registos e escritas privadas com histó · pdf fileda história do...

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Página web: http://www.madeira-edu.pt/ceha • Email: [email protected] 1 13 Fevereiro 2012 COORDENAÇÃO: Cláudia Faria SUMÁRIO Apresentação................................................................................................................. 3 • João Higino Ferraz: Uma Vida – Um Arquivo Privado ..................................... 4 • Epistolografia: Charles Darwin e o Arquipélago da Madeira........................ 8 • Em busca da família - Modos de fazer história .................................................. 9 • Sobre memórias que dormem no tempo ........................................................ 10 • Fotografia como registo Histórico....................................................................... 10 • Uma história de família ........................................................................................... 12 • Escritas populares em contextos de mobilidade (Séc. XIX e XX) ............. 14 • A Utilização de Arquivos Familiares Norte-Americanos para o Estudo da História de Macau (Século XIX) ......................................... 24 • Dutch Diary Archive - O Arquivo de Diários na Holanda ............................ 27 • “Things gone astray…”Archival research and private lives ....................... 31 • Diários e Arquivos ..................................................................................................... 34 • Notas de leitura.......................................................................................................... 37 Página 2 Registos e Escritas privadas com História Alberto Vieira (Presidente CEHA) H á muito tempo que entendemos que a História não se faz apenas com a do- cumentação oficial e aquela que está reunida nos Arquivos Públicos. Aqui apenas podemos encontrar uma parte dessa realidade, mais de carácter institucional, que se alheia do quoti- diano e do indivíduo. Tudo o mais que queira- mos conhecer ou estudar encontra-se noutro de tipo de fontes, quase sempre desvalori- zadas. Felizmente que, nas últimas décadas, temos visto uma cada vez maior valorização da história do indivíduo e da vida privada que tem obrigado a uma procura deste distinto tipo de fontes históricas.

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13Fe

vere

iro 2

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COORDENAÇÃO: Cláudia Faria

sumário• Apresentação.................................................................................................................3• JoãoHiginoFerraz:UmaVida–UmArquivoPrivado.....................................4• Epistolografia:CharlesDarwineoArquipélagodaMadeira........................8• Embuscadafamília-Modosdefazerhistória..................................................9• Sobrememóriasquedormemnotempo........................................................ 10• FotografiacomoregistoHistórico....................................................................... 10• Umahistóriadefamília........................................................................................... 12• Escritaspopularesemcontextosdemobilidade(Séc.XIXeXX)............. 14• AUtilizaçãodeArquivosFamiliaresNorte-AmericanosparaoEstudodaHistóriadeMacau(SéculoXIX)......................................... 24

• DutchDiaryArchive-OArquivodeDiáriosnaHolanda............................ 27• “Thingsgoneastray…”Archivalresearchandprivatelives....................... 31• DiárioseArquivos..................................................................................................... 34• Notasdeleitura.......................................................................................................... 37

Página 2

Registos e Escritas privadas com História

AlbertoVieira(PresidenteCEHA)

H ámuitotempoqueentendemosqueaHistórianãosefazapenascomado-

cumentaçãooficialeaquelaqueestáreunidanosArquivosPúblicos.Aquiapenaspodemosencontrarumapartedessarealidade,maisdecarácterinstitucional,quesealheiadoquoti-dianoedoindivíduo.Tudoomaisquequeira-mosconhecerouestudarencontra-senoutrodetipodefontes,quasesempredesvalori-zadas.Felizmenteque,nasúltimasdécadas,temosvistoumacadavezmaiorvalorizaçãodahistóriadoindivíduoedavidaprivadaquetemobrigadoaumaprocuradestedistintotipodefonteshistóricas.

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Poroutroladoaepistolografiatemganhointeresse,nosúltimosanos,comotemadeestudos,adiversosníveisdoconhecimento.Tambémsepublicaramdiversascompilaçõesdecartas,algumasmaiscélebresereferenciadasqueoutras,umasquevalempelaformadaescritaecarizliterário,outrasqueseafirmampelosconteúdosdiferen-ciadoseque,porvezes,aclaramoucompletamodiscursohistórico.Mui-tastiveramdestinatáriomasnuncachegaramàssuasmãos.Outrasnun-caotiverammas,felizmente,chega-ramaténósefazempartedonossopatrimóniodocumental.Hámuitoqueaepistolografiaévalorizadanaconstruçãododiscursohistórico.

Ascartas,talcomoosdiários,revelam-nos,frequentemente,aoutrafacedeumquotidianoourea-lidadequeostestemunhosmateriaiseadocumentaçãooficial,porvezes,nosnegam.Nãopodemosesqueceroutrasformasdetestemunhoparti-cular,comoaliteraturadeviagenseosdiários.

Acartaéumeloqueprendeduaspessoasequetestemunhaummovimentodeideias,produtosegentes.Elafoi,durantemuitotem-po,ummeiodecontactoentredoisinterlocutores,servindoparatransmitirafetos,noti-ciaraspetospessoaisdoquotidiano,uminstrumentocomercialqueunedoisportosedoisintervenientes,numprocessodecompraevendadeprodutos.

Ainformaçãodestasmissivasapresentaumcarácterintimista,alheioaosprotocolosdacorres-pondênciaoficialeinstitucional.Nestasúltimas,oformalismoquebraessaintimidadeedesumanizaoconteúdo.Jánasprimeiras,queroremetente,querodestinatáriosãohumanose,comotal,nacarta,emqualquercircunstânciatranspareceestarealidade.Deacordocomograudeparentescoouderelaçãoentreambososinterlocutores,aescritaganhamaioroumenorintimidade,podendomesmoserexpressadeformacodificada.

Cientesdestarealidadeedaaberturatemáticaaqueodiscursohistoriográficofoisujeitonasúltimasdécadas,apostamosnavalorizaçãodaescritaprivadacomoformadeconhecimentodestaoutrarealidade

(Continuação)Editorial

comodapossibilidadedeconfirmaçãoeaclara-çãodeaspetosdanossaHistória.DaíosdebatesrealizadossobreasEscritasdasMobilidadesem2010e2011eagoraaapostanarecolhadestasqueseencontramdispersasempapéisounamemóriadecadaumdenós.

RecordamosqueaoníveldoCEHAtemosapostadonavalorizaçãodestasescritascomapublicaçãodeváriostrabalhoseescritasdearquivosprivados.

Vieira,Alberto,1996,OPúblicoeoPrivadonaHistóriadaMadeira,Funchal,CEHA.;

Vieira,Alberto,1998,OPúblicoeoPrivadonaHistóriadaMadeira,Funchal,CEHA.

FREITAS,JoãoAbelde,1935,CartaaoDr.OliveiraSalazar,28deMarçode1935,inVieira,Alberto,2001,HistóriadaMadeira,Funchal,pp.335-336,DisponívelnaintegraemVIEIRA,Alberto(coordenação),AAUTONOMIA:Históriaedocumentos,Funchal,CEHA,2001(DVD).

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O meu primeiro contacto com arquivos familiares e documentos privados data do início do meu mes-

trado, altura em que aceitei o desafio de “investigar” a his-tória da família Phelps. Já passaram alguns anos e a ver-dade é que o caminho está longe de ter chegado ao fim. Niguém me avisou! Alguém sabia que era assim? Ou era mesmo suposto ser um segredo? Que quando se começa a investigar, quando se pega na ponta de um fio, o novelo que surge, além de ser inesperado

- e isso confesso atrai-me imenso!! é infinito. Confesso também que ao percorrer os passos desta fa-

mília que durante o século XIX se fixou no Funchal, tenho igualmente percorrido os passos da minha caminhada. Será o caminho o mesmo? ou apenas paralelo? Ou até, in-verso?

– adoro andar ao contrário! Seja, qual for a orientação, a verdade é que descobri que

gosto de descobrir! Que gosto de pesquizar, de investigar. Sim, de me sentar dias a fio dentro de arquivos e biblio-tecas, rodeada de livros e documentos cheios de pó, chei-ros, texturas, e de tantos silêncios que desvedam segredos e mistérios. Sim, porque partir em busca de algo, é sempre excitante. Raras vezes se sabe o que se irá encontrar, e pior, se é que se irá encontrar alguma coisa. E é preciso estar atento. Olhos bem abertos. Concentração máxima. Eu di-ria mais: temos de nos dar ao documento, sem criar expec-tativas, nem se fiar em máximas e regras básicas disto ou daquilo. Acreditam mesmo que os documentos cumprem (sempre) as regras? Será que cada um de nós também as cumpre (sempre)? Ora ai está. Quando se investiga é pre-ciso munir-se de algumas ferramentas, de algumas noções, sim, obviamente que sim! Mas é preciso muito mais que isso. É preciso deixar-se levar, mas primeiro, é preciso que-rer-se ir. E ir . Ler vezes sem conta a mesma página, onde por vezes as rasuras e os bibliografos

- nossos inimigos declarados! Mas há outros!nos impedem de ter acesso ao que está escrito. Porque

sem se poder ler o que está escrito não se pode compreen-der, nem analisar, nem dissecar, nem fazer história!?

A investigação histórica têm-se feito ao longo dos tempos com base nos documentos oficiais, aqueles que são depositados nos arquivos e bibliotecas. Todavia, des-de há alguns anos, tem surgido um grupo de académicos que optaram por diversificar as suas fontes, trazendo para discussão, a importância da outra história. A história mi-nusculada. Aquela das gentes comuns cujo papel tem sido

quase completamente esquecido, tanto mais que dos fracos não reza a história, lá diz o ditado popular. - Enfim, cada louco com a sua mania!

E aos poucos os documentos relativos à família Phelps foram se acumulando e eu sem saber bem o que fazer com eles. A tipologia era variada: cartas, postais, documentos avulsos, convites, livros de re-ceitas, diários e fotografias. Os espólios familiares tem esta diversidade e por outro lado, apresentam--nos sérios problemas de cronologia já que muitas vezes, há lacunas temporais (curtas ou longas) que dificultam a nossa compreensão assim como e, no caso da correspondencia, em particular, podemos apenas contar com a carta enviada mas não com a resposta, ou vice-versa.

Ao longo desta caminhada fui aprendendo a aceitar estas ausências, estas faltas e a construir o percurso da família Phelps, um percurso feito não em linha recta nem no tempo nem no significado.

- Porque pensei que seria um percurso linear? Não sei! Haverá algum?

A pouco e pouco fui tomando consciencia da im-portânica deste modo de “fazer história” e sobretudo do quanto me sentia satisfeita por ter feito esta op-ção. A leitura de bibliografia sobre o assunto e o con-tacto estabelecido com outros colegas que também se dedicam ao estudo dos ego-documentos ( termi-nologia holandesa) foram determinantes. Nesta se-quência passei a colaborar com a IABA (Internatio-nal Auto/Biography Association) e a possibilidade de contactar com Philipe Lejeune e todo um grupo de trabalho multidisciplinar que tem desenvolvido trabalho no sentido de dar Voz às vozes das gentes comuns, evidenciando que as suas estórias fazem parte da História. Desde sempre que as minorias foram forçadas a se insular. Tem sido assim ao longo dos tempos. Os “grandes” impoêm-se. Porque sim e pronto.

- Terá mesmo de ser assim? Por sermos ilhéus te-mos de ser pequenos e silênciosos? De que matéria é feita a nossa cartografia indentiária? Apenas de con-tinentes? E o mar e as ilhas?

Cláudia Faria

E quando a História se faz de vidas…

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N os anos de 2004 a 2005, tivemos a oportunidade de transcrever parte apreciável dos manuscritos

provenientes de um arquivo privado pessoal, o de João Hi-gino Ferraz (JHF), director técnico da Fábrica do Torreão, da firma William Hinton & Sons. Desta tarefa brotaram dois cartapácios, fonte relevante para o estudo da História da Madeira em finais do século XIX e na primeira metade da centúria seguinte, em áreas temáticas de diversa índole. Os volumes que constituíram o resultado deste empreendi-mento foram os seguintes:

– VIEIRA, Alberto (coord., prefácio e notas), SAN-TOS, Filipe dos (leitura, transcrição e notas), 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), Funchal, CEHA;– VIEIRA, Alberto (coord., prefácio e notas), SAN-TOS, Filipe dos (leitura, transcrição e notas), 2005, Açúcar, Melaço, Álcool e Aguardente. Notas e Experi-ências de João Higino Ferraz (1884-1946), Funchal, CEHA.

O acervo com que nos deparámos pôde ser sec-cionado em três partes fundamentais: a primeira constituída por nove Copiadores de Cartas; uma se-gunda por vários volumes a que demos o nome de Livros de Notas; e, por fim, documentação avulsa. A primeira parte, sobre a qual gostaríamos de nos debruçar neste texto, corresponde grosso modo ao primeiro volume citado. Nos nove Copiadores de Cartas1 JHF conservou, em cópia duplicada, muita da correspondência – e não só – por si remetida de 1898 até 1937, com um hiato temporal existente de finais de 1913 a inícios de 1917, e outro, possivel-mente, de Janeiro a Outubro de 1919. Os períodos correspondentes a estas lacunas estariam, porven-1 Um copiador é um «Livro em que se copiam cartas ou outros documentos»

(FARIA, Maria Isabel, PERICÃO, Maria da Graça, s.d., Dicionário do Livro, s.l., Guimarães Editores, designação que vai perfeitamente de encontro às ca-racterísticas dos livros transcritos. O modo pelo qual JHF procedia à cópia da informação era simples: entre a folha epistolar a remeter e o fólio do copiador era inserida uma folha de papel químico que permitia o decalque das palavras grafadas. Com excepção dos dois primeiros copiadores, os restantes incluíam já a folha epistolar, que era depois destacada.

João Higino Ferraz:

Uma Vida – Um Arquivo PrivadoFilipe dos Santos

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tura, contemplados em dois volumes autónomos que não chegaram até nós. Diga-se que nem toda a correspondên-cia remetida por João Higino Ferraz está presente nestes li-vros e que, de igual modo, nem toda a documentação neles inserida é composta por epístolas. Algumas cartas que en-viou, sobretudo dactilografadas, delas guardou JHF cópia sob a forma avulsa, estando as mesmas – aquelas a que tivemos acesso – transcritas no final do volume citado; por outro lado, certa documentação exarada nos Copiadores de Cartas não era epistolografia, mas sim relatórios, cálculos, estimativas de produção, de lucros e de despesas, etc.

Poderá ficar o leitor com a ideia errada de que estas fontes, no seu conjunto, documentam apenas a função profissional de João Higino Ferraz enquanto industrial do açúcar, da empresa William Hinton & Sons. Com efeito, esta documentação, por esse facto, reveste-se de especial interesse para a história da indústria açucareira na Madei-ra, nas suas vertentes económica, social, técnica e política. Contudo, não podemos esquecer que estamos na presen-ça de um arquivo particular – certa correspondência, por exemplo, contém, também, informações que ilustram as-pectos vários da vida pessoal e familiar de JHF, bem como alusões a condições de vida geral e particular, relações de

amizade, concepções políticas, sociais e económicas, entre outras2.

Neste particular, pretendemos chamar a atenção para a fecundidade de uma fonte deste cariz, pois que permite conhecer aspectos do passado que, de outro modo, não seriam resgatados do esquecimen-to. Dois exemplos damos apenas, neste breve escrito: o primeiro prende-se com a actividade profissional de JHF; o segundo com a sua vida privada.

I – Tendo sido JHF director técnico da Fábrica do Torreão, torna-se óbvio que a actividade deste complexo industrial era assunto sempre presente nos Copiadores de Cartas. Sem dúvida que assim é. No entanto, JHF fixou ainda informações de re-levância acerca de várias fábricas que existiam na Madeira – a Companhia Nova e a Fábrica de S. Fi-lipe, entre outras – e, também, sobre unidades de produção do continente português, da África colo-nial e de outros espaços geográficos. A este respei-to, apercebemo-nos, na sua epistolografia, de uma prática que podemos apelidar, à falta de melhor, de espionagem industrial. Na verdade, a partir de fi-nais da segunda década do século XX, a Fábrica de S. Filipe, do banqueiro Henrique Figueira da Silva, passa a exercer concorrência directa com o Engenho do Torreão. Nesse sentido, toda a informação acer-ca daquela, obtida de que forma fosse, seria deveras relevante.

