reforço geral de literatura portuguesa para enade
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Material de reforço para Enade 2011
Literatura Portuguesa
1- Bocage
Manuel Maria Barbosa de Bocage (1765-1805)
Bocage nasceu em Setúbal, Portugal. Teve uma vida cheia de aventuras e
boêmia, entre bares e recitais poéticos. Pertenceu à Nova Arcádia na qual era conhecido
pelo pseudônimo de Elmano Sadino. Contudo, era um rebelde e logo abandonou a
Árcadia, cujo estilo atacou. Escreveu poemas satíricos que chegaram a levá-lo preso.
Faleceu pobre e doente.
As suas obras tiveram várias edições ainda em vida : Rimas, tomo I (1791),
Rimas, tomo II (1799) e Rimas, tomo III (1804). Em 1811 foram publicadas as Obras
Completas no Rio de Janeiro. Ficaram famosos os seus Sonetos, os seus Epigramas e os
seus Apólogos.
Sua obra pode ser dividida da seguinte maneira:
Poesia erótico- satírica: linguagem obscena e agressiva
Poesia lírica:
1ª fase: obediência aos clichês árcades
2ª fase: dissidência com o Arcadismo e aproximação do Romantismo
Entre os temas mais explorados podemos destacar: o amor, a morte, o destino, a
natureza e o conflito entre a razão e o sentimento.
É considerado um pré-romântico.
Poema satírico
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir* num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
assistir- no sentido de morar
pachorrento- cheio de pachorra, sem pressa, calmo.
(BOCAGE. Sonetos e outros poemas. São Paulo:FTD, 1994, p.94)
Podemos observar nesses versos como o poeta confessa sua vida boêmia, seu espírito
inquieto,cheio de prazeres e um certo repúdio à religião.
Era considerado um homem bonito.
Poema lírico- 1a fase
Ó tranças, de que Amor prisão me tece,
Ó mãos de neve, que regeis meu fado!
Ó Tesouro! ó mistério! ó par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!
Ó ledos olhos, cuja luz parece
Tênue raio do sol! Ó gesto amado,
De rosas e açucenas semeado
Por quem morrera esta alma, se pudesse!
Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!
Ó perfeições! Ó dons encantadores!
De quem sois?... Sois de Vênus? –
É mentira; Sóis de Marília, sois de meus amores.
(BOCAGE. Sonetos e outros poemas. São Paulo:FTD, 1994, p.25)
Alígero- que tem asas, é veloz
Ledo- que revela ou sente felicidade, alegre
Açucenas- flores
Nesse soneto, destacamos as seguintes características árcades:
Pastoralismo: a amada é uma pastora, Marília. Referências à mitologia greco-latina:
“Vênus”,”Júpiter”.
Há a busca do equilíbrio e da perfeição através do uso do soneto e da descrição da bela
mulher: “Ó perfeições! Ó dons encantadores!”
Poema lírico- 2a fase- Pré-romântico
Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah!, cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.
De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.
Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.
Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos.
Saiba morrer o que viver não soube.
(BOCAGE. Sonetos e outros poemas. São Paulo:FTD, 1994, p.90)
Lida: labuta, trabalho, no sentido de vida
Falaz: que ilude
Nesse soneto, ainda de concepções clássicas, podemos destacar o pré-
romantismo de Bocage. O uso da razão e do universalismo dão lugar à emoção, ao
individualismo: ―meu ser‖, ―em mim‖
No final da vida, eu-lírico demonstra extremo sofrimento, arrependido da vida
insana que teve e roga por morrer em condições melhores. Temas românticos como a
morte e a religião são desenvolvidos.
Características do Arcadismo( Neoclassicismo)
Segue-se o conceito aristotélico de arte ( A arte como imitação da Natureza)
Racionalismo
Busca do equilíbrio e da perfeição
Temas bucólicos, ligados à natureza e a tranqüilidade rural
Temas clássicos, considerados clichês árcades:
Fugere urbem- ―fuga da cidade‖: Só existe felicidade no campo.
Aurea medioritas- ―equilíbrio do ouro‖:: Espera-se uma vida simples
Locus amoenus-― lugar tranqüilo: Onde os namorados se encontram
Inutilia truncat ―corte do inútil‖: Fora todos os excessos barrocos da linguagem.
Pastoralismo- os poetas fingem-se de pastores . Suas amadas são pastoras, para isso usam
pseudônimos latinos: Marília, Elmano...
2- Fernando Pessoa
Fernando Antônio Nogueira Pessoa (1888-1935), considerado por muitos como
o maior poeta português, nasceu em Lisboa, mas, após o falecimento de seu pai, mudou-
se com a mãe e o padrasto para Durban, África do Sul, onde passou sua infância e parte
da adolescência. Frequentou várias escolas, recebendo uma educação inglesa. Regressou
a Portugal em 1905 fixando-se em Lisboa, onde iniciou uma intensa atividade literária.
Esforçou-se por renovar a literatura portuguesa através da criação da revista Orpheu,
veículo de novas idéias e novas estéticas. Colaborou em várias revistas e, em 1934,
ganhou segundo lugar do concurso literário promovido pelo Secretariado de
Propaganda Nacional, categoria B, com a obra Mensagem, que publicou no mesmo ano.
Faleceu em 1935,com 47 anos. A maior parte de suas obras foi publicada após sua
morte.
( fonte: Projecto Vercialhttp://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/pessoa.htm)
Para termos a dimensão do impacto da obra pessoana a Literatura Portuguesa,
basta dizer que esta pode ser dividida em três grandes blocos:
1-Antes de Camões
2- Após Camões
3- Após Fernando Pessoa
Assim, a produção literária de Fernando Pessoa é riquíssima e redimensionou a
cultura portuguesa. Ele incorporou as formas tradicionais da lírica portuguesa e
conseguiu ultrapassá-las de forma extremamente criativa. Participou inicialmente do
Saudosismo (movimento que visava resgatar as tradições portuguesas), superou-o e
difundiu outras tendências vanguardistas como o Paulismo, Interseccionismo e
Sensacionismo.
Em sua poesia experimental, criou diversas ―personalidades poéticas‖,
―máscaras‖, como personagens em uma peça teatral, os chamados heterônimos, cada um
com seu estilo e personalidade. Por isso também é considerado um grande poeta
dramático.
O próprio autor nos apresenta sua obra dividida em poesia ortônima, em que
assina com seu próprio nome, Fernando Pessoa ―ele mesmo‖ ; e a poesia
heterônima, para qual criou vários heterônimos como os famosos Alberto Caeiro,
Álvaro de Campos, Ricardo Reis e , os menos conhecidos, como Bernardo Soares,
Alexandre Search, Antônio Mora, C Pacheco e Vicente Guedes.
Podemos ainda observar na obra pessoana influências do realismo expressionista
de Cesário Verde, da dor existencial de Camilo Pessanha, do Cubismo e do Futurismo,
vanguardas artísticas européias.
Com Pessoa, vários mitos são derrubados e um novo mito surge : o fazer poético.
Há a consciência do poder da palavra poética e uma constante tentativa de
emocionalizar o racional e de racionalizar a emoção, ou seja, um intercâmbio entre o
pensamento e a emoção.
Poesia ortônima- Fernando Pessoa “ ele mesmo”.
Como já dissemos, Fernando Pessoa foi capaz de incorporar a tradição da lírica
portuguesa e superá-la. Assimilou o passado lírico e a ele acrescentou as inquietações
do homem do século XX. Esse aspecto encontra-se nítido em sua poesia ortônima. No
poema Ela canta, pobre ceifeira podemos identificar esse resgate da mais bela lírica ao
estilo dos Cancioneiros medievais e de Camões , assim como um posicionamento
estético que o autor irá sempre reiterar, o fato de que o poema é construído pela razão, e
não pelo sentimento: “ o que em mim sente ,’sta pensando”. Assim, o amor não
costuma ser um tema comum e quando aparece é pouco romântico.
Ela canta, pobre ceifeira1
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
1 Todos os poemas de Fernando Pessoa aqui utilizados encontram-se no livro PESSOA,
Fernando. O Eu Profundo e Outros Eus: Seleção Poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando !
Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção ! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve !
Entrai por mim dentro ! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !
Ceifeira seria uma camponesa que trabalha nos campos. O eu lírico valoriza sua
simplicidade, sua ―inconsciência‖. Há extrema musicalidade, ritmo e a profundidade
de suas reflexões.
O poema a seguir representa muito bem a perspectiva ideológica de Fernando
Pessoa, inclusive na criação de seus heterônimos, a poesia como ficção, como
fingimento e uso da razão.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Observe no trocadilho: finge+dor=fingidor, como a poesia é mera ficção.
Nos versos finais, o eu-lírico valoriza a razão e considera o sentimento, metaforizado
pelo coração, como um brinquedo, um comboio de corda ( um trenzinho).
Como experiência estética, Fernando Pessoa desenvolve poemas a partir das
concepções do Paulismo e do Interseccionismo. O objetivo maior era realmente a
experimentação estética, trabalhar com as palavras de forma lúdica, explorando seus
significados e sons. Veja a seguir as definições para esses termos, retiradas do
Dicionário de Literatura de Jacinto do Prado Coelho (1979), assim como trechos que os
exemplificam:
Paulismo
“O próprio paulismo (termo que deriva do poema que começa «Pauis de roçarem ânsias pela minh' alma
em oiro») é uma invenção de Fernando Pessoa que consiste num refinamento dos processos simbolistas.
Como observou Gaspar Simões, «Pauis» ilustra, bem melhor que a poesia saudosista, os caracteres que
Pessoa atribuíra a esta num artigo d' A Águia: o vago, o complexo, o subtil [...] O estilo paúlico define-
se pela voluntária confusão do subjectivo e do objectivo, pela «associação de ideias desconexas», pelas
frases nominais, exclamativas, pelas aberrações da sintaxe («transparente de Foi, oco de ter-se»), pelo
vocabulário expressivo de tédio, do vazio da alma, do anseio de «outra coisa», um vago «além» («ouro»,
«azul», «Mistério», pelo uso de maiúsculas que traduzem a profundidade espiritual de certas palavras
(«Outros Sinos», «Hora»).
(Coelho, Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA (in Modernismo), 3.ª edição, 2.º volume,
Porto, Figueirinhas, 1979)
Impressões de Crepúsculo
Pauis de roçarem ânsias pela minh'alma em ouro...
Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh'alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!...
Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado
Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado...
Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!
Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
29-03-1913
Paul- pântano
Dobre- o som do sino
Note o tom vago e de mistério que nos relembram o Simbolismo.
Há personificações inusitadas e analogias surpreendentes como ―Silêncio que as folhas
fitam em nós...‖ É um poema de difícil interpretação, assim, é essencial apreciá-lo e não
entendê-lo de imediato.
Interseccionismo
“Processo típico da poesia do Modernismo, paralelo às sobreposições dinâmicas da pintura futurista, e
de que Fernando Pessoa nos deu exemplos acabados nas seis partes de Chuva Oblíqua (in Orpheu n.º 2,
1915) - demonstração brilhante de inteligência estética e de capacidade inovadora. Cruzam-se aí a
paisagem presente e a ausente, o actual e o pretérito, o real e o onírico. Mas Pessoa cedo poria de lado
esta experiência lúdica, dos «arredores da sua sinceridade».”
(Coelho, Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA (in Modernismo), 3.ª edição, 2.º volume,
Porto, Figueirinhas, 1979)
Chuva Oblíqua
I
ATRAVESSA esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
[8-3-1914]
Mensagem
Sugestão: Antes de ler o poema Mensagem por completo, veja o Roteiro de Leitura:
Mensagem de Fernando Pessoa de Carlos Felipe Moisés da Editora Ática, 1996.
Ao falarmos da poesia ortônima de Pessoa, não podemos deixar de lado a
Mensagem, única obra publicada em vida pelo autor em 1934. O livro é composto por
diversos poemas, com estruturas diferenciadas, sem um padrão fixo. Nela encontramos
desde características do saudosismo, como forma de resgatar valores portugueses, até
exemplos de inovação e vanguardismo. Os poemas foram escritos em épocas diferentes
e não estão ordenados cronologicamente. Há, por exemplo, poemas iniciais de 1928 e
outros finais de 1918.
O poeta refere-se a vários episódios da história de Portugal, principalmente à
figura de D. Sebastião, resgatando o mito sebastianista, e às grandes navegações.
Contudo, não é um épico como Os Lusíadas, não é um poema narrativo. Apesar
de se referir a Portugal, os poemas de a Mensagem correspondem a toda humanidade,
a todos nós. É um livro por vezes misterioso e bastante complexo, mas sobretudo
fascinante.
Mito sebastianista- D. Sebastião , com apenas 24 anos, desapareceu na batalha de
Alcácer-Quibir em 1578, na África. Em 1580, Portugal cai sob o domínio espanhol.
Alguns anos depois, o humilde sapateiro e poeta popular Gonçalo Eanes Bandarra
compôs diversas trovas que profetizavam a volta de D. Sebastião. Eis a origem do mito
sebastianista, o rei, como um messias, voltaria para restituir a Portugal as glórias
passadas. D. Sebastião passou a ser conhecido como o Desejado ou o Encoberto.
Trecho do poema Mensagem
QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Nesse poema, temos a voz de D. Sebastião. Os feitos do rei são vangloriados, assim
como sua a coragem e a audácia. Não haveria conquistas se o homem se contentasse em
esperar pelo destino, ao invés de inventá-lo.
Poesia Heterônima
No livro Alguma Prosa de Fernando Pessoa, editora Nova Fronteira,
encontramos o texto ― Gênese e justificação da heterôminia‖ (Anexo) , em que o autor
nos dá mais detalhes sobre seus heterônimos.
Há também textos atribuídos a Caeiro, Reis e Campos, em que um poeta analisa a obra
do outro.
Ao criar seus heterônimos, Fernando Pessoa não lhes concebe somente um
estilo, mas uma biografia. Cada heterônimo possui data de nascimento, uma profissão,
uma formação , uma história. Os poetas se conhecem e trocam experiências estéticas
entre si.
Alberto Caeiro
Segundo Fernando Pessoa, Alberto Caeiro nasceu em 16 de abril de 1914. É o
mestre de todos os heterônimos, inclusive do próprio Pessoa, pois divulga a essência do
Sensacionismo. Caeiro é um homem de formação rudimentar que abandonou tudo para
viver no campo como um simples poeta e nada mais. É o mais objetivo de todos e
almejava registrar as sensações, sem a mediação do pensamento. É pagão e anti-
espiritualista.
Para definir o Sensacionismo, que aparece em vários poemas de Fernando
Pessoa e de seus heterônimos, não somente em Caeiro, usaremos as palavras do próprio
Fernando Pessoa:
Sensacionismo
“1- A única realidade da vida é a sensação. A única realidade em arte é a consciência da sensação.
2- Não há filosofia, ética ou estética, mesmo na arte, seja qual for a parcela que delas haja na vida. Na
arte existem apenas sensações e a consciência que dela temos.[...]
3- A arte, na sua definição plena, é a expressão harmônica da nossa consciência das sensações, ou seja,
as nossas sensações devem ser expressas de tal modo que criem um objeto que seja uma sensação para
os outros. [...]
4- Os três princípios da arte são: 1) cada sensação deve ser plenamente expressa [...]; 2) a sensação
deve ser expressa de tal modo que tenha a capacidade de evocar - como um halo em torno de uma
manifestação central definida - o maior número possível de outras sensações; 3) o todo assim produzido
deve ter a maior parecença possível com um ser organizado, por ser essa a condição da vitalidade.
Chamo a estes três princípios 1) o da Sensação, 2) o da Sugestão, 3) o da Construção.”
(PESSOA, Fernando. Alguma Prosa.Rio de Janeiro: Nova Aguilar, p.37 )
O mais famoso poema de Alberto Caeiro é o Guardador de Rebanhos. Veja a
seguir alguns trechos, nos quais podemos observar os conceitos do Sensacionismo
sendo colocados em prática.
