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CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 62, p. 331-352, Maio/Ago. 2011 331 Nathalie Bressiani REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO - NANCY FRASER ENTRE JÜRGEN HABERMAS E AXEL HONNETH Nathalie Bressiani * O debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth sobre redistribuição e reconhecimento abarca uma multiplicidade de questões. Tomando como fio condutor a pergunta acerca da possibili- dade de compreender o conjunto de injustiças existentes a partir do conceito de reconheci- mento ou da necessidade de recorrer, para isso, ao par conceitual redistribuição e reconheci- mento, este artigo tem como objetivo defender que a disputa entre o monismo de Honneth e o dualismo de Fraser remete a discordâncias em suas teorias sociais. A partir de uma reconstru- ção das críticas dirigidas pelos autores ao dualismo social de Jürgen Habermas, bem como das diferentes teorias sociais que desenvolvem com o intuito de resolvê-las, procuraremos tam- bém mostrar que as saídas encontradas por eles a essas dificuldades estão no centro do debate sobre redistribuição e reconhecimento e que Fraser, ao desenvolver um dualismo social perspectivo, adota uma posição intermediária àquelas sustentadas por Honneth e Habermas. PALAVRAS-CHAVE: redistribuição, reconhecimento, teoria social, Nancy Fraser, Axel Honneth. DOSSIÊ REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO: INTRODUZINDO O DEBATE O debate sobre redistribuição e reconhe- cimento mobilizou e continua a mobilizar o es- forço de diversos autores, 1 cujo resultado pode- mos observar nos vários textos publicados re- centemente sobre o assunto. 2 Se há, contudo, uma inegável diversidade de autores, bem como de posições no interior desse debate, é o livro Redistribuição ou Reconhecimento? Uma con- trovérsia político-filosófica (Fraser; Honneth, 2003), composto por textos de Nancy Fraser e Axel Honneth, que aparece como principal refe- rência para aqueles que procuram marcar sua posição a respeito do que seria necessário atual- mente para a realização da justiça: redistribuição, reconhecimento, ou ambos. O estabelecimento do debate sobre justiça nesses termos se deve, contudo, à publicação, oito anos antes, do artigo de Nancy Fraser, “Da redistribuição ao reconhe- cimento? Dilemas da justiça na era pós-socialis- ta” (Fraser, 1995, 2001). 3 Nesse artigo, Fraser diagnostica uma cres- cente polarização entre aqueles que veem na redistribuição de recursos e riquezas a solução para o conjunto de injustiças hoje existentes 4 e * Doutoranda em Filosofia. Professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, sala 1007. Cep: 05508- 900. São Paulo - SP - Brasil. [email protected] 1 A mesma tendência, mesmo que em menor grau, pode ser também observada no Brasil, onde teses, artigos e tradu- ções de textos que abordam temáticas relativas à redistribuição e ao reconhecimento e ao debate que se es- tabeleceu entre Fraser e Honneth começam a ser publica- dos e a ganhar maior visibilidade (Cf. J. Silva, 2008; Sou- za e Mattos 2007; Mattos, 2006; Pinto, 2008; Avritzer, 2007; Cunha, 2009). 2 Dentre diversos autores, destacam-se os trabalhos de Iris Young (Young, 1997), Seyla Benhabib (Benhabib, 2002, cap.3), Christopher Zurn (2005), Rainer Fosrt (2008), Judith Butler (2008), Lois McNay (2008, cap.3). 3 O artigo de Fraser pode ser visto como o ponto inicial do debate sobre redistribuição e reconhecimento. Isso, con- tudo, não significa que a questão não se colocasse antes. Pelo contrário, nesse artigo, Fraser diagnostica uma situa- ção preeexistente. A disputa entre representantes de am- bos os lados já se fazia presente, mesmo que não tivesse sido tematizada nos termos propostos por Fraser (Cf. Stavenhagen, 1978). 4 Dentre aqueles que teriam tentado conceitualizar as for- mas socioeconômicas de injustiça, Fraser cita Karl Marx, John Rawls, Amartya Sen e, por fim, Ronald Dworkin (Fraser, 2001, p.249). Ingrid Robeyns procura se contra- por a Fraser, afirmando que a teoria de Amartya Sen con- seguiria abarcar também o que Fraser denomina de ques-

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REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO - NANCY FRASERENTRE JÜRGEN HABERMAS E AXEL HONNETH

Nathalie Bressiani*

O debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth sobre redistribuição e reconhecimento abarcauma multiplicidade de questões. Tomando como fio condutor a pergunta acerca da possibili-dade de compreender o conjunto de injustiças existentes a partir do conceito de reconheci-mento ou da necessidade de recorrer, para isso, ao par conceitual redistribuição e reconheci-mento, este artigo tem como objetivo defender que a disputa entre o monismo de Honneth e odualismo de Fraser remete a discordâncias em suas teorias sociais. A partir de uma reconstru-ção das críticas dirigidas pelos autores ao dualismo social de Jürgen Habermas, bem como dasdiferentes teorias sociais que desenvolvem com o intuito de resolvê-las, procuraremos tam-bém mostrar que as saídas encontradas por eles a essas dificuldades estão no centro do debatesobre redistribuição e reconhecimento e que Fraser, ao desenvolver um dualismo socialperspectivo, adota uma posição intermediária àquelas sustentadas por Honneth e Habermas.PALAVRAS-CHAVE: redistribuição, reconhecimento, teoria social, Nancy Fraser, Axel Honneth.

