reflexÕes sobre intertextualidade com base na …

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RESUMO Resumo: A partir da análise de duas charges, este artigo discute os conceitos de intertextualidade da Linguística Textual e da Análise Crítica do Discurso corrente teórica da Análise do Discurso. O objetivo foi delimitar o conceito de intertextualidade em tais áreas e demonstrar de que forma estas contribuem para a análise do recurso linguístico. Foi possível determinar a importância desse recurso na constituição do discurso irônico e/ou humorístico das charges analisadas e, como os aportes teóricos das áreas foram igualmente relevantes para analisar a intertextualidade contida nas charges, acredita-se que, no que diz respeito a esse objeto de estudo em comum, a interface entre a Análise Crítica do Discurso e a Linguística Textual é produtiva para ambas áreas. Palavras-chave: Linguística Textual. Análise do Discurso. Interfaces. REFLEXÕES SOBRE INTERTEXTUALIDADE COM BASE NA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E NA LINGUÍSTICA TEXTUALO Juliana Regina Pretto 1 Rosana de Fátima Silveira Jammal Padilha 2 1,2 Instituto Federal do Paraná Campus Paranaguá e-mail 1 : [email protected] email 2 : [email protected]

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RESUMO

Resumo: A partir da análise de duas charges, este artigo discute os conceitos de intertextualidade da

Linguística Textual e da Análise Crítica do Discurso – corrente teórica da Análise do Discurso. O

objetivo foi delimitar o conceito de intertextualidade em tais áreas e demonstrar de que forma estas

contribuem para a análise do recurso linguístico. Foi possível determinar a importância desse recurso

na constituição do discurso irônico e/ou humorístico das charges analisadas e, como os aportes

teóricos das áreas foram igualmente relevantes para analisar a intertextualidade contida nas charges,

acredita-se que, no que diz respeito a esse objeto de estudo em comum, a interface entre a Análise

Crítica do Discurso e a Linguística Textual é produtiva para ambas áreas.

Palavras-chave: Linguística Textual. Análise do Discurso. Interfaces.

REFLEXÕES SOBRE INTERTEXTUALIDADE

COM BASE NA ANÁLISE CRÍTICA DO

DISCURSO E NA LINGUÍSTICA TEXTUALO

Juliana Regina Pretto1

Rosana de Fátima Silveira Jammal Padilha2

1,2 Instituto Federal do Paraná – Campus Paranaguá

e-mail1: [email protected]

email2: [email protected]

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INTRODUÇÃO

Procurando entender o texto e em face da complexidade desse intento, a Linguística

Textual (doravante LT) vem estabelecendo aproximações com outros campos da Linguística.

No atual momento, os pesquisadores da LT apontam desafios e perspectivas para o estudo do

texto a partir de outras áreas. Tal enfoque é relativamente recente e o interesse se volta para

discutir as relações entre a LT e outras disciplinas da Linguística para mostrar possíveis

integrações e delimitar os objetos de estudo em comum. Tendo em conta esse novo rumo,

propusemos um projeto de pesquisa para discutir as relações entre a LT e a Análise do

Discurso (doravante AD). O referido projeto, intitulado “Linguística Textual e Análise do

Discurso: interfaces e aproximações”1, motivou a escrita deste artigo, o qual tenta aproximar e

entender as características e delimitações do conceito de intertextualidade em ambas áreas da

Linguística.

A partir da análise de duas charges, pretendemos discutir os conceitos de

intertextualidade da LT e da AD, especificamente da Análise Crítica do Discurso (doravante

ACD), que tem em Fairclough seu maior expoente. Além de delimitar os conceitos em ambas

áreas, também pretende-se demonstrar como elas podem contribuir para a análise da

intertextualidade. Por um lado, lança-se mão das explicações universalizantes da LT para

entender os processos cognitivos envolvidos na forma como produtores e leitores

compreendem os textos analisados. Por outro, usam-se as explicações da ACD ao buscar

determinar como os elementos de ordem de discurso se combinam para constituir o discurso

irônico e/ou humorístico das charges.

INTERTEXTUALIDADE NA LT E NA AD – CONCEITOS E DELIMITAÇÕES

Faiclough (2001) explica a intertextualidade como “a propriedade que têm os textos de

ser cheios de fragmentos de outros textos, que podem ser delimitados explicitamente ou

mesclados e que o texto pode assimilar, contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante”

(FAIRCLOUGH, 2001, p. 114). Ressalta que, em termos da produção, esses textos

“constituem acréscimos às ‘cadeias de comunicação verbal’ existentes”; em termos da

1 Este projeto de pesquisa desenvolve-se no âmbito do Instituto Federal do Paraná, tem como coordenadora a

pesquisadora Juliana Regina Pretto e como colaboradora a pesquisadora Rosana de Fátima Silveira Jammal

Padilha.

