reflexÕes sobre intertextualidade com base na …
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RESUMO
Resumo: A partir da análise de duas charges, este artigo discute os conceitos de intertextualidade da
Linguística Textual e da Análise Crítica do Discurso – corrente teórica da Análise do Discurso. O
objetivo foi delimitar o conceito de intertextualidade em tais áreas e demonstrar de que forma estas
contribuem para a análise do recurso linguístico. Foi possível determinar a importância desse recurso
na constituição do discurso irônico e/ou humorístico das charges analisadas e, como os aportes
teóricos das áreas foram igualmente relevantes para analisar a intertextualidade contida nas charges,
acredita-se que, no que diz respeito a esse objeto de estudo em comum, a interface entre a Análise
Crítica do Discurso e a Linguística Textual é produtiva para ambas áreas.
Palavras-chave: Linguística Textual. Análise do Discurso. Interfaces.
REFLEXÕES SOBRE INTERTEXTUALIDADE
COM BASE NA ANÁLISE CRÍTICA DO
DISCURSO E NA LINGUÍSTICA TEXTUALO
Juliana Regina Pretto1
Rosana de Fátima Silveira Jammal Padilha2
1,2 Instituto Federal do Paraná – Campus Paranaguá
e-mail1: [email protected]
email2: [email protected]
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INTRODUÇÃO
Procurando entender o texto e em face da complexidade desse intento, a Linguística
Textual (doravante LT) vem estabelecendo aproximações com outros campos da Linguística.
No atual momento, os pesquisadores da LT apontam desafios e perspectivas para o estudo do
texto a partir de outras áreas. Tal enfoque é relativamente recente e o interesse se volta para
discutir as relações entre a LT e outras disciplinas da Linguística para mostrar possíveis
integrações e delimitar os objetos de estudo em comum. Tendo em conta esse novo rumo,
propusemos um projeto de pesquisa para discutir as relações entre a LT e a Análise do
Discurso (doravante AD). O referido projeto, intitulado “Linguística Textual e Análise do
Discurso: interfaces e aproximações”1, motivou a escrita deste artigo, o qual tenta aproximar e
entender as características e delimitações do conceito de intertextualidade em ambas áreas da
Linguística.
A partir da análise de duas charges, pretendemos discutir os conceitos de
intertextualidade da LT e da AD, especificamente da Análise Crítica do Discurso (doravante
ACD), que tem em Fairclough seu maior expoente. Além de delimitar os conceitos em ambas
áreas, também pretende-se demonstrar como elas podem contribuir para a análise da
intertextualidade. Por um lado, lança-se mão das explicações universalizantes da LT para
entender os processos cognitivos envolvidos na forma como produtores e leitores
compreendem os textos analisados. Por outro, usam-se as explicações da ACD ao buscar
determinar como os elementos de ordem de discurso se combinam para constituir o discurso
irônico e/ou humorístico das charges.
INTERTEXTUALIDADE NA LT E NA AD – CONCEITOS E DELIMITAÇÕES
Faiclough (2001) explica a intertextualidade como “a propriedade que têm os textos de
ser cheios de fragmentos de outros textos, que podem ser delimitados explicitamente ou
mesclados e que o texto pode assimilar, contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante”
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 114). Ressalta que, em termos da produção, esses textos
“constituem acréscimos às ‘cadeias de comunicação verbal’ existentes”; em termos da
1 Este projeto de pesquisa desenvolve-se no âmbito do Instituto Federal do Paraná, tem como coordenadora a
pesquisadora Juliana Regina Pretto e como colaboradora a pesquisadora Rosana de Fátima Silveira Jammal
Padilha.
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distribuição, sofrem transformação ao mudarem de um tipo de texto para outro; em termos do
consumo, o que molda a interpretação são não somente os textos que o constituem, mas
também “os outros textos que invariavelmente trazem ao processo de interpretação”
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 114).
Afirma esse autor que o conceito de intertextualidade está de acordo com seu foco
sobre o discurso na mudança social, pois, como a intertextualidade “responde, reacentua e
retrabalha textos passados”, ela contribui para fazer história e, assim, para os processos de
mudança social (FAIRCLOUGH, 2001, p. 134). O fenômeno de rápida transformação e
reestruturação de tradições textuais e ordens de discurso “sugere que a intertextualidade deve
ser um foco principal na análise de discurso” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 135).