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REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO:INTRODUZINDO O DEBATE

O debate sobre redistribuição e reconhe-cimento mobilizou e continua a mobilizar o es-forço de diversos autores,1 cujo resultado pode-mos observar nos vários textos publicados re-centemente sobre o assunto.2 Se há, contudo,uma inegável diversidade de autores, bem comode posições no interior desse debate, é o livroRedistribuição ou Reconhecimento? Uma con-

trovérsia político-filosófica (Fraser; Honneth,

2003), composto por textos de Nancy Fraser eAxel Honneth, que aparece como principal refe-rência para aqueles que procuram marcar suaposição a respeito do que seria necessário atual-mente para a realização da justiça: redistribuição,reconhecimento, ou ambos. O estabelecimentodo debate sobre justiça nesses termos se deve,contudo, à publicação, oito anos antes, do artigode Nancy Fraser, “Da redistribuição ao reconhe-cimento? Dilemas da justiça na era pós-socialis-ta” (Fraser, 1995, 2001).3

Nesse artigo, Fraser diagnostica uma cres-cente polarização entre aqueles que veem naredistribuição de recursos e riquezas a soluçãopara o conjunto de injustiças hoje existentes4 e* Doutoranda em Filosofia. Professora da Fundação Escola

de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP.Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, sala 1007. Cep: 05508-900. São Paulo - SP - Brasil. [email protected]

1 A mesma tendência, mesmo que em menor grau, pode sertambém observada no Brasil, onde teses, artigos e tradu-ções de textos que abordam temáticas relativas àredistribuição e ao reconhecimento e ao debate que se es-tabeleceu entre Fraser e Honneth começam a ser publica-dos e a ganhar maior visibilidade (Cf. J. Silva, 2008; Sou-za e Mattos 2007; Mattos, 2006; Pinto, 2008; Avritzer, 2007;Cunha, 2009).

2 Dentre diversos autores, destacam-se os trabalhos de IrisYoung (Young, 1997), Seyla Benhabib (Benhabib, 2002,cap.3), Christopher Zurn (2005), Rainer Fosrt (2008),Judith Butler (2008), Lois McNay (2008, cap.3).

3 O artigo de Fraser pode ser visto como o ponto inicial dodebate sobre redistribuição e reconhecimento. Isso, con-tudo, não significa que a questão não se colocasse antes.Pelo contrário, nesse artigo, Fraser diagnostica uma situa-ção preeexistente. A disputa entre representantes de am-bos os lados já se fazia presente, mesmo que não tivessesido tematizada nos termos propostos por Fraser (Cf.Stavenhagen, 1978).

4 Dentre aqueles que teriam tentado conceitualizar as for-mas socioeconômicas de injustiça, Fraser cita Karl Marx,John Rawls, Amartya Sen e, por fim, Ronald Dworkin(Fraser, 2001, p.249). Ingrid Robeyns procura se contra-por a Fraser, afirmando que a teoria de Amartya Sen con-seguiria abarcar também o que Fraser denomina de ques-

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aqueles que veem exclusivamente na obtençãodo reconhecimento social essa mesma solução.5

Essa polarização, por sua vez, estaria se encami-nhando na direção da substituição de reivindica-ções e preocupações relativas à redistribuição eco-nômica por aquelas pautadas pelo reconhecimen-to das diferenças. Segundo Fraser, o fim do “soci-alismo real”, com a queda do muro de Berlim, se-guida pelo fim da URSS, em conjunto com o ace-lerado processo de globalização, teriam levado àpolitização das diferenças étnicas e culturais e àdespolitização da economia, cada vez menos con-testada pelos movimentos sociais (Fraser, 1997,p.1-3). A busca pela igualdade social, que teriapautado as lutas políticas por quase 150 anos, es-taria, assim, sendo substituída pela luta pelo reco-nhecimento das diferenças, central para os cha-mados “novos” movimentos sociais. No cenáriopolítico contemporâneo, afirma Fraser, o reconheci-mento cultural desloca a redistribuição material comomedida para sanar as injustiças e a luta por reco-nhecimento se torna a forma paradigmática de con-flito, fazendo com que a dominação cultural suplantea exploração como injustiça fundamental (Fraser,2001, p.245).

De acordo com esse diagnóstico, retomadoposteriormente por Fraser no artigo com o qualabre a controvérsia com Axel Honneth, estaríamosdiante de um mundo marcado pela dissociação,tanto na esfera política quanto na acadêmica, entreduas visões distintas acerca do que seria necessá-rio para a realização da justiça. Enquanto algunsveriam na economia a causa última de todas asinjustiças e defenderiam a redistribuição como aúnica forma de saná-las, outros teriam procuradoentender o conjunto das injustiças existentes comoconsequências de padrões hierárquicos devaloração cultural, cuja alteração exigiria que to-dos fossem igualmente reconhecidos, mesmo em

suas diferenças. Em ambos os casos, no entanto, oresultado é semelhante. A realização da justiça re-quereria apenas uma coisa: ou só redistribuição, ousó reconhecimento, não sendo necessário, nem mes-mo possível, combinar as duas coisas. A existênciade duas concepções de justiça mobilizadas pelos mo-vimentos sociais em suas reivindicações não teria,então, caminhado na direção da integração de ambas,mas na do estabelecimento de uma acirrada disputaentre os defensores de cada uma delas.

O surgimento do que optamos por chamaraqui de debate sobre redistribuição e reconheci-mento tem, dessa forma, como pano de fundo odiagnóstico de Fraser de um cenário de polariza-ção política e intelectual marcado por um quaseabandono de reivindicações por redistribuiçãoigualitária e por um aumento significativo demobilizações sociais em torno de questões cultu-rais ligadas ao reconhecimento e à diferença.6 É aesse cenário que Fraser procura se contrapor, aoafirmar que a antítese presente em proponentes deambos os lados é falsa e ao defender que a realiza-ção da justiça requer hoje tanto redistribuição ma-terial quanto reconhecimento cultural. Como, se-gundo ela, não seria possível remeter o conjuntodas injustiças sociais existentes a uma única ori-gem, uma vez que as sociedades contemporâneasestariam perpassadas por pelo menos dois dife-rentes mecanismos sociais – os econômicos e osculturais –, que produziriam tipos distintos deinjustiça, combater qualquer um deles isoladamen-te não seria suficiente. É, portanto, por possuíremorigens sociais distintas, diz Fraser, que os doisdiferentes tipos de injustiça existentes exigem deuma teoria social crítica que procure abarcá-los queela seja dualista; da mesma forma, afirma ela, paraque ambos sejam remediados, se fazem necessári-as mudanças tanto na economia, via medidas deredistribuição, quanto nos padrões culturais de

tões de reconhecimento e não seria, portanto, economicista(Robeyns, 2003).

