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Reforma da floresta trava expansão do eucalipto até 2030 Indústria acusa Governo de pôr em causa interesses da economia ao congelar área da espécie mais importante da floresta nacional. Ministro diz que se limitou a cumprir diploma assinado por Passos Coelho Sociedade, 10/11 Reforma da floresta Manuel Carvalho O Ministério da Agricultura encon- trou uma nova base de sustentação para o diploma da reforma da flores- ta que trava o crescimento da área de eucalipto em Portugal: uma resolu- ção do Conselho de Ministros do an- terior Governo, com data de Março de 2015, que ao aprovar a Estratégia Nacional para as Florestas (ENF) de- terminava o congelamento até 2030 dos 812 mil hectares dos povoamen- tos com eucalipto. "Estamos apenas a respeitar e a cumprir a ENF", diz o ministro Luís Capoulas Santos, em resposta ao coro de críticas que, com maior ou menor intensidade, produ- tores florestais e a indústria lançaram a uma das medidas mais polémicas da reforma da floresta, uma série de 12 diplomas cuja discussão pública terminou na última semana. Por comparação, a EFN prevê um cres- cimento de 10% na área de pinheiro bravo, de 33% no montado de sobro e de 40% nos carvalhos. Esta parte do plano do Governo, apoiado pelo Bloco de Esquerda, PCP e associações ecologistas, tem como ponto de partida a necessi- dade de parar a expansão de uma espécie que, no prazo de uma ge- ração, superou a área de pinheiro- bravo e se consolidou como a mais importante da floresta nacional. No futuro, determina o novo regime de arborização e rearborização, as no- vas plantações de eucalipto poderão concretizar-se apenas por substitui- ção de áreas plantadas. O propó- sito é levar a que a espécie deixe de ser cultivada em espaços pouco ajustados à sua produtividade e se concentre nas áreas com condições ecológicas mais apropriadas - no litoral, onde o regime de chuvas é mais generoso. Nessas áreas, a pro- dutividade pode chegar aos 30 me- tros cúbicos por hectare/ano, contra a produtividade média actual que ronda os cinco metros cúbicos. A indústria e alguns dos principais especialistas nas questões da flores- ta nacional discordam desta leitura. Os pareceres entregues pela fileira industrial no âmbito da discussão pública da reforma consideram que o futuro de uma indústria que gerou em 2015 um volume de negócios de 2650 milhões de euros pode estar ameaçado. Mas não fizeram grande alarde público contra a medida. "Vi- vemos numa estranha paz podre", diz Francisco Gomes da Silva, ex- secretário de Estado das Florestas, consultor da Agrogés e professor no Instituto Superior de Agronomia. Os interesses em conflito entre duas das três fileiras mais poderosas da floresta, a do pinho e do eucalipto, impedem que a indústria fale a uma voz. João Ferreira do Amaral, pre- sidente da Associação para a Com- petitividade das Indústrias da Fileira Florestal, reconhece que a entidade que dirige se pronunciou sobre ma- térias de natureza fiscal suscitadas na reforma, ou sobre a certificação, mas não interveio na polémica. A l 6 de Janeiro, na inauguração de um investimento de 125 milhões de euros nas fábricas da Altri, o primeiro-ministro, António Costa, anunciou um fundo de 18 milhões para a melhoria da produtividade do eucalipto (pela primeira vez, o sector tem um investimento exclu- sivo), no que foi interpretado como um gesto compensatório para as pressões do sector. Paulo Fernan- des, presidente da Altri, responderia ainda assim dizendo que a "simples proibição" da plantação de novas áreas de eucalipto, "preferindo que floresça mato, éa todos os títu- los pouco recomendável". Porque, acrescenta João Soveral, consultor, ex-vice-presidente do Instituto de Conservação da Natureza e Flores- tas e assessor da direcção da CAP, o O eucalipto é hoje a espécie mais importante da floresta nacional

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Page 1: Reforma da floresta trava expansão do eucalipto até 2030files.quickcom.pt/Files/Imprensa/2017/02-06/0/5_2585260... · 2017-02-06 · expansão do eucalipto at ... Com a "descoberta"

Reforma da floresta travaexpansão do eucalipto até 2030Indústria acusa Governo de pôr em causa interesses da economia ao congelar área da espécie mais importanteda floresta nacional. Ministro diz que se limitou a cumprir diploma assinado por Passos Coelho Sociedade, 10/11

