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Resumo: O objetivo básico deste trabalho é identificar as principais causas que, dos pontos de vista institucional, normativo, teórico e metodológico, afetam a qualidade das leis em Cuba. Para conseguir isso, faz-se uma descrição geral do regime político estabelecido na Constituição de 1976 e utilizam-se os instrumentos analíticos desenvolvidos pela teoria e técnica da legislação nos últimos 30 anos e seus antecedentes nos séculos XVIII e XIX. Das conclusões obtidas deriva um conjunto de recomendações que poderiam contribuir para aprimorar a qualidade das leis em Cuba, bem como um estudo de caso interessante para o tema da teoria da legislação. Palavras-chave: Regime político cubano, sistema eleitoral, qualidade das leis, processo legislativo. Abstract: The basic objective of this study is to identify the main causes that, through the institutional, normative, theoretical and methodological point of view, affect the quality of law in Cuba. To achieve this one makes a general Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 11, n. 17, p. 85-121, jul./dez. 2009 * Este trabalho cons- titui um resumo do capítulo III da tese de doutoramento “O processo legislativo interno em Cuba. Um modelo para sua análise”. Tradução do origi- nal em espanhol: Paulo Roberto Ma- galhães ** Doutor em Ciências Jurídicas e professor de Teo- ria do Estado, Teo- ria do Direito e Filosofia do Direito na Universidad de Oriente (Santiago de Cuba) REGIME POLÍTICO E QUALIDADE DAS REGIME POLÍTICO E QUALIDADE DAS REGIME POLÍTICO E QUALIDADE DAS REGIME POLÍTICO E QUALIDADE DAS REGIME POLÍTICO E QUALIDADE DAS LEIS EM CUBA* LEIS EM CUBA* LEIS EM CUBA* LEIS EM CUBA* LEIS EM CUBA* YOEL CARRILLO GARCÍA** YOEL CARRILLO GARCÍA** YOEL CARRILLO GARCÍA** YOEL CARRILLO GARCÍA** YOEL CARRILLO GARCÍA**

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Page 1: REGIME POLÍTICO E QUALIDADE DAS LEIS EM CUBA* · zações internas, o presidente da República e o Conselho de Ministros exerceram o poder político até 1976, ano em que, depois

Resumo: O objetivo básico deste trabalho é identificar asprincipais causas que, dos pontos de vista institucional,normativo, teórico e metodológico, afetam a qualidade dasleis em Cuba. Para conseguir isso, faz-se uma descrição geraldo regime político estabelecido na Constituição de 1976 eutilizam-se os instrumentos analíticos desenvolvidos pelateoria e técnica da legislação nos últimos 30 anos e seusantecedentes nos séculos XVIII e XIX. Das conclusõesobtidas deriva um conjunto de recomendações que poderiamcontribuir para aprimorar a qualidade das leis em Cuba, bemcomo um estudo de caso interessante para o tema da teoriada legislação.

Palavras-chave: Regime político cubano, sistema eleitoral,qualidade das leis, processo legislativo.

Abstract: The basic objective of this study is to identify themain causes that, through the institutional, normative,theoretical and methodological point of view, affect thequality of law in Cuba. To achieve this one makes a general

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 11, n. 17, p. 85-121, jul./dez. 2009

* Este trabalho cons-titui um resumo docapítulo III da tese dedoutoramento “Oprocesso legislativointerno em Cuba. Ummodelo para suaanálise”.Tradução do origi-nal em espanhol:Paulo Roberto Ma-galhães

** Doutor emCiências Jurídicas eprofessor de Teo-ria do Estado, Teo-r ia do Direi to eFilosofia do Direitona Universidad deOriente (Santiagode Cuba)

REGIME POLÍTICO E QUALIDADE DASREGIME POLÍTICO E QUALIDADE DASREGIME POLÍTICO E QUALIDADE DASREGIME POLÍTICO E QUALIDADE DASREGIME POLÍTICO E QUALIDADE DASLEIS EM CUBA*LEIS EM CUBA*LEIS EM CUBA*LEIS EM CUBA*LEIS EM CUBA*

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description of the political system established in theConstitution of 1976 and use the analytical tools developedby the theory and technique of legislation in the last thirtyyears and their antecedents in the eighteenth and nineteenthcenturies. From the conclusions obtained derives a set ofrecommendations that could help improve the quality of lawin Cuba, as well as an interesting case study for the themeof the theory of law.

Keywords: Cuban political system, electoral system, qualityof laws, legislative process.

I – O regime político cubanoI – O regime político cubanoI – O regime político cubanoI – O regime político cubanoI – O regime político cubano

Na menor das suas acepções, a expressão regime

político tem, no âmbito dos saberes que se dedicam à ciênciapolítica, um significado associado à análise de um conjunto devariáveis que se supõe devam estar presentes em uma orga-nização política determinada. Essas variáveis fazem referên-cia a elementos estruturais e funcionais que permitem identi-ficar, de um ponto de vista estático, os componentes doregime político e o lugar que cada um deles ocupa na suaestrutura geral; e, de um ponto de vista dinâmico, as funçõesque cada um deles realiza na sua estrutura e as interrelaçõesque se dão entre ambos.

Essa análise pode ser feita a partir de duas perspectivasmetodológicas diferentes. De uma perspectiva jurídico-for-mal, pode-se estudar o regime político por meio da regulaçãojurídica das instituições de direito público, nas quais seestabelecem os diferentes órgãos que o integram, as formasem que cada um deles se constitui, as funções que lhescompete realizar e as interrelações que devem se dar entre eles.De uma perspectiva sociológica, o regime político pode serestudado comparando o que dizem as normas de direitopúblico com o que de fato sucede na realidade política, paradeterminar até que ponto o que juridicamente deve ser estárepresentado no que de fato sucede na prática social.1

1 Para uma análiseda categoria de re-gime político, vejaG O N Z Á L E ZHERNÁNDEZ, JuanCarlos. Regímenespolíticos in Diccio-nario Electoral ,IIDH-CAPEL, CostaRica, 1989, p. 566-575.

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Na primeira parte deste estudo, adota-se basicamente aperspectiva jurídico-formal para explicar como o regime políti-co cubano se integra do ponto de vista estático e qual é a suadinâmica de funcionamento. Recorre-se também à explicitaçãode elementos ideológicos ou sociológicos, à medida que permi-tam uma melhor compreensão da regulação jurídica vigente. Aexposição será dividida em quatro variáveis.

Características formais da integração eCaracterísticas formais da integração eCaracterísticas formais da integração eCaracterísticas formais da integração eCaracterísticas formais da integração efuncionamento dos órgãos do Estadofuncionamento dos órgãos do Estadofuncionamento dos órgãos do Estadofuncionamento dos órgãos do Estadofuncionamento dos órgãos do Estado

O atual regime político, tal como está configurado naConstituição da República de 1976, é produto do processorevolucionário iniciado na sociedade cubana a partir de 1º dejaneiro de 1959. Para compreender os principais fundamentospolíticos, teóricos e ideológicos que o sustentam, é necessáriofazer uma breve resenha histórica.2 Quando, no dia 3 dejaneiro de 1959, constituiu-se o primeiro Conselho de Minis-tros do Governo Revolucionário, na Biblioteca da Universidad

de Oriente, organizou-se uma forma de governo que deveriase adaptar às urgências dos primeiros anos da Revolução. OPoder Executivo era exercido pelo presidente da República eassistido pelo Conselho de Ministros,3 enquanto o PoderJudiciário cabia ao Tribunal Supremo.

Naquela reunião, o presidente do Governo Provisóriodeclarou destituídas de seus cargos as pessoas que ocupavam aPresidência da República e as funções legislativas; declaroudissolvido o Congresso da República, cujas funções seriamassumidas pelo Conselho de Ministros, e, ainda, destituídos osgovernadores, prefeitos e vereadores municipais, que constituíama autoridade política nas suas respectivas jurisdições territoriais.

Assim, com sucessivas trocas, ampliações e reorgani-zações internas, o presidente da República e o Conselho deMinistros exerceram o poder político até 1976, ano em que,depois de entrar em vigência a Constituição da República,foram constituídos os órgãos do Poder Popular. Para organizá-los, realizou-se na província de Matanzas um experimentolegislativo de grande alcance, no qual foram postos à prova os

2 Para um estudoexaustivo desseprocesso no seuprimeiro ano, vejaBUCH RODRIGUEZ,Luís María. Gobier-no Revolucionário.Génesis e prime-ros pasos, Editorialde Ciencias Socia-les, La Habana,1997; e BUCHRODRÍGUEZ, LuísMaría e SUÁREZSUÁREZ, ReinaldoOtros pasos delGobierno Revo-lucionario. Editorialde Ciencias Socia-les, La Habana, 2002.

3 Em fevereiro de1959 o comandanteFidel Castro Ruz foinomeado para ocu-par o cargo de pri-meiro-ministro doGoverno Revolucio-nário. Até esse mo-mento Fidel Castronão havia ocupadonenhum cargo nogoverno.

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elementos essenciais que deviam constituir o regime políticoa ser adotado no país.4 Para a redação do anteprojeto deConstituição, que deveria recolher os resultados daqueleexperimento e os princípios de organização e funcionamentodo regime político, fora constituída, em 1974, por acordo doConselho de Ministros e do Birô Político do Partido Comunistade Cuba, uma comissão integrada por membros de ambas asinstituições, com o objetivo de redigir a primeira minuta dafutura Constituição da República.

São esses, em síntese, os antecedentes do atual regimepolítico cubano, aos quais há que se acrescentar algunsfundamentos teóricos e ideológicos, tomados, tanto em suaexpressão constitucional como na prática política, da históriapolítica e constitucional cubana e do marxismo-leninismo deorigem soviética.5

A Constituição resultante, que entrou em vigor em 24de fevereiro de 1976, foi modificada em três ocasiões: 1978,1992 e 2002. A reforma de 1992 teve um alcance significativoquanto à estrutura e ao funcionamento do regime político e aosseus fundamentos ideológicos.

No tocante à organização estatal, a Constituição esta-belece que a Assembleia Nacional do Poder Popular (doravanteAssembleia Nacional) é o órgão máximo do poder do Estadoe representa e expressa a vontade popular. É integrada pordeputados eleitos para um período de cinco anos pelo votolivre, direto e secreto dos cidadãos em pleno gozo de seusdireitos políticos; é o único órgão com poder constituinte elegislativo;6 reúne-se em sessões ordinárias duas vezes ao anoe, em sessões extraordinárias, quando for convocada peloConselho de Estado ou por acordo da terça parte dos deputa-dos; é uma assembleia unicameral, que, para realizar seutrabalho, é auxiliada por comissões especializadas em diferen-tes esferas das relações sociais, de caráter permanente outemporário;7 não está dividida em grupos parlamentares regio-nais ou de qualquer outra natureza; seus membros sãorepresentantes do povo em seu conjunto, e não da circunscri-ção pela qual foram eleitos ou das organizações às quais

4 Para um amplo con-junto de documentosrelacionados a esseprocesso, veja Órga-nos del Poder Popular.Documentos rectorespara la experiencia deMatanzas. EditorialOrbe, La Habana, 1974.5 Desse último o regi-me político cubanotomou as concep-ções de democraciasocialista e de uni-dade de poder. Aprimeira concepçãoserve de fundamen-to para o sistema elei-toral, do qual se fala-rá mais adiante. Asegunda fundamen-ta a ideia de que nãoexistem no regimepolítico vários “po-deres” Legislativo,Executivo e Judiciá-rio), porém um sópoder, o poder dopovo, que é exerci-do por diferentesórgãos do Estado.Na prática, a doutri-na da unidade depoder levou a que,em determinadasocasiões, uma mes-ma pessoa ocupas-se simultaneamentecargos no Conselhode Estado, no Con-selho de Ministros,no Partido, nas or-ganizações sociaise de massas e naAssembleia Geral.