5 Dentre aqueles que teriam dado uma posição decentralidade ao reconhecimento, Fraser cita Charles Taylor,Axel Honneth, Patricia Williams, assim como Iris MarionYoung (Fraser, 2001, p.250-1).

6 Charles Taylor (Taylor, 1992) e Jürgen Habermas (Habermas,1987c) apresentam diagnósticos semelhantes ao elaboradopor Fraser, apontando também para uma mudança no in-terior do cenário político contemporâneo, cuja atenção te-ria se voltado para questões relacionadas à identidade e àdiferença em detrimento de questões econômicas, antespredominantes.

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valoração, por meio do reconhecimento.7

Isso não significa, contudo, que as esferasda economia e da cultura se encontrem absoluta-mente diferenciadas. Pelo contrário, Fraser as vêcomo esferas de tal forma interligadas, que cadauma delas poderia, inclusive, levar ao estabeleci-mento de injustiças que estariam, em princípio,relacionadas à outra: a cultura poderia gerar, as-sim, injustiças relativas à redistribuição, e a eco-nomia, da mesma forma, injustiças relativas aoreconhecimento.8 No entanto, mesmo assumindoque mecanismos econômicos e culturais estão in-terligados e se reforçam mutuamente, Fraser acre-dita que não é possível compreender qualquer umdeles como a causa última das injustiças sociais –a cultura não reflete, como superestrutura, a eco-nomia, nem esta pode ser entendida como um sim-ples reflexo daquela –, motivo pelo qual ambosteriam de ser entendidos em suas especificidades.Nesse sentido, embora afirme que os mecanismosque geram as disparidades sociais não podem serclaramente distinguidos no interior da sociedade,9

Fraser defende que cada um deles remonta a umtipo de injustiça que não pode ser reduzido aooutro.

Embora não possam ser pensadas separa-damente, cada uma dessas duas exigências dejustiça – trazidas à tona por movimentos sociais– colocaria em xeque duas formas relativamente

distintas de injustiça presentes nas sociedadescapitalistas contemporâneas. Cada um dos polosda disputa apresentada estaria, dessa maneira,parcialmente correto, mas ambos teriam de serdevidamente integrados para possibilitarem umavisão mais ampla da sociedade. Não se poderia,por um lado, descartar as lutas por igualdadesocial, taxando-as de ultrapassadas e insensíveisà diferença, num mundo em que as desigualda-des materiais são exacerbadas e, além disso, cres-centes.10 Nem seria possível, por outro lado, des-cartar as lutas por reconhecimento como ideoló-gicas, afinal existiriam também formas de su-bordinação social ligadas a padrões hierárquicosde valoração cultural que impediriam a realizaçãoda justiça, entendida por ela como paridade departicipação. Nem só redistribuição, nem só reco-nhecimento. Segundo Fraser, precisamos de am-bos, motivo pelo qual tais exigências devem serintegradas, e não colocadas como modos opostosde pensar ou reivindicar justiça hoje. Possibilitaressa integração é, assim, o que Fraser estabelececomo seu objetivo nesses e em outros escritos.

Para Fraser, consequentemente, uma teo-ria que trate hoje de questões de justiça precisa-ria ser dualista. Abordagens unilaterais, que pro-curem estabelecer, seja na economia, seja na cul-tura, as causas últimas de todas as injustiças,seriam inapropriadas, uma vez que nossa socie-dade contém, como afirma ela, “tanto marketized

arenas, nas quais a ação estratégica predomina,quanto non-marketized arenas, nas quais ainteração orientada por valores predomina”(Fraser, 2003a, p.53),11 cada qual responsável pelaprodução de impedimentos relativamente dis-tintos à paridade de participação. De acordo comFraser, então, tanto uma visão economicista, quereduza as injustiças existentes àquelas referen-tes à redistribuição, quanto uma culturalista, queas reduza àquelas referentes ao reconhecimento,

7 Em alguns textos, Fraser parece defender que o objetivode sua teoria é integrar as diferentes demandas dos movi-mentos sociais. Contudo, sempre que ela procura justifi-car a validade das exigências de redistribuição e reconhe-cimento, ela se volta para sua teoria social dualista e nãopara o conjunto das demandas dos movimentos sociais(Cf. Fraser, 2001; Silva, 2007; Neves, 2005, p.64-7).

8 As exigências de redistribuição e reconhecimento nãocorrespondem diretamente à economia e à cultura. Isso,não somente porque padrões hierárquicos de valoraçãopodem resultar em injustiças materiais que exigiriamredistribuição para serem sanadas, e a própria organiza-ção do trabalho pode fazer com que alguns grupos nãosejam adequadamente reconhecidos, mas também porqueessas duas esferas sociais não estão absolutamente separa-das e se influenciam mutuamente, embora possuam certaautonomia frente a outra (Fraser, 2003a, p. 60-4).

9 Iris Young critica a separação feita por Fraser entre a eco-nomia e a cultura, que está na base da distinção entreredistribuição e reconhecimento. Para ela, não é possíveldistinguir a cultura da economia, pois ambas estão intrin-secamente interrelacionadas (Young, 1997, p.147-60; Ne-ves, 2005). Sobre esse assunto, conferir também, as posi-ções de Judith Butler (2008) e Anne Phillips (2008), auto-ras que problematizam a teoria dualista de Fraser.

10 Esse é o diagnóstico de Fraser acerca das disparidadeseconômicas, tanto no artigo de 1995 quanto no livro de2003 (Cf. Fraser, 2001, p.245; 2003a, p.8).

11 Nesse ponto, Fraser retoma a distinção habermasiana en-tre as esferas do sistema e do mundo da vida, relaciona-das respectivamente ao que ela chama aqui de marketizedarenas e non-marketized arenas.

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manifestariam compreensões simplistas e incomple-tas das práticas sociais. Fraser rejeita, assim, qual-quer teoria monista, que procure identificar umaúnica causa para todas as injustiças sociais e se con-trapõe, nesse sentido, à proposta de Axel Honneth,cuja teoria busca compreender todas as formas deinjustiça por meio da chave conceitual do reco-nhecimento.