Em missiva de 03-XI-1919, endereçada a Harry Hinton, seu empregador, JHF descreve a «Fabrica de H. Figueira», «segundo as indicações que t[i]nh[a] podido obter». Logo são arrolados os dispositivos industriais de que teve conhecimento. A partir dos mesmos, tenta JHF deduzir a quantidade e qualida-de dos produtos transformados obtidos, comparan-do-os inclusive com a actividade do estabelecimento industrial onde trabalhava e da Comp.ª Nova3.

A 04-XII-1920 reporta a Harry Hinton, acerca do mesmo Engenho de S. Filipe:

«Fabrica de H. Figueira: Chegou-lhe mais uma fabrica que comprou nas Canarias… isto é, mais ferro velho. Vou porém dizer-lhe o que pude apurar com relação á montagem e

2 Sobre o seu percurso biográfico (sobretudo quanto ao desempenho de funções profissionais), e os seus ascendentes que tiveram uma intervenção no domínio da indústria dos derivados da cana-de-açúcar, leiam-se as «Notas Autobiográfi-cas de João Higino Ferraz», da autoria do próprio, em três manuscritos avulsos e transcritos em VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), pp. 41-44.

3 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), pp. 211-212.

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suas edeias, ou por outro, do technico espanhol, e os meus calculos.»

O objectivo, afinal, após arrolados os mecanismos in-dustriais, era o de que Hinton pudesse «vêr as condições do seu competidor.»4

Em missiva de 17-X-1923, enviada de novo a Harry Hinton, pode ler-se o que se segue:

«Alcool de São Filippe: Pela ultima nota que me enviou o Pinheiro, até o dia 10 do corrente, H. F. tem feito 40.000 litros, isto é, d’esde 20 setembro a 10 de outubro fêz 20.350 litros alcool, ou seja 1000 litros por dia.

Como combinamos, quando chegar aos 45.000 litros vou vêr o Pinheiro e fazer os calculos [...], mas seria conve-niente o Senhor Hinton escrever novamente ao Pinheiro sobre esse assumpto.»5

O referido «Pinheiro», segundo carta de 23-X-1923, seria um indivíduo com responsabilidades na Alfândega, circunstância que permitiria acesso a informação presu-mivelmente confidencial. Esforços de identificação mais circunspecta deste personagem saíram até o presente gora-dos. Na mesma carta, JHF verbaliza a suspeita de uma du-plicidade de atitude por parte do mencionado «Pinheiro»:

«Não tenho confiança alguma no Pinheiro!!

4 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), p. 234.5 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), p. 261.

[...] Quando se falla a Pinheiro sobre qual-quer assumpto que nos interessa, parec[e] que o homem está de boa fé, mas para mim, não sei se devido á esperiencia da vida, consi-dero Penheiro como um Victorino [José dos] S[antos] Nº 2… isto é, joga com pau de dois bicos; Deus é bom… mas o diabo não é mau de todo!...Por conseguinte, Senhor Hinton, cautela e caldo de galinha, nunca fêz mal a doente…»6.

II – Algumas passagens demonstram também o quanto esta fonte permite o acesso a informações privilegiadas para o estudo da vida privada e fami-liar e, inclusive, da assunção e do exercício da pater-nidade.

Em carta de 15-III-1927 a Henrique Tristão Bet-tencourt Câmara, JHF refere o seu estado de espírito decorrente da doença de uma das suas filhas, Matil-de. Leia-se o que diz a missiva:

«Meu caro Henrique

[…] Mathilde, pobre pequena, não está ainda me-lhor, e o Dr. Pimentel aconselhou hir para o Santo

6 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), pp. 261-262.

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da Serra tomar os ares de altitude. Calcula n’este tempo e longe da minha vista, lá foram Maria Elesa (mãe) e ella para aquella solidão, e aqui ficou eu em cuidados e des-gostos, como bem podes calcular. Á poucos dias porém a pobre pequena teve um[a] paralezia na face esquerda e braço ficando com a boca um pouco ao lado e a mão sem poder fazer movimento. No Domingo foi lá vel’as encon-trando-a com a boca um pouco melhor, mas a mão ainda sem poder mover com ella; não há nada que não venha aquella pobre filha?! Eu estou perfeitamente desconso-lado e apoquentadissimo, calcula. O medico (Dr. Carlos Leite [Monteiro]) diz que não vai ser nada e que tudo vol-tará ao normal. Deus o primita... O Dr. Pimentel diz que as injeções que lhe estava fazendo de pouco servio, e vejo que por emquanto não sabem do que se trata. Bem pouca vontade tenho para o trabalho, mas que remedio, tenho que trabalhar e cada vêz mais, e ainda por cima de tudo isto, o Senhor [Harry] Hinton deseja que eu já em Junho [vá] com elle á Africa!...

Calcula com que vontade não hirei, deixando a pequena assim?!»7.

Em epístola de 02-IX-1927, dirigida a Avelino Ca-bral (em Angola), relata de novo as suas agruras pela maleita da filha.

«Infelizmente chego aqui para têr o grande desgosto de encontrar a minha pobre Mathilde (filha) perdida para mim e para o mundo..! Podes calcular como deve estar o meu espirito e quanto sofro por vêr minha filha a padecer tanto. Sô visto se pode acreditar! Tenho nuites que nem eu nem minha mulher podemos dormir. A pobre filha, coitada, padece tanto... e agora por fim vem-lhe uma cha-ga nas costas por estar sempre deitada (9 mezes!!), era o que lhe faltava. Estava já no Funchal por indicações dos medicos, isto é, tem andado em bolandas, ella que mal se podia mecher... Desculpa-me o mal escrito e redegido, mas deves comprender o meu estado. Cheguei bem, de saude e gordo, mas em pouco tempo isto modará.»8

Pouco tempo depois, possivelmente em Outubro do mesmo ano – 1927 –, Matilde falece, como se constata em missiva de 02-X-1927 endereçada ao mesmo Avelino Ca-bral.

«Meu caro Avelino

Sô agora te respondo á tua carta de 23 de outubro, mas desculparaes esta minha falta, não sô pelos afazeres de-pois da minha chegada de Lisboa, como pelo meu esta-

7 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), p. 304.8 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), p. 306.

do de espirito, depois da morte da minha querida Filha.»9

A 11-IV-1928 voltava a ter por interlocutor Ave-lino Cabral.

«Meu Caro Avelino

Recebi varias cartas tuas acompanhando as notas das analyses, e desculparaes não ter respondido a ellas a seu tempo, mas não calculas quanto tenho andando aborrecido com estas malditas questões saccharinas, e deves comprender que isso me in-teressa tanto como ao Senhor [Harry] Hinton, ou talvez mais... Depois da perda de minha pobre fi-lha estou de tal forma nervoso que tudo me isalta e me aborrece»10.

9 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), p. 316.

10 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), pp. 322-323.

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Epistolografia:Charles Darwin e o Arquipélago da Madeira

Nélio Pão

D esde o século XVII, a troca de epistolografia entre naturalistas desempenhou um papel de

extrema relevância na permuta e discussão de ideias, e também na divulgação das investigações e descober-tas científicas, tendo contribuído para o avanço das ci-ências naturais. Com o desenvolvimento da imprensa, a correspondência científica pessoal providenciou as bases para o aparecimento de publicações de jornais de cariz científico, como, por exemplo, as Philosophi-cal Transactions da Royal Society of London1.

As cartas que são produto desta escrita científica fornecem uma imagem mais completa do desenvolvi-mento do pensamento científico e dos seus criadores.

Charles Darwin – o mais importante naturalista do século XIX pela sua teoria sobre a evolução das espé-cies – teve, nesta forma de comunicação, a base para a troca de conhecimento e para o debate, criando uma rede internacional de contactos com outros curiosos e investigadores das ciências naturais da época. Do seu riquíssimo espólio epistolar, fazem parte inúme-ras missivas com referências à Madeira e à sua riqueza

1 HOLLAND, Julian, 2005, «Book Reviews», in Prometheus, vol. 23, n.º 3, pp. 356-263.

natural2. Exemplo dessa correspondência são as cartas trocadas com, Richard Thomas Lowe e Thomas Vernon Wollaston3, onde estes discu-tem a flora e fauna do arquipélago.

Aquando da sua viagem às ilhas Galápagos em 1831, e partindo do porto de Plymouth na Grã-Bretanha, Darwin tinha como primeira es-cala a ilha da Madeira. As adversas condições atmosféricas encontradas, no dia 04-I-1832, pela embarcação Beagle nos mares da Madei-ra, fizeram com que não fosse possível atracar no porto do Funchal4. Este facto não impediu que Darwin, no seu livro A Origem das Espécies, fizesse, por várias vezes, referência ao arquipé-lago da Madeira e à sua riqueza natural. Este co-nhecimento da ilha advém, sobretudo, da troca de correspondência com naturalistas que estive-ram na Madeira, como os acima mencionados.

2 No sítio da internet “http://www.darwinproject.ac.uk“, podemos encon-trar inúmeras cartas, escritas por e para Charles Darwin, com referên-cias ao Arquipélago da Madeira.

3 Richard Thomas Lowe e Thomas Vernon Wollaston – Naturalistas in-gleses que estiveram na Madeira, tendo realizado inúmeros trabalhos relativos à história natural do arquipélago.

4 S. A., 2011, HMS Beagle Voyage, [disponível na Internet via WWW. URL: http://www.sil.si.edu/digitalcollections/usexex/learn/Philbrick.htm] Arquivo acedido em 13-I-2012.

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Um exemplo desta troca de correspondência, é a carta enviada por T. V. Wollaston, datada de Fevereiro de 1856, em que este refere ter enviado, além da epís-tola, um volume contendo vários especímenes faunís-ticos da Madeira. Dos exemplares enviados destaca-mos a alusão a um recipiente contendo rãs, as quais, segundo Wollaston, haviam sido introduzidas na ilha há menos de 50 anos, provavelmente vindas das Ca-nárias ou da Inglaterra. Fazia também parte desse vo-lume uma enguia pertencente a R. T. Lowe, e que este, gentilmente, enviava a Darwin.

Numa outra carta, esta de 19-IX-1854, e escrita por Richard Thomas Lowe, podemos encontrar a descri-ção de algumas características da fauna malacológica, apresentando o número de espécies existentes e ex-tintas, tanto na ilha da Madeira como na ilha do Por-to Santo. Ainda nesta carta, encontramos o agrade-cimento pelo envio de cópias de duas publicações de 1851 (Living Cirripedia e Fossil Cirripedia) por Char-les Darwin.

A epistolografia de Charles Darwin é, sem dúvida, um importante recurso para o conhe-cimento das relações científicas existentes entre este naturalista e algumas das personalidades que conheceram a Madeira durante o século XIX. O seu estudo ajudaria a deslindar, de for-ma mais concreta e pormenorizada, a forma como Darwin teve acesso à informação sobre o nosso arquipélago, informação que se mostrou relevante na concepção da sua obra A Origem das Espécies, e correspondente teoria.

A concluir, podemos dizer que a abordagem à correspondência emanada dos e recebida pe-los muitos naturalistas que nos visitaram desde o século XVIII será indispensável para o conheci-mento da história da ciência neste espaço insular.

Imagem: Fonte: The New York Times, [disponível na Internet via

WWW. URL: www.nytimes.com/2007/05/20/weekinreview/20word.html]

Arquivo acedido em 13-I-2012.

A ndava à procura de respostas para as perguntas so-bre a minha família. Contactei pessoas ( que não

conhecia) na Madeira, visitei bibliotecas que desconhecia existirem, descobri livros antigos e fotografias e cartas. A história é muito mais do que documentos oficiais, mais do que certidões de nascimento e de morte, embora esta documentação seja útil – uma vez que aponta datas exa-tas e permite a identificação de pessoas e de nomes. Mas, contactar pessoas é a melhor maneira de se saber da nossa família.

O meu avô morreu quando eu tinha 7 anos de idade. Nunca o conheci senão através do pouco Português que fa-lava e do seu jardim cultivado. À medida que fui crescendo, perguntava quem tinha sido o meu avô e como tinha sido a sua vida.

Perguntei ao meu pai e ele respondeu que se chamava José Abreu. Soube que tinha fugido da Madeira aos doze anos com destino à África do Sul. Não sabia nem ler nem es-crever. Quando morreu, não deixou nem correspondência, nem livro de apontamentos, nem sequer um diário.

Na minha primeira viagem à Madeira, fui ao vale dos Melões , na Porta Nova, em Campanário. Tentei encontrar as pessoas mais velhas. Travei conhecimento com José Ber-nardo de Abreu, de 90 anos. Quando era rapaz, lembrava--se de ter ido ao casamento dos meus avós, em Outubro de 1905. Lembrava-se dos nomes deles. Lembrava-se dos

nomes dos irmãos e irmãs do meu avô. Vi muitas fotografias e retratos dos meus avós, dele, tirados em 1925 e dela, em 1955.

As histórias antigas da família foram-me dizendo acerca dos meus avôs. Fui juntando estes relatos para saber dele e usava-os para colocar questões. Ele tinha vivido em Minas Gerais e na Guiana Holandesa. De-pois, viajou até aos campos dourados do Condado de Alameda, na Califórnia. Finalmente, ouviu falar de Milford, em New Hampshire, local onde existiam fábricas de curtume e minas de granito. Na Madei-ra, já tinha trabalhado como curtidor. Em Milford, existiam 17 minas e o meu avô começou, primeiro, por partir pedra e, depois, tornou-se cantoneiro. Em 1922, adquiriu a cidadania americana. Encontrei o certificado no meio dos papéis do meu pai.

A melhor maneira de se saber da nossa família é contactando pessoas que ainda se lembrem deles, encontrando fotografias antigas dos velhos álbuns de família, ouvindo histórias acerca deles. Procurem cartões, postais, cartas, notas e diários. A partir daí, a aventura irá começar, uma história feita de surpre-sas acerca de uma família que nunca conheceu, uma história feita de cultura e estilo de vida madeirense que espera por ser revelada, uma nova forma de en-tender e fazer história de família e história de vida.

Em busca da família

Modos de fazer história Don Silva

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H á histórias que se escrevem em letra minúscula e se esquecem em gavetas e em caixas como se não

tivessem importância, como se não contribuíssem para contar a História - agora maiusculada – de um tempo, de uma família, de um lugar.

O que escondem os arquivos pessoais [normalmente desorganizados] dos poetas? O que estará guardado den-tro dos sacos que o José António Gonçalves deixou sem ter tido vida [ou paciência] para arrumar? O que esconde-rão as agendas que Horácio Bento de Gouveia não deitava fora? O que terão as gavetas dos armários de Margarida Silva ou os papéis de Maria Aurora? O que estará escrito nos diários secretos de artistas, de cientistas, de políticos, da gente comum que compõe esta terra?

Trabalhar sobre este tipo de documentos privados tor-na-se, assim, um ato quase sagrado, de entrada num mun-do-próprio, íntimo, que permite decompor os tempos das pessoas: o tempo de casa, o tempo do trabalho, o tempo da criação. Este efeito de verdade – que não significa co-nhecer a Verdade – permite perceber muito daquilo que não conhecemos, porque travestido pela forma como foi registada e sentida, o que aponta caminhos novos para a descoberta do que somos: uma porta aberta para o mar. E o mar é o mundo donde vêm as cartas que não se consegue deitar fora. E as cartas são conversas entre ausentes e sal-vam as saudades nas palavras e nos silêncios. E os silêncios são os instantes plasmados pelas fotografias dos álbuns e dos envelopes amarelecidos pelos anos.

Ter acesso ao mundo dos arquivos privados e familiares de gente de quem apenas] se conhece a vida mostrada sig-nifica poder perceber razões, opções, caminhos seguidos, atitudes. Um modo de saber, portanto; uma forma de salvar os testemunhos que compõem o teatro da vida, das relações , das sociabilidades, da materialização da intimidade, da es-crita do eu e do testemunho dos ausentes feito de palavras e caligrafias, de retratos e de postais, dos recados que se dei-xou sobre a mesa e que alteraram o curso das coisas.

O corpo da História precisa desses sussurros da vida real para ter alma. E essa alma precisa de ser respeitada, preservada, partilhada. Preservar esses arquivos é preser-var as memórias. E é com elas que se faz a verdade. Porque a História também é feita das histórias daqueles que, de algum modo, mudaram o mundo.