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pertença; entre os seus deputados, a Assembleia Nacionalelege seu presidente, vice-presidente e secretário.8

Entre um e outro período de sessões a AssembleiaNacional é representada pelo Conselho de Estado, que executaos acordos da Assembleia e cumpre as demais funções que lheatribui a Constituição. Trata-se de um órgão colegiado, que,para fins nacionais e internacionais, ostenta a representaçãodo Estado. Os seus membros são eleitos pela AssembleiaNacional entre os seus deputados. O presidente do Conselhode Estado é também presidente do Conselho de Ministros echefe de Estado e de Governo.9

A função executiva do governo é realizada pelo Conse-lho de Ministros, que, além de órgão máximo executivo eadministrativo, constitui o Governo da República. Os mem-bros do Conselho são eleitos pela Assembleia Nacional porproposta do seu Presidente e é integrado por um presidente,primeiro-vice-presidente (que é também primeiro-vice-presi-dente do Conselho de Estado), pelos vice-presidentes, minis-tros, secretário e pelos demais membros que determine a lei.

A função judiciária é realizada pelo Tribunal SupremoPopular, cujo presidente, vice-presidente e demais juízes sãoeleitos pela Assembleia Nacional. Os tribunais que o integramconstituem um sistema de órgãos estatais, estruturado comindependência funcional de qualquer outro tribunal e subordi-nado hierarquicamente à Assembleia Nacional e ao Conselhode Estado. A função básica do TSP consiste em ministrar ajustiça em nome do povo.

Outro órgão que integra o regime político cubano é o deFiscalização Geral da República, cujo titular, bem como os vice-fiscais-gerais, são eleitos pela Assembleia Nacional. A esse órgãocompete, como objetivos fundamentais, o controle e a preserva-ção da legalidade, com base na observância do estrito cumpri-mento da Constituição, das leis e demais disposições legais pelosórgãos do Estado, entidades econômicas e sociais e peloscidadãos; e a promoção e o exercício da ação penal públicarepresentando o Estado. Finalmente, para dirigir o país nas

De fato, a Constitui-ção não estabeleceincompatibilidadespara o exercício dediferentes cargos noregime político. Esse“desempenho simul-tâneo de funções” éum dos “núcleosduros” do regimepolítico identificadospor Hugo Azcuy. Cf.Cuba: ReformaConstitucional ouNova Constituição?em Cuadernos deNuestra America,vol. XI, nº. 22, 1994,p. 42-43.6 Não se trata de sero único órgão comfunção legislativa,pois há outros quetambém a têm, masde que é o único quereúne de uma só vezfunções constituin-tes e legislativas.7 Para a atuallegislatura foramconstituídas as se-guintes comissõespermanentes: deAssuntos Constitu-cionais e Jurídicos;de Relações Interna-cionais; de ÓrgãosLocais do Poder Po-pular; Agroalimen-tar; de Atenção aosServiços; de Assun-tos Econômicos; deSaúde e Esporte; deEducação, Cultura,Ciência e Tecnolo-gia; de Atenção à Ju-ventude, à Infância eà Igualdade de Direi-

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condições de estado de guerra, mobilização geral e estado deemergência, foi criado em tempos de paz o Conselho de DefesaNacional, cujo titular é o presidente do Conselho de Estado.

Por ser Cuba um Estado unitário, cada um dessesórgãos tem sua representação nas diferentes jurisdiçõesterritoriais em que está dividido o país.

Sistema eleitoralSistema eleitoralSistema eleitoralSistema eleitoralSistema eleitoralEm que pese o que habitualmente se acredita no

exterior, desde 1976 realizam-se em Cuba eleições para algunsórgãos que integram o regime político. O atual sistemaeleitoral, cujos princípios estão estabelecidos na Constituiçãoe na Lei 72, de 1992 (Lei Eleitoral), tem seus antecedentes naseleições que se realizaram na província de Matanzas, em 1974.Por meio dessa lei, se estabeleceram os princípios básicos dosistema, segundo o qual deveriam se realizar experimental-mente as eleições naquela província, tratando-se do primeiroprocesso eleitoral realizado em Cuba depois de 1959. Emboraa Lei Fundamental, de 7 de fevereiro daquele ano, tivesseprevisto a elaboração de um Código Eleitoral e a constituiçãode um Tribunal Superior Eleitoral, nenhuma das duas previ-sões constitucionais foi executada.10

A Lei Eleitoral vigente estabelece dois tipos de eleições:

a) eleições gerais, realizadas a cada cinco anos, pormeio das quais são renovados todos os órgãos representativos(Assembleia Nacional, Conselho de Estado e assembleiasprovinciais e municipais do Poder Popular); e

b) eleições parciais, realizadas a cada dois anos e meio,por meio das quais se elegem os delegados às assembleiasmunicipais do Poder Popular.

Desenvolvimento do processo eleitoralDesenvolvimento do processo eleitoralDesenvolvimento do processo eleitoralDesenvolvimento do processo eleitoralDesenvolvimento do processo eleitoralCom o objetivo de organizar, dirigir e validar os

processos eleitorais, são criadas comissões eleitorais, deâmbitos nacional, provincial, municipal e distrital. Além delas,

tos da Mulher; de De-fesa Nacional; deEnergia e Meio Ambi-ente e de Atenção àIndústria e às Cons-truções.8 Desde 1992 até aatualidade tem sidoeleito sucessivamen-te, como presidente,Ricardo Alarcón deQuesada e, comovice-presidente, des-de 1976 até o pre-sente, Jaime AlbertoCrombet Hernández-Baquero.9 Para o cargo depresidente dos Con-selhos de Estado ede Ministros foi elei-to sucessivamente,nas eleições geraisrealizadas de 1976a 2003, o coman-dante-chefe FidelCastro Ruz. Em ju-lho de 2006 foi subs-tituído, em razão deuma enfermidade,pelo primeiro vice-presidente, generalde Exército RaúlCastro Ruz. Para aseleições de janeirode 2008 Fidel Cas-tro declarou “quenão aspirarei nemaceitarei – repito –não aspirarei nemaceitarei o cargo depresidente do Con-selho de Estado ecomandante-che-fe”; nessas eleiçõesfoi eleito o generalde Exército Raúl

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são criadas comissões eleitorais de circunscrição e, quandonecessárias, comissões eleitorais especiais. Trata-se de co-missões criadas ad hoc para cada processo eleitoral.

Outra autoridade que intervém no processo eleitoralsão as comissões de candidaturas, de âmbitos nacional,provincial e municipal, cuja função consiste em elaborar osprojetos de candidaturas de delegados às assembleias provin-ciais e de deputados à Assembleia Nacional, bem comopreencher os cargos que elegem cada uma delas.11

As eleições são convocadas pelo Conselho de Estado ecomeçam com a eleição dos delegados de circunscrição, queintegram as assembleias municipais. O processo deve trans-correr, legalmente, da seguinte forma:

1 – os cidadãos residentes nas diferentes circunscri-ções eleitorais criadas para essa finalidade se reúnem epropõem diretamente os candidatos,12

2 – no dia das eleições, os cidadãos com direito a votoelegem o candidato de sua preferência mediante o voto livre,direto e secreto. O candidato que obtiver maioria simples éeleito e passa a integrar a Assembleia de seu município. Dentreos delegados, elege-se um presidente e um vice-presidente apartir de uma lista previamente elaborada pela Comissão deCandidaturas Municipal, na qual aparece um candidato paracada cargo a ser preenchido;

3 – depois de constituídas as assembleias municipaisrealiza-se uma sessão, com o objetivo de eleger os delegadosàs assembleias provinciais. Os pré-candidatos são propostospela Comissão de Candidaturas Municipal, e a lista é remetidapara a Comissão de Candidaturas Provincial. Esta remetenovamente às Comissões de Candidaturas dos municípios queintegram a província a lista dos pré-candidatos a delegado àAssembleia Provincial;

4 – compete também à Comissão de CandidaturasMunicipal remeter à Comissão de Candidaturas Nacional aproposta de pré-candidatos a deputados à Assembleia Nacio-

Castro Ruz. A men-sagem de Fidel Cas-tro está disponívelna Internet: http///www.granma.cuba-web.cu/2008/02/1 9 / n a c i o n a l /artic03.html.10 Segundo CarlosRafael Rodríguez, umdirigente dessa épo-ca, “o desejo de insti-tucionalizar a Revo-lução surgiu em seusdirigentes desde osprimeiros dias. Deverecordar-se que dosbalcões do PalácioPresidencial, logoapós iniciado o pro-cesso de construçãorevolucionária, FidelCastro falou de elei-ções e, para surpre-sa de todos os res-ponsáveis por estaRevolução, um gritounânime surgiu da-quela multidão: ‘Não,não, não!’. Era evi-dente que ao povointeressava mais aRevolução que tinhaem vista, do que avelha aparência deinstitucionalidadedemocrática-repre-sentativa, mentira daqual havia vivido, epadecido, durantemais de meio século(…). Desde então, adireção da Revolu-ção cubana dedicou-se à busca daquelasformas de governoque fossem maisadequadas às ca-

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nal selecionados entre os delegados à Assembleia Municipalcorrespondente;13

5 – depois de ajustadas, cada uma das listas de pré-candidatos a delegados à Assembleia Provincial e deputadosà Assembleia Nacional é submetida à aprovação das assembleiasmunicipais, as quais podem recusar algum dos pré-candida-tos, expondo em cada caso as razões para isso. A exclusão dopré-candidato que for recusado deve ser aprovada pelamaioria dos delegados presentes. Depois disso o presidente daComissão de Candidaturas Municipal faz uma nova proposta;

6 – cumprido o trâmite anterior, o presidente daComissão de Candidaturas Municipal submete as propostas,individualmente, à votação dos delegados à Assembleia Muni-cipal. Se algum deles não obtém os votos necessários, aComissão de Candidaturas Municipal faz uma nova proposta,que é submetida ao mesmo procedimento. Os pré-candidatosaprovados são agora candidatos;

7 – completadas a lista de candidatos a delegados àAssembleia Provincial e a de deputados à Assembleia Nacio-nal, o Conselho de Estado convoca as eleições, que se realizamnum mesmo dia em todo o país;

8 – depois de eleitos os delegados às assembleiasprovinciais e os deputados à Assembleia Nacional, procede-seà sua constituição. Na sessão constitutiva da AssembleiaProvincial são eleitos, entre os delegados, o seu presidente evice-presidente;

9 – na sessão constitutiva da Assembleia Nacional sãoeleitos o presidente, vice-presidente e secretário, a partir dacandidatura elaborada pela Comissão Nacional de Candidatu-ras. Para cada cargo a preencher, propõe-se um candidato,que deve obter mais de 50% dos votos válidos emitidos;

10 – na mesma sessão também se elegem, a partir deproposta da Comissão de Candidaturas Nacional, os membrosdo Conselho de Estado;

racterísticas de nos-so processo revolu-cionário”. Cf.RODRÍGUEZ, CarlosRafael. Entrevista aTeresa Gurza emLetra com filo, Edito-rial de CienciasSociales, La Habana,1983, tomo II, p. 195;no mesmo sentido,FERNÁNDEZ-RUBIOLEGRÁ, Ángel. Elprocesso de institu-cionalización de laRevolución Cubana.Editorial de CienciasSociales, La Habana,1985, p. 36-39.11 As comissões decandidaturas são in-tegradas por repre-sentantes da Cen-tral de Trabalhado-res de Cuba, dosComitês de Defesada Revolução, daFederação de Mu-lheres Cubanas, daAssociação Nacio-nal de AgricultoresPequenos, da Fede-ração Estudantil Uni-versitária e da Fede-ração de Estudan-tes do Ensino Médio.12 Os requisitos paraexercer o direito devoto são os costu-meiros em qualquerpaís: idade mínimade 16 anos, tempode residência, ple-no gozo dos direitospolíticos e ausênciade incapacidademental declaradajudicialmente. No

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11 – um dos princípios que regem o sistema eleitoralconsiste na possibilidade de que os eleitos para ocupar quaisquerdos cargos mencionados possam ter sua investidura revogadapor quem o elegeu, o que confere aos eleitores um mecanismode controle permanente sobre seus representantes;14

12 – como “escalão intermediário” entre as assembleiasmunicipais e os eleitores encontram-se os conselhos popula-res, incorporados à Constituição na reforma de 1992.