O Guardador de Rebanhos
(1911-1912)
V
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos.
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos.
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando um dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Nesses dois poemas , podemos observar a linguagem simples e objetiva de
Caeiro. Os versos são livres e brancos, sem rimas, como uma poesia em prosa. O sentir
é colocado acima do pensar e a sensação é a essência.
Pelo uso constante de termos da natureza, podemos dizer que Caeiro era um
poeta bucólico
Ricardo Reis
Ricardo Reis nasceu em 19 de setembro de 1887, era médico e recebeu uma educação
clássica. Contrário à proclamação da República, migra para o Brasil. Tinha uma forma
humanística de ver o mundo. Também valoriza as sensações como o mestre Alberto
Caeiro, mas coloca o pensamento como fator inerente à criação artística, ou seja, sem a
razão não é possível criar. Pode ser considerado um poeta neoclássico pois resgata o
espírito da Antigüidade Clássica, contudo prega um paganismo da decadência.
Lídia
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranqüilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
12-6-1914
Esse poema de Ricardo Reis, à primeira vista, parece-nos um poema árcade,
voltado para os clichês do pastorialismo e do locus amoenus.
Contudo, percebe-se a modernidade pela estrutura dos versos e pelo tom de
alienação e desesperança do eu –lírico. Como se dissesse: ―não vale a pena sentir‖
Álvaro de Campos
Campos nasceu em 15 de outubro de 1890, era engenheiro. É o mais moderno,
mais sincero e o mais irreverente. Extrai sua razão de ser de um imenso desespero. Tem
uma primeira fase decadente-simbolista, que pode ser observada no poema Opiário :
É antes do ópio que a minha alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente
Estiolar- enfraquecer, definhar
Possui uma segunda fase, a futurista. É uma fase intensa, de energia explosiva.
Inspira-se na poética reformista do escritor norte-americano Walt Whitman ( 1819-
1892).Os poemas dessa fase são Ode triunfal, Ode marítima, Saudação a Walt
Whitman
A seguir, um trecho de Ode triunfal, no qual a modernidade e as máquinas são
idealizadas. É um poema tipicamente moderno, que rompe com as estruturas
tradicionais, utilizando inclusive onomatopéias:
ODE TRIUNFAL À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
A terceira fase de Álvaro de Campos é mais pessoal. É bastante agressiva,
expressa revolta contra si e contra os outros. Há uma sede de libertação total. São
poemas intensos com os quais muitas gerações se identificaram.
Veja a seguir, trechos dos poemas Tabacaria, Poema em linha reta e Lisbon
revisited, de conteúdo intenso, vibrante que conquistaram tantas gerações e só
comprovam que Fernando Pessoa é um dos maiores poetas da Língua Portuguesa:
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
(.....)
15/01/1928
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
(......)
(sem data)
LISBON REVISITED(l923)
NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Para saber mais sobre Fernando Pessoa e o Modernismo em Portugal, consulte os
seguintes sites:
http://www.revista.agulha.nom.br/pessoa.html
http://www.casafernandopessoa.com/
http://www.portalpessoa.org/
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/pessoa.htm
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/literatura/modernismo.htm
3- Eça de Queirós - As cidades e as serras
José Maria Eça de Queirós (1845-1900) nasceu na Póvoa de Varzim e faleceu em
Paris. Estudou Direito na Universidade de Coimbra, tornando-se amigo de Antero de
Quental, entre outros. Participou nas Conferências do Cassino e é um dos artistas da
Geração de 70. Foi nomeado cônsul, tendo viajado pelo Egito, Cuba, Londres e Paris.
Das suas obras, destacam-se Uma campanha alegre (1871), O crime do padre Amaro
(1875-1876), O primo Basílio (1878), A relíquia (1887), Os Maias (1888), A ilustre
casa de Ramires(1900), A correspondência de Fradique Mendes (1900), A cidade e as
serras (1901- postumamente), Contos (1902) e Prosas Bárbaras (1903). Traduziu o
romance de Rider Haggard, As minas de Salomão. É considerado um dos maiores
romancistas portugueses do século XIX.
Seu estilo é marcado pela crítica e pela ironia.
fonte: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/queiros.htm
Vidas lusófonas : http://www.vidaslusofonas.pt/eca_de_queiros.htm
Fundação Eça de Queirós : http://www.feq.pt/eca_de_queiroz.html
Segundo Benjamim Abdala Júnior, a obra de Eça e Queirós pode ser dividida em 3
fases:
1ª fase- Neorromântica, composta de algumas notas marginais.
2ª fase- Realista –naturalista, em que se destacam O crime do padre Amaro, O primo
Basílio e Os Maias
3ª fase- Afastamento do Naturalismo, com destaque para A ilustre casa de Ramires e A
Cidades e as Serras. Interessante notar que o romancista insere uma certa ―fantasia‖,
como fica evidente nessa sua última obra, em que Jacinto dispõe de excêntricas
modernidades.
Quanto a essa última fase, Abdala Júnior completa:
―Não temos mais o ceticismo irônico dos romances naturalistas, nem mesmo a insatisfação
melancólica das narrativas da primeira fase. Ao invés do pessimismo problemático, afirma-se o
otimismo fácil, que deixaria satisfeito qualquer político da monarquia constitucional portuguesa,
que o escritor anteriormente tanto criticara.( ABDALA, JR,1985, P.114‖
A Cidade e as Serras foi publicado após a morte de Eça de Queirós. Seu foco
narrativo é interessante, o narrador em primeira pessoa não é o protagonista, é o que
chamamos de narrador-testemunha. O narrador José Fernandes conta as peripécias e
atribulações de Jacinto de Tormes, fidalgo português nascido em Paris:
―Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como há sete anos, neste velho Paris...
Mas eu não me arredava da mesa, no desejo de completar a minha iniciação:
–Oh Jacinto, para que servem todos estes instrumentozinhos? Houve já aí um
desavergonhado que me picou. Parecem perversos... São úteis?
Jacinto esboçou, com languidez, um gesto que os sublimava.–Providenciais,meu filho,
absolutamente providenciais, pela simplificação que dão ao trabalho!
Assim... E apontou. Este arrancava as penas velhas; o outro numerava rapidamente as
páginas de um manuscrito; aqueloutro, além, raspava emendas...(QUEIRÓS,2009, P.28)‖
Observe que a narração é em primeira pessoa, mas o protagonista da história é
Jacinto.,um milionário e um homem culto, que se cercava de luxo e de inúmeros
amigos influentes e superficiais.
―No 202, todas as manhãs, às nove horas, depois do meu chocolate e ainda em chinelas,
penetrava no quarto de Jacinto. Encontrava o meu amigo banhado, barbeado, friccionado,
envolto num roupão branco de pêlo de cabra do Tibete, diante da sua mesa de toilette, toda de
cristal, (por causa dos micróbios) e
atulhada com esses utensílios de tartaruga, marfim, prata, aço e madrepérola que o homem do
século XIX necessita para não desfeiar o conjunto sumptuário da Civilização e manter nela o
seu Tipo. (QUEIRÓS, 2009, P.33)‖
Mas sua vida era entediante, sem graça. Nada lhe dava prazer. Certo dia
precisou viajar para Portugal para reformar o cemitério de seus antepassados na
propriedade rural de Tormes, Em um primeiro momento, Jacinto sente-se perturbado a
ter que viver no campo e abandonar os confortos da civilização. Contudo, aos poucos,
apaixona-se pela vida no interior , casa-se e se torna um homem feliz, sem abandonar
alguns privilégios da civilização.
É uma clara defesa do retorno de Portugal às origens rurais, sem abrir mão das
modernidades. Eça faz as pazes com sua terra natal. Veja esse trecho do último capítulo:
―Em fila começamos a subir para a Serra. A tarde adoçava o seu esplendor de estio.