Sobre memórias que dormem no tempoGraça Alves

Fotografia como registo Histórico

Octávio Passos

Fotojornalista

A fotografia surgiu na primeira metade do séc. XIX e desde então tem sido aperfeiçoada nos

seus processos de criação, que passaram de uma caixa escura até o sistema binário, conhecido hoje como sistema digital.

Com a evolução tecnológica e o surgimento da fotografia digital e por consequência a diminuição de custos, nunca se viu fotografar tanto onde todos os dias e em diversas situações, especialmente nas festivas, vêem-se pessoas com máquinas fotográficas fazendo registos de vários e determinados momen-tos. Parece comum e ao mesmo tempo importante registar tais factos, sejam eles os ditos rituais de pas-sagem, os encontros ou reencontros, o trabalho ou o lazer. A fotografia tornou-se uma forma de provar e reviver aquele determinado momento ali regista-do... Mas será que se dá a devida importância a essas imagens, especialmente quando se pensa nelas como um registo de imagem para o futuro, especialmente para as outras gerações?

Pois pensar a fotografia no seu íntimo é pensar na possibilidade de ter uma memória física, palpável e incontestável de um determinado momento vivi-do, principalmente quando se vive esse momento em família, tendo em conta o acto de fotografar, hoje é possível notar, que houve um crescimento subs-tancial do acesso aos mais diversos tipos de equipa-mentos fotográficos, especialmente os que possuem máquinas fotográficas digitais, como exemplo os telemóveis de hoje em dia que possuem câmeras fotográficas com imensa qualidade, os tablets, e até os computadores portáteis, mas não se sabe ao cer-to qual o destino, arquivamento ou se há impressão desses registos digitais, dando importância a eles para o futuro.

A fotografia é uma forma de obter registos que servem como fonte documental, procuramos enca-rar a fotografia como um documento rico em infor-mações e significados, que nos coloca directo com um momento, uma personagem ou uma época.

Fotografar é uma maneira de ver o passado, é uma forma de expressão, onde o “congelamento” de uma momento e o seu espaço físico inserido na

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subjectividade de um realismo virtual dá-nos mais tarde ou mais cedo uma forma directa de comunicar e informar deixando sempre o tal registo histórico, onde na sua visu-alização a única coisa que difere de pessoa para pessoa e a interpretação que cada uma irá fazer aquele momento registado.

Todo o estudo que é feito com incidência na Historia,

mudou com a fotografia, e isso não há como negar.

Gerou uma situação dúbia, em que muito do que era transmitido apenas oralmente para depois ser registado, deixou de fazer sentido, ao mesmo tempo que tornou obsoleta algumas formas de registo, a fotografia tor-nou a “leitura” mais clara, visto que a imagem nestes casos funciona sempre como um acréscimo, uma grande re-ferencia informacional.

A fotografia não é a realidade his-tórica em si, mas traz porções dela, traços, aspectos, símbolos representa-ções, dimensões ocultas, perspectivas, induções, códigos e cores que cabe a nós descodificar os ícones, e torná-los legíveis o mais que pudermos identifi-car, tornando como testemunhos que subsidiam a nossa versão do passado e do presente.

Uma imagem pode armazenar tantos elementos da memoria individual como co-lectiva. É uma referencia fortíssima no acompa-nhamento do desenvolvimento dos lugares. Como registar uma imagem num suporte é algo muito re-cente, nota-se o surgimento de uma grande dúvida, no futuro a história será mais valorizada devido ao ser registo histórico em fotografias?

Graça Alves

Q uem é quem? Donde veio? Que relações estabeleceu? Que ligações manteve? Que história(s) protagonizou?

Este é o caminho de Madeira Genealogy, um ponto de encontro, um sítio-casa onde se pode percorrer o tempo, onde se pode encontrar as pontas perdidas das meadas que constituem os nomes, as famílias, os percursos, onde se pode descobrir aquilo que, um dia - por razões que a vida guardou – se escondeu.

O Arquipélago da Madeira é, assim, um espaço privi-legiado para estas aventuras. Daqui se parte levando a ilha nos documentos. Daqui se estendem apelidos ilhéus ao mundo. Ali se encontram respostas para a nossa curiosi-dade. Ali se procuram razões para sermos quem somos.

Este blogue/site passa pelas ilhas. Pretende ser um pon-to de encontro para quem se quer encontrar, reforçar laços

familiares, continuar enraizado neste chão de mar e basalto.

Partiu de um interesse pessoal e cresceu, de-safiando a teia que a investigação foi tecendo, en-contrando gente com voz de passado, descobrindo papéis, parando nos lugares de parar para descobrir novas redes, novas possibilidades, outros encontros e desencontros.

Ao sítio, chegam pedidos e saudades do mundo inteiro. Dali se partem para novas pesquisas feitas apenas pelo prazer das descobertas ou por esta ne-cessidade insular de ser continente. A história é feita destas linhas que o destino borda.

Fica aberta esta porta: http://madeiragenealogy.com/.

MADEIRA GENEALOGY [pistas de um sítio na net]

A primeira fotografia reconhecida é uma imagem produzida em 1826 pelo francês Joseph Nicéphore Niépce, numa placa de estanho coberta com um derivado de pe-tróleo fotossensível chamado Betume da Judéia. Foi produzida com uma câmera, sendo exigidas cerca de oito horas de exposição à luz solar.Dessa experiência, re-sulta, a que é considerada hoje, a primeira fotografia da história - “Point deVue du Gras”. A imagem captada foi da janela do sotão da sua casa de campo, em Saint--Loup-de-Varennes.

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U ma aurea de encanto e mistério rodeia um dos meus trisavós paternos, Sérvulo Gonçalves, figura

de referência e nome recorrente nas conversas familiares com o meu pai octogenário. Sérvulo Gonçalves, nasceu em São Vicente, Madeira, no sítio das Feiteiras, no ano longín-quo de 1845.

Olhando para a história do mundo desse tempo, estava a chegar ao fim uma era a que Eric Hobsbawm chamou “A era das revoluções”: no campo social e político, a revolu-ção francesa e as suas consequências mais diretas em toda a Europa e Américas, e, no plano económico, a revolução industrial, que, já então, se assumia como clara vencedora nesse duelo de titãs entre a política e a economia.

Podemos até pensar que Maria Rosa, mãe de Sérvulo, minha tetravó paterna, nada tem a ver com essas coisas, “en-fiada” como estava na pacatez verde e límpida dos vales de São Vicente. Que, com toda a certeza, estaria alheia ao turbi-lhão que assolava a Eu-ropa. Como poderia? As notícias corriam tão de-vagar, os costumes eram rígidos, a liberdade era uma miragem e o papel das mulheres estava reservado às lidas da cama e da casa.

Por razões que, para já, desconhecemos, Maria Rosa, não sabemos com que idade, estabeleceu-se em São Vicen-te, vinda da freguesia dos Canhas, concelho da Ponta do Sol. Embora documentos posteriores ao nascimento de Sér-vulo digam ser ela natural de São Vicente.

No refúgio do vale sãovicentino encontrou o amor que gerou o meu trisavô Sérvulo, tendo-o baptizado no dia 14 de Dezembro de 1845. Os primeiros documentos de Sér-vulo indicam que ele era filho de pai incógnito, mistério que só é desvendado muito mais tarde, em alguns docu-mentos constantes no seu passaporte que o identificam como sendo filho de Vicente Gonçalves. Maria Rosa, a que

mais tarde se acrescentaria Jesus, no entanto, conti-nuaria solteira.

Temos assim que Sérvulo Gonçalves é fruto de uma eventual relação ilícita. E se podemos imagi-nar os problemas que, à época, Maria Rosa teve que enfrentar, o que fica registado é que Sérvulo Gonçal-ves seguiu as pisadas libertárias da mãe. Daí, talvez, podermos inferir que os ventos que mudavam a Eu-ropa e o mundo em meados do século XIX varriam também, ainda que ao de leve, a sociedade tradicio-nal, hierarquizada e conservadora do norte da ilha.

Só assim po-demos compre-ender que Sérvulo contraia o seu pri-meiro casamento, no ano de 1885, antes de comple-tar 40 anos, com Maria de Sousa Abreu, de 49 anos de idade, também natural de São Vi-cente, filha de An-tónio de Abreu de Vicência Maria de Sousa. E, o mais surpreendente, que no assento de casamento, sejam legitimados os seus quatro filhos.

Sérvulo, nascido em 1874, Manuel, em 1877, Maria da Conceição, minha bisavó, em 1878, e Eulália, em 1883.

O que levaria um casal a só contrair o matrimó-nio e, segundo os cânones da época, a «deixar de vi-ver em pecado», só depois de ter quatro filhos?

A explicação parece simples à luz do passaporte de 1885 que os leva para o Brasil. Isto é, Sérvulo e Maria casaram a 15 de Janeiro de 1885 e, no mês se-guinte, é-lhes concedido o passaporte para viajarem, com os filhos para o Brasil.

O passaporte, um conjunto de folhas de papel

Gonçalo Mendes

Uma história de famíliaEntre S. Vicente (Madeira) e S. Paulo (Brasil)

Imigrantes europeus posando para a fotografia no pátio central da Hospe-daria dos Imigrantes de São Paulo, cerca de 1890. Fonte: Fundação Patri-mônio da Energia de São Paulo - Memorial do Imigrante

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selado, com cópia dos assentos de casamento, e baptiza-dos de toda a família, identifica Sérvulo Gonçalves como um homem medindo 1,65 m, de rosto comprido, olhos castanhos, cabelo direito, boca regular, cor natural e barba preta. Maria, por seu lado, media 1,48 m, rosto comprido, olhos pretos, cabelo direito, boca e cor naturais.

Dos 4 filhos, apenas dois dos rapazes estão referencia-dos. Sérvulo media já 1,16m, rosto comprido, olhos pre-tos, cabelo castanho e boca regular e cor natural, enquanto Manuel, media 1,10 m, rosto redondo, olhos pretos, cabelo louro, boca regular e cor natural.

Maria, então com 5 anos e Eulália, com 2, não têm as suas caraterísticas discriminadas.

Não sabemos exactamente em que dia foi efectuada a viagem. Mas sabemos que foram pagos 126 mil reis, para toda a família, na 3ª classe de um navio que os levaria, do Funchal até ao Rio de Janeiro, tendo depois seguido para estado de São Paulo, onde se estabeleceram (de acordo com um testemunho oral do seu bisneto Amadeu).

Sete anos depois, noutro passaporte, emitido em 1892, Sérvulo Gonçalves volta a embarcar com destino a São Paulo. Desta vez já casado com a sua segunda mulher, Te-resa Luísa de Jesus, filha de Vicente Gomes de Medeiros e de Luísa Rosa, também naturais de São Vicente.

A família emigrante viajou a bordo do vapor Aquitaine, desembarcando no porto de Santos, de onde seguiu para S. Paulo. Nesta cidade, o casal e as duas filhas são recebidos na Hospedaria do Imigrante, no dia 11 de Julho de 1892, onde terão ficado, cerca de uma semana, antes de partirem para os seus destinos, regra geral terrenos que deviam cul-tivar durante pelo menos cinco anos para poderem tomar posse deles definitivamente. Provavelmente ao encontro

dos seus dois filhos que terão ficado em terras brasi-leiras depois da viagem de 1885.

Não sabemos exatamente o que se terá passado depois no Brasil. De concreto, sabemos que Maria regressou à Madeira onde contraiu matrimónio no dia 17 de Agosto de 1902 em Câmara de Lobos, com Francisco Gonçalves Delgado, nascido na freguesia do Monte, Funchal, mas cujos pais eram naturais da Madalena do Mar, concelho da Ponta do Sol.

Esta pesquisa, utilizou como principais fontes o Arquivo Regional da Madeira e vários sítios na internet, onde se destaca o sítio do “Memorial do Imigrante”, do Estado de São Paulo, uma institui-ção que tem como missão “Promover a busca das identidades individuais e coletivas, constituindo-se em espaço de expressão e reconhecimento da diver-sidade brasileira por meio de resgate, preservação e disseminação da história e da memória das migra-ções no Brasil”.

Foi esta instituição, herdeira do espólio da Hos-pedaria do Imigrante, que nos enviou dois docu-mentos que certificam a passagem do meu trisavô Sérvulo Gonçalves e da sua família naquele espaço, há 120 anos.

Ligações com interesse:Madeira Genealogy.com (http://madeiragenealo-gy.com/historias/)Museu da Imigração do Estado de S. Paulo (http://www.memorialdoimigrante.org.br/index.htm)Arquivo Regional da Madeira (http://www.arquivo--madeira.org/homepage.php)

Cópia do registo original da passagem de Sérvulo Gonçal-ves e da sua família aquando da segunda viagem para o Brasil, em 1892.

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A s escritas populares, também identificadas por “es-critas ordinárias” ou de gente comum, têm como

denominador a grande variedade de textos, emergindo de atores sociais oriundos de classes baixa e/ou média-baixa. Aqui incluem-se barbeiros, pedreiros, carpinteiros, donas de casa, costureiras, lavradores, proprietários, negociantes além de outros atividades. Neste quadro têm lugar todos os não profissionais da escrita, pessoas que entraram no mundo das letras por razões pessoais, familiares, afetivas e, muitas vezes, devido aos problemas decorrentes do afasta-mento do lar ou das pessoas com quem desejavam susten-tar relações comunicacionais.

Perante este perfil, se é variadíssimo o conjunto de emissores não é menor a riqueza do conteúdo de tais escri-tos. No leque da tipologia estão cartas da emigração, cartas de amor, cartas e aerogramas da guerra colonial, livros de memórias, livros de viagens, diários da juventude, diários da guerra, cadernos escolares, livros de fiados (mercea-rias, taberneiros, padeiros, barbeiros e outras atividades que permitiam o pagamento tardio de bens ou serviços) e,

Escritas populares em contextosde mobilidade (Sécs. XIX e XX)

Henrique Rodrigues

Colaborador do CEHA Investigador do CETRAD-

-UTAD/APHVIN-GEHVID

além de muitos outros tipos como livros de contas, copiadores da correspondência emitida, também as pequenas mensagens em bilhete-postal integram as escritas populares. Neste campo alargado de textos estão os estilos, as formas e os conteúdos mais va-riados que podem usar-se para a história da cultura letrada. Mas, quase sempre se conjuga a escrita com a oralidade, pois muitos destes emissores são porta-dores de uma cultura letrada pobre, visível na estru-tura dos textos, sintaxe, ortografia, escrita irregular sem alinhamento, traço revelador de insegurança, entre outros aspetos que os colocam nas franjas da alfabetização.

Neste quadro entram as cartas da emigração e os arquivos familiares de emigrantes que representam um segmento das Escritas Populares e Arquivos Fa-miliares, assim como copiadores de correspondên-cia.

Na verdade, a emergência esta escrita teve gran-

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de expressão e dinâmica a partir da mobilidade oitocentis-ta (maioritariamente patrícios embarcados para o Brasil), pois a vontade de manter pontes afetivas, usando papel e tinta, desencadeou o reforço das ligações familiares e res-pondeu à necessidade de construir elos permanentes (ao ritmo dos vapores e das viagens de amigos e conhecidos a Portugal). Aqui encontramos emissores e recetores para quem a correspondência exigia acesso às práticas do uso da pluma e da leitura, pressupondo a existência de quadros de instrução e alfabetização e capacidades para produção e descodificação de textos. Na ausência destas competências, os analfabetos recorriam ao apoio de familiares, colegas de trabalho, amigos ou mesmo profissionais do ato, escrivães que se cobravam pelas capacidades de que eram detento-res, autênticos mercenários da comunicação ao serviço de quem estava envolvido nas dinâmicas de afastamento do ambiente familiar, quem embarcou e quem permane-ceu no lar, pais, filhos, maridos, esposas e demais paren-tes, além de amigos, colegas e conterrâneos. Perante este quadro, o crédito social destas competências ganhava um valor acrescido, face ao serviço de quem prestava tal apoio para manutenção de correntes comunicacionais de papel e relativamente aos leitores que descodificavam as letras en-dereçadas da outra margem do Atlântico. Neste contexto, o processo educativo foi uma prioridade no atinente à es-colarização, necessidade sentida e reclamada pelos povos desde meados de oitocentos e mesmo apoiada por mecenas que contribuíram para a construção de casas de ensino, de-pois regressados à terra de origem e jubilados com o esta-tuto de “brasileiros”.