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distribuição, sofrem transformação ao mudarem de um tipo de texto para outro; em termos do

consumo, o que molda a interpretação são não somente os textos que o constituem, mas

também “os outros textos que invariavelmente trazem ao processo de interpretação”

(FAIRCLOUGH, 2001, p. 114).

Afirma esse autor que o conceito de intertextualidade está de acordo com seu foco

sobre o discurso na mudança social, pois, como a intertextualidade “responde, reacentua e

retrabalha textos passados”, ela contribui para fazer história e, assim, para os processos de

mudança social (FAIRCLOUGH, 2001, p. 134). O fenômeno de rápida transformação e

reestruturação de tradições textuais e ordens de discurso “sugere que a intertextualidade deve

ser um foco principal na análise de discurso” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 135).

Esse autor acrescenta que a intertextualidade aponta para a produtividade dos textos,

em outras palavras, para “como os textos podem transformar textos anteriores e reestruturar as

convenções existentes (gêneros, discursos) para gerar novos textos”. A produtividade, porém,

se limita às relações de poder e, como a intertextualidade em si não é capaz de explicar as

limitações sociais, ela deve ser combinada com uma teoria das relações de poder e, para isso,

o conceito de hegemonia é especialmente profícuo. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 135)

Segundo Faiclough (2001), os analistas do discurso franceses distinguem

intertextualidade manifesta de intertextualidade constitutiva, conceituando a primeira como

relações intertextuais de textos com outros textos específicos e a segunda como as relações

intertextuais de textos com as convenções (FAIRCLOUGH, 2001, p. 136). O autor prefere

fazer a distinção usando os termos intertextualidade manifesta e interdiscursividade (ao invés

de intertextualidade constitutiva), com o intuito de ressaltar que o foco consiste nas

convenções discursivas, explicando, ainda, que na primeira se lança mão explicitamente de

outros textos específicos em um texto, “estão ‘manifestamente’ marcados ou sugeridos por

traços na superfície do texto, como as aspas” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 136), enquanto na

segunda, “um tipo de discurso é constituído por meio de uma combinação de elementos de

ordens de discurso” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 152), relacionando-se a interdiscursividade à

configuração de convenções discursivas que entram na produção de um texto

(FAIRCLOUGH, 2001, p. 136).

De acordo com Koch (2013), o termo intertextualidade strito sensu “ocorre quando,

em um texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da

memória social de uma coletividade ou da memória discursiva” (KOCH, 2013, p. 145-146).

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Ela pode ser explícita, quando se faz menção à fonte do intertexto com citações e menções,

com o propósito de concordar ou discordar dele. A intertextualidade pode produzir-se de

forma implícita quando não se menciona a fonte do intertexto, “com o objetivo de seguir-lhe a

orientação argumentativa, quer de colocá-lo em questão, para ridicularizá-lo ou argumentar

em sentido contrário” (KOCH, 2013, p. 146). Koch cita como exemplos do primeiro caso as

paráfrases mais ou menos próximas do texto-fonte e no segundo caso inclui os enunciados

parodísticos e/ou irônicos etc. Nesse último caso, de intertextualidade implícita, o produtor do

texto espera que o interlocutor reconheça o intertexto, ativando o texto-fonte em sua memória

discursiva, especialmente em casos de subversão, em que descobrir o intertexto no texto é

essencial para a construção do sentido. Sendo os intertextos trechos de obras literárias,

canções populares, provérbios, frases feitas e ditos populares, fazem parte da memória

coletiva e são, portanto, passíveis de serem acessados pelo interlocutor (KOCH, 2013, p.146-

147).

Para Batista, Jr et al. (2018, p.142) “...interessa, em termos de intertextualidade, que

sua utilização estabeleça uma relação entre o texto e outros textos, discursos, práticas,

ideologias, sentidos, imagens e assim por diante” (BATISTA, Jr et al.; 2018, p.142) e que

essa relação seja observada com o objetivo de destacar que textos e vozes estão presentes ou

ausentes no material analisado, assim como o que essa presença ou ausência tem de

significativa.

O Quadro 1 sintetiza nossas conclusões sobre os conceitos que são alvos deste artigo.

