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1 Reflexões sobre a Relação Entre as Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e o Estado: marco legal, mecanismos de financiamento e implicações para a gestão Autoria: Patricia Maria Emerenciano de Mendonça, Catarina Ianni Segatto Este artigo sistematizou a produção bibliográfica sobre as OSCs - Organizações da Sociedade Civil- e sua relação com o Estado. A literatura entende essa relação, de um lado, de maneira mais instrumental e, do outro, de forma mais multidimensional consideração imprecisões nos limites público-privado. Destacam-se os principais pontos que constituíram o marco legal, os mecanismos de financiamento estatal e suas fragilidades. O texto finaliza com um apanhado sobre as implicações para a gestão e sustentabilidade das OSCs que recebem financiamento estatal. Conclui-se para a necessidade criar categorias de analises que possam melhor sistematizar os relacionamentos entre OSCs-Estado no Brasil.

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Reflexões sobre a Relação Entre as Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e o Estado: marco legal, mecanismos de financiamento e implicações para a gestão

Autoria: Patricia Maria Emerenciano de Mendonça, Catarina Ianni Segatto

Este artigo sistematizou a produção bibliográfica sobre as OSCs - Organizações da Sociedade Civil- e sua relação com o Estado. A literatura entende essa relação, de um lado, de maneira mais instrumental e, do outro, de forma mais multidimensional consideração imprecisões nos limites público-privado. Destacam-se os principais pontos que constituíram o marco legal, os mecanismos de financiamento estatal e suas fragilidades. O texto finaliza com um apanhado sobre as implicações para a gestão e sustentabilidade das OSCs que recebem financiamento estatal. Conclui-se para a necessidade criar categorias de analises que possam melhor sistematizar os relacionamentos entre OSCs-Estado no Brasil.

 

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1. Introdução Desde o início da década de 1990, observa-se um crescente interesse no debate acadêmico

sobre as Organizações da Sociedade Civil (OSCs). No cenário internacional, o campo de estudos sobre o desenvolvimento, muitas vezes promovido pelas agências internacionais, passou a atribuir uma grande ênfase às Organizações Não Governamentais (ONGs) e ao seu papel crucial na construção da democracia, especialmente, nos países em desenvolvimento. De acordo com Alves (2004), essa ênfase resultou no uso corrente do termo “Sociedade Civil” em diversas esferas de conhecimento.

O campo das OSCs, se é possível chamá-lo dessa forma, é constituído de enorme diversidade de organizações, no que tange a sua atuação, estrutura e formas de financiamento. Nele estão contidas organizações religiosas, associações de bairro, ONGs mais profissionalizadas, organizações de base empresarial (associações ou fundações empresariais), cooperativas de produção de base solidária entre outras. Por esse motivo não é possível compreender o termo ONG ou a expressão Terceiro Setor como únicos e unidimensionais, mas como um campo impreciso e diverso.

Essa diversidade de organizações, portanto, resulta em diferentes formas de relacionamento com o Estado. Há OSCs prestadoras de serviços (service delivering) e OSCs de defesa de direitos. Ambas são consideradas como intermediárias dos interesses da sociedade tanto em relação ao Estado quanto ao Mercado. Apesar disso, a existência das OSCs de defesa de direitos está quase sempre atrelada a projetos políticos de resistência e luta vinculados a direitos de grupos minoritários, direitos humanos, direitos das gerações futuras e outros (Scherer-Warren, 2005).

As relações com o Estado, em especial quando essas envolvem a transferência de recursos, apresenta diversas implicações para a gestão e sustentabilidade OSCs, brevemente discutidas neste artigo. Essas implicações tornam-se ainda mais acentuadas em uma cenário no Brasil em que o marco regulatório encontra-se fragilizado e uma recente onda de denúncias sobre desvios de recursos para algumas organizações faz com que todo o seu conjunto sofra com a perda de legitimidade.

A partir desse debate, o presente artigo busca, em primeiro lugar, sistematizar a produção bibliográfica sobre a relação entre as OSCs e o Estado. Verifica-se que há três principais modelos teóricos que analisam essa relação: as abordagens econômicas, o new public management e as análises de governança e redes. Esses modelos variam de análises mais normativas, que acreditam que as OSCs produzem maior eficiência e a flexibilidade nos serviços públicos, a argumentos que mostram uma porosidade do Estado e ás várias dinâmicas de relacionamento. Em segundo lugar, o artigo busca mapear as relações entre as OSCs e o Estado no Brasil, enfatizando os mecanismos de financiamento estatal às OSCs, destacando números de transferenciais de recursos federais, já que isso orientou fortemente o debate brasileiro sobre essas relações. Por fim, discute-se as implicações do financiamento estatal para a gestão e sustentabilidade das OSCs e busca-se orientar uma agenda de pesquisa para aprofundar o tema.

2. Relação entre Estado e OSCs: Perspectivas Teóricas Há diferentes abordagens que buscam compreender a relação entre as OSCs e o Estado. A

dificuldade encontrada por essas explicações é abarcar a enorme diversidade de OSCs existentes e seus diferentes históricos e padrões de relacionamento com o Estado. De acordo com Zimmer (2010), as OSCs são ativas de ambos os lados do Estado. Como parceiros na

 

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implementação de políticas públicas e como formuladores de agenda e de políticas, nessa pode atingir diferentes graus de aproximação, colaboração ou confronto com o Estado.