Uma aragem trazia, como ofertados, perfumes das flores silvestres. As ramagens moviam, com
um aceno de doce acolhimento, as suas folhas vivas e reluzentes. Toda a passarinhada cantava,
num alvoroço de alegria e de louvor. As águas correntes, saltantes, luzidias, despediam um
brilho mais vivo, numa pressa
mais animada. Vidraças distantes de casas amáveis, flamejavam com um fulgor de ouro. A serra
toda se ofertava, na sua beleza eterna e verdadeira. E, sempre adiante da nossa fila, por entre a
verdura, flutuava no ar a bandeira branca, que o Jacintinho não largava, de dentro do seu cesto,
com a haste bem segura na mão.
Era a bandeira do Castelo, afirmara ele.
E na verdade me parecia que, por aqueles caminhos, através da natureza campestre e
mansa,–o meu Príncipe, atrigueirado nas soalheiras e nos ventos da serra, a minha prima
Joaninha, tão doce e risonha mãe, os dois primeiros representantes da sua abençoada tribo, e eu–
, tão longe de amarguradas ilusões e de falsas delícias, trilhando um solo eterno, e de eterna
solidez, com a alma‖. Grifos nossos (QUEIRÓS, 2009, p. 283)
Observe como a serra é descrita em toda sua beleza e plenitude. O Príncipe,
Jacinto, está mais moreno, casado com Joaninha, feliz passeando com seu filho. As ―
amarguradas ilusões e falsas delícias‖ são uma referência à vida que Jacinto tinha junto
à Civilização.
4- José Saramago - Ensaio sobre a cegueira
José Sousa Saramago nasceu na pequena aldeia de Azinhaga em 1922, mas
desde menino viveu com seus pais em Lisboa, mudando constantemente de casas,
vivendo em condições de bastante pobreza. Fez o curso técnico de torneiro mecânico,
profissão que exerceu vários anos. Trabalhou como jornalista em vários jornais, entre
eles o Diário de Notícias, do qual acabou se tornando diretor. Não teve formação
acadêmica e conheceu a literatura por conta própria, explorando bibliotecas, foi um auto
de data.
Sua imaginação foi alimentada pelo cinema e por seus avôs maternos, pessoas
simples, sem estudo e primorosos contadores de histórias.
É um dos escritores portugueses mais lidos e traduzidos no estrangeiro. Em 1991
ganhou o Grande Prêmio APE, com o romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, e o
Prêmio Camões em 1996 por toda a obra. Em 1998, ganhou o prêmio mais importante
para um escritor: o Prêmio Nobel da Literatura.
Foi a primeira vez que um escritor em Língua Portuguesa ganhou esse prêmio.
Saramago tem sido muito lido, estudado e admirado no Brasil. Sua obra
Memorial do Convento já foi diversas vezes solicitada em vestibulares e concursos.
Provavelmente a mais famosa atualmente seja Ensaio sobre a cegueira, que já foi
adaptada para o cinema por Fernando Meireles.
Em geral, Saramago procurou resgatar, através de suas obras, o passado
histórico de Portugal, recontando-o sobre outros prismas. O fluxo narrativo e a
pontuação estranha (sem travessões, sem vírgulas) tornaram-se sua marca registrada.
Além do mais, sua postura crítica, irônica e assumidamente ateia, provou diversas
polêmicas ao longo de sua vida.
Comentaremos brevemente alguns de seus romances, mas nos concentraremos
no mais modelar e que, de certa forma, impulsionou sua carreira: Memorial do
convento.
Vejamos algumas de suas obras, em uma lista bastante extensa:: Terra do
pecado (romance, 1947; 2ª ed. 1997), Os poemas possíveis (poesia, 1966), Manual de
pintura e caligrafia (1977), Objeto quase (1978), Levantado do chão (1980); Que farei
dom este livro? (teatro, 1980), Viagem a Portugal (1981), Memorial do convento
(romance, 1982), O ano da morte de Ricardo Reis (romance, 1984), A jangada de pedra
(romance, 1986), História do cerco de Lisboa (romance, 1989), O evangelho segundo
Jesus cristo (romance, 1991), In nomine Dei (teatro, 1993), Cadernos de Lanzarote
(1994, diário i), Cadernos de Lanzarote (1995, diário ii), Ensaio sobre a cegueira
(1995), O conto da ilha desconhecida(1997), Cadernos de Lanzarote (1996, diário iii),
Cadernos de Lanzarote (1997, Diário iv), Todos os nomes (romance, 1997), Cadernos
de Lanzarote (1998, diário v), A caverna (romance, 2000), O homem duplicado
(romance, 2002), Ensaio sobre a lucidez (romance, 2004), A maior flor do mundo (
literatura infantil, 2001), As intermitências da morte (romance, 2005), Pequenas
memórias (2006), Viagem de elefante(2008), Caim(2009)
O grande escritor faleceu em 18/06/2010 na ilha de Lanzarote, arquipélago das
Canárias, na Espanha, onde morava há anos, em uma espécie de auto-exílio, como
protesto à censura de seu livro Evangelho segundo Jesus Cristo, em 1991.
FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO. Disponível em http://www.josesaramago.org
Entrevista para o Jornal da Globo Disponível em http://youtu.be/4XDmsXWlDqE
Ensaio sobre a Cegueira
Esse romance pode ser incluído em uma nova fase de Saramago, pois não há um cunho
histórico e sim uma reflexão filosófica sobre a condição humana.
O fantástico e o insólito dominam a narrativa, em que as personagens não possuem
nome ( o ―Médico’, ―A Mulher do Médico‖, ―A Rapariga dos óculos escuros‖.
Segundo João Marques Lopes, a ideia de escrever Ensaio sobre a cegueira surgiu
quando o escritor almoçava em um restaurante de Lisboa e não teria como influência,
um fato ocorrido anteriormente, o deslocamento de sua retina, mas sim de uma espécie
de inspiração, pensou em o que aconteceria se todos ficassem cegos.
O enredo se inicia quando um motorista está parado no farol e fica, de repente,
cego. Mas não é uma cegueira comum, é uma ― cegueira branca‖, leitosa. A partir desse
fato, várias pessoas são contaminadas e ficam cegas. São trancafiadas em um velho
hospital, como criminosos. Passam por situações sub-humanas, é a barbárie. Somente A
mulher do médico é capaz de enxergar:
―Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos
lembramos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os
nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram
postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de
cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo,
não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando.‖ (SARAMAGO, 1998,
P.64).‖
Observe como os seres humanos tornam-se animais ou objetos em meio ao caos: ―Sentada, lúcida, a mulher do médico olhava as camas,os vultos sombrios,a palidez fixa de um
rosto, um braço que se moveu a sonhar. Perguntava-se se alguma vez chegaria a cegar como
eles, que razões inexplicáveis a teriam preservado até agora. Num gesto cansado, levou as mãos
à cara para afastar o cabelo, e pensou. Vamos todos cheirar mal. Nesse momento principiaram a
ouvir-se uns suspiros, uns queixumes, uns gritinhos primeiro abafados, sons que pareciam
palavras, que deveriam sê-lo, mas cujo significado se perdia no crescendo que ia transformando
em grito, em ronco, por fim em estertor. Alguém protestou lá no fundo, Porcos, são como os
porcos. Não eram porcos, só um homem cego e uma mulher cega que provavelmente nunca
saberiam um do outro mais do que isso. (SARAMAGO,,1998, p.97-98).‖
É evidente a alegoria à cegueira da humanidade, não vemos o outro, não vemos
os problemas que nos cercam, alienados e perdidos em meio ao caos. A miséria
humana e a presença da escatologia tornam-se evidentes.
Mas não pense que o texto traz uma mensagem pessimista, pelo contrário. É
preciso termos consciência da alienação em que nos encontramos para agirmos,
mobilizar-nos contra ― a falta de humanidade do se humano.‖
O Ensaio sobre a cegueira é a fantasia de um autor que nos faz lembrar "a responsabilidade de
ter olhos quando os outros os perderam". José Saramago nos dá, aqui, uma imagem aterradora e
comovente de tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos
maiores visionários modernos, como Franz Kafka e Elias Canetti. Cada leitor viverá uma
experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago
nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as
tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu: "uma coisa
que não tem nome, essa coisa é o que somos".