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Quadro 1: análise comparativa dos conceitos de intertextualidade da LT e da AD.

Intertextualidade (LT) Intertextualidade manifesta

(ACD) Interdiscursividade (ACD)

Um texto é constituído por outro

texto que faz parte da memória

social de uma coletividade ou da

memória discursiva dos

interlocutores.

Um texto é constituído

heterogeneamente por outros

textos.

Ocorre pela combinação de

diferentes discursos, que se

relacionam a diferentes posições

das pessoas no mundo e a

diferentes formas de relação entre

as pessoas.

Pode-se recorrer explicita ou

implicitamente a outros textos

específicos, dependendo se se faz

menção à fonte ou não.

Recorre-se explicitamente a outros

textos específicos por meio de

marcas textuais.

Relaciona-se a outros discursos,

guardando relação implícita com

esses, inclusive com discursos

antagônicos.

Esses outros textos podem ser

delimitados, pois podem ser

evidenciados por meio de marcas

textuais.

Esses outros textos podem ser

delimitados.

Esses discursos fundem-se de

maneira mais complexa, existem

nas relações das práticas sociais e

dessa maneira coexistem, em uma

perspectiva analítica, no campo

discursivo.

A LT não se preocupa com as

questões de mudança social.

Contribui para processos de

mudança social.

Contribui para processos de

mudança social.

Como se pode observar, de acordo com o quadro acima apresentado, as noções de

Intertextualidade (LT), a Intertextualidade manifesta e a Interdiscursividade (ACD) permitem

observar formas de constituição do dito, possibilitando a compreensão do fenômeno da

interrelação de falas, em que os textos apresentam em si outros textos; os discursos, outros

discursos.

Observamos aqui que essa interrelação do dito pode ser analisada com base no apoio

da Linguística Textual (LT) e com base na análise crítica do discurso (ACD), que colaboram

cada qual a sua maneira no desvelamento dessas interrelações; a LT permitindo explicitar por

meio da análise linguística esse fenômeno (que pode ser investigado em traços linguísticos

explícitos e implícitos apresentados nos ditos); a ACD por meio de categorias sociológicas,

por dar conta dos traços que não podem ser evidenciados apenas por meio de aparatos

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linguísticos, mas que exigem um conhecimento de contexto histórico, social, político – o que

acaba diferenciando, de certa maneira, o que vem a ser intertextualidade e interdiscursividade.

Ambas são formas de observação da interrelação do dito, mas evidenciam essa

interrelação de maneira própria. Há, com certeza, formas de explicitar a interdiscursividade

em situações de intertextualidade, mas nem sempre há formas de explicitar intertextualidade

em situações de interdiscursividade. Por isso, o apoio analítico de ambas as escolas (LT e

ACD) pode ser enriquecedor nas análises que buscam explicitar a interrelação do dito e a

explicitação do relevante nessa análise.

A QUESTÃO DA INTERTEXTUALIDADE: EXEMPLOS A PARTIR DE CHARGES

A charge condensa informações que obrigam os seus leitores a conhecer fatos de atualidade

para poder compreender as inferências de forma adequada e entender o sentido do texto, o

humor/ironia e a opinião/crítica social nela contidos. A esse respeito Souza (2009) afirma que a charge

sempre tratou de temas relacionados à política utilizando o humor. Para Furtado (2012), a charge

representa um fato cotidiano de forma sátira e irônica, e o seu humor se constrói pela crítica e

caricatura dos fatos feita pelo chargista para elaborar o seu texto a partir da reconstrução de um

acontecimento (FURTADO, 2012, p. 1-2).

Devido a essa caraterística de retomar fatos sociais com o fim de ironizá-los, a charge

revela-se um gênero textual muito importante para a compreensão e análise da

intertextualidade e, em especial, da interdiscursividade. Há que se observar, ainda, que a

charge é um gênero textual no qual a intertextualidade e a interdiscursividade se apresentam

de maneira muito interessante para análise e destaque de questões que se julguem necessárias

de crítica e interpretação. Há como observar muitas formas de interrelação do dito,

possibilitando perceber relações entre o texto e outros textos, discursos, práticas, ideologias,

sentidos, imagens e assim por diante. De tal maneira que essas relações sejam observadas com

o objetivo de destacar que textos, vozes e contextos sociais estão presentes ou ausentes no

material analisado, e o que essa presença ou ausência tem de significativa na análise desse

material.

A charge abaixo, do chargista Duke, foi publicada nas suas redes sociais em 24 de

outubro de 2019 e constitui-se um bom exemplo tanto de intertextualidade quanto de

interdiscursividade.