Partindo de uma reatualização dos escri-tos hegelianos do período de Jena e da utilizaçãoda psicologia social de George Mead,12 Honnethelabora uma teoria que vê, na luta por reconhe-cimento, o motor dos conflitos sociais. Interpre-tado por Fraser como uma tentativa de reduziras injustiças de caráter econômico à esfera cul-tural, o modelo teórico proposto por Honneth éacusado por ela – já em 1995 – de constituir ummonismo teórico cultural reducionista, que, to-mando a desigualdade econômica como o resul-tado de uma forma de falta de reconhecimento,não teria conseguido dar conta do conjunto de in-justiças existentes, ou mesmo das diferentes rei-vindicações feitas pelos movimentos sociais que,segundo ela, não têm somente o reconhecimentorecíproco como objetivo (Fraser, 2003a, p.10-11).

A leitura de Fraser da teoria honnethianado reconhecimento a vê, assim, como uma dasprincipais representantes das teorias culturalistasque, assim como a de Charles Taylor, identifica-ria na cultura a origem de todas as injustiçassociais. Nesse sentido, Fraser toma a teoria deHonneth como a expressão do deslocamento daredistribuição para o reconhecimento ou, comoé também colocado por ela, do deslocamento dacentralidade antes atribuída ao paradigmadistributivo de justiça para a de um paradigmaem cujo centro estariam questões relativas à iden-tidade e à diferença. Para Fraser, portanto, aoprocurar compreender todas as formas de injusti-

ça a partir do conceito de reconhecimento, Honnethteria deixado de lado aquelas injustiças ligadas àeconomia e às reivindicações por redistribuiçãomaterial que, como afirma a autora, fazem parte dasociedade contemporânea e não podem ser igno-radas por aqueles que pretendem desenvolver umateoria social crítica.

Em “Redistribuição como Reconhecimen-to: uma resposta a Nancy Fraser” (Honneth,2003b), a primeira de suas duas contribuições aolivro Redistribuição ou Reconhecimento?, contu-do, Honneth procura mostrar que as críticas deFraser resultam de uma compreensão inadequa-da do escopo de sua teoria, uma vez que não aten-tam para o real significado atribuído por ele aotermo reconhecimento. Em uma primeira respos-ta a Fraser, Honneth afirma, então, que a acusa-ção da autora de que sua teoria seria culturalista enão daria conta de pensar as injustiças econômi-cas ou mesmo as lutas por redistribuição materi-al se ancora em uma interpretação restrita do pa-pel desempenhado por esse conceito no interiorde seu modelo teórico. Reconhecimento, para ele,não é o mesmo que reconhecimento cultural.

O conceito honnethiano de reconhecimen-to não remete diretamente à cultura, mas às ex-pectativas morais de comportamento sustenta-das pelos sujeitos frente a seus parceiros deinteração. Segundo Honneth, na modernidade,os sujeitos formam, por meio de processos deinteração social, expectativas morais de compor-tamento em três diferentes esferas de reconhe-cimento – a do amor, a do respeito e a da esti-ma13 – que, quando rompidas, podem gerar umsentimento de desrespeito e injustiça. Quandocompartilhado por vários atores, esse sentimen-to pode, por sua vez, desencadear um conflitosocial, entendido por ele como uma luta por re-conhecimento. 14 Assim, Honneth reconstrói os

12 Honneth tem criticado o que poderíamos chamar de umaprimeira versão de sua teoria do reconhecimento, na qual,como afirma, a teoria de Mead, desempenhava um impor-tante papel. Atualmente, o trabalho de Mead é visto porele como problemático, pois possuiria premissas indivi-dualistas. Em textos mais recentes, portanto, Honnethprocura reelaborar sua compreensão sobre o processo desocialização e individuação a partir de autores comoWinnicott e Jessica Benjamin (Honneth, 2004, p.305-341).

13 Sobre os três princípios mobilizados pelos atores sociaisnas lutas por reconhecimento, assim como sobre as dife-rentes formas de violação das expectativas de comporta-mento em cada umas esferas de reconhecimento (Cf.Honneth, 2003a, cap.1-4).

14 Majid Yar antecipa esse movimento argumentativo mes-mo antes da publicação de Redistribuição ou Reconheci-

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conflitos sociais como lutas morais por reconheci-mento, porque é a experiência de injustiça ou dedesrespeito – atrelada a expectativas de reconheci-mento – que os desencadeia (Honneth, 2003a,p.262-263). Independentemente, portanto, do queestariam especificamente reivindicando, os confli-tos sociais teriam em comum o objetivo de ampli-ar as relações de reconhecimento existentes, quenão estariam possibilitando, em alguma medida, arealização das expectativas morais de comporta-mento sustentadas pelos sujeitos frente a seusparceiros de interação.15

Ao compreender o conjunto de injustiçassociais a partir do conceito de reconhecimento,Honneth não procura conceitualizar apenas asnovas demandas dos movimentos sociais, masdesenvolver um modelo teórico que consigajustificá-los moralmente e possibilite, além dis-so, a identificação de uma tendência real à eman-cipação, isto é, à ampliação das relações recípro-cas de reconhecimento. Algo que Fraser não te-ria feito.16 Como afirma ele, “o quadro conceitualdo reconhecimento é de importância central hoje,não porque ele expressa os objetivos de um novotipo de movimento social, mas porque ele pro-vou que é a ferramenta adequada para decifrarcategoricamente as experiências de injustiça comoum todo.” (2003b, p.157).