As perspectivas teóricas que enfocam o entendimento da relação Estado-OSCs pelo lado de “dentro” do Estado, como parceiros na formulação/implementação de políticas públicas possuem, em geral, uma visão mais econômica da relação, enfocando as complementaridades e ganhos das parcerias. Destacam-se, nessa perspectiva, abordagens do new public management (Bresser Pereira & Grau, 1999; Gidron et al., 1992; Salamon & Anheier, 1997; Osborne & Gaebler, 1995). As perspectivas que olham essa relação “por fora” do Estado, em geral, observam o potencial das OSCs na promoção da participação e fortalecimento democrático e da governança. Destacam-se, nessas abordagens, as perspectivas políticas, centradas na explicação sobre participação e capital social (Tendler, 1997), nas atividades de advocacy e lobby (Brelàz & Alves, 2009); e perspectivas sociológicas centradas na profissionalização e interações entre agentes e públicos e privados (Evans, 1997; Lewis, 2010; Campos et al., 2012) e na construção de redes (Marques, 1999; Scherer-Warren, 2006).

2.1. Abordagens Econômicas As abordagens econômicas surgiram na década de 1990 ligadas ao avanço das ideias

neoliberais. Seu principal objetivo é compreender o papel das OSCs na interação com o Estado nas políticas de bem estar social (Brinkerhoff & Brinkerhoff, 2002).

Um dos principais estudos dessa corrente foi liderado por Lester Salamon (1995). Esse estudo demonstrou que as OSCs são dependentes do Estado e nas relações de trocas baseadas em leis de mercado e que suas atividades estão mais relacionadas à prestação de serviços sociais. Os argumentos do autor estão centrados na ideia de government failure, isto é, as OSCs estariam se responsabilizando por atividades que o Estado não consegue executar.

A perspectiva econômica sugere que as OSCs ocupam espaços deixados por serviços padronizados e universais e, dessa forma, promovem maior flexibilidade e respondem às falhas de governo e de mercado. Outros argumentos destacam ainda que as OSCs produzem maior eficiência e reduzem o problema de agência relacionado às falhas de contratos (Hansmann, 1987; Lipsky & Smith, 1989–1990). Write e Robinson (1998) sistematizaram as vantagens comparativas na execução de políticas públicas entre OSCs e Governo:

Forças

Organizações Estatais Organizações da Sociedade Civil Agente que possibilita a

pluralidade e o funcionamento entre as partes da política

Detém mecanismos para promover redistribuição de recursos

Maior foco na provisão direta de serviços Recursos Humanos com maior

flexibilidade Maior flexibilidade de atuação para a

inovação Ligação com bases comunitárias e maior

acesso a informações e necessidades locais Maior facilidade em assistir populações

excluídas Fraquezas Gestão mais rígida

Dificuldades em inovar e acessar informações locais

Alcance geográfico limitado Baixa capacidade organizacional e

mecanismos de planejamento e avaliação limitados. Figura 1. Vantagens Comparativas na provisão de políticas sociais Fonte: Write, G., & Robinson, M. Towards synergy in social provision: civic organizations and the state. In Minogue, M., Polidano, C., & Hulme, D. (eds.). Beyond the new public management, Cheltenham, Edward Elgar Publishing, 1998.

Recente estudo do IPEA (Lopes & Abreu, 2014) sobre a perspectiva dos gestores

públicos sobre as parcerias com as OSCs dão conta de incentivos semelhantes para o Estado

 

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as contratá-las, como capilaridade e acesso a populações alvo específicas. . Aparecem outras vantagens (que muitas vezes demonstram fragilidades do Estado) como suprir a falta de quadros público, além de ter a possibilidade de contribuir para fortalecer ás próprias OSCs.

Apesar desses argumentos favoráveis, algumas críticas são feitas a essa visão sobre a relação OSCs e Estado. Segundo Salamon e Anheier (1997), as crescentes funções das OSCs são distintas das do mercado e do Estado, mas conectadas a elas em diversas formas. Ou seja, da mesma maneira que as OSCs concorrem sob as leis de mercado para conseguirem contratos, elas precisam interagir com o aparelho estatal e suas normas hierárquicas. Ainda as OSCs falham, pois se tornam vulneráveis na relação com o Estado na garantia de um fluxo adequado de recursos. Há ainda falhas de “mercado” quando ocorrem favoritismos nessas relações e quando OSCs maiores e mais bem estruturadas garantem acesso privilegiado a recursos.

Como desvantagens destas parcerias, o estudo do IPEA (Lopes & Abreu, 2014) levantou que há instabilidade nos quadros das OSCs, tendo em vista as dificuldades que encontram em angariar recursos para contratação e manutenção de funcionários. O Estado estaria em desvantagem também nos casos em que a totalidade ou grande parte de uma política fosse delegada ás OSCs, pois perderia expertise e correria o risco de descontinuidade.