Importa sublinhar que, desde a Idade Média, os espaços de educação e escolarização para o ensino das primeiras le-tras tinham lugar em escolas catedrais, escolas capitulares, escolas monásticas, escolas conventuais, escolas palacianas, escolas municipais, escolas paroquiais, escolas domésticas e outras dependentes das instituições religiosas. Destaca--se aqui o papel dos jesuítas com intervenção assinalável no sistema de escolarização até meados do século XVIII (expulsos de Portugal a 3 de Setembro de 1759). Tendo sido desmantelado o parque escolar inaciano, o que não significa que tenha deixado de haver escolarização pois os centros religiosos eram por natureza polos educativos e as famílias, as paróquias e outras infraestruturas de apoio à leitura e escrita não abandonaram o processo de ensino.

À Igreja, até ao terceiro quartel de setecentos, coube o maior e mais dinâmico papel da preparação para aquisição de competências de ler e escrever. Todavia, foi-se radican-do a ideia de que competia ao Estado a responsabilidade pela ilustração dos súbditos. Com a expulsão dos jesuítas estavam criadas as condições para o nascimento de um sis-

tema de ensino estatal, a expensas do erário público e a cargo do Reino, recorrendo a um imposto pró-prio, o subsídio literário. Mesmo assim, foi necessá-rio esperar-se 13 anos pela publicação da carta de lei de 6 de Novembro de 1772. Nesta data foi criado o ensino estatal com cobertura alargada e entregue à responsabilidade de um corpo docente laico.

Porque nos situamos na centúria de oitocentos e no contexto de uma área específica, o distrito de Viana do Castelo, onde temos centrado a nossa in-vestigação sobre a problemática das escritas, damos nota da existência de dois parque educativos a fun-cionar nesta região, num modelo de complementa-ridade, quando a procura de centros de alfabetiza-ção era elevada, devido à necessidade de preparação de jovens que seguiam rumo ao Brasil. Deste quadro resulta, para 1859/60, um total de 176 escolas das primeiras letras em atividade, entre as quais havia 121 de “ensino livre”, ou seja existiam 2,2 escolas pri-vadas por cada professor pago pelo erário público. À medida que as localidades eram contempladas com escolas oficiais, os mestres particulares desapare-ciam, a considerar a existência de 258 sítios de aces-so à escolarização. No trânsito da centúria (1900), havia apenas 94 docentes custeados pelos pais dos alunos, sendo o rácio de 0,6 escolas privadas por cada pública. A evolução escolar referida ajuda a es-clarecer as dinâmicas de alfabetização e de circula-ção de escritas. Com esta cobertura, a cultura e prá-tica da escrita começava a massificar-se, chegava aos de baixo, impulsionando o acesso da alfabetização às classes populares.

Mas, voltando de novo às correspondências, as cartas exibem a marca de grafias reveladoras de es-colarizações formais e informais. A aprendizagem da leitura e da escrita oralizada, com letras e orto-grafias desprovidas de um exercício constante e de conhecimento aprofundado do ABC, por um lado, e aprendizagem de ler, escrever e contar, por outro lado, denotada na caligrafia e outros requisitos, pa-tenteiam outras competências escolares evidencia-das nas formas de grafar letras esmeradas e nos usos dos suportes, a carta. Os de escrita oralizada comu-nicam com um estilo pouco cuidado, com carateres de tamanho irregular, a ocupação dos espaços de-sordenada e ausência de margens, tudo revelando ausência de conhecimentos e práticas do escrito. Outros aspetos como os títulos e texto comprimidos em parte do suporte, a falta de sequência das folhas, a dificuldade em manter as letras dentro dos espaços

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alinhados, a forma de pontuar e separar palavras resulta da ausência de uma aprendizagem escolarizada são marcas expressas por quem detinha dificuldades em cumprir as normas epistolares e escrevia cartas oralizadas com mui-to esforço físico e mental, por vezes desenhando as letras para formar palavras. Mas, quem tinha beneficiado de um processo educativo estruturado na arte de ler, escrever e contar, raramente deixa de cumprir as fórmulas de invo-cação, abertura, o conteúdo bem assinalado e a saudação, respeitando o espaço e os momentos apropriados, tal como o recurso ao Post-scriptum ou N.B. Em síntese, estes man-têm o aparato formal com uma escrita caligráfica, elegân-cia da arte de bem escrever de traço firme, por vezes com discurso muito elaborado e verborreico, respeitando regras e optando por servir-se de várias folhas para a mensagem.

Uns e outros exibem marcas sociais diferenciadas. Os de cima, em geral, tinham capacidades para custear um perceptor, um calígrafo; os de baixo, os populares sem tais recursos, por vezes autodidatas, apresentam um quadro de percursos múltiplos, usam um discurso espontâneo, parecendo fruto do improviso e denotando falta de estru-tura lógica na comunicação, como se fosse oriunda de um caos de auto aprendizagem, um exercício de escrita força-da pelo compromisso de manutenção de laços com o lar, a mulher e os filhos que estavam afastados longos meses sem conhecimento do que ocorria na terra de origem. Houve situações em que o emigrante embarcou na qualidade de analfabeto e aprendeu a escrever, motivado pela necessi-dade de alimentar os elos de tinta com a família. Assim se distinguem as marcas próprias de quem acedeu a modelos de escolarização e alfabetização diferenciados.

O acesso em massa ao uso do escrito encontra o melhor estímulo na mobilidade transatlântica dos séculos XIX e XX, associado ao processo de instrução de oitocentos. Mas também se observa a participação de iletrados nes-te universo, especialmente o género feminino que recebia correspondências dos maridos, pais e filhos emigrados, recorrendo à leitura em voz alta e aos préstimos de um intermediário para se comunicar. A Grande Guerra foi a um outro momento de explosão de mensagens em papel, período em que o bilhete-postal encontrou condições para a difusão das escritas breves, circuladas a descoberto.

A fronteira entre letrados e analfabetos não exibe a linha dicotómica do sim e do não. A separação é feita por uma franja alargada ao semi-analfabetismo. A escrita e a leitura não era uma prática exclusiva dos ilustrados, pois muitos não dominando as formas da escrita foram capazes de criar elos de papel e tinta, as amarras entre pessoas separadas por dois continentes, Europa e América. Não há grandes diferenças entre os atores da correspondência motivada

pela emigração e pela guerra, ao contrário do que se podia supor. Milhares de peças podem ser estudadas entre as que se conservaram em arquivos familiares que conhecemos em Viana do castelo e as que foram integradas nos processos de aquisição de licenças de viagem desde 1850 a 1950. Aqui também podemos salientar a existência de múltiplas formas, sujeitos e momentos de comunicação com que se combatiam silêncios, superavam distâncias, dava-se um sinal de vida, assumiam-se responsabilidades domésticas, perpetuavam-se ligações, testemunhava-se a exis-tência, reforçavam-se laços familiares, curava-se a doença da saudade e até se solicitava serviços e favo-res de parentes, amigos e conhecidos.

A escrita de oitocentos foi impulsionada pela mobilidade intercontinental e decorreu da neces-sidade e compromisso de manter laços familiares, sustentada pelo progressivo acesso aos códigos de comunicação. As peças de maior relevo aqui apre-sentadas são as cartas endereçadas por emigrantes, quase sempre os maridos que se correspondiam com os de casa, cartas que serviram para fazer prova em como os cônjuges desejavam reunir o lar na ou-tra margem. Mas, outros exemplos correspondem a casos de indivíduos que pretenderam registar a pró-pria memória, fazendo-o com recurso a copiadores, livros de fiados, arquivando a própria vida, questão de que nos ocuparemos noutro momento.

Selecionamos alguns exemplos de correspon-dências saídas da mão de escolarizados e de outros que escreveram com muito esforço físico e mental, emigrantes semi-analfabetos, que partiram sem sa-berem escrever, a quem a separação proporcionou a aprendizagem autodidata de escrita. Também deixa-mos uma mostra das escritas breves nos princípios do século XX, bilhetes-postais da Madeira, enviados por turistas para amigos e familiares.

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Carta dobrada e lacrada (circulada sem sobrescrito) endereçada por António José

da Silva Pereira Viana à esposa, «Ilmª Se-nhora D. Maria Vitória de Amorim Pereira, pelo

paquete para Portugal, cidade de Viana do Cas-telo». Batida com vários carimbos, apresenta

o número 150 a óleo, indicador do preço do transporte (?). O reconhecimento da assi-

natura foi datado a 7 de Fevereiro de 1861. Fonte: Arquivo do Governo Civil de Viana

do Castelo, processo do passaporte número 354, emitido em 8 de Fevereiro de 1861.

Transcrição (1)

Rio de Janeiro, 1860, Agosto, 7.Carta de António José da Silva Pereira

Viana à esposa, Maria Vitória de Amorim Pereira, de Viana do Castelo, para que em-barque para sua companhia.

Fonte: Arquivo do Governo Civil de Via-na do Castelo (AGC) Peça inserida no pro-cesso do passaporte número 354, emitido em 8 de Fevereiro de 1861.

«Minha querida esposa do coração:Rio de Janeiro, 7 de Agosto de 1860

Cá recebi a tua carta da qual muito estimei por saber da tua saúde, pois a minha fica boa, Deus [seja] louvado.

Cá vejo o que me mandas dizer a respeito desse grande ladrão do Padre (?). Isso não é nada. Não te aflijas com isso, que eu também não. Deixa vender quem quiser, pois nós esta-mos todos vivos para o ensinar, ou a quem o comprar, pois falei com o doutor Soares, filho do Melchior de Darque que mataram em Al-varães, e ele me disse que não me importasse

1 Desdobramos as abreviaturas e atualizamos a ortografia baseados no atual acordo ortográfico

com isso, pois logo que foi contradito o anúncio foi o melhor passo que tu deste, pois como eu estou seguro com a compra e os papeis prontos e reconhecidos pelo tabelião e com testemunhas estou mui-to descansado, pois ele está enganado [por]que o velho está perto de 80 anos háde se ver com que necessidade ele vende, pois que alugasse a casa, que lhe dava que comer e não metesse um ladrão dentro. Pois o que te digo é que te vás aprontando para na outra viagem do Constante te vires embora dessa infame canalha. Pois logo que chegue o patacho eu vou a bordo para falar com o capitão e também te heide mandar o dinheiro para o que te for preciso.

Descansa o coração. Adeus, teu até à vista.[Folha 1v] Deste teu esposo do coraçãoAntónio José da Silva Pereira Viana» (2)

2 Segue-se o reconhecimento da assinatura.

Documento nº 1

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Transcrição

Rio de Janeiro, 1860, Setembro, 8.Carta de António José da Silva Pereira Viana à espo-

sa, Maria Vitória de Amorim Pereira, para que vá para sua companhia (1).

Fonte: AGC, Processo do passaporte número 354, emi-tido em 8 de Fevereiro de 1861.

Rio, 8 de Setembro de 1860.Minha querida esposa do meu coração:Dou-te lágrimas, dou-te suspiros, dou-te rosas e botões,

dou-te todas as floridas (sic) e em eternos corações unidos a um só faz mais que milhões.

Fico todo de saudades. Sou teu esposo até à morte.Espera resposta para o outro paquete que te direi tudo. E recebi a tua encomenda de que a entreguei. E não es-

crevi para os senhores Vianas de cujo estimavam muito por tu mandares.

Não digas quando vens a ninguém porque [folha 1v] eu hei-de escrever a João do Cais para tu vires recomendada e 1 () Carta que apresenta, na margem superior esquerda uma ilustração com um ramo de

rosas coloridas. Como a anterior foi reconhecida a assinatura em 7 de Fevereiro de 1861.

ainda não falei com o capitão do Constante porque eu não pude ir lá, mas falei com o filho do João Neves que vem a piloto, mas não lhe disse nada, nem quero que o digas. Pergunta-lhe, quando chegar, por mim e vê o que te diz, para tu o saberes e se te disser mal lhe diz pois: eu vou para o Brasil que o meu homem me manda ir.

Adeus, até à vista. Sou [folha 2] teu esposo do co-ração.

Pois tu vem. Podes vir, senão para o Verão. Pois escreve pelo paquete ou antes que o barco que se já vier para aqui tu podes vir, mas eu quero primeiro mandar-te o dinheiro para vieres debaixo de ordem. Aqui não se precisa de capas (?), é tudo em cabelo e bandeletes (sic), tudo com luxo

Adeus até à vista.António José da Silva Pereira.(2)

2 () O reconhecimento da assinatura ficou registado na folha 2v.

Documento nº 2

Carta dobrada e lacrada (circulada sem sobrescrito)

endereçada por António José da Silva Pereira Viana à espo-

sa. Esta carta, como a anterior, faz parte do mesmo processo

de passaporte coletivo em nome de Maria Felizarda

Soutinho de 38 anos, tendo ambas seguido para junto dos

maridos.Fonte: AGC., processo

do passaporte número 354, emitido em 8 de Fevereiro de

1861.

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Documento nº 3

Rio de Janeiro 1890, Junho, 14.Carta de João Gonçalves enviada à esposa, Maria Do-

mingues, de Merufe, Monção, para que vá para sua com-panhia.

AGC. Processo do passaporte número 429 datado de 27 de Agosto de 1890.

Maria Domingues:Fazenda do Doutor Anio (1), estação de Coruba-

tai, 14 de Junho.Minha querida esposa, com muito gosto e prazer e

alegria lancei a mão na pena para saber da tua per-feita e feliz saúde, pois a minha ao fazer esta fica sem novidade alguma.

Maria, aqui aceitei homens que viera (sic) e já es-tão no meu serviço e me contaram que tua e minha

1 () A carta, escrita com muitas dificuldades, foi iniciada na folha 1v e mantém a folha 2 sem nada escrito, além de um coração desenhado na margem superior entre o fim da segunda linha e o topo da página, onde se pode ler: meu eterno coração dá-me a tua mão.

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mãe te tinha[m] dado muitas pancadas por causa do dinhei-ro e que tu tinhas vontade de vir para esta terra. Eu preciso muito de ti, que estou pagando a duas mulheres 1000 [réis] cada dia e se tu a possas ganhar precisas vir antes do que dar. O dinheiro pede ao tio António Branco que cá (?) por enquanto não se pode mandar pelo câmbio.[folha 1] (2) En-quanto alguns homens quererem vir para esta terra, queiram vir para esta terra, (sic) eu tenho muito serviço e gamali (?) já de começo 4000 mil (sic) réis para fazer caminhos e peço--te resposta. Se quiseres vir antes de que eu mande dinheiro, o tio António Branco que faça o favor de arranjar que eu para Setembro é que eu tenho ideia de mandar 100.000 mil (sic) réis fortes.

Com isto não te enfado mais, dá-me muitas lembranças ao tio António Branco e ao tio Vitorino e a toda a nossa fa-mília que nos pertence de parte a parte e muito abraço para tuas manas e um apertado abraço para tua mãe. E as mi-nhas para contigo só à vista são sem fim. Aceita um apertado 2 O texto continua na página que seria o início da carta, por isso registada com numeração

[folha 1] e tem a indicar o número 2 no canto superior esquerdo.

abraço e meu eterno coração e tua mão direita muito apertada.

João Gonçalves.[Folha 1v] Aceita muitas recomendações. De todos as mes-

mas recomendações (3), João Gonçalves.

3 () Segue-se uma abreviatura que supomos querer dizer: adeus, 16 de Junho e assina novamente, seguindo-se um selo fiscal devidamente inutilizado.

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Descrição

José d’Oliveira envia postal ao amigo e conterrâneo Da-vid Lemos

Postal a preto e branco identificado por “Funchal S.S. Briton ” tem em primeiro plano um paquete na baía do Funchal. Reverso com três carimbos: um em Alquerubim a 15 de Março de 1919 e outro apenas tem batida uma parte por extração do selo.

Fonte: Arquivo particular de Manuela Vaz Velho (MVV). Base de dados, recolha e reprodução fotográfica do autor do texto.