Esse autor acrescenta que a intertextualidade aponta para a produtividade dos textos,
em outras palavras, para “como os textos podem transformar textos anteriores e reestruturar as
convenções existentes (gêneros, discursos) para gerar novos textos”. A produtividade, porém,
se limita às relações de poder e, como a intertextualidade em si não é capaz de explicar as
limitações sociais, ela deve ser combinada com uma teoria das relações de poder e, para isso,
o conceito de hegemonia é especialmente profícuo. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 135)
Segundo Faiclough (2001), os analistas do discurso franceses distinguem
intertextualidade manifesta de intertextualidade constitutiva, conceituando a primeira como
relações intertextuais de textos com outros textos específicos e a segunda como as relações
intertextuais de textos com as convenções (FAIRCLOUGH, 2001, p. 136). O autor prefere
fazer a distinção usando os termos intertextualidade manifesta e interdiscursividade (ao invés
de intertextualidade constitutiva), com o intuito de ressaltar que o foco consiste nas
convenções discursivas, explicando, ainda, que na primeira se lança mão explicitamente de
outros textos específicos em um texto, “estão ‘manifestamente’ marcados ou sugeridos por
traços na superfície do texto, como as aspas” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 136), enquanto na
segunda, “um tipo de discurso é constituído por meio de uma combinação de elementos de
ordens de discurso” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 152), relacionando-se a interdiscursividade à
configuração de convenções discursivas que entram na produção de um texto
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 136).
De acordo com Koch (2013), o termo intertextualidade strito sensu “ocorre quando,
em um texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da
memória social de uma coletividade ou da memória discursiva” (KOCH, 2013, p. 145-146).
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Ela pode ser explícita, quando se faz menção à fonte do intertexto com citações e menções,
com o propósito de concordar ou discordar dele. A intertextualidade pode produzir-se de
forma implícita quando não se menciona a fonte do intertexto, “com o objetivo de seguir-lhe a
orientação argumentativa, quer de colocá-lo em questão, para ridicularizá-lo ou argumentar
em sentido contrário” (KOCH, 2013, p. 146). Koch cita como exemplos do primeiro caso as
paráfrases mais ou menos próximas do texto-fonte e no segundo caso inclui os enunciados
parodísticos e/ou irônicos etc. Nesse último caso, de intertextualidade implícita, o produtor do
texto espera que o interlocutor reconheça o intertexto, ativando o texto-fonte em sua memória
discursiva, especialmente em casos de subversão, em que descobrir o intertexto no texto é
essencial para a construção do sentido. Sendo os intertextos trechos de obras literárias,
canções populares, provérbios, frases feitas e ditos populares, fazem parte da memória
coletiva e são, portanto, passíveis de serem acessados pelo interlocutor (KOCH, 2013, p.146-
147).
Para Batista, Jr et al. (2018, p.142) “...interessa, em termos de intertextualidade, que
sua utilização estabeleça uma relação entre o texto e outros textos, discursos, práticas,
ideologias, sentidos, imagens e assim por diante” (BATISTA, Jr et al.; 2018, p.142) e que
essa relação seja observada com o objetivo de destacar que textos e vozes estão presentes ou
ausentes no material analisado, assim como o que essa presença ou ausência tem de
significativa.
O Quadro 1 sintetiza nossas conclusões sobre os conceitos que são alvos deste artigo.
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Quadro 1: análise comparativa dos conceitos de intertextualidade da LT e da AD.
Intertextualidade (LT) Intertextualidade manifesta
(ACD) Interdiscursividade (ACD)
Um texto é constituído por outro
texto que faz parte da memória
social de uma coletividade ou da
memória discursiva dos
interlocutores.
Um texto é constituído
heterogeneamente por outros
textos.
Ocorre pela combinação de
diferentes discursos, que se
relacionam a diferentes posições
das pessoas no mundo e a
diferentes formas de relação entre
as pessoas.
Pode-se recorrer explicita ou
implicitamente a outros textos
específicos, dependendo se se faz
menção à fonte ou não.
Recorre-se explicitamente a outros
textos específicos por meio de
marcas textuais.