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Fonte: https://www.facebook.com/dukechargista

Embora o texto da charge não faça uma citação explícita, ela apresenta

intertextualidade com o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade. A relação com

tal poema se dá por meio das marcas textuais utilizadas pelo chargista, semelhantes àquelas

usadas no poema do escritor mineiro: o título da charge, idêntico ao do poema; o paralelismo,

com o uso de orações relativas; a frase final, que quebra o paralelismo. A despeito de em parte

alguma figurar uma citação do nome do poeta, entende-se a intertextualidade por meio dessas

marcas textuais. Portanto, para fazermos relação com a questão da intertextualidade, é

necessário reconhecer esse poema de Drummond, que, aliás, é um de seus textos mais

populares. Ocorre aqui o que Koch (2013, p.146) categoriza como intertextualidade implícita;

o produtor parece esperar do leitor a capacidade de reconhecer a presença do intertexto, pela

ativação do texto-fonte em sua memória discursiva.

Já para entender a interdiscursividade presente na charge, é necessário conhecer o

contexto político e social em que se insere, o discurso de ódio presente no cenário político

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nacional. A interdiscursividade apresenta-se à medida que a charge aborda tal discurso de

ódio ao mostrar, no texto e na imagem, personagens da política nacional que reproduzem esse

discurso. A partir disso, entende-se a ironia no título da charge, uma vez que estabelece uma

ambiguidade no uso da palavra “quadrilha”. Daí entende-se o termo com ideia de quadrilha de

bandidos (tal palavra é comumente empregada com esse sentido para fazer referência a grupos

de políticos), entrecruzando-se aí também o discurso de descrença da política. Dessa forma, é

possível compreender a escolha que fez o chargista pelo poema em questão para estabelecer a

intertextualidade – criticar e ironizar os grupos de políticos que disseminam o discurso de

ódio.

Assim sendo, nessa charge, a intertextualidade se evidencia por meio das marcas

textuais, já que somente é percebida pelo interlocutor se este conhecer o poema do poeta

mineiro; a interdiscursividade é revelada a partir do contexto social e político, visto que, para

que esta seja desvelada, é necessário que o interlocutor conheça tal contexto. Os elementos

que nos levam a perceber a interdiscursividade da charge estão mais intimamente entranhados

no texto, menos explícitos e/ou delimitáveis, pois envolvem fatos sociais recentes e discursos

que circulam correntemente em muitas bocas; os discursos de ódio e de descrença da política

circulam socialmente, não reproduzem a voz de um único sujeito, mas ressoam como um

coro, uma voz social utilizada por um grupo social e conhecida por muitos outros grupos.

Pensando no conceito de Fairclough (2001), é dessa forma que a interdiscursividade se dá,

pela combinação de elementos de ordens de discurso, relacionando-se à configuração de

convenções discursivas, as quais no caso da charge são os discursos de ódio e de descrença

política; tais convenções foram mobilizadas para produzir o texto e articuladas à

intertextualidade. O que nos conduz a apreender a intertextualidade da charge não é algo que

advém de um coro de vozes, mas sim de um texto delimitado, o qual é reconhecível por meio

de suas marcas textuais. Utilizando os termos da LT propostos por Koch (2013), na

intertextualidade, entra em jogo a memória social ou a memória discursiva que os

interlocutores têm do poema de Drummond. Evidentemente a relação com o contexto social e

político também é relevante para a compreensão do sentido da intertextualidade da charge,

porque tal contexto é responsável pelo estabelecimento da coerência do texto, ou seja, é por

meio do contexto social e político que se entende a razão pela qual o chargista escolheu esse

poema e não outro para tecer sua crítica ironicamente, no entanto a intertextualidade em si se

estabelece partindo de um texto específico do poeta de Itabira.

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A charge abaixo, do chargista Nando Motta, foi publicada nas suas redes sociais em 08

de agosto de 2020 e também se apresenta como um exemplo tanto de intertextualidade quanto

de interdiscursividade.

Fonte: https://www.brasil247.com/charges/bichos-escrotos

A charge acima também não cita explicitamente os autores das frases citadas no texto,

mas os referencia por meio de imagem; ao identificar e realizar essa citação de forma indireta.