Documento nº 4

Transcrição

Exmo Sr. David Lemos(Via Lisboa) Aveiro AlquerubimS. Vicente, 18/2/19Meu bom amigo.Até aqui, chegamos sem novidade.Partiremos, amanhã 19, às 2 h, para a Praia.Sem mais, peço me recomende á Elvira e o meu

amigo um saudoso abraço do amigo gratoJosé d’Oliveira

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22Descrição

O postal a cores, es-crito por José d’Oliveira envia postal ao amigo e conterrâneo Manuel Dias Aydos, faz parte de um fundo privado. Identifi-cado por Madeira, view of the Town, apresenta um pormenor da baía do Funchal. No reverso tem três carimbos, um deles foi batido parcialmen-te. Observa-se a marca do selo que foi extraído por colecionador incau-to; outro carimbo fé de S. Vicente e um outro da Madeira. A mensagem é simples e com ela preten-de dar a conhecer o sítio visitado

Fonte: MVV. Base de dados, recolha e reprodu-ção fotográfica do autor do texto.

Transcrição

Sr. Manoel Dias Aires(via Lisboa)AveiroAlquerubim

Documento nº 5

S. Vicente, 18-2-919Amigo Manuel.Chegamos hoje a S. Vicente, tendo tido uma boa

viagem.Já deves ter recebido um postal que te escrevi da

Madeira.Sem mais, um abraço do teu amigoJosé d’ Oliveira.

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23Documento nº 6

Descrição

Paisagem da Madeira. Pormenor de quintal com latada carregada de uvas. Postal dirigido por Eunice Aydos à mãe, datado no frontispício a 4 de Janeiro de 1914 (data de expedição?) e carimbado em Avei-ro (no Continente) a 13 do mesmo mês. Postal cir-culado com selo do qual há vestígios da extração, com batido parcial.

Fonte: MVV. Base de dados, recolha e reprodu-ção fotográfica do autor do texto.

Transcrição

Ex.ª Srª D. Eulália Figueiredo Dias Aydos Aveiro, Alquerubim

Minha querida mãe,Escrevo da Madeira ao contrário do que pensa-va. Vamos bem. Que belo é isto. É um perfeito jardim. Muitos beijos comum abraço da sua filha muito amiga, Eunice.

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C omo é sabido, as tradições norte-americana de doa-ção e de manutenção de arquivos são bem diferen-

tes das portuguesas. Um pouco por todos os Estados Uni-dos da América, são doados a instituições públicas como as Sociedades Históricas espólios de três ou quatro gera-ções de uma mesma família e de outros núcleos familiares próximos, material que fica disponível para consulta e fácil reprodução, o que se explica não apenas através de razões económicas (o mecenato generalizado), mas também pelo facto de se tratar de um país relativamente jovem (1776), e de ter, até certo ponto, uma relação diferente com as suas fontes históricas, também essas mais jovens que, por exem-plo, as portuguesas. Basta recordar a fundação de biblio-tecas, de centros de investigação e de fundações por cada presidente americano cessante, instituições dedicadas ao estudo dos mandatos desses mesmos ex-chefes de Estado. As referidas doações de acervos familiares servem também o propósito de enriquecer a comunidade através da histó-ria (local), bem como o papel e a imagem pública das famí-lias doadoras, como, por exemplo, as família Butler-Laing (espólio na Historical Society de Nova Iorque), Kinsman [Peabody Essex Museum (PEM), Salem], e Sword (Histo-rical Society da Pensilvânia, Filadélfia). Os espólios fami-liares encontram-se depositados em instituições nas zonas de residência e de influência dessas famílias, bem como na Library of Congress.

As Historical Societies americanas funcionam simulta-neamente como bibliotecas, arquivos documentais, centros de investigação/publicação e como museus, dedicando-se ao estudo da história local e regional, pois recebem, desde a sua instituição, espólios e arquivos familiares por razões que se tornam óbvias face ao que já afirmámos. A Massa-chusetts Historical Society, fundada em 1791, é a primeira dos EUA e surge com o objectivo de preservar a herança histórica nacional, sobretudo as fontes documentais. Essas instituições têm aliás um papel activo na transformação da historiografia norte-americana através quer da manu-tenção, catalogação de documentos e de artefactos, quer do estudo da história local e nacional e da atribuição de

bolsas, ente outras iniciativas. A Sociedade Históri-ca de Nova Iorque é fundada em 1804, e a da Pen-silvânia 20 anos depois, ainda com enfoques mui-to locais ou regionais. Aliás, a primeira história de cariz nacional(ista) norte-americana, em dez volu-mes, surge apenas em 1834, quando a History of the United States of America from Discovery of the Con-tinent, de George Bancroft, se torna a primeira ten-tativa de apresentar o passado como um esforço na-cional e não apenas do ponto de vista de um estado ou de uma região. Já as origens do PEM remontam a 1799, ano da fundação da East India Marine So-ciety de Salem, que surge para albergar as inúmeras curiosidades que os comerciantes da cidade trazem de viagens a paragens longínquas.

Se antes da segunda década do século XIX a Mu-lher raramente viaja sem ser por motivos de saúde, para acompanhar familiares do sexo masculino em negócios ou em viagens de lazer, esse mesmo sécu-lo é conhecido como o século em que as mulheres começam a fazê-lo também sozinhas, sobretudo depois do aparecimento do barco a vapor. Os ar-quivos familiares norte-americanos reflectem essa realidade, como podemos ver através dos diários ín-timos e das missivas de viajantes norte-americanas, acompanhando a sua viagem desde os EUA até ao Sul da China, mais propriamente a Macau. Entre es-sas viajantes pioneiras encontram-se diaristas como Harriet Low (1829-1833), Rebecca Kinsman (1843-1847), Caroline Hyde Butler Laing (1837), Lucy Cle-veland (1929) e Mary Parry Sword (1841-1845), que visitaram Macau nas datas apresentadas e aí residi-ram, umas temporariamente, outras durante anos, enquanto os maridos e tios subiam até às feitorias estrangeiras de Cantão, espaço interdito às mulheres ocidentais onde os comerciantes passavam o Outo-no e o Inverno a tratar dos negócios que os haviam trazido à China. Impossibilitadas de entrar na China continental, as viajantes norte-americanas permane-

A Utilização de Arquivos Familiares Norte-Americanos para o Estudo da História de Macau (Século XIX)

Rogério Miguel Puga

CETAPS, FCSH-Universidade Nova de Lisboa

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cem em Macau, enclave com características coloniais que se torna assim um espaço feminino quase por excelência. Uma parte do espólio da família Kinsman, nomeadamente o diário de Rebecca Kinsman, depositado na Phillips Li-brary do PEM, que nos revela uma realidade interessante no que diz respeito às relações de género e à divisão do trabalho na comunidade de língua inglesa no Sul da China oitocentista. Para além dos momentos recreativos e de des-canso solitário quando o enclave luso-chinês fica ‘deserto’ devido à viagem da comunidade masculina para as feito-rias, Rebecca vê-se forçada a escrever para Cantão quase diariamente devido a assuntos comerciais. Aliás, a autora afirma que passa a ser a única representante da firma Wet-more & Co. em Macau, tratando de todos os assuntos co-merciais, actividade que, a par do trabalho doméstico, a faz esquecer a solidão. As lides diárias de Kinsman vão sendo enumeradas, e as missivas descrevem o quotidiano femi-nino na cidade administrada pelos portugueses, enquanto Nathaniel se encontra em Cantão, provando que a divisão sexual do trabalho no seio da comunidade estrangeira de Macau não é tão tradicional quanto poderíamos pensar. A representação do género adquire, portanto, ao longo da(s) narrativa(s) uma presença constante, levando-nos a rein-terpretar o estatuto passivo do sexo feminino no ambiente ‘colonial’ do enclave periférico oitocentista, oferecendo as missivas de Rebecca Kinsman uma imagem diferente da estereotipada visão da simples dona de casa, ocupada com as lides domésticas e com a educação dos filhos.

Longe dos familiares masculinos e da sua terra natal, as mulheres de mercadores norte-americanos resi-dem em Macau, onde registam, nos seus diários e missivas, inúmeros pormenores do quotidiano macaense de forma detalhada; daí que esses textos de carácter pessoal enviados para os EUA em forma de carta sejam actualmente fon-tes históricas indispensáveis para a o estudo da história de Macau. Os diários encontram-se espalhados um pouco por todos os EUA, sobretudo em espólios e arquivos pessoais doados a sociedades históricas e a instituições locais por vezes com ligações às famílias. A maioria dessas mulheres é oriunda da costa leste dos EUA, onde a escrita de diários faz, desde cedo, parte da vivência religiosa dos protestan-tes, que, não se confessando, utilizam a escrita (devocio-nal) como exame de consciência, ou auto-exame, e como forma de se sentirem mais próximos de Deus. Esses textos são também uma forma de registar novas experiências em terras longínquas e exóticas como Macau, preservando as-sim factos e episódios que a memória humana facilmente esquece durante viagens em que o volume da informação a apreender (e plasmar) é amplo e diversificado. No caso dos referidos diários epistolares, a ideia é também partilhar

com os familiares o dia-a-dia durante a viagem e a estada. A própria escrita auxilia a reflectir sobre o dia que acaba e que a diarista agora revê ao passar à escrita, seleccionando episódios e pensamentos que são dignos de ser registados e os que devem ser esquecidos, por vezes num processo algo terapêuti-co. Os diários são úteis para recriar o passado, não apenas no que diz respeito aos grandes aconteci-mentos e personagens históricas, mas também rela-tivamente aos valores, aos costumes, ao background social das autoras e sobretudo aos gostos, gestos e pequenos detalhes relegados para segundo plano ou esquecidos nas fontes consideradas mais ‘oficiais’, pois o diário é, como sabemos, um texto de cariz autobiográfico, embora difira da autobiografia, pois esta funciona como retrospectiva de toda uma vida e o primeiro é redigido ao longo da vida, contendo apenas o que o autor decide registar, de uma forma relativamente espontânea sobre a sua vida e os seus pensamentos, normalmente sem grandes comen-tários retrospectivos, ou seja, o diarista selecciona, nem que inconscientemente, a informação que grafa ou plasma na sua narrativa íntima.

Os referidos diários, quer os totalmente íntimos, quer os que se destinavam a ser lidos pelos fami-liares das diaristas, são doados pelos descendestes principalmente a sociedades históricas e a museus relacionados com o comércio com a China, como o PEM, onde, muitas vezes, já se encontram docu-mentos ou espólios de outros familiares, ficando as-sim a história e a genealogia da família associadas a uma instituição específica, que vai enriquecendo a sua colecção gradualmente. Essas fontes são repo-sitórios de informação essencial para o historiador, instrumentos terapêuticos para psicólogos, fonte de dados sobre estruturas sociais e sobre interacção so-cial para sociólogos, e textos literários para críticos literários, assumindo-se, portanto, como um terri-tório privilegiado para os estudos interdisciplinares.

O texto íntimo veicula valores coevos e triviali-dades que são hoje dados importantes para o histo-riador, por exemplo a forma de educar crianças, os divertimentos sociais como as danças, o quotidiano de mercadores e das suas mulheres e filhas, a ali-mentação, os passeios, e as relações multiculturais em espaços de fronteira como Macau, entre outros elementos e pormenores culturais ausentes noutros tipos de fontes. Comparar conteúdos de diferentes arquivos, nomeadamente diários e cartas, possibili-ta-nos fazer leituras diferentes de uma mesma rea-

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lidade. O olhar feminino que esses arquivos familiares es-condem dá-nos ainda a conhecer as vivências quotidianas da Macau oitocentista, nas suas mais variadas dimensões: a religiosa, a artística, a doméstica, a política, a comercial e a recreativa. Essas missivas revelam ainda alguns temas e problemáticas associadas à Escrita de Viagens, a saber: a alteridade e o encontro/confronto com o Outro, a viagem e o festim dos sentidos, o Outro longínquo e o Outro eu-ropeu, no caso os portugueses católicos em Macau, quase tão exóticos e incompreensíveis para os norte-americanos como os chineses nas suas procissões.

Embora Macau seja referida amiúde como uma cidade cosmopolita e multicultural, os diários norte-ame-ricanos existentes nos referidos arquivos regionais reve-lam, por exemplo, que não eram apenas as comunidades lusa e chinesa que não interagiam entre si, mas também as comunidades anglófonas se isolavam em Macau das co-munidades portuguesa e chinesa, por motivos religiosos, culturais e devido à barreira linguística; os portugueses de Macau não falam inglês, os anglófonos não dominam a língua portuguesa e contactam com os empregados e parceiros comerciais chineses através do Chinese Pidgin English (CPE) através de expressões e termos como “long time no see”, “no can do” e “savvy”, entre outros que entram na língua inglesa, mas que surgem no eixo Macau-Cantão a partir do século XVIII. Os autores de relatos de viagem oitocentistas e as diaristas utilizam termos em CPE nos seus escritos e a conversar entre si, e é dessa forma que tais termos e expressões entram mais tarde na língua inglesa, pois os mercadores abastados e influentes nos meios so-ciais das cidades de onde são oriundos continuam a utilizar essas expressões quando regressam a casa e são imitados por social climbers e pela restante população nos EUA e na Grã-Bretanha.

Os temas, as observações e até preocupações de mães de família e donas de casa num mesmo espaço ao longo da primeira metade do século XIX repetem-se nos sucessivos diários e missivas, desde os de Harriet Low, de Caroline Butler, aos de Mary Sword. Temos assim descrições por-menorizadas dos lares e dos empregados como o compra-dor, dos longos passeios até à Igreja da Penha ou às Portas do Cerco, dos portugueses e dos chineses que as autoras quase só observam na rua, e com quem pouco privam, bem como da má-língua que caracteriza a reduzida comu-nidade anglófona pautada pelo ethos protestante. São ainda descritos o início da colónia britânica de Hong Kong, as especificidades e manobras dos negócios masculinos, os edifícios e as embarcações de Macau, as mulheres chine-sas de pés enfaixados, as festividades lusas e sínicas, am-bas difíceis de descodificar pelas autoras protestantes, os

lares luso-chineses, as ruas, os edifícios de prestígio e os espaços públicos, os encontros sociais e festas, as práticas religiosas das três comunidades, ou seja, o catolicismo lusófono, o protestantismo anglófono e a religião tradicional chinesa, bem como, de uma forma minuciosa, o quotidiano das senhoras angló-fonas, desde manhã à noite. Torna-se também claro que inúmeros viajantes ocidentais utilizam Macau como ‘câmara de descompressão’ antes de entrarem na China e para se familiarizarem com a cultura e a língua chinesas.

A maioria das diaristas norte-americanas nunca imaginou que os seus textos privados ou familiares seriam utilizados para estudar a história do quoti-diano de Macau, mas estes são efectivamente fon-tes tão ou mais ricas que as portuguesas, chinesas e inglesas no que diz respeito ao quotidiano da urbe luso-chinesa na primeira metade do século XIX, e são muito mais que documentos de cariz local ou regional. Se tais fontes não existissem actualmente, seria impossível ‘recuperarmos’ muitos dos cenários e práticas do dia-a-dia macaense do século XIX. A informação disponível nesses arquivos familiares e registada pelas diaristas flâneurs complementa as-sim os dados que o investigador português encon-tra, por exemplo, no Arquivo Histórico Ultramari-no, e é mais rica em termos de detalhes e práticas quotidianas do que as fontes diarísticas europeias em termos de quantidade e qualidade de informa-ção no que diz, portanto, respeito à história cultural de Macau. Sendo o enclave um local relativamente ‘cosmopolita’ desde a sua fundação portuguesa por volta de 1557, a sua caleidoscópica história só pode-rá ser feita a partir de arquivos em vários países, da Suécia aos EUA, e através dessas fontes estrangeiras o investigador português encontra e revela (razões para certos) silêncios e mistérios na documentação portuguesa. A flânerie feminina revela assim uma Macau diferente da das fontes masculinas, quase sempre redigidas por homens de negócios. Tal como Penélope no Mediterrâneo, essas mulheres norte--americanas esperam pelos maridos e tecem os seus textos nas fraldas do Mar da China, na periferia do mundo chinês e do império luso, remetendo esses espólios familiares para a história nacional america-na, para a história de Macau, do império português e dos próprios arquivos familiares, formando assim um rede palimpséstica de intertextos e narrativas em torno do comércio ocidental com a China.