Para completar o resumo do processo eleitoral ecompreender a lógica de seu funcionamento, devem-se con-siderar quatro elementos fundamentais:

1 – o primeiro deles está relacionado à ausência departidos políticos ou qualquer outro tipo de organizaçãopolítica que apresente candidatos e faça propaganda em favordeles. A escolha dos candidatos compete aos cidadãos, nocaso dos delegados às assembleias municipais, ou às comis-sões de candidaturas. As organizações que participam doprocesso, que não são políticas, mas “sociais e de massas”,o fazem por meio de seus representantes, que integram ascomissões de candidaturas. Em consequência, as eleições nãosão competitivas (para cada cargo a eleger propõe-se umcandidato para preenchê-lo), salvo na eleição dos delegados àsassembleias municipais, nas quais para um cargo deve-seapresentar um mínimo de dois candidatos;

2 – associado a essa característica está o fato de que nãohá propaganda eleitoral em favor dos candidatos para quaisquerdos cargos a serem ocupados. Esse princípio já estava estabe-lecido na lei eleitoral por meio da qual regularam-se as eleiçõesexperimentais na província de Matanzas, onde ficou “proibidaa realização de propaganda a favor dos candidatos, sob a formade bandas de música, ou o uso de representações teatraissatíricas ou outras formas semelhantes.15 De fato, entre osprincípios da “ética eleitoral” legalmente estabelecidos está o deque os processos eleitorais devem estar afastados de “todaforma de oportunismo, demagogia e politicagem” e que “apropaganda que se realizará será a divulgação das biografias,

caso dos deputadosà Assembleia Nacio-nal, a idade mínima é18 anos.13 No máximo 50%dos pré-candidatosdevem ser propos-tos pelas assem-bleias municipais. Aoutra metade é pro-posta pela Comissãode Candidaturas. Aprevisão de que só50% dos pré-candi-datos devem serdelegados dasassembleias munici-pais foi explicadaassim: “há cidadãoscujas ineludíveis ati-vidades políticas elaborais não lhespermitem assumirresponsavelmenteas tarefas locais doPoder Popular, peloque, apesar de suaalta qualificação – eprecisamente porela – os eleitoresnão os proporiamnem elegeriam pararepresentantes emnível municipal (…).Desse modo, opovo, através deseus representan-tes diretos, pode in-corporar aos ór-gãos superiores doPoder Popular aque-les cidadãos queprecisamente, porsua alta capacida-de, experiência equalificação, julgamque não devem serincorporados à

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acompanhadas de reproduções da imagem dos candidatos, queserá exposta em locais públicos ou por meios de difusãomassiva do país...”. Permite-se, por outro lado, que os candi-datos possam “participar de atos, conferências e visitas acentros de trabalho e trocar opiniões com os trabalhadores (…)sem que isso se considere campanha de propaganda eleitoral”;

3 – um dos elementos centrais do processo eleitoral éconstituído pelas comissões de candidaturas, que têm funçãodupla: compete-lhes propor 50% dos pré-candidatos a delega-dos às assembleias provinciais e a deputados à AssembleiaNacional, que devem ser aprovados como candidatos pelasassembleias municipais. Esse percentual de 50% é normal-mente constituído por personalidades destacadas nos âmbitosda ciência, da cultura ou do esporte ou por funcionáriospúblicos, que, por não terem uma vida social “normal” em suacomunidade, são indicados para essas comissões a fim degarantir a representação desses setores sociais nos órgãoseleitos e propor os candidatos para preencher os cargoseletivos em cada Assembleia e no Conselho de Estado;

4 – as assembleias do Poder Popular não são órgãos quefuncionam de maneira permanente, reunindo-se normalmenteduas vezes por ano por um período que costuma variar entre ume três dias. Fora desse período são representadas pelo Conselhode Estado (no caso da Assembleia Nacional) ou pelo Conselhode Administração (Provincial ou Municipal). Para realizar suasfunções, as assembleias são constituídas por comissões per-manentes ou temporárias, de acordo com as necessidades.Aqueles que não ocupam cargos de direção na Assembleia ounão são membros de suas comissões permanentes normalmen-te continuam nos seus postos de trabalho, recebendo seusalário. Ser delegado ou deputado não implica, legalmente,nenhum privilégio ou benefício econômico adicional.

Formas de participação popularFormas de participação popularFormas de participação popularFormas de participação popularFormas de participação popular

De acordo com o artigo 3º da Constituição, “naRepública de Cuba a soberania reside no povo, do qual emanatodo o poder do Estado. Esse poder é exercido diretamente ou

Assembleia Munici-pal do Poder Popu-lar, mas reservadospara as instânciassuperiores ou paraa suprema...” Cf .Comentarios sobreel nuevo sistemaelectoral. Trabalhoredigido por um co-letivo de advogadosda Direção Jurídicado Ministério da Jus-tiça, in DocumentosJurídicos Básicos.Faculdade de Direi-to, Universidade deOriente, 1983, p. 46.14 O desenvolvimen-to desse preceitoconstitucional estáregulamentado naLei nº. 89, de 1989,Lei de Revogação deMandatos dos Elei-tos para os órgãosdo Poder Popular.15 Não houve cam-panha eleitoral, mas“o domingo 30 dejunho de 1974 foi umverdadeiro dia defesta para os‘matanzeiros’. Fo-ram colocadas flo-res e bandeiras nasportas, janelas esacadas, vilas e ci-dades (…). Pionei-ros com vistososlenços nos pesco-ços custodiavamsimbolicamente asurnas”. Cf. A A VV. AProvíncia de Matan-zas. Editorial Orien-te, Santiago deCuba, 1978, p. 148.

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por meio das assembleias do Poder Popular e demais órgãosdo Estado de que delas se derivam”. Segundo esse preceitoconstitucional, podem-se distinguir duas formas de participa-ção popular: a) direta; e b) indireta, por meio dos representan-tes eleitos.

a) As formas de participação popular direta são cada vezmais complexas nos regimes políticos contemporâneos. Nelasa intervenção dos cidadãos nos assuntos públicos é mediatizadapor organizações de todo o tipo. Desse modo, nas atuaisdemocracias representativas a esfera da participação populardireta se reduz às eleições de representantes para os diferentesórgãos do Estado, à participação em referendos e consultaspopulares e à iniciativa legislativa popular. Essas três formas departicipação política direta estão reguladas em Cuba.

A eleição direta dos representantes evoluiu desde otempo em que os cidadãos só elegiam diretamente os delega-dos às assembleias municipais, até que se estabeleceu a eleiçãodireta, pelos cidadãos, dos delegados às assembleias munici-pais e provinciais e dos deputados à Assembleia Nacional. Oúnico referendo popular realizado foi para a aprovação doprojeto de Constituição em 1976. As consultas populares têmsido mais frequentes, sobretudo para a análise de projetos deleis por meio dos quais se regulam relações sociais de grandetranscendência. A convocação dessas consultas é exclusivada Assembleia Nacional. Por fim, a iniciativa legislativapopular nunca foi exercida. Além dessas formas, também anomeação dos candidatos a delegados às assembleias munici-pais é uma forma de participação popular direta.

Uma forma peculiar de participação popular direta éconstituída pelo processo de prestação de contas, realizadopelos delegados às assembleias municipais, por meio do qualos eleitores recebem informação da gestão realizada por elese dos problemas da circunscrição que devem ser resolvidos.Esse processo se cumpre rigorosamente todos os anos.

b) A forma indireta se manifesta no fato de que oseleitos devem exercer suas funções em nome e no interesse de

MUÑOZ VALDÉS,Gilberto Intro-ducción al estudiodel Derecho, Edito-rial Pueblo y Edu-cación, La Habana,1982, p. 101, por seuturno, faz referên-cia “ao caráter purodessas consultas,realizadas sem ma-nobras politiqueiras,sem fraudes, semdemagogia, sem maiscampanha eleitoralque a própria vida econduta, a página deserviços à pátria docandidato.”

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seus representantes, sob pena de serem submetidos a umprocesso de revogação do mandato conferido. Ela também seestabelece na eleição dos titulares das assembleias do PoderPopular em todos os níveis e do Conselho de Estado, cujaeleição se realiza pelos representantes eleitos pelo voto diretodos cidadãos.

Organizações políticasOrganizações políticasOrganizações políticasOrganizações políticasOrganizações políticas

No processo eleitoral os candidatos são propostosdiretamente pelos cidadãos, assembleias municipais ou co-missões de candidaturas, não intervindo nesse processonenhuma organização política. As organizações inscrevem eapresentam os seus próprios candidatos e fazem propagandaeleitoral a favor deles, com o objetivo de obter os votos doseleitores e convertê-los em cargos públicos. Esse fato suscitaimediatamente algumas interrogações: se existem ou nãoorganizações políticas em Cuba. Qual é o caráter delas? Quefunção realizam no regime político, esclarecendo-se de ante-mão que não é uma função eleitoral?

A primeira e mais importante das organizações políti-cas é o Partido Comunista de Cuba. Outra organização políticaé a União de Jovens Comunistas. As demais organizações que,segundo o artigo 7º da Constituição, são reconhecidas peloEstado são aquelas que, “surgidas no processo histórico daslutas de nosso povo, agrupam em seu seio distintos setores dapopulação, representam seus interesses específicos e osincorporam às tarefas da edificação, consolidação e defesa dasociedade socialista”. Representantes destas últimas são aque-les que integram as comissões de candidaturas que participamdo processo eleitoral.

Trata-se de “organizações de massas e sociais,”16 quecumprem uma dupla função. De um lado, representam osinteresses de seus membros e, de outro, realizam em algumamedida tarefas estatais que lhes são encarregadas em determi-nadas esferas da sociedade.17 Essas organizações cumpremtambém uma importante função política, já que, por meio delas,

16 Nos últimos anosessas organizaçõesvêm se apresentan-do sob o nome gené-rico de “organiza-ções da sociedadecivil cubana.”17 Esse é outro dos“núcleos duros” doregime político iden-tificados por HugoAzcuy. Cf. “Cuba¿Reforma Consti-tucional...? op. cit.p. 42-43; no mesmo

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transmitem a seus membros a política do governo na esfera desua influência, além de serem uma fonte importante de socia-lização, recrutamento político e formação de “quadros”.

O Partido Comunista de Cuba, o único legalmentereconhecido pelo regime político, não é um partido cujafunção básica, como em qualquer regime político contempo-râneo, é a participação no processo eleitoral (com tudo o queisso implica). A sua posição no regime político, assim comoa sua função principal, está regulada estritamente no artigo 5ºda Constituição, que estabelece: “O Partido Comunista deCuba, martiano e marxista-leninista, vanguarda organizada danação cubana, é a força dirigente superior da sociedade e doEstado, que organiza e orienta os esforços comuns, visandoaos elevados fins de construção do socialismo e ao avanço emdireção à sociedade comunista”.

O Partido Comunista foi constituído em 1965, depoisde um processo de união das diferentes forças políticasexistentes no país que haviam contribuído para o triunfo daRevolução. Desde então, ele tem sido a força política dirigenteda sociedade e do Estado. É uma organização política acimade qualquer outra, inclusive do próprio Estado. Dessa organi-zação política emanam as linhas fundamentais do desenvolvi-mento do país em todos os ordenamentos da vida social(traçados pelo Congresso, que, segundo seus estatutos, deverealizar a eleição de seus representantes a cada cinco anos)18.

O Partido tem sido historicamente a principal fonte de recru-tamento político e formação de quadros e, normalmente, seussecretários provinciais são os que ocupam de imediato asposições-chave no Estado, no governo e no próprio Partido.A história da função dele no regime político está em grandeparte resumida no informe central de cada um dos congressoscelebrados.