Sinopse: http://www.companhiadasletras.com.br/
O filme de Fernando Meireles faz uma leitura interessante, vale a pena vê-lo o
contrastá-lo com a obra de Saramago.
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA (Blindness). Dir. Fernando Meirelles,120 min.
BRASIL/CANADÁ/JAPÃO. 2008.
Elenco: Mark Ruffalo, Julianne Moore, Alice Braga, Gael García Bernal.
Literaturas africanas em Língua Portuguesa
Para saber sobre as literaturas lusófonas, acesse os seguintes sites:
LUSOFONIA: http://lusofonia.com.sapo.pt/. Acessado em 10 jul 2011
REVISTA CRIOULA. Disponível em
http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/index.php. Acessado em 04 abr 2008.
REVISTA VIA ATLÂNTICA:
http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/index.html. Acessado em 10 abr 2008
Moçambique
1- Mia Couto -Terra sonâmbula
Um dos autores que se destacam na atualidade é Mia Couto ( Antônio Emílio Leite
Couto), nascido em Beira, Moçambique em 1955 é considerado por muitos como um
dos melhores de sua geração. Segundo o autor, o apelido ―mia‖ se refere a sua paixão
por gatos. Jornalista e biólogo,possui uma vasta produção de contos e romances, em um
estilo original, envolvente, cheio de neologismos e fatos insólitos, circulando entre o
fantástico e o real. Suas obras têm sido traduzidas em diversas línguas e várias são
publicadas no Brasil.
A seguir uma listagem com algumas de suas obrass: Raiz de Orvalho(1983),
Vozes anoitecidas (1986),Cada Homem é uma Raça (1990), Cronicando (1991), Terra
Sonâmbula (1992), Estórias abensonhadas (1994), A Varanda do Frangipani (1996), O
último voo do flamingo (2000), Um rio chamado tempo,uma casa chamada terra( 2002),
Fio de Missangas (2004), Chuva pasmada(2004),Outro pé da sereia (2006), O beijo da
palavrinha (2008),Venenos de Deus, Remédio do Diabo (2008)
A seguir alguns trechos de Terra sonâmbula, romance que retrata o pós-guerra
em Moçambique, uma terra devastada pela qual pessoas caminham perdidas,
sonâmbulas, em busca de um horizonte. Há dois focos narrativos, primeira e terceira
pessoa.Histórias e personagens se cruzam.
Primeiramente , temos o uso da 3ª pessoa , um narrador onisciente :
―Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam,
focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores
que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza,
esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os
viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.
A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais
deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas bermas apodrecem carros
incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta, apenas os embondeiros contemplam o
mundo a desflorir.
Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se
caminhar fosse seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o
vindo por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a
sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo. (…) (COUTO, 1992, P. 1) ―
Vocabulário:
Bermas: caminhos estreitos
Embondeiros: árvores típicas da região
Nos capítulos em que usa a 3ª pessoa, temos a história do menino Muindiga e o
velho Tuhair, sobreviventes da guerra,perdidos em busca de alimento e um lugar para
dormir. Muidinga encontra uns cadernos os cadernos do sonhador Kindzu, que o
levam a suportar tanta miséria e crueldade.
Assim, quando lemos as narrativas de Kindzu, em forma de diários, temos o uso
da 1ª pessoa. O rapaz vive durante a guerra. relata sua infância, suas aventuras e seus
sonhos.:
―Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o sangue foi enchendo nossos medos. A
guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava
agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saímos, de noite não sonhávamos. O sonho
é o olho da vida. Nós estávamos cegos. Aos poucos, eu sentia a nossa família quebrar-se como
um pote lançado no chão. Ali onde eu sempre tinha encontrado meu refúgio já não restava nada.
Nós estávamos mais pobres que nunca. ( COUTO, 1992, P. 10)‖
Nas narrativas de Kindzu é que encontramos os relatos mais fantásticos, em uma
mistura de religiosidade e crenças africanas. No trecho a seguir, o rapaz conversa com
seu pai morto:
―Meu pai me surgiu no sonho, perguntando:
- Queres sair da Terra?
- Pai, eu já não aguento aqui. Fecho os olhos e só vejo mortos, vejo a morte dos vivos, a morte
dos mortos.
-Se tu saíres terás que me ver a mim: hei-de-te perseguir, vais sofrer para sempre as minhas
visões... ( COUTO, 1992, P. 25)‖
Nessa obra riquíssima, Mia Couto expõe toda a sua habilidade com a
manipulação da linguagem, assim como seu talento para contador de histórias.
Um aspecto que chama atenção nessa obra é a importância dada tanto a leitura
como para a escrita literária, como forma de humanização e veículo para a própria
sobrevivência. É através da leitura que Muindinga consegue sobreviver à miséria, à
fome e a falta de perspectiva. O velho Tuhair não sabe ler , mas não consegue dormir
sem ouvir as histórias de Kindzu.
Já o jovem guerreiro precisa escrever para encontrar um rumo para sua vida, refletir
sobre seu passado e almejar um certo futuro:
―Os cadernos de Kindzu se tinham tornado o único acontecer naquele abrigo. Procurar lenha,
cozinhar as reservas da mala, carregar água: em tudo o rapaz se apressava [...}. ―Os escritos de
Kindzu lhe começam a ocupar a fantasia‖. (COUTO, 1992, p.25- 37).‖
Veja uma entrevista com Mia Couto:. Disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=SzNedHwwPmI.
Filme: Terra Sonâmbula
http://www.youtube.com/watch?v=3zR5TH-YixE
Sinopse:
Sinopse: Duas histórias separadas pela guerra e unidas por um diário. Entre a Guerra Civil e as
histórias de um diário perdido, Muidinga e Tuahir são os heróis deste filme. Muidinga lê
no diário, encontrado ao lado de um cadáver, a história de uma mulher que encerrada
num navio procura o filho. Muidinga convence-se que é o menino procurado no diário.
Vai então ao encontro da mulher, com Tuahir, um velho seco e cheio de histórias que o
trata como filho. A viagem é dura: eles movem-se entre refugiados em estado de delírio.
Para não enlouquecerem, têm-se um ao outro. A estrada por onde caminham, como
sonâmbulos, é mágica: entende os seus desejos e move-os de um lugar a outro, não os
deixando morrer enquanto eles não alcançarem o tão sonhado mar. Os dias são de fuga,
dos guerrilheiros e da fome, as noites são de busca de uma história de aventuras.
Ficha Técnica: Realização: Teresa Prata
Argumento: Teresa Prata (adaptação da obra de Mia Couto)
Produtor: António da Cunha Telles e Pandora da Cunha Telles
Ano: 2007
Gênero: Drama
Duração: 98’
2- Pepetela (Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos) - Mayombe.
Pepetela, de nome próprio Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nasceu em
Angola, na província litoral de Benguela, aos 29 de Outubro de 1941. Descendente de
uma família colonial, os seus pais eram, no entanto, já nascidos em Angola.
Foi em sua cidade natal que Pepetela fez o ensino primário, depois partiu para
Lubango, onde seria possível prosseguir os estudos.No Liceu Diogo Cão, Pepetela
completou o ensino secundário.
Lisboa, em 1958, foi o destino acadêmico que se seguiu, no Instituto Superior
Técnico que o autor freqüentou até 1960 quando ingressou no curso de Engenharia.
Uma vez mais houve a mudança, desta vez para freqüentar o curso de Letras apenas
durante um ano, pois, ainda em 1961, Pepetela fez a opção política que viria a mudar o
rumo da sua vida e a marcar toda a sua obra, tornando-o um narrador de uma história de
Angola que vivenciou. Assim, através de seu espírito intelectual e revolucionário,
assume-se, na maioria de suas obras, como testemunha da história angolana.
Após a sua fuga para o exílio, Pepetela tornou-se militante do MPLA em
1963.Em Argel, licenciou-se em Sociologia.