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T he most famous diary of The Netherlands is argua-bly the most famous diary of the world: the diary of

Anne Frank, the Dutch girl who went into hiding with her family during the Second World War, to avoid deportation to a concentration camp. Anne had received her diary as a birthday present for her thirteenth birthday on June 12th 1942, and took it with her when she, her parents, and her older sister Margot took refuge in a hidden set of rooms – the ‘Achterhuis’ - in the back of her father’s office on one of the Amsterdam canals. On March 28th 1944, Anne learned that the Dutch government in exile in London planned to collect diaries once the war would be over and store them as historical documents. ‘Yesterday night,’ Anne wrote in her diary on March 29th 1944, ‘minister Bolkestein annou-nced on Radio Orange [an illegal radio sender managed by the exiled Dutch government] that after the war their dia-ries and letters about the war will be collected. Of course, everybody made a run for my diary immediately. Imagine how interesting it would be if I would publish a novel about the Achterhuis; judging by its title, people would think it a detective novel.’

Anne then started to rewrite her diary with an eye on possible publication, until all the inhabitants of the Achterhuis (including the Frank family, another family

Monica Soeting

O diário mais conhecido na Holanda é igual-mente o diário mais famoso em todo o

mundo: o diário de Anne Frank, a adolescente ho-landesa que, durante a Segunda Guerra Mundial, se escondeu com a família, tentando evitar os campos de concentração. Anne tinha recebido o diário como prenda do seu 13º aniversário, a 12 de Junho de 1942 e levou-o com ela, quando, conjuntamente com os seus pais e a sua irmã mais velha, Margot, se escon-deu numas divisões, nos fundos do escritório do pai ,perto de um dos muitos canais de Amesterdão – o Achterhuis. No dia 28 de Março de 1944, Anne soube que o governo holandês exilado em Londres, planeava recolher todos os diários escritos durante o período da guerra e guardá-los como documentos históricos.

“ontem à noite” escreveu Anne no seu diário, no dia 29 de Março, “ o ministro Bolkestein anunciou na Radio Orange ( uma emissora de rádio ilegal di-rigida pelos exilados do Governo Holandês) que, depois da guerra, os diários e a correspondência se-riam recolhidos. Claro que todos se lançaram sobre o meu diário. Como seria interessante se eu pudesse publicar um romance sobre o Achterhuis, que, pelo

Dutch Diary Archive O Arquivo de Diários na Holanda

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of three, and a single man) were betrayed, arrested by the German police, and deported to Auschwitz in August 1944. The only person in this group to survive the concentration camps and to return to Amsterdam was Anne’s father, who decided to slightly edit his daughter’s diary (kept for him by one of his secretaries) and after consultation with va-rious people – amongst whom Cissy van Marxveldt, Anne’s favourite Dutch author - to publish it in June 1947.

Despite Anne’s intention of having her story being pu-blished as a novel, Het Achterhuis was almost immediately received not only as a document about the war, but also as a symbol of the fate of the Jewish Dutch people. Even thou-gh the original diary was given by Otto Frank to the Natio-nal Institute of War Documentation (RIOD), as a part of their vast collection of war diaries, Anne’s diary still holds a special place in the ranks of these documents. Whether this is right or wrong has been the subject of many debates. The fact is that it has taken scholars and non scholars ali-ke a while to recognize the historical potential of all other diaries in the RIOD collection. When soon after the esta-blishment of the RIOD in 1945 the first diaries, memoirs, and letters arrived, they were read and catalogued by RIOD employees who sometimes deemed one sort of diary more important than another. ‘Written by a labourer,’ one of them famously scribbled in the margin of one of the me-moirs, ‘this doesn’t contain anything worth reading.’ It took the Seventies’ interest in the history of ‘common’ people to read all war diaries, and all other diaries for that matter, as a form of micro history.

Since then, even though the diary of Anne Frank still holds a special place in Dutch history, the scholarly and non scholarly interest in ‘ego documents’ – a term dubbed by the Dutch historian Jacques Presser in the mid fifties – has taken a huge flight in The Netherlands. In 1983, Dutch historian Rudolf Dekker started to make an inventory of all

título, decerto julgarão tratar-se de um policial.Anne recomeçou a escrever o seu diário, tendo

em vista uma eventual publicação, até que todos os residentes do Achterhuis, ( incluindo a família Frank, outra família composto por três pessoas, e um homem solteiro) foram traídos e presos pela po-licia Alemã e deportados para Auschwitz, em Agos-to de 1944. A única pessoa do grupo que sobreviveu ao campo de concentração e regressou a Amester-dão foi o pai de Anne, que decidiu editar o diário da filha ( guardado por um dos seus funcionários) e, depois de consultar várias pessoas – entre as quais Cissy van Marxveldt, o autor holandês preferido de Anne – publicou-o, em Junho de 1947.

Apesar da intenção inicial de Anne em publicar um romance, Het Achterhuis acabou por ser recebido como um documento da guerra e sobretudo como um símbolo do destino do povo judeu holandês. Apesar do documento original ter sido oferecido por Otto Frank ao Instituto Nacional de Documen-tação de Guerra ( RIOD), integrando a vasta coleção de diários de guerra, o diário de Anne assume pre-ponderância entre os demais. Saber se isto está ou não certo, tem sido a matéria sobre a qual muito me tenho debatido. A verdade é que tem levado algum tempo para que, quer os académicos, quer os não académicos, reconheçam o potencial histórico de todos os diários que pertencem à coleção do RIOD. Assim que os primeiros diários, memórias e cartas chegaram, em 1945, estes foram lidos e catalogados por empregados da instituição que, por vezes, da-vam mais importância a um do que a outro: lido por um funcionário, que numa das margens escreveu, “ não contém nada de interessante”. Foi preciso che-gar aos anos Setenta para que o interesse pela his-tória das pessoas comuns fizesse com que se lesse diários de guerra, e todos os outros tipos de diários, entendendo-os como uma forma de micro história.

Desde então, e apesar do diário de Anne Frank deter ainda uma posição charneira no seio da His-tória Holandesa, tanto os académicos como o públi-co em geral têm demonstrado interesse pelos “ego documentos” – um conceito datado de meados dos anos cinquenta, do historiador holandês Jacques Presser – que foi decisivo na Holanda. Em 1983, o historiador holandês, Rudolf Dekker começou a in-ventariar todos os ego documentos que se encontra-vam nos arquivos do país, desde a Idade Média até ao início do século XX. A partir daí, o site http://www.egodocument.net/egodocument/egodocu-

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ego documents present in Dutch archives, from the Middle Ages until the beginning of the 20th century. Since then, the website of the Dutch Center for Egodocuments and History, under supervision of Rudolf Dekker and Arianne Baggerman (http://www.egodocument.net/egodocument/egodocuments-1814.html), lists a huge range of diaries and their contents, starting with the autobiography of Deside-rius Erasmus written between 1523 and 1524. Since the eighties, both Dekker and Baggerman have extensively re-searched Dutch ego documents and published about their findings, thus adding valuable knowledge about the cultu-ral and historical meaning of these documents. They have not been the only Dutch scholars to do so. Research based on diaries, memoirs, and letters, conducted by historians like Barbara Henkes, Lotte van de Pol, and many others, has led to books read intensively not only by their fellow scholars, but by a broad general public as well.

Taken these developments, you would think that the Netherlands, like Germany, France, and Italy, would boast a general Diary Archive, as a place where people can bring and store their unpublished diaries, memoirs, and letters and save them for posterity. Well, they do, but only recently so. After an inspiring visit to the German Diary Archive in Emmendingen in 2010, Mirjam Nieboer and I set out to find the Dutch equivalent. What we found were special collections like the aforementioned diary collection of the RIOD (now named NIOD) and that of the IISG, the In-ternational Institute of Social History in Amsterdam – but not an archive that stores any ego document, irrespective of the time it was written, the position of its author or its contents. We therefore did the next best thing: we founded it ourselves.

Now founding an archive is one thing, but establishing it is another. Having said that, we have found that things went more smoothly than we had expected, up to a point. After establishing a website and publishing an article in a national newspaper, we were invited to tell about our plans on national radio. This led to several people contacting us and offering us their diaries or those of their relatives. Wi-thin several months, we had collected a small, but subs-tantial collection of unpublished diaries, memoires, and letters dating from the beginning of the 20th century until the beginning of the 21st. We looked for, and found, people to form a board of trustees for our newly funded organiza-tion, and were offered, and accepted, the help of a young historian, who had done research for the NIOD during her studies. We learned how to clean the documents and how to put them in the right kind of boxes. We developed a mode of describing and cataloguing the documents, and started to contact possible readers to help us with all this.

ments-1814.html , supervisionado pelo próprio e por Arianne Baggernman, dispõe de uma lista com vários diários e respectivo conteúdo, começando com a biografia de Desiderius Erasmus, escrita en-tre 1523 e 1524. Desde os anos oitenta, tanto Derrek como Baggerman têm conduzido uma investigação exaustiva, mas não são os únicos. A investigação baseada em diários, memórias e cartas levada a cabo por historiadores como Barbara Henkes, Lotte van de Pol, entre outros, fez com que o número de livros lidos sobre o assunto tanto por investigadores como pelo público em geral, tenha aumentado considera-velmente.

Na sequência de tudo isto, poderá pensar-se que na Holanda, tal como sucede na Alemanha, na Fran-ça e em Itália, o Arquivo geral receba diários priva-dos e não publicados, memórias e correspondência, guardando-os para a posteridade. Bem, na verdade, fazem-no, mas só há bem pouco tempo. Depois de uma visita inspiradora ao Arquivo de diários em Emmendigen, na Alemanha, em 2010, Mirjam Nie-boer e eu fomos em busca de uma instituição equi-valente no nosso país. O que encontrámos foi cole-ções albergadas em instituições tais como a RIOD e o IISG – mas não um arquivo que guardasse os documentos privados, independentemente da época em que tinham sido escritos, a posição do autor ou o seu conteúdo. Em seguida, fizemos o que tinha de ser feito: fundámos nós uma instituição.

Mas fundar um arquivo e estabelecer um arquivo são duas coisas bem diferentes. Posto isto, verificá-mos que o processo decorre de modo muito mais lento do que desejaríamos. Depois de ter sido criado um site e de ter sido publicado um artigo num jornal nacional, fomos convidadas para um programa de rádio, no sentido de partilharmos os nossos planos. Fomos contactadas por várias pessoas que nos ofe-receram os diários dos seus familiares. Em poucos meses, tínhamos em mãos uma pequena mas subs-tancial coleção de diários não publicados, memórias e cartas datadas desde o início do século XX até ao princípio desde século. Procurámos e encontrámos pessoas para fazerem parte desta instituição e pude-mos contar com a ajudar de uma jovem historiado-ra que tinha feito formação no NIOD. Aprendemos a limpar os documentos e a guardá-los em caixas apropriadas. Desenvolvemos um modelo de descri-ção e catalogação dos ditos documentos e iniciámos o contacto com possíveis leitores para nos ajudarem neste processo. Havia, apenas um senão: não tínha-

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There was just one snag: we did not have a place to store our collection.

Like the founder of the Emmendingen Archive, we set out to find a mayor who would like to host a national dia-ry archive, thus giving his or her town an extra boost of interest. When we found none, we approached Prof. Dr. August den Hollander, Head Curator at the VU University in Amsterdam. Professor Den Hollander generously offe-red to house the Dutch Diary Archive at the VU University Library, but could do so only for a period of two years. He recommended we contact the Meertens Institute, a resear-ch institute founded in 1926, which studies the diversity of language and culture in the Netherlands, and houses a vast and well known archive in Amsterdam. So we wrote a letter to the Meertens Institute, asking if they were interested to host our small, but growing collection of ego documents.

We had to wait a while, but when their answer arrived we were overwhelmed by the very positive feedback: we were invited to come and talk with some of the Institute’s representatives that same week. A few days later we had secured ourselves a place in the archives of the Institute. Our next step was to complete the cataloguing and start a campaign to advertise the Diary Archive in order to secure more diaries. Busy schedules however threatened to delay the process. Then again, help was offered at exactly the ri-ght time. One of my former history students at the Utrecht University contacted her to ask if he could possibly do an internship at the Diary Archive, focusing on PR and access by a general public.

And that is where we find ourselves at this point: this spring, we will move our collection to the archives of the Meertens Institute, while Jan van Asch, our intern, is making preparations for a meeting with future readers, who will describe and catalogue the diaries using a sophis-ticated computer programme, and setting up a workable pr plan. Once all that is done, we will be able to offer our col-lection for research projects and organize public meetings, just like the Diary Archive in Germany, France, and Italy do. We also look forward to establishing contact with Dia-ry Archives in other countries, exchanging experience and organizing international meetings. What we could do with is, not surprisingly, enough money to sustain the archive and organize public events. These coming months, we will therefore also concentrate on trying to find funding. Not the best of times admittedly, but with all our positive expe-riences so far, we are determined to stay optimistic.

mos um lugar adequado para os guardar. Tal como já o havia feito o fundador do Arquivo

de Emmendigen, fomos à procura de um presiden-te de Câmara que estivesse disposto a acolher um arquivo nacional de diários, quiçá aumentando o interesse pela sua cidade no futuro. Não encontrá-mos nenhum. Acabámos por contactar o Professor Doutor August den Hollander, professsor de Vu na Universidade de Amesterdão. Generosamente, ofe-receu-se para acolher a nossa coleção no arquivo da biblioteca da Universidade mas apenas por um perí-odo de dois anos. Recomendou que contactássemos o Instituto Meertens, um Centro de Investigação fundado em 1926, dedicado ao estudo da língua e cultura holandesa e que alberga uma vasta e conhe-cida coleção de documentos na capital holandesa. Endereçámos-lhe uma carta.

Depois de algum tempo de espera, as boas notí-cias chegaram: fomos convidadas para uma reunião nessa mesma semana. Alguns dias depois, o local para colocar os nossos documentos estava finalmen-te assegurado. O próximo passo era terminar a cata-logação e dar início a uma campanha de publicida-de. No entanto, a nossa agenda carregada impôs-se e o processo demorava muito tempo. Uma vez mais, a ajuda chegou na hora certa. Um antigo aluno meu contactou-me, no sentido de fazer um estágio. Foi imediatamente contratado.

E assim estamos neste momento: na próxima pri-mavera, a nossa coleção irá ser trasladada para o Ins-tituto Meertens, enquanto Jan van Asch, o nosso es-tagiário, se prepara para reunir com futuros leitores, que ajudarão a catalogar e descrever os documentos, utilizando um sofisticado programa de computador. Assim que este processo esteja concluído, estaremos prontos para disponibilizar a coleção para investiga-ção e para organizar encontros, tal como acontece com os Arquivos de diários na Alemanha, na Fran-ça e em Itália. É ainda nosso propósito estabelecer contactos e parcerias com outras instituições em outros países, trocando e partilhando experiências e promovendo conferencias internacionais. No mo-mento, não temos é dinheiro para o poder fazer. Nos próximos meses, iremos concentrar-nos em arran-jar fundos. Não é, com certeza, a melhor altura, mas com a toda a nossa experiência anterior, estamos mesmo determinadas a nos mantermos optimistas.

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W hen we think of archives, we usually think about large buildings with regulations and professional

staff who sort, protect and distribute collections of unpu-blished documents and accounts for researchers to read, think about and interpret. Certainly anyone who has read Derrida’s Archive Fever: a Freudian Impression (Chicago: u of Chicago P, 1998) assumes that the archive is global and illuminating on many levels, but in its essence it speaks to us about life writing in its most poignant position, as death writing as my colleague Ian Balfour used to jest ten years ago. (Now death writing is more commonplace as an auto-biographical genre.) Derrida uses Freudian concepts to ar-gue that the archive is the seat of writings that yearn toward that moment of death and dying that we all approach and think about, whether with resolve or panic, or some other emotion or faith altogether.