Alguns estudos se dedicam a diferenciar modelos de relacionamento entre as OSCs e o Estado. Coston (1998) desenvolveu o modelo em que identifica os seguintes tipos: repressão, rivalidade e competição. Najam (2000) apontou que há formas de relacionamento que variam entre cooperação, confrontação, complementaridade e estratégias de cooptação. Para fins analíticos a autora diferencia objetivos e estratégias das parcerias. A cooperação é baseada na convergência de objetivos e estratégias. A confrontação ocorre quando os objetivos ou estratégias de governo e OSCs são antiéticas. A complementariedade ocorre quando governo e OSCs têm objetivos comuns, mas preferem estratégias diferentes de atuação. E a cooptação consiste no compartilhamento de estratégias similares entre esses atores, mesmo que tenham objetivos diferenciados.

Há ainda a tipologia criada por Young (2000) com enfoque nas OSCs prestadoras de serviços, na qual as relações se diferenciam entre suplementar, complementar e adversarial. No modelo suplementar, as OSCs são direcionadas a suprir demandas de bens públicos que não são supridos pelo Estado. Na forma complementar, as OSCs são financiadas pelo governo para auxiliar na prestação de serviços já existentes. E na forma adversarial, as OSCs adquirem um papel de controle social, pressionando por transparência.

2.2. New Public Management e Reforma do Estado A partir da década de 1980, alguns países, entre eles Inglaterra e EUA, iniciaram reformas

da administração pública. Essas reformas se orientaram pelo modelo que foi denominado de New Public Management, traduzido como Nova Gestão Pública, Gerencialismo e Governo Empreendedor.

Na literatura sobre new public management, Gidron et al. (1992) examinaram as relações entre as OSCs e o Estado em relação aos diferentes sistemas de bem estar social. Segundo os autores, essa relação pode ser caracterizada pela dominância do governo ou das OSCs nas parcerias construídas ou ainda a relação pode se construir como um arranjo colaborativo ou dual. Nas políticas em que as organizações da sociedade são responsáveis pela sua execução, o nível de discricionariedade e a capacidade de barganha irão influenciar o modelo de provisão. Elas podem ser simples agentes executores financiados pelo governo ou ter mais influência e espectro de ação, gerenciando e desenvolvendo programas e participando de processos políticos (Gidron et al. 1992; Write & Robinson, 1998).

 

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Zimmer (2010) em sua revisão sobre a literatura de parcerias entre governo e OSCs aponta a importância do entendimento do ambiente legal e organizacional que circundam estas relações. O ambiente regulatório inclui formas de taxação e incentivos para OSCs e doadores, capacidades legislativas para definir as formas de atuação dos atores envolvidos, garantia de liberdade de associação e respeito aos direitos humanos. Brinkerhoff e Brinkerhoff (2002) destacam que há uma diversidade de formas de relacionamento entre governo-OSCs. tanto entre países como dentro de um mesmo país, caso do Brasil. Esse argumento é fundamental para a compreensão da literatura sobre new public management e as relações entre OSCs-Estado no Brasil, pois a mudança no ambiente legal ocupou um papel central nesse processo.

No Brasil, a discussão sobre a reforma do Estado se desenvolveu, principalmente, a partir de 1995 com a criação do Ministério de Administração e Reforma do Estado (MARE). Nesse momento, a reforma do Estado reconhecia um contexto mundial de crescimento na importância de organizações da sociedade civil e advogava a transferência da execução de serviços públicos que não são atividades exclusivas do Estado, como educação, saúde e cultura (universidades, hospitais, centros de pesquisa e museus) (MARE, 1995).

Entre os vários motivos assinalados que justificariam a adoção dessa solução eram apontadas: a possibilidade de cobrir vazios deixados pelo Estado e pelo Mercado; capacidade de associar a produção de bens e serviços à defesa de valores coletivos; maior eficiência e menor custo, basicamente pela utilização de voluntários e doações; existência de vantagens em relação ao Estado e ao Mercado, como dedicação e solidariedade (que seriam papéis que lhes imprimiriam uma especificidade), assim como flexibilidade, experiência especializada e habilidade para chegar a clientes dificilmente alcançáveis; e possibilidade de ajuste das prestações às características e necessidades de destinatários específicos, em um ambiente de diversidade (Bresser Pereira & Grau, 1999).

Em suma, as organizações da sociedade, no contexto da reforma do Estado, eram vistas então como uma alternativa mais econômica e flexível a um Estado sobrecarregado e como um provedor alternativo de serviços públicos, podendo substituir, influenciar, estender e incrementar o trabalho do governo ou ainda ser um elemento importante na promoção da participação cidadã (Gidron et al, 1992).

2.3. Governança e redes Adeptos de linhas mais sociológicas para o entendimento da relação Estado-OSCs

rejeitam o modelo economicista tri-setorial. Ainda que esse modelo seja analiticamente conveniente, a realidade se mostra muito mais complexa e constantemente ocorrem sobreposições (Brinkerhoff & Brinkerhoff, 2002; Lewis, 2008a). Os autores dessas linhas apontam a necessidade de compreender as formas de poder que permeiam essas relações. Tais análises podem revelar a complexidade individual, como o trânsito de profissionais entre os setores, e a inter-relação entre os fatores organizacionais e os macro-fatores, política, história e cultura.