Como se pode observar, as marcas dessa citação indireta estão na relação entre as caricaturas

das personagens e as suas falas. As caricaturas apresentadas na charge remetem a cinco

pessoas relacionadas a fatos ocorridos e interrelacionados, no atual contexto sócio-histórico

brasileiro, quatro episódios de ações de ódio e a eleição presidencial. Os quatro episódios de

ódio social, estão relacionados a comportamentos de intolerância, arrogância, sentimento de

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superioridade, todos ligados a uma forma de compreender e se compreender na sociedade

nacional. Questão que na charge é compreendida como representação de um sentimento

convergente e que estava guardado no subsolo social, eclodindo, explodindo, emergindo com

a eleição presidencial (representada na charge por símbolos ligados à eleição do presidente,

como, por exemplo, o número do candidato, a cor amarela e no gesto das mãos em formato de

arma).

A caricatura relacionada à fala “Isso aqui é Alphaville” remete ao caso de insultos

desferidos por um empresário de Alfhaville (São Paulo-SP) que ofendeu policiais na porta de

sua casa e não permitiu a entrada desses, em ocorrência filmada. O homem, que teria

cometido violência contra a própria esposa, foi abordado pelos policiais e proferiu a fala já

citada, demonstrando sentir-se superior aos policiais militares por acreditar pertencer a uma

classe social mais abastada e habitar uma região conhecida como de “elite”.

A fala “Você tem inveja” ficou conhecida em razão de um vídeo publicado nas redes

sociais, no qual um homem branco, morador de um bairro de classe alta, humilha e ofende

com falas racistas um entregador de aplicativo. Na discussão, o homem branco, entre outras

falas agressivas, profere: “Você tem inveja disso aqui, fio. Você tem inveja”, apontando para

as casas de sua região, também considerada “nobre”, situação que remete à mesma crença

anteriormente citada, de sentimento de superioridade.

O “Eu sou desembargador!” remete à fala de um desembargador que foi abordado por

fiscais em uma praia de Santos (SP), em razão de não estar respeitando a ordem do uso de

máscara (item obrigatório contra o novo corona vírus). Sentindo-se superior aos fiscais,

comportou-se como se não precisasse cumprir ordens de pessoas comuns, por não se

considerar uma pessoa comum.

“Cidadão não!” remete a outro caso de desacato a fiscalização pelo uso de máscaras

(no combate ao corona vírus), ocorrido no Rio de Janeiro (RJ) em uma abordagem na qual um

casal agride verbalmente fiscais públicos, demonstrando também um sentimento de

superioridade em relação aos fiscais. A mulher do casal se revolta ao ouvir na solicitação do

fiscal o termo “cidadão”, e se coloca raivosamente a esbravejar que ele estava abordando um

engenheiro e não uma pessoa comum.

O temo “comunistas” se refere ao episódio ocorrido na praia de Copacabana (RJ), no

qual um aposentado de 78 anos derrubou cruzes em homenagem aos mortos por corona vírus,

as quais estavam espalhadas pelas areias da praia. Ao justificar seu ato, disse estar revoltado

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contra os comunistas, esquerdistas, referindo-se à homenagem como uma ação terrorista e

colocando-se a si mesmo como um revoltado contra a esquerda.

E por fim, a fala “vagabundos”, proferida pelo único personagem que não remete a

uma pessoa real, converge as demais falas proferidas pelos personagens reais. Personagem

esse que representa a voz dessa classe, e a representação do discurso de ódio que transpassa

todas essas falas apresentadas na charge. E tal personagem explode do bueiro da sociedade

nacional, numa imagem que representa a forma que o chargista compreende e critica o atual

contexto sócio-político. Daí vem a intertextualidade estabelecida no título da charge, “Bichos

escrotos”, fazendo referência a uma letra de música da banda Titãs, que repete “bichos

escrotos,/ saiam dos esgotos”. Essa intertextualidade do título não foi estabelecida

aleatoriamente; as letras da banda em questão teciam ácidas críticas sociais e a referida

canção, lançada na década de 1980, ainda sob o regime militar, foi alvo de censura, tendo sido

muito popular à época e estando, portanto, na memória discursiva de muitos. A canção

conclama os “bichos escrotos” a entrarem “nos sapatos dos cidadãos civilizados”, ou seja,

trata-se de um claro convite à subversão da ordem estabelecida. Na charge é feita uma

releitura da canção para os dias atuais: os bichos escrotos são outros e estão nas entranhas de

cidadãos nada civilizados.