Quanto à relação entre o regime político e a qualidadedas leis, o Partido cumpre uma função essencial, já que é aprincipal fonte de impulsos legislativos, a partir dos quais sedesencadeia todo o procedimento legislativo.19 De outra parte,suas disposições são consideradas por alguns autores como

sentido cf. ÁLVAREZTABÍO, Fernando.Comentarios a laConstitución Sio-cialista, EditorialPueblo y Educación, LaHabana, 1981, p. 43.18 As organizaçõessociais e de mas-sas estão “destina-das a servir de cor-reia de transmissãoentre o partido e asmassas populares eestas prestam umaajuda decisiva paraa realização de suastarefas”. Cf.MÁRCHENKO, N. ePÉREZ SAR-MIENTO, Eric. “O sis-tema político da so-ciedade socialistacubana em AAVVManual de Teoríadel Estado e elDerecho, Editorialde Ciencias Socia-les. La Habana,1988, p. 220. O pri-meiro congressorealizou-se em1975, o segundo em1980, o terceiro em1985, o quarto em1991 e o quinto em1997. Desde entãonão se realizou ne-nhum outro. O sex-to, segundo anun-ciou o general-de-Exército Raúl Cas-tro Ruz, segundo-secretário de seuComitê Central no VIPleno do referidocomitê, que abriusessão no dia 28 de

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uma fonte indireta de Direito, particularmente no âmbito desua aplicação em sede administrativa.20

II – O processo legislativoII – O processo legislativoII – O processo legislativoII – O processo legislativoII – O processo legislativo21

Nos estudos recentes relacionados com a teoria dalegislação, foram feitas várias distinções com o objetivo delograr uma maior compreensão do processo de produçãolegislativa do Direito. Entre essas diferenciações, encontra-se aque divide o processo legislativo em duas etapas: processolegislativo interno e processo legislativo externo. O critériopara fazer essa distinção consiste em tomar como referência osórgãos ou autoridades que intervêm em cada etapa e a publici-dade ou não do seu desenvolvimento e dos seus resultados.

O processo legislativo interno estaria integrado porduas subetapas. A primeira compreende o conjunto de traba-lhos, estudos e investigações prévias que se realizam para aelaboração de um projeto de lei e se conclui com suaapresentação perante o órgão legislativo competente para suadiscussão e aprovação. Essa subetapa costuma denominar-setambém de avaliação ex ante. A segunda subetapa começaquando a lei, já em vigor, é efetivamente aplicada e se procedeà avaliação da medida em que as expectativas que determina-ram sua adoção são conseguidas com seu cumprimento eaplicação. Essa subetapa costuma denominar-se também deavaliação ex post.

No processo legislativo interno geralmente intervêmfuncionários da administração pública, grupos de trabalho,comissões de estudo, comissões de especialistas ou comis-sões permanentes constituídas por quem exercerá a iniciativalegislativa ou por quem tem competência para aprovar adisposição jurídica que resultará dessa etapa (na avaliação ex

ante) ou, no caso de se tratar de estudos sobre leis já vigentes(avaliação ex post), por quem é responsável pela aplicação dadisposição jurídica submetida a estudo.22

Na avaliação ex ante, só há publicidade quando oprojeto de lei é submetido a referendo popular ou a qualquer

abril de 2008, deve-ria realizar-se emfins do segundosemestre de 2009(informação dispo-nível na Internet:h t t p : / / /w w w . c a d e n a h a -bana.cu/noticias/n a c i o n a l e s /noticias02290408.htm).Todavia, no VII Ple-no do Comitê Cen-tral, realizado em 29de julho de 2009,“acordou-se adiar arealização do VICongresso do Parti-do até que haja sidovencida essacrucial etapa de pre-paração prévia”.(disponível naInternet: http:///www.bohemia.cu-basi.cu/2009/07/31/noticias/cuba-raul-castro-pleno.html).19 Grande parte dosprincípios da políticalegislativa que se-guiu o governo estácontida nos informese a indicação dosimpulsos que condu-ziram ao processolegislativo é expres-samente declaradaem um número signi-ficativo de leis cuba-nas dos últimos 45anos. Uma amostradesses impulsos éprecisamente o fatode que o SegundoCongresso “acordouem recomendar àAssembleia Nacional

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outro tipo de consulta cidadã. Na avaliação ex post, ocorrequando os resultados obtidos permitem justificar a modifica-ção ou revogação da lei vigente, ou quando se espera que dissoresulte uma melhora na sua aplicação ou no seu cumprimentopelos seus destinatários.

O processo legislativo externo estaria constituído, porum lado, pelos diferentes passos, procedimentos e autorida-des que intervêm na gestão de um projeto de lei, desde que eleé apresentado perante o órgão legislativo competente até queentre em vigor como lei. As autoridades que intercedem sãoaquelas legalmente facultadas pelas normas que regem oprocesso de discussão e deliberação no órgão legislativo(comissões parlamentares, grupos parlamentares, oradores,quem exerce a iniciativa legislativa, representantes do gover-no, etc.). O processo legislativo externo geralmente é público,já que as deliberações costumam ser difundidas pelos meiosde comunicação, quando não se trata de uma sessão secretado órgão legislativo.

Outros estudos mais analíticos distinguem, de um pontode vista institucional e levando-se em conta a hierarquianormativa da futura disposição jurídica e o procedimento quedeve ser seguido para a sua produção, três fases no processolegislativo: a fase pré-legislativa, a fase legislativa e a fase pós-legislativa.23 A primeira e a última correspondem aproximada-mente ao processo legislativo interno ex ante e ex post, enquantoa segunda corresponde ao processo legislativo externo.

Não obstante as características particulares que po-dem ter a regulação do processo legislativo em diferentesregimes políticos, pode-se afirmar que, de forma geral, a faselegislativa é um elemento imprescindível na produção legislativado Direito, enquanto que as fases pré-legislativa e pós-legislativa dependem da expressa regulação delas noordenamento jurídico e da vontade política das autoridadescompetentes para decidir e orientar sua execução.

Afirma-se, por exemplo, que um projeto de lei que sejaaprovado e entre em vigor sem que se realize a fase legislativa

o estudo da legisla-ção eleitoral vigen-te, a partir das expe-riências obtidasdesde sua promul-gação, com o propó-sito de incorporar asmodificações que asmesmas indiquem.”Como resultado des-se impulso foi pro-mulgada a Lei nº 37,de 1982 (Lei Eleito-ral). Além disso, “oQuarto Congressoaprovou (…) um gru-po de recomenda-ções destinadas atransformar o siste-ma eleitoral”. Comoresultado desse im-pulso se promulgoua Lei nº 72, de 1992,de mesmo nome.20 Cf. CORREA,Matilla, Comentári-os sobre as fontesdo Direito Adminis-trativo cubano(exceto o regula-mento) em AAVVTemas de DerechoAdministrativo... p.90 e seguintes.21 Utilizarei a expres-são “processo legis-lativo” quando fizerreferência ao proces-so de produçãolegislativa do Direitocomo categoria geral;quando se tratar dasua regulamentaçãolegal em Cuba utiliza-rei a expressão “pro-cedimento legis-lativo”, que é o nome

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(ou seja, sem haver sido previamente discutido e aprovadosegundo o procedimento legalmente estabelecido) não deveriaconstituir propriamente uma “lei válida”. Em todo casotratar-se-ia de uma lei de “duvidosa validade formal”, aopasso que se esse trâmite for cumprido (ainda que nãotenham sido realizados estudos prévios para a sua prepara-ção ou não tenham se estabelecido os meios necessários paraa avaliação dos resultados da sua aplicação e do seu cumpri-mento) poder-se-ia dizer que se trata simplesmente de uma“lei má”, ou de uma lei que poderia ter comprometida suaeficácia e legitimidade. Todavia em nenhum dos dois casosseriam negadas ao novo diploma legal as qualidades formaispróprias de uma lei.

Assim, da execução de um processo legislativo dequalidade e da avaliação de todos os fatores necessários quepossam garantir a eficácia e efetividade das leis, depende aqualidade da legislação, um tema que está no centro dosdebates atuais no âmbito dos estudos de teoria da legislação.24

As distinções anteriores, com as necessárias simplifi-cações, são suficientes para a função que devem cumprirneste ensaio.

II.1 – A teoria do ato normativo. É um fato notórioque, só a partir da década de 1970, os estudos sobre alegislação tenham ocupado um lugar significativo nas inves-tigações jurídicas. Mesmo assim, não se trata de um campode investigação não explorado, ainda que o abandono experi-mentado durante um tempo prolongado tenha impedido que asbases estabelecidas pelos seus primeiros cultivadores cimen-tassem um sólido corpo teórico e metodológico, capaz defazer frente às características da legislação no Estado contem-porâneo.

Os aportes dos primeiros teóricos da legislação, comoMontesquieu,25 Gaetano Filangieri 26 e Jeremy Bentham,27 nãoforam desenvolvidos pelo pensamento jurídico posterior pordiversas razões, entre as quais se inclui a redução do Direitoà manifestação da vontade política. Nesse caso, o ordenamento

que recebe no Regu-lamento da Assem-bleia Nacional de 1996.22 Para uma exposi-ção exaustiva daavaliação ex ante eex post, sua impor-tância e alguns exem-plos de sua aplica-ção pode-se ver o nº33/34, de janeiro-ju-nho de 2003 de Le-gislação, Cadernosde Ciência de Legis-lação, INA, Portugal)número monográficodedicado à avaliaçãoda legislação.23 Assim, por exemplo,Luzius Mader(L’Évaluation légis-lative. Pour uneannalyse empiriquedes effets de lalegislation. Préface deCharles-Albert Morand,Payot, Lausanne, 1985,p. 34) do ponto de vistainstitucional distingue asfases pré-parlamentar,parlamentar e pós-par-lamentar.24 Quality of Legis-lation, Principles andInstruments será pre-cisamente o tema cen-tral do Nono Congres-so da InternationalAssociation of Legis-lation, que se realizaráem Portugal, nos dias 24e 25 de junho de 2010.25 O espírito das leis(1748). Um resumodos aportes princi-pais de Montesquieupara a teoria da legis-lação pode-se ver em

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legal somente passa a constituir objeto de conhecimento paraa dogmática jurídica uma vez que entre em vigor, do quederiva o deslocamento dos problemas de fundamentação dasleis para o âmbito político e a constituição de uma Teoria doDireito formalista e pretensamente apolítica.

Estamos, portanto, há mais de três décadas, diante deum renascimento dos estudos sobre a legislação, com aparticularidade de que os problemas atuais que devem enfren-tar tal teoria são qualitativa e quantitativamente diferentes dosque se colocaram aos seus primeiros cultivadores. Se nostempos de J. Bentham, tratava-se da necessidade de que olegislador expusesse as razões das leis, de que o Direito fossereduzido a Direito escrito e de fácil conhecimento para seusdestinatários, hoje se trata, além desses temas não resolvidoscompletamente, da avaliação dos resultados obtidos com avigência da lei, do seu impacto social e individual e inclusivede avaliar as possíveis alternativas antes de empreender umaintervenção legislativa para resolver um determinado proble-ma social. O centro de gravidade da questão deslocou-se dosproblemas filosóficos de fundamentação para os problemaspragmáticos de meio-fim. Trata-se de uma ampliação con-siderável dos problemas. Hoje são necessários estudos sobrea legislação, o que impõe a necessidade de refinar os métodosde investigação e perfilar a perspectiva de análise pararesolvê-los satisfatoriamente.

Por essa razão, “do ponto de vista metodológico”, épreciso analisar as ideias tradicionais acerca do processo deprodução legislativa do Direito e, caso seja necessário, ensaiardiferentes alternativas de solução que permitam aperfeiçoá-loquando ele conduz a resultados insatisfatórios ou quandoesses possam ser mais congruentes com princípios da hierar-quia normativa, segurança jurídica e proporcionalidade que sedevem expressar por meio das leis.