Reforma da florestaManuel CarvalhoO Ministério da Agricultura encon-trou uma nova base de sustentaçãopara o diploma da reforma da flores-

ta que trava o crescimento da área de

eucalipto em Portugal: uma resolu-

ção do Conselho de Ministros do an-terior Governo, com data de Marçode 2015, que ao aprovar a EstratégiaNacional para as Florestas (ENF) de-terminava o congelamento até 2030dos 812 mil hectares dos povoamen-tos com eucalipto. "Estamos apenasa respeitar e a cumprir a ENF", dizo ministro Luís Capoulas Santos, emresposta ao coro de críticas que, commaior ou menor intensidade, produ-tores florestais e a indústria lançarama uma das medidas mais polémicasda reforma da floresta, uma série de12 diplomas cuja discussão públicaterminou na última semana. Porcomparação, a EFN prevê um cres-cimento de 10% na área de pinheirobravo, de 33% no montado de sobroe de 40% nos carvalhos.

Esta parte do plano do Governo,apoiado pelo Bloco de Esquerda,PCP e associações ecologistas, temcomo ponto de partida a necessi-dade de parar a expansão de umaespécie que, no prazo de uma ge-ração, superou a área de pinheiro-bravo e se consolidou como a maisimportante da floresta nacional. Nofuturo, determina o novo regime de

arborização e rearborização, as no-vas plantações de eucalipto poderãoconcretizar-se apenas por substitui-

ção de áreas já plantadas. O propó-sito é levar a que a espécie deixede ser cultivada em espaços poucoajustados à sua produtividade e se

concentre nas áreas com condiçõesecológicas mais apropriadas - no

litoral, onde o regime de chuvas émais generoso. Nessas áreas, a pro-dutividade pode chegar aos 30 me-tros cúbicos por hectare/ano, contraa produtividade média actual queronda os cinco metros cúbicos.

A indústria e alguns dos principaisespecialistas nas questões da flores-ta nacional discordam desta leitura.Os pareceres entregues pela fileiraindustrial no âmbito da discussão

pública da reforma consideram queo futuro de uma indústria que gerouem 2015 um volume de negócios de2650 milhões de euros pode estarameaçado. Mas não fizeram grandealarde público contra a medida. "Vi-vemos numa estranha paz podre",diz Francisco Gomes da Silva, ex-secretário de Estado das Florestas,consultor da Agrogés e professor noInstituto Superior de Agronomia. Os

interesses em conflito entre duasdas três fileiras mais poderosas da

floresta, a do pinho e do eucalipto,impedem que a indústria fale a umasó voz. João Ferreira do Amaral, pre-sidente da Associação para a Com-

petitividade das Indústrias da FileiraFlorestal, reconhece que a entidade

que dirige se pronunciou sobre ma-térias de natureza fiscal suscitadas nareforma, ou sobre a certificação, masnão interveio na polémica.

A l 6de Janeiro, na inauguraçãode um investimento de 125 milhõesde euros nas fábricas da Altri, o

primeiro-ministro, António Costa,anunciou um fundo de 18 milhões

para a melhoria da produtividadedo eucalipto (pela primeira vez, osector tem um investimento exclu-

sivo), no que foi interpretado comoum gesto compensatório para as

pressões do sector. Paulo Fernan-des, presidente da Altri, responderiaainda assim dizendo que a "simplesproibição" da plantação de novasáreas de eucalipto, "preferindo queaí floresça mato, é a todos os títu-los pouco recomendável". Porque,acrescenta João Soveral, consultor,ex-vice-presidente do Instituto de

Conservação da Natureza e Flores-tas e assessor da direcção da CAP, o

O eucalipto é hoje a espécie mais importante da floresta nacional

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que está em causa são medidas to-madas "de forma irresponsável quevão ter consequências económicasdesastrosas" (Soveral faz estas de-

clarações a título individual).Para os ambientalistas, esta aca-

ba por ser uma das boas notícias dareforma. "Não há dúvidas, o euca-lipto passa a ser uma cultura condi-cionada, como a da vinha", diz João