Já no período de guerra, foi durante muito tempo responsável pela Educação
junto à Frente Leste, considera-se, dessa forma, que o livro As Aventuras de Ngunga
foi escrito nessa altura com a intenção de ser usado para fins educacionais. Em plena
luta armada, apareceram trezentos exemplares mimeografados. O menino Ngunga era
um exemplo a ser seguido, sendo que aprender a ler era também defender a revolução.
Já em Angola, depois da Independência, integrou os quadros do MPLA, sendo
enviado primeiro para Benguela, em 1975, como diretor do Departamento de
Orientação Política do MPLA, mas, perante a situação de guerra, assumiu as funções
militares como Comandante. Durante a invasão sul africana fez o recuo de Benguela,
nessa altura doente, com uma hepatite grave, regressou a Luanda por altura da
independência do país em novembro. Recuperado da doença, deixou as Forças Armadas
Angolanas e foi para o Lubango dar aulas.
Através da leitura de Mayombe, podemos ter um panorama bem realista do
confronto armado que ocorrera. Pepetela regressou a Luanda em outubro de 1976
quando foi nomeado Vice - Ministro da Educação, cargo que exerceu até 1982.
Grande parte da sua produção foi publicada após a independência, como ocorreu
com muitos dos ficcionistas angolanos. Os dias de alta tensão entre o colonizador e o
colonizado são vivenciados pela maioria de seus heróis. Há também o resgate do
tradicional mesclado às questões históricas. O tema comum a todas às suas obras é a
construção da nacionalidade, a formação da nação angolana.
Muana Puó - Romance escrito em 1969 e publicado em 1978. Mayombe - Romance escrito entre 1970 e
1971 e publicado em 1980. As Aventuras de Ngunga - Romance escrito e publicado em 1973. A Corda -
Peça teatral escrita em 1976. A Revolta da Casa dos Ídolos - Peça teatral escrita em 1978 e publicada em
1979. O Cão e os Calus - Romance escrito entre 1978 e 1982 e publicado em 1985. Yaka - Romance
escrito em 1983 e publicado em 1984 no Brasil e em 1985 em Portugal e em Angola. Lueji, o
Nascimento de um Império - Romance escrito entre 1985 e 1988 e publicado em 1989. Luandando -
Crônicas sobre a cidade de Luanda escritas e publicadas em 1990. A Geração da Utopia - Romance que
começou a ser escrito em 1972 e publicado em 1994. A Gloriosa Família, o Tempo dos Flamingos -
Romance publicado em 1997. O Desejo de Kianda - Romance escrito em 1994 e publicado em 1995. A
Parábola do Cágado Velho - Romance. Começou a ser escrito em 1990 e foi publicado em 1997. A
Montanha da Água Lilás, fábula para todas as idades - Romance publicado em 2000. Jaime Bunda, o
agente secreto - Romance publicado em 2002. http://www.vidaslusofonas.pt/pepetela.htm
Trecho- “Pepetela- Romance e utopia na história de Angola” de Rita Chaves
― Organizados contra um inimigo comum e mais poderoso, os guerrilheiros devem vencer
também os fantasmas deixados como herança pelo sistema colonial : o racismo, o tribalismo, o
regionalismo como conflito. O ―tuga‖, como eram chamados os portugueses, já não tem sequer
estatuto de personagem essencial. Como uma espécie de figuração é só uma sombra que corta o
caminho dos guerrilheiros. Embora a situação da guerra colonial seja evidente no texto, o
romance, escrito mesmo nos intervalos do combate por um escritor fisicamente empenhado na
luta, avança no tempo e refere-se a problemas que virão depois. Prevista, a vitória é assumida
como um dado de realidade e essa certeza converte-a numa forma de inexorabilidade que ergue
impasses e registra a necessidade de soluções. A situação aguda da crise não esbate a
consciência de que a vitória significará harmonia; a relativização do alcance dos resultados é
indício da profundidade de visão de quem não hesita em investir na ação. As várias falas dos
narradores, compondo um vivo mosaico de propostas e sensibilidades, sinalizam para a
precariedade da integração que ali se vive. Contra os riscos da desagregação como norma, se
abre uma rede utópica permeada também pelas nuances de um discurso edificante.‖
Trecho do texto: “O romance como documento social” de Carlos Serrano:
―O romance de Pepetela é aqui tomado como um documento social pois, apesar de ficção, ele é
escrito no momento de vivência do autor, onde o escritor, o militante e o cientista social, se
relacionam intimamente para, através desta obra, captarem, uma realidade que faria parte de
uma ―história imediata‖.Este ―olhar de dentro‖ ou ―observação participante‖, procedimento
metodológico tão caro a uma antropologia, podem constituir de certa forma a estratégia
vivenciada pelo autor para explicitar os diversos discursos dos ―narradores‖ (personagens) e
atores sociais, tornando-os sujeitos da história e revelando a consciência de si na luta de
libertação nacional.
Pepetela, ao dar primazia ao ―narrador‖, revela ainda esta dimensão da oralidade, comum às
sociedades africanas, e importante no resgate das suas identidades. Identidade que se constrói
pela memória dos narradores fictícios (personagens e/ou atores e pelo próprio autor).
Convém referir aqui o romance Mayombe, do autor angolano Pepetela, como um modelo de
análise da organização do Combate, que retrata a luta por meio de personagens que vivem a
problemática dos valores e contradições do momento político em questão. Sendo narrado por
diversos militantes, temos deste modo visões múltiplas e pessoais do tempo e do espaço por
aquelas vivenciados. Este romance parece-nos altamente pedagógico pela forma com que nele
se explicitam as contradições existentes dentro desse processo, relacionadas sobretudo à
diversidade cultural e étnica dos elementos que compunham o Exército de Liberação Nacional.
É narrado por uma multiplicidade de pessoas, todas militantes do MPLA, que participaram da
guerrilha em Mayombe, floresta tropical em Cabinda, constituindo a 2ª Região político-militar
do MPLA. O partido está ausente mas ele se faz presente mediante a fala do delegado local. Os
personagens que assumem a narrativa do romance fazem-no sempre na primeira pessoa. Cada
personagem desenvolve uma reflexão autônoma a respeito das suas motivações enquanto
lutadores pela independência, motivações estas que são singulares na medida em que as origens
de cada indivíduo se tornam e se apresentam diferentes.‖
Trecho do romance
―Meu pai era um trabalhador bailundo da Diamang, minha mãe era um kimbundo do Songo. O
meu pai morreu tuberculoso com o trabalho das minas, um ano depois de eu nascer. Nasci na
Lunda no centro do diamante. O meu pai cavou com a picareta a terra virgem, vagões de terra,
que ia ser separada para dela se libertarem os diamantes. Morreu num hospital da companhia,
tuberculoso. O meu pai pegou com as mãos rudes milhares de escudos de diamantes. A nós não
deixou um só, sequer o salário de um mes. O diamante -lhe no peito, chupou-lhe a força,
chupou, até que ele morreu .O brilho do diamante são as lágrimas dos trabalhadores da
Companhia. A dureza do diamante é ilusão : não é mais que gotas de suor esmagadas pelas
toneladas de terra que o cobrem.
Nasci no meio de diamantes sem os ver. Talvez porque nasci no meio de diamantes, ainda
jovem senti atrações pelas gotas do mar imenso, aquelas gotas-diamante que chocam contra o
casco dos navios e saltam para o ar, aos milhares, com o brilho leitoso das lágrimas escondidas.
O mar foi por mim percorrido durante anos, de norte para sul, até a Namíbia, onde o deserto
vem misturar-se com a areia da praia, até ao Gabão e ao Ghana, e ao Senegal, onde o verde das
praias vai amarelecendo, até de novo se confundir com elas na Mauritânia, juntando a África do
Norte à África Austral, no amarelo das suas praias. Marinheiro do Atlântico, e mesmo do Índico
eu fui. Cheguei até a Arábia, e de novo, encontrei as praias amarelas de Moçâmedes e Benguela,
onde cresci. Praias de Benguela, praias da Mauritânia, praias da Arábia, não são as amarelas
praias de todo o Mundo?