Relaciona-se a outros discursos,
guardando relação implícita com
esses, inclusive com discursos
antagônicos.
Esses outros textos podem ser
delimitados, pois podem ser
evidenciados por meio de marcas
textuais.
Esses outros textos podem ser
delimitados.
Esses discursos fundem-se de
maneira mais complexa, existem
nas relações das práticas sociais e
dessa maneira coexistem, em uma
perspectiva analítica, no campo
discursivo.
A LT não se preocupa com as
questões de mudança social.
Contribui para processos de
mudança social.
Contribui para processos de
mudança social.
Como se pode observar, de acordo com o quadro acima apresentado, as noções de
Intertextualidade (LT), a Intertextualidade manifesta e a Interdiscursividade (ACD) permitem
observar formas de constituição do dito, possibilitando a compreensão do fenômeno da
interrelação de falas, em que os textos apresentam em si outros textos; os discursos, outros
discursos.
Observamos aqui que essa interrelação do dito pode ser analisada com base no apoio
da Linguística Textual (LT) e com base na análise crítica do discurso (ACD), que colaboram
cada qual a sua maneira no desvelamento dessas interrelações; a LT permitindo explicitar por
meio da análise linguística esse fenômeno (que pode ser investigado em traços linguísticos
explícitos e implícitos apresentados nos ditos); a ACD por meio de categorias sociológicas,
por dar conta dos traços que não podem ser evidenciados apenas por meio de aparatos
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linguísticos, mas que exigem um conhecimento de contexto histórico, social, político – o que
acaba diferenciando, de certa maneira, o que vem a ser intertextualidade e interdiscursividade.
Ambas são formas de observação da interrelação do dito, mas evidenciam essa
interrelação de maneira própria. Há, com certeza, formas de explicitar a interdiscursividade
em situações de intertextualidade, mas nem sempre há formas de explicitar intertextualidade
em situações de interdiscursividade. Por isso, o apoio analítico de ambas as escolas (LT e
ACD) pode ser enriquecedor nas análises que buscam explicitar a interrelação do dito e a
explicitação do relevante nessa análise.
A QUESTÃO DA INTERTEXTUALIDADE: EXEMPLOS A PARTIR DE CHARGES
A charge condensa informações que obrigam os seus leitores a conhecer fatos de atualidade
para poder compreender as inferências de forma adequada e entender o sentido do texto, o
humor/ironia e a opinião/crítica social nela contidos. A esse respeito Souza (2009) afirma que a charge
sempre tratou de temas relacionados à política utilizando o humor. Para Furtado (2012), a charge
representa um fato cotidiano de forma sátira e irônica, e o seu humor se constrói pela crítica e
caricatura dos fatos feita pelo chargista para elaborar o seu texto a partir da reconstrução de um
acontecimento (FURTADO, 2012, p. 1-2).
Devido a essa caraterística de retomar fatos sociais com o fim de ironizá-los, a charge
revela-se um gênero textual muito importante para a compreensão e análise da
intertextualidade e, em especial, da interdiscursividade. Há que se observar, ainda, que a
charge é um gênero textual no qual a intertextualidade e a interdiscursividade se apresentam
de maneira muito interessante para análise e destaque de questões que se julguem necessárias
de crítica e interpretação. Há como observar muitas formas de interrelação do dito,
possibilitando perceber relações entre o texto e outros textos, discursos, práticas, ideologias,
sentidos, imagens e assim por diante. De tal maneira que essas relações sejam observadas com
o objetivo de destacar que textos, vozes e contextos sociais estão presentes ou ausentes no
material analisado, e o que essa presença ou ausência tem de significativa na análise desse
material.
A charge abaixo, do chargista Duke, foi publicada nas suas redes sociais em 24 de
outubro de 2019 e constitui-se um bom exemplo tanto de intertextualidade quanto de
interdiscursividade.