Esse “ponto de vista metodológico” deve ser sobrepos-to à análise do procedimento legislativo em Cuba. Para que osresultados sejam satisfatórios, é preciso realizar duas opera-ções diferentes:

CARRILLO GARCÍA,Yoel. “Dez teses so-bre a racionalidadelegislativa (a propósi-to de um artigo deJurgen Habermas)” emAAVV. JürgenHabermas. Estudosem sua homenagem.Edeval, Valparaíso,Chile, 2008, p. 627-654.26 Ciencia de laLegislación, traduçãode Don Juan Ribera,2ª edição, revista ecorrigida, Bordeaux,Imprenta de Lon PedroBeaume, 1823, 6 vo-lumes. Um resumosobre a influência deFilangieri na Américapode-se ver emMORELLI, FedericaFilangieri y la “OtraAmerica”, historia deuma recepción, emRevista de la Facultadde Derecho y Cien-cias políticas de laUniversidad Ponti-fícia Bolivariana (Co-lômbia), nº 107, 2007,p. 485-508.27 Tratados de laLegislación Civil yPenal (1802), Tradu-cción de Ramón Sa-las. Editora Nacional,Madrid, 1981. Um re-sumo dos aportesprincipais de J.Bentham para a teo-ria da legislaçãopode-se ver emCARRILLO GARCÍA,Yoel. “Dez teses...”,cit.

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1 – analisar como o procedimento legislativo foi colo-cado e resolvido do ponto de vista teórico; e

2 – avaliar como o procedimento legislativo foi regula-do e que fases deve percorrer do ponto de vista legislativo-institucional.

Do ponto de vista do seu tratamento em uma exposiçãode literatura especializada, publicada nos últimos 30 anos emCuba, o processo legislativo ficou associado ao estudo dasfontes formais do Direito, em que ocupa um lugar exclusivoo ato normativo (a lei em sentido geral). A sua exposiçãoconsistiu em identificar e explicar cada uma das fases pelasquais passa a atividade legislativa, colocando-as em ordemcronológica. Desse modo, Fernando Cañizares, depois deconsiderar que

os corpos deliberativos colegiados realizam a função

legislativa valendo-se de procedimentos que podem ser

diferentes mas que têm todos a mesma finalidade:

formalizar a função de modo que as determinações

legislativas não se promulguem e publiquem senão

depois de terem sido suficientemente estudadas, anali-sadas, discutidas e aprovadas; prévia e ampla delibe-

ração, para garantir sua maior efetividade, evitando

precipitações, acordos secretos e demais vícios de

legislação que costumam ser tão funestos,

identificou como “fases do procedimento formativodas leis” a inciativa legislativa, a discussão do projeto, aaprovação ou sanção, a promulgação e a publicação.28

Por seu turno, A.V. Michkievich afirma que o processolegislativo é “o mais complexo de todos os processosnormativos...” e identifica como “fases do processo decriação do ato normativo” a iniciativa legislativa, a discussão,a aprovação pelo órgão de criação jurídica e a publicação doato normativo.29

Finalmente, Julio Fernández Bulté, depois de afirmarque

28 Teoría del Esta-do, Editorial Puebloy Educación, LaHabana, 1979, p.168 e seguintes.29 Las fuentes (for-mas de expresiónexterna) del Dere-cho y la creaciónjurídica em el Esta-do socialista , emAAVV. Manual deTeoria del Estado ydel Derecho... p. 379e 382

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o desenvolvimento do constitucionalismo burguês,

sobretudo depois do século XIX, levou a que quase

todas as constituições estabelecessem, com maior ou

menor minuciosidade, os passos fundamentais no

processo de formação do ato normativo (…), o

procedimento requerido para assegurar a legitimi-

dade da função legiferante,

identifica como “fases ou etapas essenciais do processodo ato normativo” a iniciativa legislativa, a discussão do projetolegislativo, a votação e aprovação do projeto, a promulgação doato normativo, a publicação e a entrada em vigor.30

Essa enumeração pode ser complementada com aanálise que faz o autor, na mesma obra, sobre a legalidadesocialista, em que explica a necessidade da realização deestudos e investigações sobre a eficácia do Direito e divide o“mecanismo de regulação jurídica da sociedade” em trêsfases: criação da norma (na qual entende ser imprescindível aparticipação consciente e direta do povo e a existência de umplano legislativo); harmonização de cada nova disposição como ordenamento jurídico (que o autor considera que se deveatribuir a um órgão especializado); e comprovação da eficáciada norma (o autor atribui essa função a mais de um organismoou a órgãos acadêmicos).31

Nas publicações periódicas consultadas,32 o tema nãofoi tratado em profundidade, embora possam assinalar-sealguns trabalhos publicados na Revista Cubana de Direito ena Revista Jurídica, nos quais se recorre a elementos rudi-mentares de teoria e técnica de legislação.

Os trabalhos de maior profundidade elaborados até omomento, ainda inéditos, são duas teses de doutorado: “Omodelo de criação de leis em Cuba”, de Josefina MéndezLópez (1999), na qual foi estudado o processo legislativo como objetivo de “avaliar (…) o modelo cubano de criação de leise sua realização; ao determinar aqueles fatores, que relaciona-dos com o tríptico órgão legislativo-lei-procedimento legislativo,incidem de uma maneira negativa na centralidade legislativa da

30 Teoría delDerecho, Editorial“Félix Varela”, LaHabana, 2001, p.246 e seguintes. Oautor assinala acer-tadamente que es-sas fases “só cor-respondem ao pro-cesso relativo às leisde maior hierarquia”,p. 79.31 Idem, p. 237 e ss.Essa exigência foiuma constante emsua obra e se iniciacom o trabalho LaLegalidad Socialista,apresentado nosimpósio Política,Ideología y Derecho,1985, e publicado emum livro homônimo pelaEditorial de CienciasSociales, La Habana,1985, p. 39-48.

32 Revista Cubanade Jurisprudencia(1961-1963); Revis-ta Cubana de Dere-cho (a partir de 1972);Información jurídica(1975-1989); Legali-dad Socialista (1975-1989); e Revista Jurí-dica (1983-1990).

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Assembleia Nacional do Poder Popular”; e “O processolegislativo interno em Cuba. Um modelo para sua análise”, doautor deste trabalho (2008), cujo objetivo principal foi “iden-tificar os principais fatores que, do ponto de vista teórico,metodológico e normativo, afetam o correto desenvolvimentodo processo legislativo interno em Cuba e fundamentar anecessidade de um modelo metodológico para a análise efundamentação de uma proposta de intervenção legislativa”.

Da análise das fontes assinaladas extraem-se as seguin-tes conclusões gerais:

1 – o tratamento do tema se reduz à enumeração eexplicação das fases pelas quais deve passar um projeto de lei,desde que é apresentado ao órgão legislativo até que entre emvigor;

2 – segue-se um critério essencialmente cronológico;

3 – concebe-se como um processo linear, sem saltos,contradições e/ou retrocessos;

4 – essa maneira de abordar a questão não permite darconta do que sucede (ou deve suceder) nas fases pré-legislativa e pós-legislativa;

5 – assume-se implicitamente que, no processolegislativo, só intervêm as instituições públicas legalmentecompetentes;

6 – quando se levam em conta outros elementos alheiosà fase legislativa, eles são somente mencionados, o queconstitui obviamente um avanço, mas sem que se faça sobreisso uma análise em profundidade;

7 – seu valor, do ponto de vista prático, é muitolimitado, já que só se refere à gestão dos projetos de lei emsentido formal e material, não levando em conta as disposiçõesjurídicas de hierarquia inferior à lei, que, pelas característicasdo regime político cubano, tornaram-se uma prática genera-lizada, por meio da qual os decretos-leis revogam ou modifi-cam as leis.

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Para compreender a regulação jurídica do procedimen-to legislativo em Cuba e as suas características principais, épreciso lembrar que, segundo o artigo 69 da Constituição, “aAssembleia Nacional do Poder Popular é o órgão supremo dopoder do Estado. Representa e expressa a vontade soberanade todo o povo” e, em consequência, entre as suas faculdadesse encontra, segundo estabelecido no artigo 75, “c”, a de“aprovar, modificar ou revogar as leis”.

É precisamente perante o presidente da AssembleiaNacional que se apresentam os projetos de lei no exercício dainiciativa legislativa,33 a partir do que se inicia o procedimentolegislativo.

Do ponto de vista jurídico, o procedimento foi suces-sivamente regulado por corpos legais expedidos em 1977,1982, 1988 e 1996. O Regulamento da Assembleia Nacional,em 1996, estabelece que os projetos de lei apresentados àAssembleia Nacional do Poder Popular sejam acompanhadosde uma fundamentação na qual se expressem:

1 – as relações que são objeto de regulação jurídica, osseus objetivos e os pressupostos econômicos, políticos esociais que aconselhem sua aprovação;

2 – as matérias que se regulam e as soluções que sepropõem, com indicação das modificações que se introduzemna legislação vigente, as disposições jurídicas que se ordenamou sistematizam e os antecedentes da matéria;

3 – as consequências econômicas previsíveis quederivam da aplicação da disposição jurídica proposta;

4 – a enumeração das disposições jurídicas de igual ouinferior hierarquia que se modificam, complementam ou revogam;

5 – a fundamentação do nível normativo da disposiçãojurídica proposta;

6 – os resultados das coordenações efetuadas com osórgãos e organismos que devem cumprir ou fazer cumprir asregulações propostas;

33 Segundo o artigo88 da Constituição,podem exercer ainiciativa legislativa:os deputados daAssembleia Nacio-nal do Poder Popu-lar; o Conselho deEstado; o Conselhode Ministros; as co-missões da Assem-bleia Nacional doPoder Popular; oComitê Nacional daCentral de Trabalha-dores de Cuba e asDireções Nacionaisdas demais organi-zações de massase sociais; o TribunalSupremo Popular,em matéria relativaà administração dajustiça; a Fiscaliza-ção Geral da Repú-blica, em matéria desua competência; eos cidadãos. Nesseúltimo caso será re-quisito indispensá-vel que exerçam ainiciativa pelo menosdez mil cidadãos,que tenham a condi-ção de eleitores.

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7 – as condições e os mecanismos necessários quegarantam a aplicabilidade, a efetividade, o cumprimento e ocontrole da disposição jurídica cujo projeto se apresenta.

O projeto de lei, acompanhado da fundamentação, deveser apresentado por quem exerce a iniciativa legislativa aopresidente da Assembleia Nacional. Cronologicamente, oprocesso deve transcorrer assim:

1 – iniciativa legislativa (projeto de lei e fundamentação);

2 – recebimento do projeto pelo presidente da AssembleiaNacional;

3 – encaminhamento do projeto à (s) comissão (ões)correspondente (s), segundo a matéria;

4 – decisão da comissão pela (a) aprovação do projetocom emendas ou sem elas, podendo recomendar em queperíodo legislativo deve ser incluído e se deve ser submetidoa consulta popular; (b) devolução do projeto, com as reco-mendações que julgue procedentes e com os aspectos que sedevem considerar ou sanar; ou (c) rejeição do projeto,expondo seus argumentos a respeito;

5 – controle de constitucionalidade do projeto pelaComissão de Assuntos Constitucionais e Jurídicos (pode sersimultâneo ou posterior ao trabalho das demais comissões);

6 – inclusão na ordem do dia;

7 – traslado aos deputados em, no mínimo, 20 diasantes de sua discussão. Se tramitar com urgência, o presiden-te fixa o término e os deputados podem emitir sua opinião porescrito. O presidente pode realizar reuniões parciais com osdeputados para explicar o projeto e ouvir as opiniões deles;

8 – designação, por quem exerce a iniciativa, doproponente que apresenta o projeto e responde às perguntas;

9 – parecer da (s) comissão (ões);

10 – debate e votação;

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11 – encaminhamento à Comissão de Redação;

12 – assinatura do presidente e do secretário;

13 – publicação e entrada em vigor.