Essa literatura revela uma crescente tendência de análise da relação entre os setores como processual, delineando sua natureza e extensão. Um exemplo disso é a utilização de Peter Evans (1997) da ideia de sinergia. O conceito de sinergia é utilizado para descrever o engajamento do Estado-Sociedade como uma forma de interação capaz de gerar benefícios mútuos. Esse engajamento é alcançado pela complementaridade das atividades e capacidades. A complementaridade não é necessariamente um conceito diferente do utilizado nos modelos tri-setoriais, que destacam vantagens comparativas sob a perspectiva econômica. No entanto, a complementaridade sozinha não explica a existência de sinergia.

 

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Evans avança no sentido de incluir as relações entre cidadãos e agentes públicos, embeddedness, traduzida no Brasil como autonomia inserida, tornado a divisão público-privada menos clara. A autonomia inserida na forma de envolvimento direto de cidadãos e agentes públicos seria a chave que sustenta organizacionalmente as relações entre os dois setores.

A sinergia é dependente do grau de inserção de agentes públicos nas redes sociais, atravessando as divisas público-privadas, se é que é possível fazer tal separação. Para tanto as instituições públicas têm de ser coerentes e consistentes com normas internas e sistemas de reconhecimento (Harris, 2001).

Ostrom (1996) fala sobre o processo de “co-produção”, em que os inputs utilizados para produzir um bem ou serviço público são produzidos por indivíduos que não se encontram nas mesmas organizações. Essa definição incorpora os cidadãos como agentes ativos na produção de bens e serviços públicos.

No estudo sobre a inovação no Ceará, Tendler (1997) especula que os limites da sinergia estariam localizados nos espaços do governo, ao invés da sociedade. Um interessante achado desse estudo foi o de que a sinergia em níveis mais descentralizados de governo é mais dependente do grau de inserção público/privada, sendo altamente dependente da agência individual ou da habilidade das lideranças para promovê-la.

Lewis (2008a; 2008b) e Campos et al (2012) buscam criticar e se mover para além do modelo de analise tri-setorial para entender as relações entre Estado-Sociedade-Mercado. Suas propostas dialogam e complementam de forma inovadora as discussões sobre as formas processuais e políticas de análises entre os setores, na medida em que movem o nível de analise para os relacionamentos e os processos e trazem o papel dos indivíduos para o centro da questão. O foco está nas fronteiras setoriais e na movimentação de profissionais entre diferentes setores. Destaca-se a necessidade de entender a natureza híbrida de muitas organizações da sociedade e do Estado e as suas implicações para a autonomia de cada um.

Isso ocorre porque, nos limites entre os setores, há diferentes grupos que se movimentam. Por isso, analisar essas fronteiras se torna algo importante e é justamente o que Lewis (2008a; 2008b) chama atenção. A sua ideia de fronteira entre campos não deixa de considerar as diferentes lógicas e perspectivas internas de cada um, mas destaca como central que os pontos de contato entre eles são misturados e a necessidade de entender os mecanismos que estão por trás dessas interações. Nessa mistura, ocorrem adaptações e inovações que são trazidas e levadas pelos indivíduos que se movimentam ao longo das fronteiras, o que Lewis denomina de sector brokers.

Marques (1999, 2003) também realizou diversos estudos sobre redes de políticas públicas e chama a atenção para a interação e as fronteiras entre indivíduos que se movimentam entre espaços estatais e a sociedade civil. Para ele, compreender as políticas públicas depende não apenas de olhar as instituições governamentais, mas também o que está além delas. Ele aponta ainda para a necessidade de se olhar simultaneamente para relações individuais e organizacionais. Em vários contextos latino-americanos as relações pessoais têm um peso significativo na construção de políticas. Dessa forma, o tecido estatal é constantemente modificado pelas pessoas e organizações, tanto dentro do próprio estado quanto nos ambientes mais ampliados da política. Os contatos são ao mesmo tempo pessoais e institucionais, constantemente recriados, conduzem recursos, afetam preferências, restringem escolhas, estratégias e modificam resultados de políticas.

Esses três modelos de análise das relações entre as OSCs e o Estado mostram tipos de relacionamento em que as OSCs são vistas como prestadores de serviços públicos e, dessa forma, geram maior eficiência e flexibilidade, demonstram também que essa relação é complexa e multidimensional e não ocorrem em limites claros entre o público-privado.

 

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3. Relação entre OSCs e Estado no Brasil 3.1 Marco Regulatório No Brasil, até a década de 1980, predominou o modelo centralizado estatal na provisão de

serviços sociais. Embora houvesse OSCs desde muito tempo, como as OSCs filantrópicas e religiosas, que respondiam por parcela de serviços nas áreas de assistência social, educação e saúde, a concentração de poder no Estado era muito grande nas políticas públicas e a fragilidade da sociedade civil era visível.

Com a abertura política e a aprovação da Constituição de 1988, foram garantidas as liberdades associativas e dado destaque ao possível papel complementar das OSCs em diversas políticas públicas, tais como saúde, educação, assistência, desporto, infância e juventude (Campos, 2008).

Até o início da década de 90, a Legislação até então em vigor que norteava as relações Estado-OSCs datava da década de 1930 e necessitava ajustes (Comunidade Solidária, 1997). De acordo com Olivera e Haddad (2001) a legislação ultrapassada reunia diferentes normas construídas a partir do Código Civil de 1916 a partir de pressões de diferentes lobbies setoriais. Na legislação, não existia nenhuma tipologia de OSCs, apenas categorias frouxas, que, de acordo com os autores, privilegiavam certas categorias de organizações.