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Fonte: https://www.facebook.com/dukechargista
Embora o texto da charge não faça uma citação explícita, ela apresenta
intertextualidade com o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade. A relação com
tal poema se dá por meio das marcas textuais utilizadas pelo chargista, semelhantes àquelas
usadas no poema do escritor mineiro: o título da charge, idêntico ao do poema; o paralelismo,
com o uso de orações relativas; a frase final, que quebra o paralelismo. A despeito de em parte
alguma figurar uma citação do nome do poeta, entende-se a intertextualidade por meio dessas
marcas textuais. Portanto, para fazermos relação com a questão da intertextualidade, é
necessário reconhecer esse poema de Drummond, que, aliás, é um de seus textos mais
populares. Ocorre aqui o que Koch (2013, p.146) categoriza como intertextualidade implícita;
o produtor parece esperar do leitor a capacidade de reconhecer a presença do intertexto, pela
ativação do texto-fonte em sua memória discursiva.
Já para entender a interdiscursividade presente na charge, é necessário conhecer o
contexto político e social em que se insere, o discurso de ódio presente no cenário político
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nacional. A interdiscursividade apresenta-se à medida que a charge aborda tal discurso de
ódio ao mostrar, no texto e na imagem, personagens da política nacional que reproduzem esse
discurso. A partir disso, entende-se a ironia no título da charge, uma vez que estabelece uma
ambiguidade no uso da palavra “quadrilha”. Daí entende-se o termo com ideia de quadrilha de
bandidos (tal palavra é comumente empregada com esse sentido para fazer referência a grupos
de políticos), entrecruzando-se aí também o discurso de descrença da política. Dessa forma, é
possível compreender a escolha que fez o chargista pelo poema em questão para estabelecer a
intertextualidade – criticar e ironizar os grupos de políticos que disseminam o discurso de
ódio.
Assim sendo, nessa charge, a intertextualidade se evidencia por meio das marcas
textuais, já que somente é percebida pelo interlocutor se este conhecer o poema do poeta
mineiro; a interdiscursividade é revelada a partir do contexto social e político, visto que, para
que esta seja desvelada, é necessário que o interlocutor conheça tal contexto. Os elementos
que nos levam a perceber a interdiscursividade da charge estão mais intimamente entranhados
no texto, menos explícitos e/ou delimitáveis, pois envolvem fatos sociais recentes e discursos
que circulam correntemente em muitas bocas; os discursos de ódio e de descrença da política
circulam socialmente, não reproduzem a voz de um único sujeito, mas ressoam como um
coro, uma voz social utilizada por um grupo social e conhecida por muitos outros grupos.
Pensando no conceito de Fairclough (2001), é dessa forma que a interdiscursividade se dá,
pela combinação de elementos de ordens de discurso, relacionando-se à configuração de
convenções discursivas, as quais no caso da charge são os discursos de ódio e de descrença
política; tais convenções foram mobilizadas para produzir o texto e articuladas à
intertextualidade. O que nos conduz a apreender a intertextualidade da charge não é algo que
advém de um coro de vozes, mas sim de um texto delimitado, o qual é reconhecível por meio
de suas marcas textuais. Utilizando os termos da LT propostos por Koch (2013), na
intertextualidade, entra em jogo a memória social ou a memória discursiva que os
interlocutores têm do poema de Drummond. Evidentemente a relação com o contexto social e
político também é relevante para a compreensão do sentido da intertextualidade da charge,
porque tal contexto é responsável pelo estabelecimento da coerência do texto, ou seja, é por
meio do contexto social e político que se entende a razão pela qual o chargista escolheu esse
poema e não outro para tecer sua crítica ironicamente, no entanto a intertextualidade em si se
estabelece partindo de um texto específico do poeta de Itabira.
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A charge abaixo, do chargista Nando Motta, foi publicada nas suas redes sociais em 08
de agosto de 2020 e também se apresenta como um exemplo tanto de intertextualidade quanto
de interdiscursividade.
Fonte: https://www.brasil247.com/charges/bichos-escrotos
A charge acima também não cita explicitamente os autores das frases citadas no texto,
mas os referencia por meio de imagem; ao identificar e realizar essa citação de forma indireta.
Como se pode observar, as marcas dessa citação indireta estão na relação entre as caricaturas
das personagens e as suas falas. As caricaturas apresentadas na charge remetem a cinco
pessoas relacionadas a fatos ocorridos e interrelacionados, no atual contexto sócio-histórico
brasileiro, quatro episódios de ações de ódio e a eleição presidencial. Os quatro episódios de
ódio social, estão relacionados a comportamentos de intolerância, arrogância, sentimento de
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superioridade, todos ligados a uma forma de compreender e se compreender na sociedade
nacional. Questão que na charge é compreendida como representação de um sentimento
convergente e que estava guardado no subsolo social, eclodindo, explodindo, emergindo com
a eleição presidencial (representada na charge por símbolos ligados à eleição do presidente,
como, por exemplo, o número do candidato, a cor amarela e no gesto das mãos em formato de
arma).