Da análise dessas disposições pode-se extrair as con-clusões expostas e discutidas a seguir. Trata-se de umdocumento interno para o trabalho da Assembleia Nacional e,portanto, as suas regulações são aplicáveis somente aosprojetos de lei que se apresentem no exercício da iniciativalegislativa para sua aprovação. A essa exigência de fundamen-tação escaparam e escapam a maior parte dos projetos dedisposições jurídicas de alcance geral,34 como as leis, osdecretos-leis do Conselho de Estado, os decretos do Conselhode Ministros e todas as que estão abaixo delas, que entraramem vigor antes de 1988. Depois desse ano, passaram a serexigidos os mesmos elementos para a fundamentação dosprojetos de leis, decretos-leis e decretos, mas em 1996eliminou-se a exigência para os dois últimos, que tampoucoestão submetidos a algum outro procedimento publicamenteconhecido.35 Além disso, o exercício da iniciativa legislativa sóestá regulado constitucionalmente para as leis que a AssembleiaNacional tem a faculdade de aprovar, com o que fica excluídadessa iniciativa a apresentação de qualquer disposição normativaque não seja um projeto de lei.

A pretensão de fundamentar os projetos de leis emresultados de estudos realizados para esse efeito pode ficarfrustrada pelas seguintes razões: cada uma dessas exigênciaspoderia ser preenchida pro forma, já que, salvo a necessidadede se preverem as consequências econômicas que derivariamda aplicação da disposição jurídica proposta, elas se referema questões essencialmente formais, nas quais se estabelece oque se deve dizer, mas não como se deve conseguir a

informação que justifique o que se diz; por outro lado, é de seesperar que logicamente se expressem com maior ênfase nafundamentação aqueles elementos que contribuem para refor-çar a necessidade, conveniência e oportunidade de aprovar oprojeto que se apresenta, já que quem deve fundamentar sua

34 Segundo o adendoprimeiro do Decretonº 62, de 1980, dita-do pelo Comitê Exe-cutivo do Conselhode Ministros, “en-tende-se que umadisposição tem ca-ráter geral quandodeve ser cumpridafora dos marcos doorganismo onde éditada, por outrosórgãos ou organis-mos estatais, ou asempresas ou de-pendências destes,ou interessa às or-ganizações sociaise de massas ou àpopulação e emconsequência de-vem ser publicadasna “Gaceta Oficialde la República”.35 “Em nosso país nãoexiste disposiçãonormativa alguma arespeito das formali-dades e do conteúdoessencial das quaisdevem estar revesti-dos os instrumentos

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necessidade é o maior interessado em que se aprove. Nãoobstante, o parecer da comissão designada pode ter um efeitopositivo nesse sentido e limitar a tendência apologéticasubjacente a qualquer exercício de iniciativa legislativa.

Não se exige avaliar elementos tão importantes comoo grau de eficácia ou ineficácia alcançado pelas disposiçõesjurídicas que são revogadas ou modificam outras, bem comoas suas causas principais e possíveis consequências (custose benefícios) políticas e sociais (e não só econômicas) da novadisposição para seus destinatários, especialmente para oscidadãos; os possíveis efeitos colaterais; a função latente danova disposição ou o modo de avaliar sua eficácia, efetividadee eficiência depois de certo período de vigência.36

Quanto a este último aspecto, poder-se-ia pensar quefica resguardado pela exigência de expressar na fundamenta-ção as condições e os mecanismos que garantem o “controle”,a “efetividade”, o “cumprimento”, e a “aplicabilidade”, masesses termos aparentemente não podem ser entendidos comrelação aos destinatários da norma legal, particularmente oscidadãos, mas em relação às autoridades encarregadas deaplicá-la e fazê-la cumprir. Trata-se de um controle denatureza administrativa, e não de uma evolução realizada commétodos científicos de investigação.

Em estreita relação com o aspecto anteriormente dis-cutido, não sendo atribuída a nenhuma instituição em particu-lar a responsabilidade de avaliar os resultados positivos e/ounegativos derivados do cumprimento e aplicação das leis,essas exigências caem no vazio, ainda que se possa pensar quelogicamente essa responsabilidade caberia ao órgão encarre-gado de sua aplicação.

A nomeação da Comissão de Redação depois de apro-vado o projeto de lei poderia ser contraproducente e deveriaser logicamente anterior à aprovação, em razão de que osdeputados aprovaram o texto tal qual lhes foi submetido, comas palavras que leram, as vírgulas e os pontos como estavam.Se a Comissão de Redação fizesse uma mudança de estilo, por

jurídico-administrati-vos (…) não obstan-te, não poderia dei-xar de se salientar anecessidade daregulação normativageral destes para ofim de lograr umamaior uniformidadeformal nos mesmose unidade de critérioquanto ao conteúdode um ou outro, es-pecificando a hierar-quia de cada qual.”Cf. REYES PARET,Yanila. Un primeracercamiento a losinstrumentos jurídi-cos-administrativosem AAVV. Temas deDerecho Admnis-trativo, tomo I, LaHabana, Editorial“Félix Varela”, 2006,p. 565.36 Em seu discursode 28/12/1984, nasessão da Assem-bleia Nacional emque se aprovou oCódigo do Trabalho,Fidel Castro, entãopresidente do Con-selho de Estado ede Ministros, ex-pressou que “nãopensamos que sejaperfeito (…) porisso se estabeleceque periodicamentedeve ser revisado”.Essa previsão nãose incluiu no textoaprovado; nãoobstante, em seu

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menor que fosse, no posicionamento desses signos, depois deaprovada a norma, isso poderia, voluntariamente ou não,mudar todo o sentido do texto e, em consequência, a leipublicada e colocada em vigência poderia ser sensivelmentediferente da aprovada pelos deputados. E uma lei é precisa-mente isto, um texto composto de signos com um significadoque, depois de aprovado, não deveria ser modificado, emnenhum sentido, a não ser pela autoridade que o aprovou ououtra de hierarquia superior.

A regulação jurídica desses elementos não teve, emgeral, os resultados que se esperavam, em parte pelo que seexpôs anteriormente e em parte porque as diretrizes da políticalegislativa continuaram sendo as mesmas, ao que se teria deacrescentar as dificuldades derivadas das contingências polí-ticas e das urgências que o país teve de enfrentar durante oprocesso revolucionário e, relacionado com o tempo e asurgências, o pouco tempo que tem a Assembleia Nacional paraestudar cada um dos projetos de lei submetidos à sua consi-deração com a devida profundidade. A esses obstáculos sejunta a característica de que um número significativo dedeputados não é especializado em matéria jurídica, o que épróprio de qualquer instituição parlamentar.37

O estudo do desenvolvimento do procedimento legislativoem Cuba, desde 1977, quando foi institucionalizada a AssembleiaNacional, até a atualidade, realizado na tese de doutoramentoque serve de base para este artigo, permite identificar como suascaracterísticas fundamentais as seguintes:

1 – modelo descentralizado de realização da fase pré-legislativa;

2 – criação de comissões ad hoc para desenhar eexecutar a fase pré-legislativa das leis básicas;

3 – baixa utilização da discussão popular e pública noprocesso de produção legislativa;

4 – desconexão entre as investigações jurídicas exter-nas e o processo legislativo;

discurso na mesmasessão Flavio Bra-vo Pardo (presiden-te da AssembleiaNacional) ter decla-rado que “é normal eaté desejável que,uma vez submetidoà prova da práticadurante indetermi-nado tempo, esteCódigo seja de novoanalisado”. As pas-sagens de ambosos discursos po-dem-se ver emGUILLÉN LAN-DRIÁN, Francisco.La codifi-cación delDerecho laboral emCuba. Editorial deCiencias Sociales,La Habana, 1987, p.101-102.

37 Sobre a duraçãodos períodos desessões da Assem-bleia Nacional, podese ver MÉNDEZLÓPEZ, Josefina. Elmodelo... Anexo 9.Essa brevidade im-plicou que a Assem-bleia Nacional “nemsempre contou como tempo suficientepara estudar de ma-neira exaustiva to-dos os projetos deleis e suas conse-quências, e queagora é necessárioretificar alguns des-ses textos legisla-

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5 – inexistência de uma política legislativa articulada ecoerente.

A última característica, que sintetiza as anteriores,fundamenta-se nos elementos discutidos a seguir. Do pontode vista organizativo-institucional, a inexistência de umainstituição permanente encarregada de realizar as investiga-ções necessárias no âmbito da legislação impediu a continui-dade do trabalho legislativo: cada vez que as condiçõespolíticas, sociais ou econômicas do país impuseram a neces-sidade de uma intervenção legislativa de grande alcance, foipreciso criar uma comissão para desenvolver a fase pré-legislativa. Essa prática tem dificultado a formação de umaatividade legislativa baseada em princípios científicos que aorientem e, sobretudo, a possibilidade de estudar, depois deum prudente tempo de vigência da disposição normativacriada, sua eficácia, seu grau de cumprimento, seu nível deconsecução dos objetivos previstos e seus resultados (positi-vos e negativos) obtidos, possibilitando recolher argumentospara seu aperfeiçoamento.

Essa incoerência é perceptível não só no planoinstitucional, mas também no interior do próprio ordenamentojurídico: por exemplo, as leis processuais (Lei de Procedimen-to Penal e Lei de Procedimento Civil e Administrativo, ambasde 1977) foram elaboradas e colocadas em vigência antes queas respectivas leis substantivas o fossem, uma prática poucorecomendável já desde os tempos de J. Bentham.

No “Estudo sobre os fatores que mais afetam odesenvolvimento de uma cultura de respeito à lei”, cujosresultados foram discutidos pela Assembleia Nacional emjulho de 1987, concluiu-se que “com respeito à necessáriasistematização do Direito, demonstra-se como o povo cons-tata, por diferentes vias e meios, a existência de leis quedeveriam ser respeitadas por sua hierarquia, que, por vezes,são contraditadas por outras de menor importância, ou o queé pior, não são aplicadas e são substituídas por orientações ouinterpretações arbitrárias ou ilegítimas e que em geral existepouca sistematização em nosso ordenamento jurídico”.38

tivos”. CASTRORUZ, Fidel. Versãode sua intervençãona discussão doProjeto da Lei nº 59/1987, Código Civil,Diario Granma, quin-ta 21/7/87.

38 Assembleia Naci-onal do Poder Popu-lar, Estudo sobre osfatores que maisafetam o desenvol-vimento de uma cul-tura de respeito àLei AN/3L/1POS/JUL.87/DOC.11,(inédito). Também sepode ver a Tesesobre a vida jurídi-ca do país, aprova-da pelo TerceiroCongresso da UniãoNacional de Juristasde Cuba, 1987.

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Apesar de ter sido reclamado em numerosas ocasiões,tanto em documentos políticos 39 como em trabalhos científi-cos,40 não se elaborou nem foi publicado um plano legislativo que,a curto, médio e longo prazos, garantisse a coerência doordenamento jurídico e a regulação jurídica adequada das rela-ções sociais, bem como o controle dos efeitos do Direito sobreas relações sociais e vice-versa. Tampouco se recorreu à técnicada Lei de bases para, por meio delas, assentar os princípios, asdiretrizes e o tempo de elaboração do projeto (ou anteprojeto) deleis básicas, como o Código Penal ou o Código Civil.

Se é certo que o Código Penal é a “Constituiçãonegativa do Estado” 41 e o Código Civil é a lei mais importanteem qualquer sociedade depois da Constituição, pelo seucaráter de regulação das relações sociais, não se explica porque em nossa prática legislativa não se tenha utilizado, pelomenos na elaboração desses dois corpos legais, essa técnicatão conhecida e comprovadamente eficaz, tanto na Espanhaquanto na ex-URSS, de onde provém a nossa tradição jurídica.

Talvez isso explique o fato de que o primeiro CódigoPenal aprovado depois de 1959, o de 1979, tenha “envelhecidoantes de seu nascimento” 42 e que o Código Civil tenha tido uma“obsolescência precoce”.43

Aos elementos discutidos deve ser acrescentada, porfim, a deficiente e limitada regulação dos requisitos para aelaboração e apresentação dos projetos de leis.44

II.2 – Diversidade de “legisladores” No Estadocontemporâneo o “legislador” se desdobra em vários “legis-ladores”, aos quais a Constituição e as leis atribuem a facul-dade de ditar disposições jurídicas de alcance geral. “Legisla-dor”, em sua acepção básica, refere-se à unidade ideal davontade político-jurídica, que se presume subjacente aoordenamento jurídico em geral (nesse sentido postula-se queo legislador não deve se contradizer, deve ser coerente,racional, etc.). Em sua segunda acepção, “legislador” fazreferência à pluralidade de órgãos com faculdade para ditar asmencionadas disposições jurídicas.