O que se observa, portanto, é que à medida que o processo de democratização, aprofundamento das reformas e descentralização de políticas sociais evoluíram, as funções das organizações da sociedade civil tornam-se mais indefinidas, dificultando a divisão proposta acima. Dessa forma, foram iniciadas discussões por meio da Comunidade Solidária, um espaço de interlocução entre governo e sociedade, que buscava reestruturar as bases institucionais que permeavam as relações governo-OSCs (Alves & Koga, 2001).

É importante apontar que, nessas discussões, começou a ficar claro a necessidade de instrumentos legais distintos para a pluralidade de OSCs. O termo utilizado era “esfera pública não estatal”, que reconhecia a diferença entre a natureza das organizações de benefício mútuo e as de interesse público, admitindo que OSCs de interesse público mereceriam mecanismos mais justos, ágeis e transparentes para acesso á recursos públicos (Oliveira & Haddad, 2001).

Durante esse período, novos marcos institucionais foram criados para mediar e modificar a relação entre Estado e OSCs. Um desses marcos foi a criação do modelo de Organização Social (OS) (Lei 9.637/98). Trata-se de modelo de parceria entre o Estado e a sociedade. O Estado continuara a fomentar as atividades publicizadas e exercer sobre elas um controle estratégico, demandando resultados e o alcance de objetivos das politicas públicas, sendo essa relação mediada por um contrato de gestão. O fato é que a OS foi um modelo com pouca adesão no Governo Federal, mas está sendo amplamente disseminado nos estados brasileiros, especialmente, nas áreas de saúde e cultura (Sano & Abrucio, 2008).

Outra inovação foi a aprovação da Lei nº 9.790/99, que qualificou parte das pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Ainda, criou o Termo de Parceria, como proposta de melhoria em relação ao tradicional convênio, objetivando "modernizar a realização de parcerias com os governos, com base em critérios de eficácia e eficiência e mecanismos mais adequados de responsabilização" (Ferrarezi, 2001, p. 16). Houve inovações relevantes para as OSCIPS em relação à transparência, sendo obrigadas a submeter anualmente a auditorias internas e externas, e a tornarem públicas suas demonstrações financeiras e seus relatórios de atividades.

A adoção desse novo modelo institucional, conforme demostraram Alves e Koga (2001), foi objeto de muitas resistências por parte das OSCs. A qualificação de OSCIP também obteve baixa adesão por parte das organizações que permaneceram utilizando os convênios

 

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como instrumento jurídico para mediar as transferências de recursos pelo Estado, ao invés da possibilidade de utilizar o Termo de Parceria. Entre os motivos que levaram à baixa adesão das OSCs ao modelo de OSCIPs estão um movimento de resistência ideológica por parte de muitas organizações, que identificam o modelo como um assalto neoliberal ao Estado, e o risco de perda de autonomia das OSCs (Durão 2003; Oliveira e Haddad, 2001).

Apesar da mudança do marco legal, a criação da Lei das OS e da Lei das OSCIPS não representaram a substituição de uma legislação que já estava vigente, apenas instituíram novos modelos que passaram a conviver com outros.

Esta convivência de diferentes normas que vão se acomodando para mediar as relações Estado-OSCs tem gerado insegurança jurídica, tanto para os gestores públicos, quanto para as OSCs (Junqueira & Figueiredo, 2012). O que se observa é que a falta de clareza deu margem à que diferentes práticas de gestão por parte dos órgãos públicos contratantes fossem aceitas. Outro problema, é que desde 1999, nada foi feito ara aperfeiçoar esta legislação (Dora & Panunzio, 2012). Um exemplo disso é que mesmo com a aprovação da Lei das OSCIPS e do instrumento denominado “termo de parceria”, o que predomina no repasse de recursos do Estado para OSCs é o convênio.

Esse quadro de fragilidade do marco legal que estabelece a relação Estado-OSCs é reforçado pela utilização das emendas parlamentares para a destinação dos recursos, já que os órgãos concedentes não dispõem de procedimentos claros de seleção, acompanhamento e controle destas transferências (Carvalho-Neto, 2007). Além disso, a partir de 2007, uma série de denuncias sobre irregularidades nas transferências para OSCs são veiculadas na mídia (Agência Brasil, 2011; Duarte & Benevides, 2011; Veja, 2011). E em 2007, é instalada a CPI das ONGs que encerra seus trabalhos em 2010 com uma série de recomendações para aperfeiçoar os mecanismos “pelos quais se materializam a relação de parceria entre Poder Público e ONGs” (Brasil, 2011).

Após essas denúncias, tanto o Governo Federal, quanto as OSCs se mobilizam para aperfeiçoar os mecanismos que mediam suas relações. Por parte do Governo Federal, o SICONV- Sistema de Gerenciamento de Convênios- foi fortalecido e o Portal dos Convênios foi criado para dar maior transparência a esses instrumentos com a possibilidade de acesso público ás informações. Novos procedimentos para a contratação de entidades, tornando obrigatória a realização de chamamento publico foram criados.