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Onde eu nasci, havia homens de todas as línguas vivendo nas casas comuns e miseráveis da
Companhia. Onde eu cresci, no Bairro Benfica, em Benguela, havia homens de todas as línguas,
sofrendo as mesmas amarguras. O primeiro bando a que pertenci tinha mesmo meninos brancos,
e tinha miúdos nascidos de pai umbundo, tchokue, kimbundo, fiote, kuanhama.
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Querem hoje que eu seja tribalista?
De que tribo ? pergunto eu. de que tribo, se eu sou de todas as tribos, não só de Angola, como
de África ? Não falo eu o swahili, não aprendi eu o haussa com um nigeriano ? Qual é a minha
língua, eu, que não dizia uma frase sem empregar palavras de línguas diferentes ? E agora, que
utilizo para falar com os camaradas, para deles ser compreendido ? O português . A que tribo
pertence a língua portuguesa ?
Eu sou o que é posto de lado porque não seguiu o sangue da mãe kimbundo ou o sangue do pai
umbundo. Também Sem Medo, também Teoria, também o Comissário, e tantos outros mais.
A imensidão do mar que nada pode modificar ensinou-me a paciência. O mar une, estreita, o
mar liga. Nós também temos o nosso mar interior, que não é nem o Kuanza, nem o Loje, nem o
Kunene. O nosso mar, feito de gotas-diamante, suores e lágrimas esmagados, o nosso mar é o
brilho da arma bem oleada que faísca no meio da verdura do Mayombe, lançando fulgurões de
diamante ao sol da Lunda. Eu, Muatiânvua, de nome de rei, eu que escolhi a minha rota no meio
dos caminhos do Mundo, eu, ladrão, marinheiro, contrabandista, guerrilheiro, sempre à margem
de tudo ( mas não é a praia uma margem ? ) , eu não preciso de me apoiar numa tribo para
sentir a minha força. a minha força vem da terra que chupou a força de outros homens, a minha
força vem do esforço de puxar o cabo e dar à manivela e de dar murros na mesa duma taberna
situada algures no Mundo, à margem da rota dos transatlânticos que passam, indiferentes, sem
nada compreenderem do que é o brilho-diamante da areia duma praia.‖
Mayombe, p. 138-140
Literatura Francesa
Realismo( Influências sobre Machado de Assis e Eça de Queirós)
1- Gustave Flaubert- Madame Bovary Flaubert foi um dos autores mais importantes do Realismo, influenciado pelas teorias
científicas, pela Revolução Industrial e pela linha filosófica de Augusto Comte, o positivismo.
Ele levou à perfeição o ideal do romance realista de harmonizar a arte e a realidade. Sua obra se
caracteriza pelo cuidado minucioso com a linguagem e pela estrutura do enredo. Influenciou
toda uma geração de escritores, inclusive Eça de Queirós.
Seu romance de estreia foi Madame Bovary, um retrato crítico da hipocrisia da
sociedade burguesa e romântica. A obra foi resultado de cinco anos de um trabalho minucioso.
Em linhas gerais, o enredo gira em torno da história de Emma, uma moça sonhadora que se casa
com um médico provinciano, Charles Bovary. Sua vida é sem graça, ociosa, muito diferente de
seus ideais. O marido é um simplório. Emma sente-se muito infeliz, repugna seu marido e, para
fugir de sua vida medíocre, entrega-se ao adultério. Materialista e inconsequente, gasta o que
não possui e envolve-se em dívidas absurdas.
Atualmente o termo ― bovarismo‖ é utilizado para demonstrar a incapacidade de se lidar
com o mundo real.
Veja a seguir um trecho do texto do professor Antônio Apolinário Lourenço a respeito
dos 150 anos da publicação de Madame Bovary e sua influência na obra de Eça de Queirós:
Concretizaram-se, no ano há pouco terminado, cento e cinquenta anos sobre a publicação em
livro de Madame Bovary, o genial romance de Flaubert. Estranhamente, a efeméride passou
entre nós praticamente despercebida, apesar da enorme influência que essa obra e o seu autor
exerceram sobre a literatura portuguesa, a partir do final do século XIX.
Para Eça de Queirós, em particular, Gustave Flaubert foi permanentemente um mestre e
um modelo. Logo em 1871, quando o futuro autor d’Os Maias apresentou no Casino
Lisbonense a sua conferência sobre o realismo na arte, com um discurso demasiado colado ao
do livro de Proudhon intitulado Du Principe de l’art et de sa destination sociale, os parágrafos
mais originais foram justamente aqueles que dedicou a Madame Bovary. A conferência, como
se sabe, é apenas conhecida pelos relatos da imprensa da época (neste caso, o Diário Popular de
15 06 1871):
Para exemplificar a doutrina do realismo, citou o Sr. Eça de Queirós Madame Bovary, o
célebre livro de Gustave Flaubert, no qual o adultério tantas vezes cantado pelos românticos
como um infortúnio poético que comove perniciosamente a susceptibilidade das almas
cândidas, nos aparece pela primeira vez debaixo da sua forma anatómica, nu, retalhado e
descosido fibra a fibra por um escalpelo implacável. O efeito é surpreendente e terrível.
Constatamos, assim, que foi a leitura de Madame Bovary que fez Eça compreender a
superioridade civilizacional e ética do Realismo sobre o Romantismo. Outros autores, como os
irmãos Goncourt e Émile Zola, em França, sentiram, perante Madame Bovary, um
deslumbramento idêntico ao de Eça. E enquanto Edmond et Jules de Goncourt criavam, com
Germinie Lacerteux, uma espécie de Bovary das classes baixas, Zola procuraria, igualmente a
partir do romance de Flaubert, desenhar o modelo técnico-narrativo do romance naturalista.2
Observe que o tema do adultério já aparecia no Romantismo, mas como um infortúnio, um azar
do destino. Já no Realismo, ele aparece de forma crua, direta.
“Madame Bovary é um romance escrito por Gustave Flaubert que resultou num escândalo ao
ser publicado em 1857. Quando o livro foi lançado, houve na França um grande interesse pelo
romance, pois levou seu autor a julgamento. Madame Bovary é uma obra capital na
literatura do seu tempo, um daqueles livros que dão início a uma época literária.
Tomando propositadamente um tema sem grandeza aparente, Flaubert quis obrigar o
seu talento a enfrentar dificuldades técnicas que o levassem a vencer o romantismo
exacerbado que o dominava. O resultado foi a obra-prima que o leitor tem em mãos e
que Émile Zola descreveu da seguinte maneira: «Quando Madame Bovary apareceu, foi
uma completa revolução literária. Teve-se a impressão de que a fórmula do romance
moderno, esparsa pela obra colossal de Balzac, fora reduzida e claramente enunciada
nas quatrocentas páginas de um único livro. Estava escrito o código da nova arte».‖
Há três versões do filme Madame Bovary: dos diretores Jean Renoir [1933] ,Vincente
Minelli [1949] e Claude Chabrol [1991].
Título Original: Madame Bovary Gênero: Drama Tempo de Duração: 136 minutos
Ano de Lançamento (França): 1991 . Direção: Claude Chabrol.
Elenco: Isabelle Huppert, Jean-François Balmer, Christophe Malavoy, Jean Yanne,
Veja um trecho do filme de Chabrol no vídeo:
http://www.youtube.com/watch?v=LjSENBFJ-Y0&feature=related
Leia um trecho do romance em que Charles Bovary atende a um doente que machucara
a perna, o pai de Emma. É a primeira vez que vê sua futura esposa:
2 LOURENÇO, A.A.Madame Bovary, 150 anos depois Disponível
em:<http://olamtagv.wordpress.com/textos-seleccionados/madame-bovary-150-anos-depois> acessado em fevereiro de 2008.