39 Essa proposta temseus antecedentesno Segundo Congres-so do Partido Comu-nista de Cuba (1980).Veja o Informe Cen-tral ao II Congressodo Partido Comunis-ta de Cuba, no I, II e IIICongresso do Parti-do Comunista deCuba. Editora Políti-ca, La Habana, 1990,p. 288-289, e noEstudio... da Assem-bleia Nacional.40 FERNÁNDEZBULTÉ, J. La Legali-dad Socialista, em op.cit. p. 39-48, AZCUY,Hugo, Revolución yDerechos, RevistaCuadernos deNuestra América, v.XII, nº 23, 1995, p. 151,MÉNDEZ LÓPEZ, J.op. cit. Primera de lasrecomendaciones.41 Exposição de mo-tivos do Código Pe-nal espanhol de1995, BOE, nº 54,de 2/3/1996.42 MEDINA CUENCA,A. Las penas priva-tivas de libertad esuas alternativas,em AA. VV. La im-plantación de penasalternativas: expe-riencias compara-das de Cuba e Bra-sil. Seminário Inter-nacional patrocina-do pela União Naci-onal de Juristas deCuba e Reforma

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A primeira é uma questão política com um importanteembasamento filosófico e ideológico que remete aos elemen-tos funcionais do regime político. A segunda é uma questãode Direito vigente e de técnica legislativa, que necessariamentedeve ser entendida com relação àquela. Como a primeira já foiexplicada, aqui será feita referência unicamente a essa segun-da acepção do termo “legislador”.

Além da Assembleia Nacional, que tem a faculdade deaprovar as leis que lhe sejam apresentadas no exercício dainiciativa legislativa, a Constituição estabelece outros “legisla-dores”. Assim, estabelece que o Conselho de Estado podeditar decretos-leis, entre um e outro período de sessões daAssembleia Nacional do Poder Popular, e o Conselho deMinistros pode ditar decretos e disposições sobre a base e emcumprimento das leis vigentes, bem como controlar suaexecução. Além dos dois conselhos, podem ditar disposiçõesjurídicas de alcance geral os chefes de organismos da Admi-nistração Central do Estado, aos quais é facultado ditar, noâmbito de suas faculdades e competência, regulamentos,resoluções e outras disposições de obrigatório cumprimentopara os demais organismos e suas dependências, o setorcooperativo, o privado e a população.

O quadro geral de “legisladores” é o seguinte:

Assembleia Nacional Leis

Conselho de Estado Decretos-leis

Conselho de Ministros Decretos

Chefes de organismos daAdministração Central do Estado Regulamentos e resoluções

Levando-se em conta as relações estáticas dessesórgãos entre si, poder-se-ia concluir que as relações sociaismais importantes sempre são reguladas mediante as leis quea Assembleia Nacional aprova (as disposições jurídicas demaior hierarquia normativa pela autoridade competente paraaprová-las e pelo procedimento de aprovação), e assim demaneira descendente até as resoluções. Todavia, na prática oque sucede é que o Conselho de Estado não só regula qualquer

Penal Internacional,La Habana, 2006, p.126. A elaboraçãodo CP durou dezanos e sua vigên-cia, oito.43 PÉREZ GALLAR-DO, Leonardo. Lacodificación civil ,em AA. Derecho Ci-vil, Parte General,Editorial FélixVarela, La Habana,2000, p. 69.44 Diário Gramma,19/7/88. Descreve oterceiro período or-dinário de sessõesda terceira legisla-tura da AssembleiaNacional em que seanalisaram as medi-das a adotar relaci-onadas com oEstudio..., no mes-mo sentido, PÉREZMILLÁN, Félix, Dis-curso en el actocentral por el día deltrabajador jurídico,em Legalidad Soci-alista nº 3, de 1989,p. 5.

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tipo de relações sociais, de qualquer âmbito da realidade social,como também modifica e revoga, mediante seus decretos-leis,as leis aprovadas pela Assembleia Nacional.

Essa prática tem sido aceita ou recusada de diferentesformas e com argumentos heterogêneos pelos estudiosos doDireito Constitucional e do Direito Administrativo em Cuba 45.Entretanto, se fosse seguido o “critério de hierarquiainstitucional” expressamente estabelecido na Constituição eos princípios da “hierarquia normativa e paralelismo dasformas subjacentes”, essa prática provavelmente deveriacorrer em sentido contrário.

Uma de suas consequências mais visíveis talvez seja ofato de que a Assembleia Nacional, em seus 32 anos, tenhaaprovado até hoje somente 107 leis,46 entre as quais se contamas do Orçamento do Estado, que são anuais (31 leis), as do Planode Desenvolvimento Econômico Social, aprovadas anualmentede 1978 a 1991 (13 leis), algumas leis puramente modificativase outras que foram substituídas por leis que regulam a mesmamatéria, com o mesmo nome e número diferente.

Todos esses “legisladores” só estão obrigados a cumprircom a fundamentação estabelecida no Regulamento de 1996quando exercem a iniciativa legislativa, ao passo que não o estãose atuam como “legisladores por direito próprio”, ditando asdisposições normativas sob o nome correspondente.

Da existência de diversos legisladores deriva outraconsequência que, embora esteja tecnicamente fora do proce-dimento legislativo ordinário, influi de maneira significativa naqualidade das leis. Trata-se de um problema simples na suacolocação, mas complexo em sua análise: como conseguirque as disposições jurídicas de alcance geral ditadas por cadaum dos diferentes “legisladores” sejam compatíveis entre si efaçam do Direito vigente um “ordenamento jurídico”?

Esse questionamento conduz diretamente ao tema dadefesa da Constituição em geral e ao controle daconstitucionalidade das leis em particular, um tema que emCuba tem sido tratado mais do ponto de vista político e

45 Um resumo de al-gumas das posi-ções teóricas a res-peito pode ser vistoem MATILLA COR-REA, Andry, Co-mentarios sobrelas fuentes delDerecho Adminis-trativo cubano (ex-cepto el regla-mento) em AA.VV.Temas de DerechoAdministrativo, p.69-71.46 Uma caracteriza-ção geral da produ-ção legislativa daAssembleia Nacio-nal e uma informa-ção estatística mui-to valiosa até 1999pode ser vista emMÉNDEZ LÓPEZ, J.op. cit.

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ideológico que do ponto de vista técnico-jurídico, emboranenhum dos dois enfoques tenha provocado a adoção de umasolução tecnicamente funcional e eficaz em seus resultados.

Podem ser adotadas aqui três perspectivas diferentespara abordar o assunto: projeção no discurso político, regulaçãojurídica e tratamento teórico.

Pela Constituição, pode-se constatar uma preocupaçãoconstante nos dirigentes políticos com o respeito à “legalidadesocialista”, em cujo centro se encontrava o respeito e obedi-ência à Constituição pelos órgãos do Estado, funcionáriospúblicos e cidadãos em geral. Não obstante, por uma concep-ção instrumental do Estado,47 uma concepção voluntarista napolítica legislativa, a doutrina da “unidade de poder” e umaconfiança exagerada nas potencialidades do exercício dopoder político pelo Estado socialista e nas virtudes dasautoridades e dos funcionários que o exercem, muito rapida-mente a Constituição foi relegada a um plano de subordinaçãoaos elementos funcionais do regime político.48 O curioso éque, em correspondência com o itinerário do discurso políti-co, a regulação jurídica do controle da constitucionalidade dasleis e demais disposições jurídicas de alcance geral também foise acomodando às circunstâncias.

Como já visto, a Assembleia Nacional tem como umade suas atribuições aprovar, modificar ou revogar as leis,segundo o procedimento estabelecido no Regulamento de1996, competindo-lhe ainda, de acordo com a Constituição,decidir acerca da constitucionalidade das leis, decretos-leis,decretos e demais disposições gerais. No entanto, esse regu-lamento restringiu as poucas possibilidades abertas pelosinstrumentos anteriores no tocante ao controle deconstitucionalidade das leis. Isso se fez num duplo sentido:facultando a prerrogativa de promover a revogação no todo ouem parte dos decretos-leis do Conselho de Estado somente àscomissões permanentes da Assembleia Nacional e aos depu-tados; e outorgando a possibilidade de promovê-la só emrelação aos decretos-leis, embora sem estabelecer os casosem que procede.

47 CARRILLO GARCÍA,Yoel e GARCÍA, WalterMondelo. El pan con-tra el espíritu (umalectura del pensa-miento jurídico cuba-no) em BOTEROBERNAL, Andrés eVÉLEZ, Sergio I. Estra-da (Coordenadores),Temas de Filosofíadel Derecho. SeñalEditora, Universidad deMedellín, Colombia,2003, p. 299-234.48 CARRILLO GAR-CÍA, Yoel e GARCÍA,Walter Mondelo.Marxismo, Poder yDerecho em Cuba(notas para un pro-grama de investi-gación), em AA VV.Estudios de Teoriadel Derecho, Edeval,Valparaíso, Chile,2003, p. 345-385.

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Não obstante, com uma técnica legislativa lamentável,retorna-se à faculdade da Assembleia Nacional de “revogar osdecretos ou disposições do Conselho de Ministros (...) ou osacordos ou disposições dos órgãos locais do Poder Popularque violem a Constituição, as leis, os decretos-leis, decretose demais disposições ditadas por um órgão de superiorhierarquia ou afetem os interesses gerais do país”, mas destavez, estabelece-se a causa: quando contradigam a Constitui-

ção ou as leis, a sua promoção compete ao Conselho deEstado, às comissões (permanentes ou temporárias) daAssembleia Nacional e aos deputados.

O controle de constitucionalidade das leis fica, no Regu-lamento de 1996, reduzido ao controle prévio que realiza aComissão de Assuntos Constitucionais e Jurídicos da AssembleiaNacional. É significativo que nunca tenha sido declaradainconstitucional nenhuma disposição jurídica de alcance geral, oque colocou alguns constitucionalistas diante de um dilema: ounas disposições jurídicas de alcance geral ditadas desde 1977 atéa atualidade sempre se respeitou a Constituição; ou o controle deconstitucionalidade das disposições jurídicas de alcance geral éineficaz. A julgar pelo tratamento teórico e pela duvidosaconstitucionalidade propalada por algumas disposições jurídicas,os constitucionalistas têm preferido essa última opção. Do pontode vista teórico, os estudos apontam para a necessidade deaperfeiçoar os meios de exercer o controle de constitucionalidadedas leis. As propostas têm ido das que sugerem potencializar ofuncionamento dos meios existentes com alguns retoques 49 atéas mais radicais, que propõem a criação de um Tribunal Consti-tucional como instituição especializada.50

As propostas partem da constatação de possíveisviolações à Constituição derivadas de algumas disposiçõesjurídicas como as seguintes:51

1) O Decreto-Lei nº 50, de 1982, que reconheceu umaforma de propriedade não prevista na Constituição, “a proprieda-de das empresas mistas”, reafirmada por seu reconhecimentono Código Civil, e autorizou as inversões estrangeiras, quetampouco tinham fundamento na Constituição.52

49 Por exemplo,FERNÁNDEZ BULTÉ,Julio. Los modelosde control constitu-cional y la perspec-tiva de Cuba hoy, emEl otro Derecho, v. 6,nº 2, 1994, p. 13-27,e FERNÁNDEZPÉREZ SERAFIN, S.Cuba y el controlconstitucional em elestado socialista dederecho, em El otroDerecho, v. 6, nº2,1994, p. 29-44.50 Essa propostacorresponde aMARIÑO CAS-TELLANOS, Ángel,R. El recurso deamparo y el tribunalconstitucional cu-bano: necesidad yproyecto em El otroDerecho, v. 6, nº2,1994, p. 45-63.51 Uma lista de dispo-sições jurídicas deduvidosa constitucio-nalidade até 1996pode ser vista emMARIÑO CASTELLA-NOS, Ángel, R. Elcontrol Constitucio-nal en Cuba. Tese dedoutorado, Santiagode Cuba, 1996, (iné-dita).52 FERNÁNDEZ ES-TRADA, Julio A, eGUANCHE, Julio C. Seacata pero... secumple. Constitución,

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2) A reforma constitucional de 1992, que afetou cercada metade do Texto Constitucional, incluindo “direitos edeveres reconhecidos na Constituição,”53 caso em que acláusula de reforma constitucional exige que a lei de reformadeve ser ratificada em um referendo popular.

