e guardem”. Diante dos fatos apresentados, é notório que há

em suas palavras uma preocupação significativa com a criança escrava e, por conta disso,

suscita uma curiosidade em busca do saber o porquê da existência dessa preocupação e o que a

diferenciava de todos os outros, se é que havia uma diferenciação.

Segundo Paiva (1995, p. 50), existem algumas possibilidades que explicariam tal feito,

algumas delas seriam alforrias concedidas a escravos que os ajudavam os senhores de escravos

de alguma forma, como, por exemplo: na delação de irregularidades, por manterem bons

serviços, por caridade, afeto ou até mesmo gratidão. No entanto, por um método de eliminação,

tendo em vista as palavras colocadas no documento, a teoria da libertação por uma questão

afetuosa é a mais plausível e a que mais se aproxima do contexto, levando em conta a

equiparação com seus herdeiros e colocando a escrava acima das futuras decisões que afetariam

sua integridade.

2.3 Registro da carta de liberdade da mulatinha Anna

Nesse registro, datado em vinte e cinco de agosto de 1870, um ano antes da Lei do

Ventre Livre entrar em vigor, trata-se de João Manoel dos Santos e Eugenia Maria de Sam José

relatando recebera como herança, deixada pela Dona Angelina de Meneses (Mãe e sogra), uma

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mulatinha de nome Anna, com idade de mais ou menos quatro anos. Segundo o registro, Anna

era filha de Mantinha, escrava criada pelo casal com muita afeição.

No documento que concede a soltura de Anna, aponta-se um diferencial bastante

relevante em comparação com os casos já citados. Se no cenário do primeiro registro existe

uma transferência de bens, o qual coloca a criança, antes escrava, numa posição favorável,

levando em consideração a situação de milhares de negros que não gozavam da liberdade e

muito menos conseguiam “lucrar”, no segundo já existe um caso de apreço e de soltura, sem o

benefício de transferência de bens, .porém ainda sendo algo relativamente favorável e

privilegiado, tratando-se de uma comparação entre a própria comunidade afrodescendente.

Entretanto, neste caso, há a presença de uma clausula a mais, um fator que continuaria a prender

aquela escrava à família, que, naquele momento, alegava estar concedendo a liberdade de Anna

por motivos de afeição. Sua libertação possuía um preço, por conta de toda a alimentação e

custos que foram desencadeados para a escrava, avaliado em cento e cinquenta mil reis, um

valor altíssimo, levando em conta que se tratava de uma mulher e negra.

3. DESCRIÇÃO DO CÓDICE

Salvaguardados no Arquivo Judiciário de Sergipe, sob a descrição de divisão de

memórias, na caixa número 59 da série cível, há um conjunto de livros de notas, datados entre

os anos de 1850 a 1871. Estes são a reunião de 5 códices com diversos registros, entre

testamentos e alforrias concedidas a escravos durante o século XIX na cidade de São Cristóvão.

Para descrever os aspectos dos registros encontrados, a filologia apoia-se em algumas

ciências afins para o estudo de fontes escritas: a diplomática, a paleografia e a codicologia.

3.1 Diplomática

Sendo estes códices de natureza histórico-jurídica, interessam ao campo da diplomática.

Dito isso, definiremos o documento através das palavras de Theodor Sickel (1898, p. 2 apud

SPINA, 1977, p. 19): “Um testemunho escrito de um fato de natureza jurídica, coligido com a

observância de certas formas determinadas distintas a conferir-lhe fé e dar-lhe força de prova”.

Portanto, a diplomática assume a função crítica, julgando a autencidade, sendo ela verificável,

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pois os registros analisados são lavrados por notários públicos, e analisando seu conteúdo (essa

frase está deslocada aqui).

A diplomática possui parâmetros para definir o tipo de documento, descreveremos a

tipologia do manuscrito como “Registros”, que, de acordo com Berwanger (2008, p. 29), é

escrito por extenso e relata os atos de determinado período escravocrata feito por senhores de

engenhos no século XIX.

Sobre mesma perspectiva, pode-se observar as características do corpus misticum, que

contém a autoria intelectual, ou seja, aquele que cria o pensamento, a ideia. Sendo assim, no

âmbito dos registros apresentados, é a vontade dos senhores de escravos, representado pelo

conteúdo do texto. Já o corpus mechanicum, que guarda a autoria material, é aquele que escreve

por quem produz intelectualmente, no manuscrito era a prática do escrivão que tornava oficial

a vontade dos donos de escravos.