A caricatura relacionada à fala “Isso aqui é Alphaville” remete ao caso de insultos
desferidos por um empresário de Alfhaville (São Paulo-SP) que ofendeu policiais na porta de
sua casa e não permitiu a entrada desses, em ocorrência filmada. O homem, que teria
cometido violência contra a própria esposa, foi abordado pelos policiais e proferiu a fala já
citada, demonstrando sentir-se superior aos policiais militares por acreditar pertencer a uma
classe social mais abastada e habitar uma região conhecida como de “elite”.
A fala “Você tem inveja” ficou conhecida em razão de um vídeo publicado nas redes
sociais, no qual um homem branco, morador de um bairro de classe alta, humilha e ofende
com falas racistas um entregador de aplicativo. Na discussão, o homem branco, entre outras
falas agressivas, profere: “Você tem inveja disso aqui, fio. Você tem inveja”, apontando para
as casas de sua região, também considerada “nobre”, situação que remete à mesma crença
anteriormente citada, de sentimento de superioridade.
O “Eu sou desembargador!” remete à fala de um desembargador que foi abordado por
fiscais em uma praia de Santos (SP), em razão de não estar respeitando a ordem do uso de
máscara (item obrigatório contra o novo corona vírus). Sentindo-se superior aos fiscais,
comportou-se como se não precisasse cumprir ordens de pessoas comuns, por não se
considerar uma pessoa comum.
“Cidadão não!” remete a outro caso de desacato a fiscalização pelo uso de máscaras
(no combate ao corona vírus), ocorrido no Rio de Janeiro (RJ) em uma abordagem na qual um
casal agride verbalmente fiscais públicos, demonstrando também um sentimento de
superioridade em relação aos fiscais. A mulher do casal se revolta ao ouvir na solicitação do
fiscal o termo “cidadão”, e se coloca raivosamente a esbravejar que ele estava abordando um
engenheiro e não uma pessoa comum.
O temo “comunistas” se refere ao episódio ocorrido na praia de Copacabana (RJ), no
qual um aposentado de 78 anos derrubou cruzes em homenagem aos mortos por corona vírus,
as quais estavam espalhadas pelas areias da praia. Ao justificar seu ato, disse estar revoltado
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contra os comunistas, esquerdistas, referindo-se à homenagem como uma ação terrorista e
colocando-se a si mesmo como um revoltado contra a esquerda.
E por fim, a fala “vagabundos”, proferida pelo único personagem que não remete a
uma pessoa real, converge as demais falas proferidas pelos personagens reais. Personagem
esse que representa a voz dessa classe, e a representação do discurso de ódio que transpassa
todas essas falas apresentadas na charge. E tal personagem explode do bueiro da sociedade
nacional, numa imagem que representa a forma que o chargista compreende e critica o atual
contexto sócio-político. Daí vem a intertextualidade estabelecida no título da charge, “Bichos
escrotos”, fazendo referência a uma letra de música da banda Titãs, que repete “bichos
escrotos,/ saiam dos esgotos”. Essa intertextualidade do título não foi estabelecida
aleatoriamente; as letras da banda em questão teciam ácidas críticas sociais e a referida
canção, lançada na década de 1980, ainda sob o regime militar, foi alvo de censura, tendo sido
muito popular à época e estando, portanto, na memória discursiva de muitos. A canção
conclama os “bichos escrotos” a entrarem “nos sapatos dos cidadãos civilizados”, ou seja,
trata-se de um claro convite à subversão da ordem estabelecida. Na charge é feita uma
releitura da canção para os dias atuais: os bichos escrotos são outros e estão nas entranhas de
cidadãos nada civilizados.