3) A recente Lei nº 107, de 2009, que criou um novoórgão estatal – a Controladoria-Geral da República – e atribuiuà Assembleia Nacional a faculdade de eleger os seus dirigen-tes, o que parece entrar em conflito com a previsão constitu-cional de que a Assembleia Nacional só tem as atribuiçõesconferidas pela Constituição e com a cláusula de reformaconstitucional que exige que, para lhe conferir novas faculda-des, a Constituição deve ser reformada e a lei de reforma deveser, também, ratificada em referendo popular.

Dos dois últimos exemplos só se poderia afirmar sua“duvidosa constitucionalidade”, já que a Comissão de Assun-tos Constitucionais e Jurídicos da Assembleia Nacional decla-rou-as, em seu parecer, compatíveis com as regulaçõesconstitucionais pertinentes.

II.3 – Qualidade das leis – Algumas ideias para o

futuro – As dificuldades e deficiências assinaladas apontampara dois tipos de problemas diferentes e exigem,consequentemente, alternativas distintas para a sua solução.

As deficiências teóricas na descrição cronológica doprocesso legislativo poderiam ser explicáveis se se levar emconta, de um lado, o caráter essencialmente formalista implí-cito nos enfoques comentados e, de outro, o caráter de manualdas obras em que foram expostas. Mas, em ambos os casos,as consequências podem ser negativas. No primeiro, porquese leva em conta somente o aspecto externo, formalizado epúblico do processo legislativo, ocultando-se a parte maisimportante do processo, constituída pelos fatores ideológicose os princípios de política legislativa subjacentes, a gênese dalei, suas causas, os objetivos que se pretende conseguir, osacordos prévios à formalização do projeto, os interesses queinfluem em seu conteúdo e a hierarquia que finalmente se lhe

República y socialis-mo en Cuba en Temas(Cuba) nº 55, 2008, p.132.53 Um quadro com-parativo dos artigosna versão originalde 1976 e a versãoreformada de 1992podem-se ver naRevista Cuadernosde Nuestra Améri-ca, v. X,nº 21, 1993,p. 40-53.

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atribua, o possível caráter simbólico, exploratório ou experi-mental da lei e a intervenção (ou exclusão) de diferentes atoressociais em sua gênese. Deixa oculto, enfim, o caráter dinâmi-co do processo legislativo, que em muitos casos se desenvol-ve pelo método de tentativa e erro – uma lei má pode sersubstituída, pela própria autoridade que a ditou, com base emseus defeitos e consequências negativas.

O segundo aspecto, o caráter de manual das obras emque se expõe a teoria do ato normativo, tem uma importânciadecisiva na possível compreensão real do processo legislativo.Em Cuba, o manual é o veículo privilegiado, por meio do qualse transmitem os conhecimentos aos futuros juristas; portan-to, o que nele se expõe, por sua própria finalidade de moldaro pensamento, constitui a cultura jurídica comum dos juristasformados na sua leitura.54 E se a cultura comum, compartilha-da, chega até aí, dificilmente poderia facilitar a execução deum exame como o que está implícito nas fases pré-legislativae pós-legislativa do processo legislativo.

As dificuldades e deficiências dessas colocações teóri-cas poderiam ser resguardadas em alguma medida, se fosseassumida a distinção básica entre a fase pré-legislativa, alegislativa e a pós-legislativa elaborada pelos recentes estudosde teoria da legislação. Não se trata simplesmente de completarcronologicamente o iter legislativo, mas de considerá-lo comoum processo circular no qual a fase legislativa ocupa simples-mente um lugar intermediário, que deve ser estudada em estreitacorrelação com o processo de elaboração de um projeto de leie com a avaliação de seu impacto nas relações sociais.

Por outro lado, essa distinção, como se afirmou, só éaplicável ao processo de produção das leis em sentido formale material e suas qualidades explicativas são limitadas; porisso, uma compreensão profunda do processo de produçãolegislativa do Direito deve se interessar, além disso, peloestudo do processo de criação das demais disposições jurídi-cas de alcance geral de hierarquia inferior àquelas.

Do ponto de vista teórico poderia orientar o processoa tese de que a legislação é um meio para conseguir fins sociais

54 Sobre o lugar dosmanuais na literaturajurídica cubana podever-se CARRILLOGARCÍA, Yoel ePAVÓ ACOSTA, Ro-lando. Un punto devista sobre lasinvestigaciones jurí-dicas en Cuba, emRevista de Derechoy Ciencias políticasde la UniversidadPontifícia Boliva-riana de Colombia,nº 107, 2007, p. 405-485.

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que beneficiem toda a sociedade. Em consequência, qualquerlei deveria ser justificada do ponto de vista sociológico eaxiológico e da perspectiva de seus destinatários. Essa justi-ficação, que consiste em sua capacidade para alcançar osobjetivos que levaram à sua adoção, só é possível pelaexecução de estudos e investigações profundas emultidisciplinares, cujos resultados garantam um nível ade-quado de efetividade e eficácia social.

Do ponto de vista legislativo, institucional, as possíveisalternativas de solução devem ser cuidadosamente pondera-das, mas se poderia adotar como princípio o seguinte: qual-quer que seja a alternativa mais conveniente, para a soluçãodas deficiências requer-se uma mudança de atitude, além deuma mudança nas regulações vigentes.

Antes de propor alguma solução no âmbito normativo,é preciso insistir em três aspectos que já foram indiretamenteassinalados. O primeiro é que a norma vigente no Regulamentoda Assembleia Nacional, de 1996, só é aplicável aos projetos delei. Todavia, pelas características do regime político e dadinâmica legislativa, as leis não ocupam um lugar central nadinâmica do ordenamento jurídico, e sim os decretos-leis, quenão estão sujeitos ao processo legislativo previsto no ditoregulamento. A dificuldade se agrava pelo fato de que naConstituição não se estabelece a competência material dosdiferentes “legisladores”, de maneira que as relações sociais,sem considerar sua importância, transcendência ou hierarquia,podem ser reguladas indistintamente mediante uma lei, umdecreto-lei ou qualquer outra disposição de hierarquia normativainferior. A diferença se prende a que, para regulá-las medianteuma lei, é preciso recorrer ao iter legislativo previsto noRegulamento, mas não é preciso segui-lo se forem reguladosmediante um decreto-lei ou outra disposição jurídica inferior.

Embora limitada às leis, a regulação vigente estabelecede maneira deficiente a fase pré-legislativa e não regula a fasepós-legislativa, rompendo com isso o caráter sistêmico ecircular do processo legislativo e impondo a quem exerce ainiciativa legislativa a “obrigação” de começar sempre desde

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o princípio, embora na prática suceda geralmente o contrário:a modificação, revogação ou substituição das leis se funda-menta normalmente “nos resultados obtidos da experiência desua aplicação”.

Por outro lado, o caráter regulamentador das normasimpede a sua aplicação mais além dos projetos de lei e subtraido processo legislativo as disposições jurídicas de alcancegeral ditadas por outros órgãos do Estado.

O diagnóstico anterior permite fazer as seguintespropostas concretas:

Primeira – Do ponto de vista metodológico, seriaconveniente desenhar o processo legislativo em forma circu-lar, de maneira que comece com a análise das relações sociaisque devem ser reguladas, suas características, tendências ecausas, e contenha o desenho e a apresentação da disposiçãojurídica por meio da qual se propõe regulá-las (após oesgotamento de outras possíveis vias de solução relacionadascom o Direito vigente e com sua prática). Depois de aprovadae posta em vigor tal disposição jurídica, seriam avaliados osresultados obtidos de sua vigência, que, se negativos, pode-riam originar a continuidade do processo legislativo no qual sedeterminasse quais medidas se deveria adotar para reforçarsua eficácia e, no limite das possibilidades, propor sua reformaou revogação.

Segunda – Do ponto de vista normativo seria conve-niente a regulação do processo legislativo segundo os princí-pios seguintes:

1 – A aprovação da regulação, para que ela tenha ummaior âmbito de aplicação, mediante uma lei que torneobrigatório seu cumprimento por todas as autoridades com-petentes para ditar disposições jurídicas de alcance geral e poraquelas que, mesmo não tendo essa competência, podemexercer a iniciativa legislativa.

2 – A imposição de uma dupla responsabilidade aoórgão do Estado que propõe a modificação do Direito vigente

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ou a introdução de novas regulações no ordenamento jurídico:por um lado, a de executar os estudos multidisciplinares e asinvestigações prévias que garantam a efetividade e a eficáciasocial, a segurança jurídica e sua harmonia com o ordenamentojurídico, além de apresentar os resultados à AssembleiaNacional; por outro lado, a de avaliar periodicamente adisposição jurídica do ponto de vista dos resultados obtidoscom sua vigência e as medidas adotadas para reforçá-la.

3 – A definição do âmbito de competência material dosórgãos que ditam as disposições jurídicas de alcance geral, demaneira que, de acordo com a transcendência, a importânciae a medida em que afetem os direitos e interesses individuais,as relações sociais, o funcionamento dos órgãos do Estado oua relação desses com aquele, possam ser definidas legalmenteque relações sociais devem ser reguladas, mediante qual tipode disposição jurídica, por qual órgão e com que alcance.

4 – O estabelecimento da obrigação de elaborar bases,a serem aprovadas pela Assembleia Nacional quando propos-tas pelos que têm a faculdade de exercer a iniciativa legislativaou pelos diferentes “legisladores”, para a modificação de leisbásicas do ordenamento jurídico, ou de elaborá-las a própriaAssembleia Nacional, no uso da faculdade atribuída peloRegulamento de 1996.

Terceira – Do ponto de vista institucional tal leideveria:

1 – Atribuir a um dos órgãos superiores do PoderPopular a competência de velar por seu cumprimento, parti-cularmente para avaliar a qualidade do processo legislativo emsuas fases pré-legislativa e pós-legislativa. Essa função pode-ria ser realizada por meio da criação de uma instituiçãoespecializada de caráter permanente e de alcance nacional paradesenhar, coordenar e/ou executar investigações sociojurídicasnecessárias para o constante aperfeiçoamento do ordenamentojurídico.

2 – Incluir expressamente, na obrigação estabelecidapela Constituição, que os órgãos estatais inferiores têm de

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prestar conta aos superiores daquilo que esteja relacionadocom a avaliação ex post das disposições jurídicas de alcancegeral ditadas no período e dos resultados conseguidos comsua aplicação.

3 – Estabelecer institucionalmente a maneira pela qualos resultados das investigações jurídicas realizadas no paíspor diferentes vias possam ser aproveitados no processolegislativo, criando vínculos diretos entre os órgãos do Estadocompetentes para ditar disposições jurídicas de alcance geral,ou para exercer a iniciativa legislativa, e as faculdades deDireito ou centros de investigações jurídicas do país.

Quarta – Como corolário das sugestões anterioresestá a solução do problema do controle da constitucionalidadedas leis, sobre o qual não é necessário fazer uma propostaconcreta, mas sim uma remissão às propostas dos autoresmencionados no corpo do texto e expressar otimismo em quetalvez o processo de “fortalecimento da institucionalidade dopaís”, anunciado em 2008 pelo Presidente do Conselho deEstado e de Ministros, do quais é um exemplo a mencionadaLei da Controladoria-Geral da República, alcance também asolução de alguns problemas que afetam a qualidade das leis.