3.2 Paleografia

Sobre os aspectos paleográficos, os quais nos permitem compreender de maneira

significativa a circulação do manuscrito em questão, desde a leitura, a decodificação das

informações dispostas, possibilitando situar o período e a origem. Como diz Berwanger (2008,

p. 90), “O paleógrafo deve ter conhecimento do vocabulário, grafia, abreviaturas e terminologia

da época do documento”.

Destacamos, então, que a escrita corrente, desenvolvida em todo documento é a

humanística cursiva, levemente inclinada para a direita. A tinta utilizada na escrita deste

documento é a ferrogálica de cor preta. E referente ao desenho da letra, são acusadas algumas

particularidades: em dígrafo “ss” o segundo aparece de forma alongada. Em termos

taquigráficos, o documento apresenta raras abreviaturas.

Outro aspecto dessa natureza são os reclames, que são a repetição de uma palavra no

final de um fólio e no início de outro, com a intenção de adiantar a leitura, assim como cita Dias

(2005), tratamos o uso dos reclames para facilitar a leitura de livros na antiguidade: “Dizemos

que os reclames tinham a função de adiantar a leitura pois, como já referido acima, boa parte

dos antigos códices e livros não apresentava o tamanho e o formato atuais.”

Figura 1: Fac-símiles de exemplo de reclames encontrados no códice

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Fonte: Fundo do SCR/C.1°OF do Arquivo Judiciário de Sergipe. Fotografia dos autores.

3.3 Codicologia

A codicologia, como ramificação da paleografia, trata de documentos manuscritos

reunidos para formação de um livro, outra característica descritiva sobre o nosso objeto, para

que compreendamos de que modo era feita a transmissão de conteúdo, discutindo a

funcionalidade e o estado atual do códice, interessando o suporte material e o instrumento de

escrita.

Os casos analisados neste artigo estão contidos nos códices enumerados como livro dois

e livro cinco.

Os códices encontrados na caixa 59 do Arquivo Judiciário de Sergipe, com notação A1-

M1-P2são encadernados, possuem dimensões de 33,00 x 22,00cm, tem suporte de escrita de

cor amarelada, de espessura fina, sem marca d´água ou carimbos. O livro de número dois

contendo 48 fólios e o de número cinco contendo 200 fólios. Existem marcas de deterioração

por ação dos papirófagos e umidade, presente em grande parte dos fólios, mas com pouca perda

de conteúdo.

Figura 2: Fac-símiles da capa e contracapa do códice 5

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Fonte: Fundo do SCR/C.1°OF do Arquivo Judiciário de Sergipe. Fotografia dos autores.

3.4 Aspectos linguísticos

Há um número considerável de consoantes germinadas, esses casos não se aplicam ao

uso comum de dígrafos. De acordo com Costa (2014, p. 78), “O uso das consoantes duplicadas

é, na verdade, um reflexo da língua latina ou uma forma de tornar a escrita das palavras mais

próxima do latim, fator que só fornecia informação no campo visual, conferindo prestígio à

língua portuguesa.”.

F Affeição Oficial

L Vasconcello Tabelliao Sillo Velloso

N Anna Annos Indennisação

R Feverreirro

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história busca estudar eventos passados restringindo-se a determinado povo ou época,

para tanto essa ciência apoia-se em registros que narrem os acontecimentos. Interessa-nos como

objeto de análise de histórias mais primitivas o estudo da escrita, visto que é a única forma de

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REVISTA TEXTUS | São Cristóvão - ano 1, n. 1, p. 81-92, abr. 2019

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perpetuar o conhecimento e acontecimentos que traçaram a humanidade, sendo a filologia

designada para o estudo do texto escrito, constituindo-se como uma das ferramentas

fundamentais para a interpretação de sociedades históricas.

Sendo assim, este trabalho buscou apresentar um estudo sociohistórico da realidade das

crianças escravas no século XIX, por meio da leitura filológica de registros manuscritos, de

modo a facilitar o acesso aos conteúdos dos registros encontrados, colaborando para ampliar o

estudo da história da criança no Brasil e a discussão da nossa realidade escravocrata.

Tendo em vista a escassez de estudos voltados para o âmbito do questionamento da

libertação de algumas crianças cativas, que é anterior à existência de leis que garantiam a

independência desses escravos, este trabalho contribui com informações pertinentes para a

reconfiguração do recorte histórico tratado.

REFERÊNCIAS

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Diplomática. 3. ed. rev. e ampl. Santa Maria-RS: Editora UFSM, 2008.

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