Para Honneth, mesmo os conflitos porredistribuição só ocorrem quando a modificaçãoda situação econômica ou a desigualdade mate-rial por eles problematizada é experienciada

como injusta, razão pela qual ele afirma que lutaspor redistribuição material são também lutas porreconhecimento. Honneth reconstrói os conflitossociais como lutas por reconhecimento não em ra-zão de questões teórico sociais, tal como Fraser, masporque eles são desencadeados pelo sentimento dedesrespeito que se segue da violação de expectati-vas bem fundadas de reconhecimento social. Nessesentido, tanto as lutas por redistribuição materialquanto aquelas por reconhecimento cultural seriamabarcadas pela teoria honnethiana do reconhecimen-to, na medida em que o sentimento de injustiça queas desencadeia também decorre de violações de ex-pectativas de reconhecimento (Cf. Honneth, 2004,p.352). Ao reconstruir os conflitos sociais como lutaspor reconhecimento, Honneth não estaria, então,excluindo ou negando a importância das reivindi-cações por redistribuição, mas reconstruindo-as deuma perspectiva normativa. A luta por reconheci-mento não possui, consequentemente, um carátermeramente cultural ou identitário, mas um carátermoral que constitui, para ele, a gramática dos con-flitos sociais.17

Deslocando a problemática da teoria socialque fornece, para Fraser, a base para a reconstru-ção dualista que faz dos movimentos sociais,Honneth procura reconstruir e justificar moral-mente esses conflitos, remetendo-os às experiên-cias de desrespeito dos sujeitos, isto é, voltando-se para a motivação dos conflitos e não às origenssociais das injustiças que estão combatendo. Emum primeiro momento, portanto, Honneth procura

mento?, mostrando que a teoria de Honneth escapa dascríticas dirigidas a ela por Fraser ao retomar o conceito dereconhecimento a partir do sentimento de desrespeito quemobiliza tanto as lutas por redistribuição quanto as porreconhecimento cultural. Tendo isso em vista, Yar criticao uso dado por Fraser ao conceito de reconhecimento que,segundo ela, faz com que suas críticas a Honneth (Fraser,2001) não sejam pertinentes (Yar, 2001, p.288-303).

15 Partindo de uma teoria da intersubjetividade, Honnethnega que os conflitos políticos sejam simplesmente mani-festações dos interesses de um conjunto de indivíduos;para ele, suas bases motivacionais devem ser reconstruídasa partir das expectativas morais atreladas à interação soci-al e ao reconhecimento recíproco, e não a partir de umcálculo racional estrategicamente orientado (Cf. Honneth,2003a, cap.7).

16 Por não conseguir estabelecer um vínculo estrutural entrea imanência e a transcendência e, além disso, por não tra-tar mais pormenorizadamente da motivação dos movimen-tos sociais, para Honneth, a teoria de Fraser não seria real-mente crítica (Cf. Honneth, 2003c, p.274-285).

17 Em Luta por Reconhecimento, Honneth antecipa umapossível objeção a seu projeto, que apontasse para o fatode que nem todos os conflitos sociais são gerados pormotivações de caráter moral, na medida em que conflitospela concorrência de bens escassos seguem a lógica de umconflito movido por interesse. Sem se opor, em um pri-meiro momento, a essa hipótese, o que Honneth faz é reto-mar os estudos feitos por E. P. Thompson e B. Moore,com o intuito de indicar que mesmo esses conflitos po-dem ser pensados na chave conceitual do reconhecimen-to, uma vez que: “o que é considerado um estado insupor-tável de subsistência econômica se mede sempre pelasexpectativas morais que os atingidos expõemconsensualmente à organização da coletividade. Por isso,o protesto e a resistência prática só ocorrem em geral quan-do uma modificação da situação econômica é vivenciadacomo uma lesão normativa desse consenso tacitamenteefetivo”. A motivação e a justificação daquilo que os ato-res sociais reivindicam estão ligadas às maneiras por meiodas quais determinadas situações sociais impedem aautorrealização pessoal (Cf. Honneth, 2003a, p.160-165;cf. Mattos, 2006, p.153-156).

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tratar do debate sobre redistribuição e reconheci-mento em um nível distinto e mais abstrato doque aquele colocado inicialmente por Fraser(Honneth, 2004). Como diz o autor, nesse sentido,“por mais fundamentais que as questões de teoriasocial sejam, [...] elas desempenham apenas umpapel subordinado no debate entre Fraser e eu.No primeiro plano, está a questão geral de quaisferramentas categoriais são mais promissoras pararenovar a intenção da teoria crítica de, ao mesmotempo, articular apropriadamente e justificar mo-ralmente as reivindicações normativas dos movi-mentos sociais” (Honneth, 2003b, p.135). É, as-sim, recorrendo ao monismo moral-motivacionalpresente nas experiências de injustiça, que decor-reriam do rompimento de relações de reconheci-mento, e não a questões acerca da origem socialdas injustiças, que Honneth procura rebater ascríticas de Fraser.

Tal saída não é, contudo, aceita pela autoracomo uma resposta adequada às questões por elacolocadas. Mesmo assumindo que hajadiscordâncias significativas no que se refere àsbases normativas de suas teorias e às diferentesreconstruções que fazem da normatividade dosconflitos sociais e de suas motivações, Fraser de-fende que a disputa entre o monismo de Honnethe seu dualismo perspectivo não se situa nessesníveis, onde ambos desenvolvem, a partir deJürgen Habermas, um paradigma crítico monistae reconstroem os conflitos sociais de um pontode vista normativo (Bressiani, 2010, cap.1 e 2).Assim, embora aceite que as questões levantadaspor Honneth coloquem novos e importantes pon-tos na pauta do debate entre eles, Fraser insisteque a disputa entre o dualismo perspectivo de-senvolvido por ela e o monismo proposto por elediz respeito às diferentes teorias sociais presen-tes em seus modelos teóricos. E isso não apenasporque o dualismo defendido por ela tem comobase sua teoria social, mas também porque, paraela, o diagnóstico das injustiças sociais não podepartir do sentimento subjetivo de desrespeito, masapenas de uma teoria social democraticamente in-

formada, que esteja apta a identificar os diferen-tes mecanismos sociais que originam as relaçõesde dominação (Cf. Fraser, 2003b, p. 201-211).