Em 2011, foi criado um novo grupo de discussão sobre o marco regulatório das OSCs, envolvendo diversas entidades e redes A Plataforma Marco Regulatório das OSCs reivindica “uma política pública de fomento à participação cidadã por meio de organizações sociais autônomas [comprometidas] a zelar pelo sentido público de sua atuação, além de adotar práticas de boa gestão e transparência” (Plataforma Oscs, 2011). Em Abril de 2014, já havia sido votado pelo Senado e estava para ser votado pela Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Nº 3877/2008, que estabelece um regime jurídico para a parcerias voluntárias entre a Administração Pública e as OSCs. Este projeto prevê a criação de dois novos mecanismos de financiamento o “Termo de Colaboração” e o “Termo de Fomento”. A sua aprovação geraria mais segurança para as OSCs, trazendo mais transparência nas relações de parceria com o Estado (Setubal, 2014).

3.2 Mecanismos de Financiamento Estatal às OSCs Existem diferentes mecanismos para realizar o repasse de recursos estatais para as OSCs,

quais sejam: convênio, auxílio, contribuição e subvenção social, isenções e imunidades. O convênio é meio mais antigo e largamente utilizado, embora exista o termo de parceria,

que seria o equivalente ao convênio, porém de utilização mais apropriada pelas OSCs (Junqueira & Figueiredo, 2012). O convênio é originalmente um instrumento utilizado entre

 

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União, estados e municípios, e não prevê, por exemplo, a contratação de pessoal, além de submeter todas as compras envolvidas á Lei 8666/93 sobre licitações e contratos administrativos. A maior parte do financiamento governamental federal às OSCs é realizada por meio de transferências voluntárias de recursos, contratualizadas via convênios, e por meio de isenções. Nas transferências voluntárias, os recursos podem ser vinculados a determinados programas ou fundos públicos por meio de editais e chamadas públicas dos Ministérios e Secretarias ou emendas parlamentares.

Para o repasse de recursos do Governo Federal, o Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse (SICONV) passou a ser de adoção obrigatória desde de 2008. Em relação ao montante transferido pelo Governo Federal, observa-se que houve um aumento das transferências às OSCs entre 1999-2010.

Figura 2. Valores transferidos do Orçamento Geral da União às entidades sem fins lucrativos de 1999 a 2010 (em milhões de reais) Fonte: IPEA. (2011). Comunicados do IPEA nº 123: Transferências federais a entidades privadas sem fins lucrativos (1999-2010). Brasília: IPEA.

Em 1999, o valor total dos repasses federais ás OSCs foi de R$ 2,2 bilhões, e, em 2010,

era de R$ 4,1 bilhões. No entanto, vale ressaltar que, apesar das transferências voluntárias terem crescido, o Orçamento Geral da União cresceu de forma mais acentuada, como apresentado na Figura 3. Proporcionalmente, as transferências às OSCs foram menores em relação ao crescimento do Orçamento da União. Entre 2002 e 2010, o valor real do orçamento global da União – que exclui despesas financeiras – aumentou mais de 80%, enquanto o crescimento do orçamento destinado às ONGs foi de 45%. De acordo com o IPEA (2011), ao se considerar as transferências obrigatórias e voluntárias, o repasse a ONGs nunca foi responsável por mais de 2,5% do total de transferências, alcançando 1,8% em 2010.

 

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Figura 3. Comparação entre o montante do Orçamento Geral da União e os valores transferidos do Orçamento Geral da União às entidades sem fins lucrativos de 1999 a 2010 Fonte: IPEA. (2011). Comunicados do IPEA nº 123: Transferências federais a entidades privadas sem fins lucrativos (1999-2010). Brasília: IPEA.

Na análise dos recursos transferidos via convênios, Lopez e Barone (2013) apontam que

há uma grande variação de tipos de entidades sem fins lucrativos que conveniam com o Governo Federal. Além da variação de tipos de organização, há também diferentes tipos de objetivos dos convênios: eles podem objetivar o estabelecimento de parcerias, financiamento a projetos, prestação de serviços, subvenção/fomento e outros, sendo que os maiores em quantidade e em montante transferido são as parcerias e financiamento a projetos.

No que se refere às outras formas de financiamento, o auxílio consiste em uma transferência de capital derivada da lei orçamentária para atender a ônus ou encargo assumidos pela União, em geral usada com recursos vindos do exterior. A contribuição, em uma transferência corrente ou de capital concedida em virtude de lei, sem contrapartida de serviços. E a subvenção social é utilizada para serviços de assistência social, médica ou educacional, registradas no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). As subvenções sociais se diferem das demais categorias de fomento essencialmente por estarem vinculadas a contraprestações e, também, por terem o espectro de uso restrito a “cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas” (Ferrarezi, 2001).

No campo da isenção, o mecanismo mais difundido e utilizado é conhecido como Certificado de Entidade Beneficentes de Assistência Social (Cebas). Trata-se de um título concedido às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, reconhecidas como entidades beneficentes de assistência social com a finalidade de prestação de serviços nas áreas de assistência social, saúde ou educação e que atendam ao disposto na Lei nº 12.101/09. O Cebas é concedido pelos Ministérios da Saúde (MS), da Educação (MEC) e do Desenvolvimento Social (MDS) para as OSCs que atuam em suas áreas. As detentoras desse título são isentas de contribuição para a seguridade social (cota patronal do INSS).