Dessa forma, observa-se aqui que a intertextualidade pode ser identificada na relação
das falas e de seus autores, palavras proferidas em atos isolados, mas que no contexto social
se relacionam, e são retomadas ipsis litteris na charge. A intertextualidade se revela pelas
frases ditas pelas personagens reais, pela relação do título da charge com a letra da música e
pelas imagens das personagens; encontra-se na superfície textual (do texto verbal e não-
verbal), estando, assim, claramente delimitável. A interdiscursividade pode ser observada na
crítica do chargista ao discurso de ódio, através da citação de falas específicas, relacionadas
em um mesmo texto, possibilitando a reflexão conjunta do dito, suas motivações e
correlações. Na interdiscursividade contida na charge, tais falas integram o discurso de ódio
de um grupo social, se mesclam e se unificam para indicar que todas as falas, na verdade,
convergem para o discurso de ódio; dito de outro modo, apesar de serem falas específicas,
refletem um discurso que se reproduz socialmente.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo teve como objetivos: aproximar e entender as características e delimitações
do conceito de intertextualidade nas áreas da AD e da LT, da Linguística; discutir e delimitar
os conceitos no intento de demonstrar como eles contribuem para a análise da
intertextualidade através da análise de duas charges.
Observou-se que o conceito de intertextualidade e interdiscursividade se aproximam
no que tange a explicitar, de maneiras distintas: i) a interrelação do dito, ii) as relações entre o
texto e outros textos, discursos, práticas, ideologias, sentidos, imagens e assim por diante.
Com o fim de caracterizar de forma mais concreta a questão da intertextualidade e
refletir sobre a contribuição da LT e da AD para a discussão, realizou-se a análise das charges
“Quadrilha” do chargista Duke, e “Bichos-escrotos” do chargista Nando Motta. Assim, com
base na LT foi possível explicitar em termos de análises linguísticas o fenômeno da
intertextualidade identificado nas charges analisadas e, com o apoio da ACD, explicitar traços
que não puderam ser evidenciados apenas por meio de aparatos linguísticos, observando-se,
dessa forma, como o discurso de ódio foi evidenciado e criticado em ambas as charges, em
um tratamento satírico, em um humor analítico, repleto de elementos sociais caricaturados.
Portanto, os aportes teóricos de ambas áreas se revelaram essenciais para analisar a
intertextualidade das charges e, com base nisso, acredita-se que, no que concerne à análise da
intertextualidade, a interface entre a ACD e a LT é igualmente produtiva para as duas áreas.
REFLECTIONS ON INTERTEXTUALITY BASED ON CRITICAL ANALYSIS OF
DISCOURSE AND TEXTUAL LINGUISTICS
Abstract: From the analysis of two cartoons, this article discusses the concepts of
intertextuality of Textual Linguistics and Critical Analysis of Discourse – theoretical current
of Discourse Analysis. The objective was to delimit the concept of intertextuality in such
areas and demonstrate how they contribute to the analysis of the linguistics resource. It was
possible to determine the importance of this resource in the constitution of the ironic and/or
humorous discourse of the cartoons analyzed and, as the theoretical contributions of areas
were equally relevant to analyze the intertextuality contained in the cartoons, it is believed
that, with regard to this object in common study, the interface between the Critical Analysis
of Discourse and the Textual Linguistics is productive for both areas.
Keywords: Textual Linguistics; Discourse Analysis; Interfaces.
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REFLEXIONES SOBRE INTERTEXTUALIDAD BASADAS EN EL ANÁLISIS
CRÍTICO DEL DISCURSO Y EN LA LINGÜÍSTICA DE TEXTO
Resumen: A partir del análisis de dos caricaturas, este artículo discute los conceptos de
intertextualidad de la Lingüística de Texto y del Análisis Crítico del Discurso – enfoque
teórico del Análisis del Discurso. El objetivo ha sido delimitar el concepto de intertextualidad
en dichas áreas y demostrar de que forma éstas contribuyen al análisis del recurso lingüístico.
Se ha podido determinar la importancia de ese recurso en la constitución del discurso
irónico/humorístico de las caricaturas analizadas y, como los aportes teóricos de las áreas han
sido igualmente relevantes para analizar la intertextualidad presente en las caricaturas, se cree
que, en relación a tal objeto de estudio común, la interfaz entre el Análisis del Discurso y la
Lingüística de Texto es productiva para ambas áreas.
Palabras clave: Lingüística de Texto; Análisis del Discurso; Interfaz.
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