Part of the archive writ large is the family’s “private” ar-chive, a collection that is no less subject to these drives and may in fact be more revealing of the subject herself, and of those aspects of humanity that we do not always want to reveal when we are alive, or when our relatives are alive. For example: how afraid we are to approach the end of life; how afraid we are to know who we really are; how afraid we are to die alone or forgotten; how afraid that we do not know from whence we come. A dear friend—let’s call him Teleky—a poet and a scholar, talked to me today about a collection of letters his mother and grandmother had saved for a few generations, letters exchanged between his great grandfather (back in Hungary) and the grandfather’s dau-ghters (now in Cleveland) who had left for “Amerika” in search of another sister, newly married and reportedly de-jected away from home. The young women were to bring the lost soul back to the homeland.

Ironically, the daughters never returned to the home-land themselves, and it seems almost in exchange for the bad deal dealt their father, they saved the corresponden-ce that was the evidence of their non-return, the evidence of the death of their parents, the death of their homeland such as it was. With a melancholic beauty, Teleky gestu-red toward a kind of muted address to these letters, an address that would include showing them to the world

Q uando se pensa em arquivos, regra geral, pensamos em grande edifícios com regu-

lamentações e profissionais que protegem e distri-buem coleções de documentos inéditos e relatos para investigadores lerem, refletirem e interpreta-rem.

Os que leram a obra de Derrida Archive Fever: a Freudian Impression (Chicago: u of Chicago P, 1998) pressupõem que o arquivo é global e esclare-cedor em muitos casos mas, na sua essência, fala--nos acerca da escrita da vida na sua forma mais acutilante, tal como a escrita da morte, nas palavras da minha colega Ian Balfour, ditas há dez anos em jeito de brincadeira. (atualmente a escrita da mor-te e dos que estão a morrer surge incluída a escrita autobiográfica). Derrida utiliza os conceitos Freu-dianos para assegurar que o arquivo é um conjunto de documentos escritos que anseiam o momento da morte que de todos nós se aproxima e sobre o qual todos nós pensamos, seja com determinação ou pâ-nico, com ou sem emoção.

Uma parte da documentação de arquivo são os arquivos familiares e privados, uma coleção não menos subjugada a estes factores tanto quanto mais reveladora, em si mesma, dos aspetos da humani-dade que nem sempre queremos revelar quando estamos vivos, ou quando os nossos parentes ainda estão vivos. Por exemplo: até que ponto temos medo de nos debruçar sobre o fim da vida; até que ponto temos medo de saber quem somos; até que ponto temos medo de morrer sós, sem ninguém, e esqueci-dos; até que ponto temos medo de não saber de onde viemos. Um dia, um amigo chegado – vamos cha-má-lo Teleky – um poeta e um académico, falou-me de um conjunto de cartas que a mãe e a avó tinham guardado, ao longo de algumas gerações, cartas tro-cadas entre o bisavô (na Hungria) e os seus filhos (agora em Cleveland) que tinham partido para a “Amerika” à procura de uma irmã, recém casada e que sabiam estar com uma depressão. As raparigas queriam encontrá-la e trazê-la de volta para casa.

“Things gone astray…” Archival research and private lives

Deitar coisas fora … investigação em arqui-vos e histórias de vida

Marlene Kadar

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by publishing them. With his own pen, however, Teleky would give the letters peace, a resting place, the word he used being more polite or more professional—“a context,” he said. As the Canadian-Hungarian poet, Richard Teleky, writes in the plaintiff poem, Plainsong, death approaches as each day of life passes:

Find a space in your heart for the thoughtthat life’s over, learn to carry the night like a gift overdue. Reap and sow, the sunwarns us, at end’s end your death’s you.

Richard Teleky, The Hermit in Acadia: poems. Holstein, ON: Exile, Editions, 2011; 79.

If we are to follow the poetic justice in this verse, we might more easily anticipate that private archives, uncata-logued archival collections passed from one generation to another, family letters and the like can provide a therapeu-tic crutch on which to balance family lore and its inevitable difficult memories. We have to admit that the relationships between documents is often mysterious, enigmatic, unex-plained or explainable, and yet assumed to be “of the blood” (although this assumption, too, can be overturned with probing archival research that unveils family secrets, clandestine sexual adventures, or religious and political se-crets that question a received truth). Why descendents feel the need, often the deep longing to read and interpret the lack that Freud speaks so often about is a question without an answer, and yet a question always worth asking. Terry Eagleton closes one of his pensive invectives against the de-ath drive this way: “it is only because we carry death in our bones that we are able to keep on living” (The Meaning of Life. Oxford: Oxford UP, 2007, 160).

Would you allow me to take these bones into a meta-phor of context, a place of be-longing, where life’s longin-gs interpenetrate with death’s desire? In other words, can we see Teleky’s letters, for example, as the skeleton for the story that exists out there but can never in its totality be told? There is always something missing, always a lack in remembering family stories and yet more of a desperation to know when blood is at stake, or when the continuity of life is threatened and its roots are desired to be known.

It almost sounds mystical or irregular but in fact it is normal, vernacular, that words are used in a present, dis-covered in another present, interpreted in yet another so that the private lives of ordinary persons are sensible to the ancestors and to the forbearers. Indeed so despe-rate is the desire that hundreds of websites have opened

Ironicamente, as filhas nunca regressaram à Hun-gria, e parece que, em troca do contrato que haviam estabelecido com o pai, guardaram a correspondên-cia que, por um lado, ilustra o facto de não terem re-gressado, e por outro, comprova a morte dos pais, a morte da sua terra natal, por outras palavras. Teleky, graciosamente melancólico, parecia querer endere-çar estas cartas a algum destinatário final, um rece-tor que possibilitasse a sua publicação. Desde modo, e pelo seu próprio punho, Teleky pretendia dar paz a estas cartas, dar-lhes um local de descanso, sendo que utilizou a palavra – contexto – mais profissional e formal.

Tal como escreve o poeta Húngaro-Canadiano, Richard Teleky, num poema de lamento, intitulado Plainsong, a morte aproxima-se a cada dia da vida:

Procura no teu coração um espaço para a ideiaDe que a vida acabou, aprende a passar a noiteComo um presente tardio. Collher e semear, o sol Avisa-nos, que no fim de tudo a tua morte és tu!

Richard Tekely, The Hermit in Acadia: poems. Hosltein, ON:Exile, Editions, 2011, 79.

Se seguirmos a poética deste verso com justiça, mais facilmente entendemos que os arquivos pri-vados, as coleções não catalogadas que passam de geração em geração, as cartas familiares permitem uma espécie de terapêutica, através da qual se equi-libra a tradição familiar e as inevitáveis dificuldades da memória. Temos de admitir que a relação entre os documentos é, frequentemente, misteriosa, enig-mática, inexplicável ou explanada, e, no entanto, assumem ser “ do sangue” (embora esta assunção, também, possa ser anulada através de investigação arquivística que desvenda segredos familiares, aven-turas sexuais clandestinas, ou segredos religiosos ou políticos que questionam a verdade recebida). Por-que é que os descendentes sentem a necessidade, e muitas vezes um profundo desejo de ler e interpretar a ausência de que Freud fala frequentemente? Esta é uma pergunta que continua sem resposta. Terry Eagleton termina as suas inventivas contemplações contra a propensão para a morte deste modo: “ é apenas porque carregamos a morte no nosso corpo, que conseguimos nos manter vivos” ( THe Meaning of life. Oxford: Oxford UP, 2007, 160)

Autorizam-me a pegar neste corpo e torná-lo

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declaring this family archive is here, another there; other websites offer tools for the preservation of family archives, the conservation of the paper on which words are written and thus saved in an archive, either public or private. But try as we might, we can never archive everything. Paul Ricoeur reminds of this in Memory, History, Forgetting (trans. Kathleen Blamey and David Pellauer; Chicago and London: U of Chicago P, 2004); he translates Pierre Nora’s “exclamation”—“Archive as much as you like: something will always be left out” (169).

Contemporary life writing theorists and memoirists desire to address this lack, this missing part of the greater story and in doing so, try to also pay homage to neglected peoples and their communities. Like Teleky, life writing theorists long to find “all lost things and names, whate-ver they may be: things gone astray, mislaid, squandred, wasted” (Carolyn Steedman, Research Methods for English Studies 16; see alsoDust: The Archive and Cultural History (Encounters)).

For better or worse, the part that is “left out” changes, but it never goes away.

numa metáfora, um lugar de pertença, onde os an-seios da vida se confundem com os desejos da mor-te? Por outras palavras, podemos entender as cartas de Teleky, por exemplo, como o esqueleto de uma história que existe algures mas que nunca irá ser to-talmente contada? Há sempre qualquer coisa que es-capa, sempre uma falha na memória da história das famílias, e no entanto, mais do que um desespero para se saber, quando falamos de laços de sangue, ou quando a continuidade da vida é ameaçada e se deseja saber a razão.

Até parece que é mística ou irregular, mas na re-alidade é normal, vernacular, que as palavras sejam usadas no presente, descobertas num outro presente, interpretadas ainda de outro modo, para que a vida privada de pessoais normais seja importante para os antepassados e para os sucessores. Na verdade, o desejo de se saber é tanto que centenas de websites oferecem ferramentas, no sentido de se preservar ar-quivos familiares, para a conservação do documen-to no qual as palavras foram escritas e salvaguardas, quer em arquivos privados quer em arquivos públi-cos. Mas, por muito que se tente, nunca podemos arquivar tudo. Paul Ricouer lembra-nos no seu livro Memory, History, Forgetting (trans. Kathleen Bla-mey and David Pellauers, Chicago and London: U of ChicagoP, 2004; ele traduz a afirmação de Pierre Nora’s – “ os arquivos, por muito que não se queira, deixam sempre alguma coisa de fora”. ( 169)

Atualmente, os teóricos da escrita da vida e os memorialistas gostam de abordar esta lacuna, esta parte da história que falta, e ao fazê-lo, tentam ho-menagear as pessoas esquecidas e as comunidades negligenciadas. Tal como Teleky, os teóricos das es-critas de vidas procuram encontrar “ todos os no-mes esquecidos, todas as coisas esquecidas, sejam elas quais forem: aquilo que é deitado fora, que é extraviado / esquartejado e perdido” ( Carolyn Stee-dman, Research Methods for English Studies 16; see also Dust: the Archive and Cultural History ( En-counters) .

Mas, em todo o caso, a parte que fica “de fora” altera-se, mas nunca desaparece.

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N ão me recordo exatamente quando ou qual foi o primeiro diário que li. Leitor voraz, em um dado

momento da vida lia indiscriminadamente tudo o que me chegava às mãos. Tempos depois, encontrei-me pesquisa-dor de diários, ou melhor dizendo, um leitor obsessivo de diários movido por uma curiosidade não menos obsessi-va em relação às circunstâncias nas quais os diários foram escritos, em como foram lidos ou não, em como foram, em determinado momento, considerados importantes ou não. E a questão da importância do diário estava lá, sem-pre, pairando sobre as leituras, nas entrelinhas dos artigos escritos e lidos sobre diários, inserida nas conversas com interlocutores os mais variados. De muitos ouvi: “Diários são tediosos. Nada acontece.” Todas as vezes em que ouvia tal comentário, era obrigado a concordar e a discordar do meu interlocutor. O registro cotidiano de insignificâncias é uma característica recorrente do diário. Entretanto, se o registro diário reflete a vida de um indivíduo, como pode

uma vida ser completamente tediosa e, ainda assim, merecer registro escrito sob a forma de diário? Um crítico mordaz da escrita diarística, Maurice Blan-chot, resumiu assim o valor do diário:

Há no diário como que uma feliz compensação de uma dupla nulidade. Quem não faz nada na vida, escreve que não faz nada e pronto, é como se hou-vesse feito alguma coisa. Quem se deixa desviar da escrita pelas futilidades de seu dia, recorre a esses nadas para contá-los, denunciá-los ou se comprazer e, pronto, mais um dia cheio... Finalmente, portanto, não se viveu nada, nem se escreveu, duplo fracasso a partir do qual o diário encontra sua tensão e sua gravidade. (Blanchot apud Lejeune, 2008, 266)

A dúvida sobre o valor do diário também é com-partilhada pelos próprios diaristas. Não sem razão, Roland Barthes se pergunta: “qual o valor daquilo que se escreve?”. Não é raro diaristas duvidarem do

Sérgio Barcelos

Diários e Arquivos

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valor de seus escritos. Quanto mais pessoais, quanto mais voltados para a subjetividade da pessoa, menos interesse te-riam para um leitor. No caso de Barthes, fica óbvio que sua posição de escritor e teórico de literatura punha o texto e sua publicação sempre como um movimento irremediável e, dessa forma, a dúvida sobre o valor de seu próprio diário é constante. Um outro crítico, dessa vez não diarista, Allain Girard denuncia a interioridade predominante no diário como aquilo que irá diminuir o valor do diário enquanto um texto que possa comportar uma perspectiva mais abran-gente de mundo e de pensa-mento:

A ênfase é posta pelo autor sobre sua própria pessoa. Mes-mo se ele evoca eventos exte-riores, mesmo se ele se anima a propósito do encontro de uma outra pessoa, ou de uma conversa, ou de toda circuns-tância que põe em evidência o outro, não é o evento, nem o outro, neles mesmos, quem interessa ao redator, mas so-mente sua ressonância, ou ain-da, sua refração em sua cons-ciência. Nem os outros, nem a sociedade, nem o mundo têm para ele existência própria. O objeto não tem realidade en-quanto tal. Não é mais do que uma ocasião que desperta o sujeito para a vida. Dito de ou-tra forma, a interioridade é ali dominante (...). (Girard, 1960, 4).

O veredito de Girard não se sustenta quando confronta-do com a rotina da leitura e do estudo de diários pessoais. A interioridade, ao contrário do que ele argumenta, não compromete necessariamente uma perspectiva mais abran-gente do diário, incluindo em seu bojo fatos e eventos ocor-ridos fora do âmbito da vida do diarista. Quando um diário é preservado, comumente se justifica essa preservação por conta de algum valor extrínseco ao diário. Umas de minhas grandes preocupações acerca dos diários pessoais (ou em relação ao tipo de valor a eles atribuído), tinha a ver com a compreensão do diário como um documento para uma historiografia qualquer. Ou como registro da produção ar-tística ou literária, política ou militar, de personalidades públicas. Ou, ainda, sobre o valor do diário sempre ser atri-buído a uma intenção ou projeto ulteriores. O diário em si, pelo que contém de significante ou não, não parecia ser a

razão predominante para a preservação dos escritos em arquivos. No Brasil, um proeminente crítico lite-rário, Sergio Milliet, relega diários e autobiografias a um papel secundário e externo ao literário:

Os diários, e também as autobiografias, valem como documentos na medida em que se afastam da literatura; são fontes possíveis de literatura mas não podem ser literatura, sob pena de falharem ao seu próprio fim. Pois assim como um sociólogo interpre-

ta dados coligidos por terceiros, pesquisado-res e esteticistas, alheios às suas preocupações e doutrinas, assim tam-bém o escritor tem que valer-se de informações objetivas para realizar sua obra durável. In-terpretando dados re-lativos à sua existência própria, o escritor de-turpa-lhes o significado humano pela superes-timação do herói, do mesmo modo por que o sociólogo que recolhe pessoalmente as infor-mações necessárias à defesa de uma tese pre-concebida subestima os elementos contrários a ela. (MILLIET 1981, 161)

Em sua opinião, contudo, o diário não

está de todo desprovido de serventia. Um “diário de ideias” seria um instrumento ideal, pois nele, escre-ver-se-iam os embriões de doutrinas a desenvolver--se, preservar-se-iam do esquecimento pequenos in-sights que se mostrarão mais complexos e pertinentes num contexto posterior, mais madura a consciência daquele que pensou e anotou. Para ele, o diário tam-bém é um local privilegiado para a crítica (literária): nesse refúgio, o crítico pode explicitar suas sensações e opiniões sem medo de ferir suscetibilidades. A for-ma como Milliet entende o valor da escrita diarística é paradoxal, pois, ele reconhece o valor documental que tais escritos apresentam, mas acusa um desequi-líbrio entre os valores humanos e literários. Entende, assim, diários como documentos, como textos tribu-tários e jamais textos cuja importância se encontra na própria informalidade que exibem. Entretanto, o

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valor documental é, ou deveria ser, o aspecto mais genuíno das escritas diarísticas. Não no sentido de terem valor “en-quanto documento”, mas por documentarem, através dos registros, o percurso de uma vida.