Existe ainda a possibilidade de concessão de benefícios fiscais aos doadores. A Lei n 9.249/95, que regula o Imposto de Renda, estipula em seu art. 13, § 2º, que podem ser deduzidas da base de cálculo as doações efetuadas a entidades civis, legalmente constituídas no Brasil, sem fins lucrativos e reconhecidas como de Utilidade Pública Federal (Vargas, 2014).

 

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Entre 2001 e 2010, houve um aumento progressivo do número de OSCs apoiadas pelo governo federal. Um relatório do TCU (2007) aponta que a transferência média de recursos do governo federal para às OSCs ficou em torno de R$ 2 bilhões por ano (entre 2001-2006).

No plano subnacional as transferências de estados e municípios às OSCs cresceram proporcionalmente mais do que as transferências do Governo Federal. De acordo com o IPEA (2011), as fatias do orçamento federal anual repassadas como transferências voluntárias para estados e municípios apresentam leve trajetória de crescimento a partir de 2006.

Figura 4. Valores transferidos do Governo Federal, estados e municípios às entidades sem fins lucrativos – ESFL- de 2002 a 2009 Fonte: IPEA. (2011). Comunicados do IPEA nº 123: Transferências federais a entidades privadas sem fins lucrativos (1999-2010). Brasília: IPEA.

Estes dados demonstram a necessidade de olhar para os orçamentos dos estados e

municípios a fim de sistematizar e acompanhar melhor as relações do poder público com as OSCs nesses níveis de governo. Em geral, não há nenhum tipo de sistematização ou dado público sobre as transferências estaduais e municipais para as OSCs (Segatto, 2013). Há indicativos de que pode haver dificuldades adicionais para a realização destas transferências, além das questões já apontadas no nível federal (referentes à insegurança do marco regulatório e aos mecanismos de contratualização estarem voltados para o controle burocrático, muitas vezes dificultando o trabalho das OSCs). Estas dificuldades adicionais podem residir em diferentes históricos de relacionamento entre OSCs e o poder público no nível estadual e municipal, que podem levar a maiores interferências políticas na destinação dos recursos. Os recursos podem ainda ser direcionados de forma mais restrita do que no nível federal, por exemplo, exclusivamente para prestação de serviços, sem que outras atividades, como mobilização, campanhas ou fortalecimentos de organizações de base, ou aporte de conhecimentos e outras inovações para as próprias políticas públicas possam ser realizadas.

4. Implicações para a Gestão e Sustentabilidade das OSCs Em relação à dependência de recursos e à autonomia das OSCs, diversos estudos (Biggs

& Neames, 1995; CEAPG, 2013; Hudock, 1995; Santos, 2009; Mendonça & Araújo, 2011) mostram que existe uma dependência das OSCs aos recursos governamentais. Especialmente, daquelas centradas na prestação de serviços, como assistência social e saúde. No entanto, nem todas as OSCs que recebem recursos públicos possuem um alto grau de dependência do Estado. Algumas promovem atividades políticas para fortalecer sua relação com outros

 

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segmentos e angariar outras fontes de recursos não financeiros (como advocacy, participação em fóruns, conselhos e outros espaços deliberativos ligados às políticas públicas) ou desenvolvem internamente estratégias para lidarem com sua dependência, entre elas a diversificação de fontes (Mendonça & Araújo, 2011; Santos, 2009).

Na literatura internacional o tema da dependência de recursos públicos pelas OSCs já foi amplamente discutido (ver excelente compilação de Edwards & Hulme, 1998). Boa parte das análises recai sobre a avaliação das OSCs que tradicionalmente prestam serviços ao Estado, questionando sobre sua capacidade de manter autonomia e não se transformarem em apenas um contratado do governo; Há questionamentos também com relação ás supostas vantagens comparativas das OSCs em relação ao Estado. A literatura nem sempre conclui que estas organizações são mais eficientes, o que já ficou provado é apenas que as OSCs maiores mais profissionalizadas conseguem ser mais eficientes do ponto de vista econômico do que o Estado (Edwards & Hulme, 1998).

São justamente estas organizações maiores obtém sucesso no acesso a recursos públicos. No Brasil, tanto a legislação, quanto as próprias práticas e cultura do setor público impõe muitas demandas do ponto de vista administrativo e burocrático para as OSCs. Isto reduz a participação de OSCs pequenas e menos profissionalizadas, já que é necessário um conhecimento técnico para operar estabelecer contratos e convênios e preencher uma infinidade de formulários e relatórios de prestação de contas. O mesmo é verdadeiro para obtenção de certificados e qualificações que irão garantir outras formas de acesso a recursos como subvenções e isenções.

No que se refere á capacidade das OSCs de gerar inovação é verdadeiro que em muitas áreas, como na política de AIDS no Brasil (Campos, 2008), e nas políticas para agricultura familiar (Mendonça, 2009). No entanto, na medida em que o envolvimento na provisão de serviços se amplia, ampliando assim o maior envolvimento com demandas administrativas e burocráticas, pode-se colocar em risco a capacidade destas OSCs de inovar e serem flexíveis e ágeis, uma vez que s exigências de customização e universalização irão aumentar.