Branco, presidente da Quercus. Essa

limitação, acredita, há-de compensara prazo a "expansão descontroladada espécie nos últimos anos", cujasconsequências se verificam no "for-te recuo da área do pinhal" (263 milhectares entre 1995 e 2010). Resta,no entanto, saber como é que esse"condicionamento" vai influenciar a

produção de madeira para a indús-tria. Hoje, apesar da enorme expan-são da cultura, a fileira da pasta e do

papel ainda tem de importar 22% damadeira que consome. Uma maiordependência de matérias-primas doexterior pode, assim, ser um travão

para investimentos no futuro, comoPaulo Fernandes reconheceu frenteao primeiro-ministro.Mercado de licençasA resposta para este receio está naconvicção de que as alterações legis-lativas propostas (o novo regime de

plantações terá de passar no Parla-mento) não vão provocar uma redu-

ção da área e, pelo contrário, contri-buirão para um reforço de produçãoda madeira. Para o efeito, o ministro

Capoulas Santos admite que seja cria-do um mercado de licenças de plan-tação, que permitiria, por exemplo,que um produtor de uma zona poucoprodutiva do interior arrancasse umeucaliptal velho e vendesse o seu di-reito de replantar a um produtor dodistrito de Aveiro. Mas, de momento,a parte regulamentar deste mercadoestá ainda por desenvolver, reconhe-ce Capoulas Santos.

Proscrito pelos ambientalistas e

pelos partidos mais à esquerda, ado-rado pelos proprietários devido à suarentabilidade e rapidez no retornodo investimento, o eucalipto prome-te continuar a ser o principal foco de

polémica na discussão sobre a "refor-ma da floresta". O diploma dedicadoà arborização e rearborização seráfacilmente aprovado com os votos do

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PS, do PCP e do Bloco. Mas será nessafase da discussão que os interesses da

indústria, até agora exercidos sob a

discrição dos bastidores, se vão fazersentir. Com a "descoberta" dos objec-tivos da ENF que ninguém contestouem 2015, o ministro da Agricultura e

o Governo encontraram a estratégiapara responder aos ataques da opo-sição e da indústria ao seu alegadoplano contra os interesses da econo-mia nacional.

[email protected]

Não há dúvidas,o eucaliptopassa a seruma culturacondicionada,como a da vinhaJoão BrancoPresidente da Quercus

Sem o bancode terrasvai tudo abaixoLuís Capoulas SantosMinistro da Agricultura À

Seis ãreas críticas da "reforma florestal"

Um processoa passo estugadoComo todas as grandesmudanças legislativas sobre a

floresta, esta reforma fez-se soba pressão dos 160 mil hectaresde floresta dizimados pelo fogono ano passado. Em Agosto de2016, António Costa dizia: "Sedeixarmos passar mais tempo,as condições políticas paraa reforma que é necessáriofazer vão-se perdendo."Formou-se então um grupo detrabalho com representantesde oito ministérios e noConselho de Ministros de 27 deOutubro foram apresentados12 diplomas. Dois foramimediatamente aprovados eos restantes enviados paraconsulta pública. Terminado operíodo, há diplomas que têmde passar pela Assembleia da

República — como o bancode terras, alterações fiscais ounovo regime de arborização.Inicialmente, a reforma estaria

aplicada no final de 2018, maso Governo admite rever esses

prazos.

Em busca doconsenso impossível

Norte do minifúndiocontra o Sul dolatifúndio, pinho contra g

eucalipto, ecologistascontra produtivistas,produção contraindústria. Na

floresta, o consensoé impossível, peloque a reforma divideas opiniões. JoãoSoveral compara-a a

"um canivete suíço" ou a

um "albergue espanhol" quese resume a uma "respostapolítica" de "pendorideológico" com propósitos"estranhos à floresta". A

Forestis, uma federaçãode associações do Nortee Centro, queixa-se deque os proprietários quegerem 98% da floresta

foram esquecidos em detrimentode uma estratégia de "comandoe controlo" do poder central.Francisco Gomes da Silva louva a

"intenção", mas censura os seusprincipais pilares. Os ecologistasaplaudem, no essencial, e o

presidente da União da FlorestaMediterrânica, António GonçalvesFerreira, diz que 2017 será "o anodo princípio do fim da floresta".