Um caso especifico ilustra com perfeição o valor de um diário pessoal no qual registros cotidianos e domésticos se tornam valiosos para a compreensão de um processo mais amplo. O diário de Bernardina Constant de Magalhães Se-rejo, filha de Benjamin Constant, um dos fundadores da República no Brasil, não se compromete a oferecer uma visão política ou a relatar objetivamente os eventos que cul-minaram na proclamação da República. O que seu diário revela, através de um ponto de vista doméstico, é o cotidia-no da vida familiar, seus hábitos de leitura, sua condição de saúde e de seus parentes mais próximos, entre outros as-suntos. Apesar de estar inserido no contexto das “insignifi-câncias” diárias da vida familiar, o que pode ser recuperado sob outro prisma e atribuir valor de documento histórico ao diário de Bernardina é o registro, ainda que ingênuo, dos movimentos de seu pai, nos meses que antecederam ao alu-dido de golpe republicano, em 15 de novembro de 1889. É através de suas informações que se pode mapear as ações de Benjamin Constant e avaliar sua real participação no pro-cesso histórico que culminou no referido golpe.

O entrecruzamento dos registros acríticos de Bernar-dina com outras fontes históricas foi objeto de estudo de Celso Castro. Em relação aos passos de Benjamin Constant durante os meses que antecederam o golpe republicano, Castro aponta exemplos expressivos, como um incidente envolvendo jovens oficiais republicanos, considerado hoje um estopim da crise final do Império, que os faz acorrerem a Benjamin Constant em busca de orientação. Esse envolvi-mento é também a evidência do processo de radicalização política de Benjamin. Castro revela que o conhecimento desse fato, através do diário de Bernardina e ainda não ex-plorado pela historiografia convencional do período, per-mitiu-lhe chegar a uma interpretação diferente da até então registrada.

Outro exemplo mencionado no artigo, um tanto pito-resco, refere-se a uma assembleia ocorrida no Clube Militar, na noite do dia 9 de novembro de 1889. Ao retornar a casa após a assembleia, Benjamin Constant a encontra vazia. Sua mulher e filhas estavam na beira do cais admirando as luzes e a movimentação dos convidados em torno do (último) Baile da Ilha Fiscal. Benjamin vai encontrá-las e lá perma-nece, juntos, admirando a movimentação. Duas semanas mais tarde, conforme anotações do diário de Bernardina, estariam preparando suas roupas de gala para, como convi-dados de honra, participarem da festa organizada pelo novo governo republicano.

Por fim, Castro alerta para a problemática do recorte e das interpretações de dados contidos em diários pessoais.

Para ele, é necessário sempre considerar a “história” mesma dos arquivos pessoais, pois eles são também objetos de disputas, cortes e censuras. Refletindo so-bre o diário de Bernardina, em especial, Castro con-clui que suas anotações foram guardadas por causa do valor documental que têm. Conclui, ainda, que ao diário não foi atribuído valor histórico por institui-ções de pesquisa, mas esse valor já estava ligado ao diário em si, pela forma como foi preservado pela fa-mília, juntamente com outros documentos que pos-teriormente vieram a integrar o arquivo documental que compõe o Museu Benjamin Constant. Nesse ar-quivo, estão preservados dois dos cinco cadernos que compunham o diário de Bernardina. Coincidente-mente, os cadernos preservados cobrem os períodos imediatamente anterior e posterior ao 15 de Novem-bro. Os três restantes se perderam no tempo, certa-mente porque não foram considerados importantes o bastante para serem preservados. Entretanto, a va-lor dos dois existentes somente foi descoberto mais de um século depois. Esse fato somente corrobora a certeza de que o valor do diário e dos arquivos pesso-ais, ainda que não óbvio, merece tempo e dedicação para ser descoberto. E por isso, mais do que nunca, preservá-los se torna essencial.

ReferenciasBarthes, R. “Deliberação” In O rumor da língua.

SP: Editora Brasiliense, 1988Castro, C. “O diário de Bernardina”. In GOMES,

Angela de Castro (org.). Escritas de si, escritas da his-toria. RJ: Editora FGV, 2004.

Girard, A. Le jornal intime. Paris: Presses Univer-sitaires de France, 1986

Lejeune, P. O pacto autobiográfico – De Rousseau a Internet. BH: Editora UFMG, 2008

Milliet, S. Diário critico de Sergio Milliet. Vols. 1 e 2. SP: Ed. Martins, 1981.

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O Arquivo Secreto do Vaticano, Expansão Portuguesa - Documentação é uma obra com a coordenação

geral de José Eduardo Franco e direcção de Annabela Rita e Fernando Cristovão e é constituída por 3 tomos relati-vos ao espaço geográfico da Costa Ocidental de África e Ilhas Atlânticas (Tomo I, 1235 pp., 6116 documentos, com coordenação científica de Arnaldo do Espírito Santo e Ma-nuel Saturino Gomes); Oriente (Tomo II, 977 pp., 4977 do-cumentos, com coordenação científica de João Francisco Marques e José Carlos Lopes de Miranda); Brasil (Tomo III, 754 pp., 2748 documentos, com coordenação científica de Luís Machado de Abreu e José Carlos de Miranda).

Integrado na coleção Arquivos Secretos e da Esfera do Caos Editores, com o Depósito Legal 328036/11 e ISBN: 978-989-680-032-1, esta obra com uma 1ª edição de Junho de 2011, apresenta-se como um instrumento de trabalho fundamental para todos aqueles que realizam investigação no período da expansão portuguesa.

Esta dimensão de mistério que envolve estes arquivos da Santa Sé conforme indica o título da obra, ganhou mais densidade e atenção através do livro de Dan Brown: o seu muito lido e debatido Código Da Vinci. O Arquivo Secreto do Vaticano constitui um registo imenso de memória das relações do cristianismo com a história da humanidade em diferentes épocas. Segundo os autores, o estudo compe-tente, sistemático e rigoroso das coleções documentais ali depositadas é a melhor forma de revelar a utilidade da sua riqueza informativa e contribuir para desmitificar os seus alegados segredos.

A expansão constituiu a primeira globalização do co-nhecimento do mundo, das trocas comerciais, culturais e religiosas e foi acompanhada pela criação daquilo que se pode designar como o primeiro banco de dados global, onde as instituições religiosas da Igreja Católica tiveram um papel fundamental nesse processo de indexação de co-nhecimento. Se num primeiro momento os arquivos eram itinerantes com a sua subsequente degradação e saques, a Santa Sé, como outros Estados, procurou preservar e guar-dar os documentos relevantes para a sua história. O mes-mo podemos dizer de bispados, paróquias e monarcas de diversos reinos europeus que guardavam e preservavam

para a posteridade a documentação emanada das suas chancelarias.

Durante longo tempo, o Arquivo Secreto do Va-ticano conservou-se resguardado, como a sua de-signação evidencia, num local secreto, inacessível para a maioria dos homens. Era o arquivo do Sumo Pontífice, estava sob a sua jurisdição e só com a sua prévia autorização se acedia a este. Tal alterou-se em 1881, quando o Papa Leão XIII (1878-1903) facul-tou aos estudiosos o acesso a alguns fundos. Esta li-beralização não foi total e imediata, mas foi efectua-da de uma forma progressiva. O vocábulo «secreto» persistiu no entanto na designação do arquivo desde a sua fundação por se referir ao arquivo privado do Sumo Pontífice, ao qual somente o Papa tinha acesso e jurisdição, estando vedado aos demais, exceptuan-do-se o responsável pela sua gestão.

Apesar de a documentação ser conhecida e ter estado na base de alguns estudos, não existia, até ao momento, um catálogo ou um guia da documenta-ção relevante para a história de Portugal e dos ter-ritórios descobertos pelos portugueses. A maioria da documentação sumariada encontra-se em por-tuguês, mas pelo seu número destaca-se também a italiana e a redigida em latim, a língua oficial da Igreja Católica.

O Arquivo Secreto do Vaticano, Expansão Portuguesa- Documentação

Odeta Pereira

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O presente catálogo procura identificar e sumariar a documentação selecionada de acordo com a temática de-finida e organizada à luz de um critério geográfico da pro-veniência da documentação das dioceses ultramarinas. O investigador deverá compreender a temática, os assuntos abordados no documento sem ter a necessidade de consul-tar o original. Com o presente catálogo pretende-se que, no futuro, os investigadores não tenham de consultar todos os documentos destes fundos em busca das informações que lhes interessam. Poder-se-á, assim, somente consultar os que efetivamente interessam e nenhum outro.

Atualmente, o acervo documental do Arquivo Secre-to do Vaticano ocupa cerca de 85 km lineares de estantes agrupados em mais de 630 fundos documentais. Mas este imenso acervo continua a aumentar anualmente com a in-corporação de documentação provinda das diversas Nun-ciaturas espalhadas pelos quatro cantos do mundo, das Secretarias de Estado e das diversas Congregações. Esta realidade reflete o mundo onde a Igreja se insere e os dias

E sta obra enquadra--se no renovado

interesse pelo estudo das mobilidades, com especial atenção às mi-

grações, guerras e exílios, numa perspetiva diferente – não contraditória mas completar – desviando-se o foco de uma perspetiva macro para nos centrarmos numa visão mais íntima, mais dialogante, mais próxima da mobilidade hu-mana.

Fazendo um pouco de história, podemos dizer que o interesse pela escrita privada de gente comum tem como uma das suas primeiras referências o estudo dos sociólo-gos William Thomas e Florian Znaniecki, realizado nos anos 20. Mais tarde, já na década de 60, esta abordagem in-tensificou-se, não apenas no exclusivo âmbito da História mas igualmente na área das Ciências Sociais, onde estudos multidisciplinares e abordagens metodológicas mais

VáRiOs AUTOREs

Escritas das mobilidadesCentro de Estudos de História do Atlântico

Alberto Vieira

abrangentes conduziram a uma valorização dos testemunhos escritos pessoais e íntimos.

O presente volume é composto por cinco partes: Escritas privadas e familiares; escritas da Emigração; Identidades e Escrita nas Mobilidades; Escritas de Guerra e Exílio e Escritas de Viagem. Vários espe-cialistas dos mais diversos cantos do mundo, desde a Europa à América Latina e até mesmo Austrália, num total de 38, deram o seu contributo.

O CEHA , consciente da importância destas fon-tes e das novas abordagens que elas permitem, de-cidiu, com esta publicação dar um passo em frente, fomentando, por um lado, a partilha entre especia-listas, mas acima de tudo a divulgação, não apenas no seio da comunidade cientifica mas também junto do público em geral, do valor deste tipo de docu-mentação para o aprofundamento do conhecimento Histórico e de todo o conhecimento em geral.

REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA

ISBN: 978-972-8263-74-4

que correm onde se assiste a uma verdadeira «ex-plosão documental». O documento mais antigo no Arquivo data do século VIII.

O Arquivo dispõe de duas salas de leitura fre-quentadas por numerosos estudiosos e académicos de diversas proveniências. Para os auxiliar, existe uma sala de índices, onde os investigadores têm o primeiro contato com o arquivo, bem como as pri-meiras informações sobre o acervo documental à sua disposição. Os utilizadores podem, também, usufruir de uma biblioteca especializada onde pode-rão consultar obras de referência. Dispõe, ainda, de um laboratório de preservação, de restauro e de en-cadernação, um laboratório de restauro e estudo de selos, um laboratório de fotografia e de reprodução digital, um centro de tratamento de dados e um la-boratório de informática. Em anexo ao arquivo está sediada a prestigiada Escola Vaticana de Paleografia e de Diplomática, fundada por Leão XIII em 1884.

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E quando pelo correio nos chegam às mãos valiosos te-souros?! Quase nem há palavras. Há muito que aguar-

dava a chegada deste envelope, que sabia me ter sido en-viado da África do Sul, do outro lado do mundo, portanto. Mas de um mundo que, de algum modo, é também parte do meu mundo. Haverá assim tantos mundos? O mundo não é uno?

Mas vamos ao que interessa. A preciosidade que chegou dentro do envelope… que, mal abri , tive de suster a respi-ração como que para ver, para olhar com olhos de ver (e até a respiração poderia perturbar este momento, que eu queria perpetuar e guardar) . E fiquei por alguns momen-tos, olhando a capa ( de excelente qualidade, cor térrea e onde além de uma fotografia de uma linda senhora ( que eu identifiquei de imediato) apresentava uma série de car-tas, notas, envelopes numa caligrafia oitocentista que me é muito familiar) .

E o que eu tinha nas mãos era muito mais que um sim-ples livro … era um sonho … um sonho maior que o Mun-do. Era a materialização de uma vontade de recolher, juntar e tratar todo um conjunto de documentos familiares que se tinham acumulado ao longo dos tempos e, que tal como a própria autora explica, lhe vieram “parar às mãos” após o falecimento do pai. E assim se iniciou a caminhada de transcrever cerca de 200 cartas, através das quais a história da família Phelps, ao longo de três gerações, se desvenda.

O livro está dividido em 8 capítulos. O primei-ro dedicado à geração que viveu na Ilha da Madeira, iniciando esta saga em 1784 e terminando em 1862 e os seguintes cuja localização geográfica muda para a Africa do Sul termina em 1978. O leitor é igual-mente presenteado com algumas fotografias, assim como árvores genealógicas que permitem uma me-lhor compreensão dos ramos familiares que se fo-ram constituindo e que ajudam igualmente a melhor compreender situações e pessoais referidas nas ditas cartas.

Não sendo possível contar esta história de modo linear, a autora alerta exactamente para o facto de se ter deparado com lacunas tanto temporais como ou-tras que, por vezes, tornaram este montar de puzzle , se por um lado, aliciante, por outro lado, difícil e até mesmo extenuante.

Porém, ao longo de 236 páginas, Mrs Forrest, par-tilha connosco aventuras e desventuras de uma saga familiar. William Phelps e Elisabeth Elisabeth, no seguimento do seu casamento em 1783, partiram de Gravesand e rumaram para a Ilha da Madeira onde chegaram no ano seguinte. Durante vários anos, o nome desta família ligada à exportação do vinho da Madeira fez parte da elite estrangeira que ,durante o século XIX, dominava o Funchal.

Penelope Forrest (born Phelps)

Cláudia Faria

A memoir in letters of the Phelps and Crompton families in the 19th and 20th centuries

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Um dos seus filhos, Joseph Phelps, tornou-se efetiva-mente figura destacada não apenas como comerciante mas também como promotor de várias atividades culturais, sociais e até mesmo filantrópicas, das quais destacamos a Escola Lancasteriana. Harriet Phelps, ao contrair matrimó-nio com John Lake Crompton ( que tinha vindo para a ilha por motivos de doença) em 1854, dá inicio a esta história familiar que se irá sediar-se em Natal, aonde chegaram em 1857.

A partir daqui, as ligações com a Madeira tornam-se parte apenas da memória. Os Phelps haviam regressado a Londres. No entanto, e através destas cartas, levaram a ilha na bagagem de mão. As referências à Madeira serão re-correntes ao longo destas missivas. As saudades são assim. Ficam. Ficam. E guardam-se. Guardam-se. E partilham-se.

A troca de correspondência entre os Phelps também servia para mitigar esta saudade mas não só. Através dela tomamos nota dos noivados e casamentos, dos nascimen-tos, das doenças e das mortes. Das viagens. Dos negócios. Dos grandes acontecimentos. Revelam-se segredos. Dão-se conselhos. E fala-se do tempo. Da chuva, do vento e do frio de Londres. Do sol e do calor do Funchal. E do outro tempo. O que corre e que nos leva a vida. Aquele que todos percorremos, faça chuva ou faça sol, para um destino em

parte nenhuma. E escreve-se desabafos profundos, por vezes melancólicos, por vezes introspectivos e intimistas, reveladores de profunda análise pessoais. E também se escrevem futilidades e anedotas, por-que o tempo de uma vida também guarda espaço para elas.

Numa linguagem simples e objectiva e através de pequenas entradas esclarecedoras, que antecedem cada carta, a autora facilita o trabalho do leitor e as-sim constrói um fio condutor entre as epistolas e en-tre as vidas que aqui são desvendadas.

E nas entrelinhas, os silêncios, de quando em vez, fazem sentir a sua voz!

É só querer ler!