Assim, se Honneth procura mostrar que odualismo de Fraser poderia ser abarcado pelomonismo proposto por ele, na medida em que tantoos movimentos sociais por redistribuição quantoos por reconhecimento se originam do sentimentode desrespeito e poderiam ser, portanto,reconstruídos como lutas por reconhecimento,Fraser se contrapõe à sua proposta.18 Para ela, aestratégia adotada por Honneth não responde àsquestões por ela levantadas e pode, além disso,levar ao estabelecimento de algumas dificuldades,uma vez que toma o sentimento de desrespeitocomo o indicador da presença de patologias, sem,contudo, apontar para suas causas sociais, queprecisariam ser devidamente identificadas para queele pudesse elaborar uma teoria do poder apta adiagnosticar as relações de dominação presentesnas sociedades capitalistas contemporâneas. Deacordo com Fraser, identificar a base motivacionaldos conflitos sociais, como propõe Honneth, nãoé suficiente. O importante, no que diz respeito aodiagnóstico de patologias sociais, é identificar, apartir de uma teoria social, os mecanismos que asgeram. Afinal, mesmo que Honneth tenha razão eas lutas por redistribuição sejam motivadas pelosentimento de desrespeito, disso não decorreriaque as desigualdades materiais questionadas pos-sam ser entendidas como consequências de umaaplicação determinada de normas sociais ou resul-tem de relações assimétricas de reconhecimento.

Recusando, assim, uma primeira estratégiautilizada por Honneth em sua resposta, Fraser afir-ma que a identificação das injustiças existentes nãopode partir de experiências subjetivas de desres-

18 Christopher Zurn aponta também para a tentativa deHonneth de responder às críticas de Fraser por meio deum aumento no grau de abstração teórica. Para ele, contu-do, ao fazer isso, Honneth acaba abrindo mão de um diag-nóstico empírico acurado e desenvolve uma teoria que fal-sifica a realidade social. Como afirma ele, “é implausíveldefender que os dispositivos de reconhecimento de umasociedade determinam a divisão do trabalho ou mesmo oretorno social (o salário) das diferentes ocupações.” (Cf.Zurn, 2005, p.116).

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peito, inacessíveis ao teórico,19 mas somente daidentificação dos mecanismos sociais que geramimpedimentos à participação paritária de todos nainteração social; identificação que precisaria terpassado por escrutínio democrático e deve, alémdisso, apontar para impedimentos sociais exter-namente verificáveis.20 Ao defender a importânciade um diagnóstico de patologias sociais apto aapontar para os bloqueios sociais à emancipação,Fraser recoloca, então, o debate entre eles no nívelda teoria social. E, de acordo com a autora, é parti-cularmente no tocante a essa questão, relativa àsrelações de poder presentes na sociedade contem-porânea, que a teoria do reconhecimento propostapor Honneth não empregaria ferramentasconceituais adequadas. E isso ocorre não porqueele se esquive por completo de questões relativas àteoria social, mas porque parte de uma compreen-são monista e não dualista das sociedades capita-listas contemporâneas.

Mesmo que o foco de Honneth, em sua pri-meira resposta a Fraser, não esteja em suasdiscordâncias a respeito do funcionamento da so-ciedade ou na identificação dos mecanismos soci-ais que levam ao estabelecimento das injustiças,sua teoria do reconhecimento pressupõe uma teo-ria social. Teoria na qual a interação social desem-penha um papel central, mesmo no que diz respei-to à economia. Embora afirme que o funcionamentodo mercado capitalista não pode ser inteiramenteexplicado a partir de valores culturais e, nesse sen-tido, não aceite o rótulo de culturalista dado por

Fraser à sua teoria, Honneth defende que as formassociais de interação possuem primazia sobre as for-mas sistêmicas de integração, isto é, que a culturapossui certa primazia frente a economia – traduzin-do tal afirmação nos termos de Fraser. Primazia queremete a um importante ponto de discordância entreambos.

Afinal, para Fraser, como dito anteriormen-te, o funcionamento da economia teria se diferenci-ado relativamente das formas de interação social eprecisaria ser entendido em suas especificidades.Para ela, mesmo que a cultura e a economia, ou ainteração social e a sistêmica, permaneçam interli-gadas, elas teriam se diferenciado no decorrer doprocesso de modernização social e não poderiam,por isso, ser explicadas uma a partir da outra.Nenhuma dessas duas esferas sociais possuiriaprimazia sobre a outra, e é exatamente por issoque Fraser defende a necessidade de que injusti-ças culturais e econômicas, bem como exigênciasde redistribuição e reconhecimento, sejam diferen-ciadas – ainda que apenas relativamente. Conclu-são que não é compartilhada por Honneth, paraquem também a economia e, portanto, as desigual-dades materiais estão fundamentalmente atreladasa relações de reconhecimento, que perpassariam eguiariam o funcionamento de todas as esferas so-ciais. Honneth possui, nesse sentido, uma com-preensão distinta da de Fraser sobre o papel exer-cido por normas e valores no interior da economiae no processo de desenvolvimento social. Comodiz Honneth:

Como a integração de todas as outras esferas, odesenvolvimento do mercado capitalista só podeocorrer na forma de um processo de negociaçãosimbolicamente mediado, que seja dirigido pelainterpretação de princípios normativos suben-tendidos. […] Na expansão contemporânea docapitalismo, nem mesmo processos econômicossão simplesmente não-normativamente media-dos. ( 2003c, p.288-289).

Honneth parece, então, afirmar que não épossível distinguir – tal como o faz Fraser – osmecanismos econômicos de normas e valoressociais, uma vez que mesmo o funcionamentodo sistema capitalista dependeria das expectativas

19 Simon Thompson também faz uso desse argumento aoafirmar que Honneth “permite que sua teoria da justiçaseja perigosamente dependente de uma psicologia do re-conhecimento empiricamente discutível.” (Cf. Thompson,2005, p. 96).

20 Segundo Fraser, “quando a falta de reconhecimento éidentificada a distorções na estrutura da autoconsciênciados oprimidos, se está a um passo de colocar a culpa navítima, imputando um dado psíquico àqueles que estãosubmetidos ao racismo, por exemplo; o que parece adici-onar um insulto à injúria. Similarmente, quando a faltade reconhecimento é igualada ao preconceito na mente dosopressores, superá-lo parece requerer o policiamento de suascrenças, uma abordagem que é iliberal e autoritária. Para omodelo de status, ao contrário, a falta de reconhecimento éuma questão de impedimentos externamente manifestos epublicamente verificáveis ao posicionamento de algumaspessoas como membros plenos de uma sociedade” (Fraser,2003a, p.31 [grifos nossos]).