Dessa forma, observa-se aqui que a intertextualidade pode ser identificada na relação

das falas e de seus autores, palavras proferidas em atos isolados, mas que no contexto social

se relacionam, e são retomadas ipsis litteris na charge. A intertextualidade se revela pelas

frases ditas pelas personagens reais, pela relação do título da charge com a letra da música e

pelas imagens das personagens; encontra-se na superfície textual (do texto verbal e não-

verbal), estando, assim, claramente delimitável. A interdiscursividade pode ser observada na

crítica do chargista ao discurso de ódio, através da citação de falas específicas, relacionadas

em um mesmo texto, possibilitando a reflexão conjunta do dito, suas motivações e

correlações. Na interdiscursividade contida na charge, tais falas integram o discurso de ódio

de um grupo social, se mesclam e se unificam para indicar que todas as falas, na verdade,

convergem para o discurso de ódio; dito de outro modo, apesar de serem falas específicas,

refletem um discurso que se reproduz socialmente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como objetivos: aproximar e entender as características e delimitações

do conceito de intertextualidade nas áreas da AD e da LT, da Linguística; discutir e delimitar

os conceitos no intento de demonstrar como eles contribuem para a análise da

intertextualidade através da análise de duas charges.

Observou-se que o conceito de intertextualidade e interdiscursividade se aproximam

no que tange a explicitar, de maneiras distintas: i) a interrelação do dito, ii) as relações entre o

texto e outros textos, discursos, práticas, ideologias, sentidos, imagens e assim por diante.

Com o fim de caracterizar de forma mais concreta a questão da intertextualidade e

refletir sobre a contribuição da LT e da AD para a discussão, realizou-se a análise das charges

“Quadrilha” do chargista Duke, e “Bichos-escrotos” do chargista Nando Motta. Assim, com

base na LT foi possível explicitar em termos de análises linguísticas o fenômeno da

intertextualidade identificado nas charges analisadas e, com o apoio da ACD, explicitar traços

que não puderam ser evidenciados apenas por meio de aparatos linguísticos, observando-se,

dessa forma, como o discurso de ódio foi evidenciado e criticado em ambas as charges, em

um tratamento satírico, em um humor analítico, repleto de elementos sociais caricaturados.

Portanto, os aportes teóricos de ambas áreas se revelaram essenciais para analisar a

intertextualidade das charges e, com base nisso, acredita-se que, no que concerne à análise da

intertextualidade, a interface entre a ACD e a LT é igualmente produtiva para as duas áreas.

REFLECTIONS ON INTERTEXTUALITY BASED ON CRITICAL ANALYSIS OF

DISCOURSE AND TEXTUAL LINGUISTICS

Abstract: From the analysis of two cartoons, this article discusses the concepts of

intertextuality of Textual Linguistics and Critical Analysis of Discourse – theoretical current

of Discourse Analysis. The objective was to delimit the concept of intertextuality in such

areas and demonstrate how they contribute to the analysis of the linguistics resource. It was

possible to determine the importance of this resource in the constitution of the ironic and/or

humorous discourse of the cartoons analyzed and, as the theoretical contributions of areas

were equally relevant to analyze the intertextuality contained in the cartoons, it is believed

that, with regard to this object in common study, the interface between the Critical Analysis

of Discourse and the Textual Linguistics is productive for both areas.

Keywords: Textual Linguistics; Discourse Analysis; Interfaces.

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REFLEXIONES SOBRE INTERTEXTUALIDAD BASADAS EN EL ANÁLISIS

CRÍTICO DEL DISCURSO Y EN LA LINGÜÍSTICA DE TEXTO

Resumen: A partir del análisis de dos caricaturas, este artículo discute los conceptos de

intertextualidad de la Lingüística de Texto y del Análisis Crítico del Discurso – enfoque

teórico del Análisis del Discurso. El objetivo ha sido delimitar el concepto de intertextualidad

en dichas áreas y demostrar de que forma éstas contribuyen al análisis del recurso lingüístico.

Se ha podido determinar la importancia de ese recurso en la constitución del discurso

irónico/humorístico de las caricaturas analizadas y, como los aportes teóricos de las áreas han

sido igualmente relevantes para analizar la intertextualidad presente en las caricaturas, se cree

que, en relación a tal objeto de estudio común, la interfaz entre el Análisis del Discurso y la

Lingüística de Texto es productiva para ambas áreas.

Palabras clave: Lingüística de Texto; Análisis del Discurso; Interfaz.

REFERÊNCIAS

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SATO, D. T. B.; MELO, I. F de. (orgs.). Análise de discurso crítica para linguistas e não

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MAGALHÃES, Celia Maria A análise crítica do discurso como teoria e método de estudo. In:

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