O envolvimento com recursos públicos traz também implicações para as OSCs que atuam com advocacy, defesa de direitos e controle social de políticas públicas. Em primeiro lugar, dificilmente encontrarão recursos públicos para financiar essas atividades (Segatto, 2013), para àquelas que acessam recursos, normalmente eles vem acompanhados de exigências que só deveriam ser feitas às OSCs que estivessem ligadas à prestação direta de serviços. Os convênios, por exemplo, exigem produtos como comprovação da utilização do recurso, muitas vezes os relatórios e formulários para descreverem produtos como “mobilização”, “campanhas” entre outros é de difícil preenchimento e justificativa. Os mecanismos de financiamento público beneficiam mais as organizações prestadoras de serviço do que as que atuam com advocacy e defesa de direitos.

Demandas com relação à legitimidade e transparência das OSCs também sofrem impactos crescentes na medida em que elas acessarem mais recursos públicos. Isso tem sido particularmente notado nos últimos anos no Brasil. Na recente onda de denúncias sobre a transferência de recursos do Estado para OSCs, diversos questionamentos foram colocados sobre a governança e democracia interna destas organizações e sua representatividade, bem como sobre seu grau de transparência (Pannunzio, 2014)

Em relação às OSCs, os impactos negativos das denúncias que recaíram sobre um conjunto especifico de entidades, muitas vezes sem histórico de atuação e militância no campo, acabou prejudicando a imagem delas como um todo.

5. Considerações Finais

 

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Como apresentado no início deste artigo, o campo das OSCs é diverso tanto em relação à sua atuação, como à sua estrutura e institucionalização. Isso resulta em uma multiplicidade de relações entre as OSCs e o Estado. Há, em um extremo, relações que se caracterizam pela prestação de serviços e, em outro, advocacy e defesa de direitos. As formas de relacionamento e acesso a recursos estatais destes dois tipos de OSCs é bastante diferente, com implicações diferenciadas para sua gestão e sustentabilidade.

Atualmente, a fragilidade do marco regulatório para mediar as relações entre Estado-OSCs tem contribuído para a instabilidade desta relação, dificuldade na gestão do financiamento e prestação de contas, crise de legitimidade das OSCs. Isto tudo a despeito de um cenário em que as transferências de recursos nas três esferas de governo têm crescido (Segatto, 2013, Pannunzio, 2014).

Com a sistematização da literatura foi possível identificar três principais linhas de análise sobre a relação entre o Estado e as OSCs. O primeiro modelo está mais ligado às análises econômicas, que argumentam que as OSCs promovem maior eficiência e flexibilidade, na medida em que respondem às falhas de governo e de mercado. O segundo, proveniente das reformas do Estado, é semelhante ao primeiro, pois também vê as OSCs mais como prestadoras de serviços, ainda que haja uma preocupação com a accountability. No terceiro, essa relação é vista como multidimensional, ou seja, pode produzir melhores resultados nas políticas públicas, mas ela é inevitável, já que o Estado é necessariamente permeável. Nesse sentido, cabe aos estudiosos, analisarem suas múltiplas dimensões.

A trajetória da relação entre o Estado e as OSCs no Brasil é caracterizada pela discussão sobre o marco regulatório, especialmente, no que se refere ao repasse de recursos estatais a elas. Desde a redemocratização, as OSCs conquistaram um grande espaço nas arenas de participação, influenciando, assim, a formulação, implementação, avaliação e controle das políticas públicas. Apesar disso, o marco legal que determina o financiamento delas não se aperfeiçoa para que diante da importância que estes relacionamentos adquiriram, mesmo que algumas mudanças tenham sido realizadas. A criação do Termo de Parceria e uma legislação específica para as OSCs de interesse público não foi suficiente melhorar os ecanismos de transferência de recursos Estatais. Ainda permanece uma insegurança jurídica com a ampla utilização do convênio e de instrumentos inapropriados para as OSCs (Dora & Pannunzio, 2013). Há um maior incentivo e legitimidade para apoiar OSCs como prestadoras de serviços públicos (Lopes & Abreu, 2014) em detrimento do apoio às ações de advocacy, defesa de direitos e controle social (Segatto, 2013).

Este artigo não buscou esgotar a discussão sobre a relação entre as OSCs e o Estado, mas sistematizar os principais referenciais analíticos para o estudo destas relações e analisar o caso brasileiro destacando o papel do marco regulatório e da necessidade de aperfeiçoamento de mecanismos de financiamento. Há uma série de implicações para a gestão e sustentabilidade das OSCs que acessam recursos públicos, brevemente apontadas aqui, que merecem maior aprofundamento considerando o contexto brasileiro e o cenário institucional-legal.

A partir disso, as seguintes questões ainda precisam ser analisadas em futuras pesquisas: relação dos governos estaduais e municipais com as OSCs, especialmente, no âmbito do financiamento; estudos comparativos que analisem a relação entre o Estado e as OSCs que prestam serviços e que realizam advocacy e defesa de direitos; e estudos sobre a influência do financiamento e das exigências para isso, como o SICONV, na estrutura e profissionalização das OSCs. Ainda resta o esforço primordial de se buscar elaborar categorias de análise mais gerais considerando-se literatura aqui levantada e as especificidades do cenário brasileiro.

5. Bibliografia

 

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