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daqueles por ele afetados e seria dirigido “pela in-terpretação de princípios normativos subentendi-dos”. Ao contrário de Fraser que, rearticulando odualismo social habermasiano entre sistema emundo da vida, defende a necessidade de dife-renciar, ainda que relativamente, os mecanismoseconômicos dos culturais, Honneth defende quemesmo os mecanismos responsáveis pelo funci-onamento da economia dependem fundamen-talmente da interação social e, portanto, de va-lores culturais. Contrapondo-se a Fraser, mastambém a Habermas, Honneth afirma, assim,que mesmo os imperativos do capitalismo estãoatrelados a expectativas normativas e a relaçõesde reconhecimento. Motivo pelo qual, para ele,também as injustiças materiais podem ser com-preendidas como injustiças ligadas a relaçõesassimétricas de reconhecimento e não diretamen-te como consequências de mecanismos econô-micos relativamente autônomos.

As diferentes concepções que Fraser eHonneth possuem sobre o funcionamento dassociedades capitalistas contemporâneas e, prin-cipalmente, os diferentes estatutos que atribu-em à economia desempenham, assim, uma po-sição de centralidade na controvérsia que se es-tabeleceu entre eles sobre redistribuição e reco-nhecimento. No cerne do debate está, então, umaquestão problematizada por eles já no prefáciodo livro, onde se perguntam se:

... o capitalismo, tal como ele existe hoje, deve sercompreendido como um sistema social que dife-rencia uma ordem econômica, que não é direta-mente regulada por padrões institucionalizadosde valores culturais, de ordens que o são? Ou devea ordem econômica capitalista ser entendida, aocontrário, como uma consequência de um modode valoração cultural que está atrelada, desde oinício, a formas assimétricas de reconhecimento?Em seu nível mais profundo, este livro tenta colo-car essa questão teoricamente e desenvolver umquadro comum que consiga acessar nossas res-postas divergentes. (Fraser; Honneth, 2003, p.5)

Se recolocamos, como Fraser, o foco dodebate sobre redistribuição e reconhecimento nonível da teoria social, nos deparamos com as di-ferentes concepções sustentadas pelos autores so-

bre a ordem econômica e seu vínculo com as rela-ções de reconhecimento existentes. O debate so-bre redistribuição e reconhecimento nos remete,assim, a uma disputa entre as diferentes compre-ensões sustentadas pelos autores a respeito domodo de funcionamento do capitalismo contem-porâneo e sua relação com a cultura, ou com nor-mas e valores intersubjetivamente elaborados. Com-preensões que, embora distintas, possuem umaorigem comum. Afinal, tanto o monismo teóricode Honneth como o dualismo perspectivo de Frasersão desenvolvidos com o objetivo de dar conta dasdificuldades que ambos identificam no modeloteórico de Habermas em Teoria da Ação Comuni-

cativa (Habermas, 1987a, 1987b).

REARTICULANDO HABERMAS: Honneth eFraser em torno do dualismo social

Como boa parte dos trabalhos de teoriacrítica que vêm sendo desenvolvidos atualmen-te, os de Nancy Fraser e Axel Honneth são forte-mente marcados pela obra de Jürgen Habermas,cuja influência é decisiva em boa parte das ques-tões em disputa no debate entre eles sobreredistribuição e reconhecimento. A própria mu-dança de paradigma efetuada por Habermas nointerior da teoria crítica é, por exemplo, centralpara o desenvolvimento das bases normativasdos modelos críticos de Fraser e Honneth. A in-fluência desse autor nos modelos teóricos deFraser e Honneth se estende, contudo, para alémdisso. O trabalho de Habermas constitui tam-bém a principal referência desses autores no quediz respeito às teorias sociais que elaboram. Nessecaso, contudo, a retomada da teoria de Habermasparece adquirir um outro estatuto, uma vez queos deslocamentos efetuados por eles, relativosao dualismo social habermasiano, parecem – emmuitos momentos – tomar forma de umacontraposição. A teoria social apresentada porHabermas está, assim, no horizonte de Fraser eHonneth, mas é em contraposição a ela que cadaum deles vai desenvolver sua própria teoria,

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mesmo que retomem alguns de seus aspectos.Contraposição que é central ao debate sobreredistribuição e reconhecimento, cujo pano defundo é uma disputa entre as diferentes saídasapresentadas por Fraser e Honneth às dificulda-des que identificam na teoria social e no diag-nóstico de patologias sociais defendido porHabermas em Teoria da Ação Comunicativa.

Nessa obra, Habermas apresenta uma te-oria da modernização social nos termos de umprocesso de racionalização da sociedade. Segun-do Habermas, as formas de interação social pre-sentes nas sociedades tradicionais, onde toda es-trutura e organização estariam vinculadas a vi-sões religiosas e metafísicas de mundo, passa-ram por um processo de racionalização por meiodo qual diferentes formas de reprodução eintegração social teriam se diferenciado. Assim,se a organização das sociedades tradicionais de-pendia diretamente da normatividade assegura-da por visões de mundo compartilhadas e podiaser adequadamente explicada apenas a partir desua ordem normativa, o mesmo não ocorreriaem sociedades modernas, cuja organizaçãosistêmica não mais refletiria a normatividadesocial, agora racionalizada. Em sociedades mo-dernas, afirma o autor, o sistema não apenas te-ria deixado de refletir o mundo da vida, comoteria se tornado independente dele e não pode-ria mais ser explicado do ponto de vista danormatividade social. Sociedades modernas se-riam, assim, dualistas. Motivo pelo qual, paraHabermas, uma análise adequada dessas socie-dades precisa levar em consideração tanto o pon-to de vista do mundo da vida, quanto o do siste-ma (Cf. Habermas, 1987a, cap.2).