― Uma jovem, com um vestido de merino azul enfeitado com três folhos, apareceu à porta
da casa, para receber mo o Sr. Bovary, e o fez entrar na cozinha, onde ardia um bom fogo. F
O almoço dos criados fervia ao redor em pequenas panelas de diferentes tamanhos. Algumas
roupas úmidas secavam na lareira. A pá, as pinças e os foles,, todos de proporções colossais,
brilhavam como aço polido enquanto, ao logo dos muros, estendia-se uma abundante bateria de
cozinha, onde se refletiam, de forma desigual, a chama clara do fogão juntamente com os
primeiros raios do sol que entravam pelas vidraças. (...)
Charles surpreendeu-se com a brancura de suas unhas. Eram brilhantes, a com extremidades
finas mais limpas do que os marfins de Dieppe* e amendoadas. Suas mãos, contudo, não
eram bonitas, não eram suficientemente pálidas, talvez, e um pouco secas nas falanges;
eram demasiado longas também e sem suavidade nos contornos. O que tinha de belo eram
os olhos: embora fossem castanhos, pareciam pretos, por causa dos cílios, e seu olhar
atingia o interlocutor com franqueza e com uma cândida ousadia.FLAUBERT( 2010, p.27 e
28)‖
*Dieppe: cidade francesa
Notamos aqui algumas características realistas que veremos a seguir, como a
descrição detalhada e a não idealização da mulher, como faziam os românticos. Emma
parece uma pessoa comum, não uma deusa. Suas mãos não são bonitas, mas seus olhas
possuem um certo mistério.
Naturalismo ( Influências sobre Eça de Queirós e Aluízio Azevedo)
2- Émile Zola-Germinal
Émile Zola foi o fundador e o principal representante do movimento literário
naturalista. Inspirado na filosofia positivista e na medicina da época, Zola acreditava
que a conduta humana é determinada pela herança genética, pela fisiologia das paixões
e pelo ambiente, conforme vimos, trata-se do Determinismo de Taine.
Zola afirmou no ensaio "O romance experimental" (1880), que o
desenvolvimento dos personagens e das situações deve ser determinado de acordo com
critérios científicos similares aos empregados nas experiências de laboratório. Para ele,
a realidade deveria ser descrita de maneira objetiva, por mais sórdidos que pudessem
parecer alguns aspectos.
As características mais marcantes de sua obra, presentes também nos demais
autores naturalistas, são:
―1) Em primeiro lugar, a visão do homem como um animal, movido pela eterna
satisfação de suas necessidades biológicas e pela adaptação ao seu meio. Repetidas
vezes, Zola descreve as ações e o comportamento de seus personagens humanos como
próprias de animais, ou então descreve animais como dotados de comportamento quase
humano (como o cavalo Batalha, o "filósofo").
2) Em segundo lugar, a ação humana é muito influenciada por questões patológicas na
obra de Zola. O desenvolvimento da vida de seus personagens depende muito das
doenças as quais os mesmos estão submetidos. Obviamente, isso decorre da busca de
fundamentação científica para descrever o comportamento humano pelo autor. Assim,
enquanto os mineradores, por estarem em contato com mais doenças, já são descritos
fisicamente e psicologicamente como adultos logo na puberdade, os jovens burgueses
mesmo depois dos vinte anos ainda são vistos como crianças.
3) O determinismo pelo meio. Sendo o homem um animal como todos os outros, vive
em busca de se adaptar ao seu meio. Portanto, o meio é um fator determinante ao
comportamento humano; é mais forte do que qualquer ação individual. No livro, por
mais que fosse sofrida a vida dos mineiros de Montsou, eles nunca conseguiam viver
sem trabalhar nas minas, ou então ir embora. Eles parecem biologicamente presos a sua
condição, passando de geração para geração.
4) O instinto. Apesar de viver em uma época em que as pessoas intelectualizadas tinham
plena fé no desenvolvimento científico e na racionalidade humana, Zola põe na
irracionalidade, isto é, nos surtos emocionais de seus personagens, um fator de extrema
importância no enredo. Por exemplo, a revolta dos mineradores contra seus patrões
decorre muito mais do simples ódio de classe do que um movimento racional para
elevar os seus salários.
5) O niilismo. O sofrimento e a injustiça são elementos freqüentes no comportamento
humano. Mas, para uma sociedade de animais medíocres, irracionais e presos ao seu
meio, por mais revoltante que ele seja, como a sociedade humana, melhoras são
praticamente impossíveis.
Em termos de enredo, o livro conta a história de Etienne, um trabalhador qualificado
com impulsos socialistas, que por ser demitido de seu antigo emprego por brigar com
seu ex-patrão, consegue um emprego de minerador em Montsou. Trabalhando com os
demais mineradores, muito mais embrutecidos que ele, Etienne acaba se incorporando
ao ambiente de pobreza, promiscuidade e ignorância da comunidade de mineradores.
Contudo, por sua natureza socialista e intelectual o faz tornar-se um líder carismático de
sua comunidade, incitando os trabalhadores contra seus patrões. Contudo, antes de
provocar um luta de classes no sentido marxista do termo, o personagem provoca uma
revolta dos humanos contra o seu meio natural, que é muito mais forte do que eles.
A corrente de romance naturalista, mesmo que tenha sido fundamental para o
desenvolvimento da literatura ocidental no final do século XIX, e tendo influenciado
muitas das escolas modernas, tem a sua metodologia de análise do comportamento
humano bastante ultrapassada aos olhos da ciência dos dias atuais. Atualmente, os
pesquisadores sociais não acreditam mais no determinismo sobre o homem, isto é,
fatores ambientais, patológicos e sociais podem influenciar o comportamento humano
em uma escala que depende de indivíduo para indivíduo. Mas há um fator de
individualidade (presente inclusive no DNA de cada pessoa) que não pode ser
descartado sobre o comportamento, que diferencia as pessoas entre si, e que as fazem
tomar ações distintas e criativas, podendo dessa forma se desvincular de seu meio
social.‖
A história de Germinal é baseada em fatos verídicos e retrata a primeira greve de
mineiros no Norte da França no final do século XIX. Zola viveu dois meses nessas
minas de carvão para poder descrever fielmente o que acontecia. É a época da criação
da I Internacional Operária, fundada com a participação de Karl Marx em Londres –
momento de ebulição política, crise econômica, falências, miséria e fome na Europa.
Veja um trecho retirado do primeiro capítulo, quando Etienne chega às minas
para procurar emprego:
―Como continuar assim pelos caminhos, sem destino, não sabendo sequer onde abrigar-se do
vento frio? Sim, era de fato uma mina, os raros lampiões iluminavam o pátio, uma porta
subitamente aberta permitira-lhe vislumbrar as fornalhas das caldeiras das máquinas envoltas
numa claridade viva. Encontrava explicação até para o escapamento da bomba, essa respiração
grossa e ampla, resfolegando sem descanso, e que era como a respiração obstruída do monstro.
O encarregado da descarga dos vagonetes, de costas curvadas, nem mesmo levantara os olhos
para Etienne. No momento em que este ia apanhar seu pequeno embrulho que estava no chão,
um acesso de tosse anunciou-lhe a volta do carroceiro. Lentamente ele surgiu do escuro, seguido
pelo cavalo baio que puxava outros seis vagonetes cheios.
— Há fábricas em Montsou? — perguntou o rapaz.
O velho escarrou preto antes de responder em meio à ventania:
— Fábricas é o que não falta. Você precisava ver há três ou quatro anos: tudo produzindo,
faltava mão-de-obra, nunca se ganhou tanto. E, de repente, começa-se a apertar o cinto. Uma
verdadeira desgraça cai sobre a região, o pessoal é despedido, as oficinas começam a fechar
uma após outra. Talvez não seja culpa do imperador, mas que necessidade tem ele de ir lutar na
América? E isso tudo sem contar os animais que morrem de cólera, como as pessoas.(ZOLA,
2006 p. 4 e 5)‖
Observamos o descritivismo, já existente no Realismo, mas de uma forma mais
contundente. Aspectos escatológicos, como o home cuspir, são comuns nessa estética.
Filme: Germinal. Dir. Claude Berri. FRANÇA, 158 minutos. 1993.
(Com Gerárd Depárdieu)
Vídeo com trecho do filme Germinal :
http://www.youtube.com/watch?v=eNORsDsZxSE