Cadastroe banco de terrasUma boa parte da floresta éum buraco negro. CapoulasSantos acredita que haja ummilhão de propriedades semdono conhecido. Cadastrar a

propriedade é um dos pilares dareforma. Os donos têm dois anos

para registar gratuitamente assuas propriedades (o Governoadmite alargar este prazo). As

que ficarem sem dono conhecidoentrarão para um banco deterras (terrenos do Estado terãoo mesmo destino), que depoisas poderá arrendar a sociedadesflorestais. Ao fim de 15 anos, se osdonos não aparecerem as terraspassam para o Estado. Há quemduvide da eficácia destes planos.João Branco, da Quercus, diz

que revela o desconhecimento' do legislador sobre o

mundo rural português.E o PCP acusa o Governode pretender "encontrarum bode expiatório para

os incêndios florestais,aliviando-o de responderàs suas causas reais e,simultaneamente, justificar

a sua expropriação a favor doEstado e mesmo de interesses

privados". A passagemdeste diploma no Parlamento é

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incerta. O que pode ameaçar "a

arquitectura da reforma", avisa

Capoulas Santos. "Sem o bancode terras vai tudo abaixo."

Mais poderàs câmarasCom a reforma, as câmaras vão

passara emitir um parecer

"vinculativo e obrigatório"para todas as plantações no

seu território. Este reforçode competências tornou-seo segundo principal foco decontestação aos planos doGoverno. "Passaremos a ter300 florestas, tantas quantosos concelhos portugueses",escreveu António GonçalvesFerreira, num artigo no Expresso."Podemos assistir a municípiosque, por exemplo, se declarem'livres de eucaliptos'", nota JoãoSoveral. "As autarquias não têmnenhuma competência técnica aonível florestal", repara FranciscoGomes da Silva. A favor damedida está a Quercus. "Se ascâmaras têm competências aonível do plano da defesa contraos incêndios, não faz sentido quenão tenham uma palavra a darsobre os povoamentos florestais."

Capoulas Santos garante que há250 autarquias com gabinetestécnicos florestais operacionais eas suas decisões sobre a plantaçãonão se farão no vazio: os Planos

Regionais de OrdenamentoFlorestal (PROF), em revisão, vãoter de ser incorporados nos planosdirectores municipais, o quegarante a ligação entre a políticaflorestal nacional e as decisões à

escala local.

Sempre o dramados incêndiosA mola impulsionadora dareforma foi a dimensão do fogo nafloresta em 2016. As exploraçõesao abandono são um perigo, dizo Governo. Vai ser necessáriodesenvolver estratégias de fogocontrolado, acrescenta. A criaçãode uma rede de centrais debiomassa impulsionará a limpezadas matas, acredita. Mesmo que

a bondade destas intençõesseja reconhecida, o impacte dareforma na protecção da florestaé considerado por muitos comoirrelevante. "O foco está errado",diz João Soveral, para quem o

problema está na ocupação doterritório e nos impactes dasactividades humanas que fazem

com que a maioria esmagadorados fogos não tenha origem nafloresta. E, para lá dos impactesda prevenção, há uma críticageneralizada ao papel reservadoaos bombeiros. "É um crimemanter os bombeiros no centrodo combate aos incêndios",nota Francisco Gomes da Silva.A este propósito, a reforma éomissa. Haverá 15 milhões deeuros por ano para as brigadasde sapadores florestais, o

que, para as associações, éinsuficiente.

Recuperara área perdidaA recuperação da área dafloresta concentra algumasdas prioridades da reforma— Portugal é o único país da

Europa que perdeu área florestal,contando hoje com menos 255mil hectares do que em 1995.Para o efeito, o Governo contacom 500 milhões de euros defundos europeus e 100 milhõesdo Fundo Florestal Permanente,até 2020. Mas estão igualmenteprevistos incentivos fiscais

para sociedades de gestãoflorestal que reunam sob a

mesma administração pequenaspropriedades. O banco de terraspode a locar explorações paraeste fim e as ZIF, associaçõesde produtores, podemconverter-se em sociedades oucooperativas para beneficiardeste regime. De fora ficam as

grandes sociedades que geremgrandes explorações. Porquê?"Os recursos são escassos e oEstado tem de os concentrar emmedidas estruturais que tendama reduzir o peso do minifúndio",explica o ministro CapoulasSantos.