Desde meados da década de 1980, com a pu-blicação de Teoria da Ação comunicativa, Habermasconsolida, então, uma distinção entre duas esferassociais. Uma dessas esferas corresponderia aomundo da vida, cuja reprodução ocorre por meiode ações comunicativas. A outra corresponderiaao que ele chama de sistema, composto de doissubsistemas, cuja reprodução se dá por meio deações instrumentais. O dualismo habermasiano,

que distingue o sistema do mundo da vida, refere-se, assim, à identificação, na sociedade, de duasesferas sociais responsáveis, respectivamente, pelareprodução material e simbólica da sociedade, queestão ligadas, por sua vez, às duas racionalidadesreconstruídas por Habermas a partir de ações ins-trumentais e comunicativas. No que se refere à re-produção material, responsável pelo desenvolvi-mento do sistema (economia e burocracia), a coor-denação dos diversos objetivos dos sujeitos seriaestratégica e livre, portanto, de normas. A repro-dução simbólica, responsável pelos desenvolvimen-tos da cultura, da sociedade e da formação da per-sonalidade, por outro lado, teria como base umaforma comunicativa de coordenar objetivos que,normativamente mediada, estaria orientada para oentendimento.

Essa distinção entre duas esferas sociais eduas formas de reprodução social, problematizadapor diversos autores e atenuada posteriormentepor Habermas (1997), é também fortementecriticada por Honneth, que procura desenvolveruma teoria social crítica na qual normatividade epoder pudessem ser entendidos em suasinterrelações. Para ele, a distinção proposta porHabermas entre duas racionalidades, já presenteem Conhecimento e Interesse (Habermas, 1968),teria sido modificada, dando lugar, em Teoria da

Ação Comunicativa, a uma distinção entre duasesferas sociais. Com essa mudança, afirmaHonneth, o desenvolvimento da sociedade, antespensado a partir das lutas entre os diversos gru-pos sociais pela definição de normas e institui-ções, passa a ser conceitualizado nos termos deum processo de diferenciação social que dá lugara um conflito entre a pressão para adaptaçãoexercida pelas organizações racionais voltadas afins, o sistema, e as esferas de ação organizadascomunicativamente, o mundo da vida, cujo pa-pel, nesse desenvolvimento, seria o de resistir ounão a essa pressão, ou ainda, e nisso estaria seucaráter emancipatório, regular essas organizações.

Em detrimento de uma primeira formu-lação de sua teoria, na qual as relações de domi-nação eram pensadas no interior das esferas co-

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municativas, que moldariam as próprias institui-ções, Habermas teria posteriormente excluído dasinterações sociais as relações de dominação, quepassaram, a partir de então, a ser concebidas comocolonizações do mundo da vida pelos sistemaseconômico e burocrático (Honneth, 1986). Com isso,afirma Honneth, o dualismo social desenvolvidopor Habermas não mais daria conta de compreen-der aquilo que denomina de reprodução simbóli-ca da sociedade (1986, p.317-334), nem de expli-car como se reproduziriam as esferas chamadaspor ele de sistêmicas, onde os conflitos sociais tam-bém teriam um papel ativo e determinante(Honneth, 1986, p. 316-320).

O desenvolvimento dado por Habermas aseu modelo teórico estabeleceria, de acordo comHonneth, duas ficções teóricas: a de um sistemaque teria se diferenciado do mundo da vida e setornado um meio não-linguístico de coordena-ção de objetivos e a de um mundo da vida isentode quaisquer relações de poder e de dominação,onde o processo de reprodução simbólica da so-ciedade ocorreria por meio de relações de co-municação linguisticamente mediadas. No inte-rior da teoria habermasiana, seria formada, en-tão, a ilusão de que haveria duas esferas sociais,cada qual responsável por diferentes aspectos dareprodução social – o material e o simbólico –,que seriam, inclusive, independentes entre si(Honneth, 1986, p.329-331). Para Honneth, con-tudo, o funcionamento da economia e da buro-cracia estatal não pode ser compreendido comoa mera expressão de um processo autônomo,descolado da interação social. Segundo ele, asexpectativas intersubjetivas de reconhecimentoe os conflitos sociais por elas gerados desempe-nham um papel ativo mesmo naquelas institui-ções referentes à organização do trabalho e à dis-tribuição do poder (Honneth, 2003b, p.134-136,180-184). Como afirma ele, “processos de valo-rização aparentemente anônimos são impregna-dos de regras normativas” (2003c, p.292). Nãose poderia, portanto, falar em um sistema eco-nômico ou burocrático, tal como o faz Habermas.

Contrapondo-se a Habermas, Honneth

procura, então, mostrar que o desenvolvimentodo sistema capitalista e do aparelho burocráticodo Estado é mediado por normas sociais e de-pende dos conflitos que moldaram e ainda mol-dam as instituições e práticas sociais em geral(2003c, p. 289-290). Além disso, Honneth buscaindicar que a dominação e as relações de poder,compreendidas por Habermas como ampliaçõesdo sistema em direção ao mundo da vida, preci-sam ser pensadas em conjunto com a comunica-ção, que está sempre perpassada por assimetrias(Honneth, 2003c, p. 298). Seria preciso atrelar odesenvolvimento social como um todo a normas,bem como pensar as relações de poder presentesnas comunicações e relações de reconhecimento,ou seja, pensar a relação dessas normas com asformas de poder e dominação. É, então, com oobjetivo de resolver, dentre outras coisas, as difi-culdades, que identifica em Habermas, queHonneth desenvolve uma teoria do reconhecimen-to, na qual afirma que a comunicação e as lutaspor reconhecimento têm um papel ativo em todosos processos de reprodução social. As dificulda-des que encontra na teoria de Habermas fazem,assim, com que Honneth defenda um monismosocial, pautado por relações de reconhecimento.

A crítica de Honneth – segundo a qualnão seria possível entender a sociedade a partirde uma teoria que não aborde adequadamente arelação entre desenvolvimento social e lutas porreconhecimento – não se dirige, contudo, ape-nas a Habermas, mas também a Nancy Fraser.Afinal, como Habermas, Fraser defende que aeconomia se tornou relativamente distinta dainteração social e, portanto, do âmbito no qualas normas sociais são elaboradas, denominadopor ela de cultura. Diferentemente de Honneth,Fraser aceita de Habermas a distinção entre doismecanismos sociais. Por maiores que sejam asinterrelações entre as normas sociais e a econo-mia, para Fraser, não é possível entender o fun-cionamento do capitalismo atual apenas a partirde normas sociais. Mesmo aceitando a impossi-bilidade de se conceber a economia como umaesfera social autônoma e isenta de normatividade,

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Fraser afirma que seu funcionamento não podeser adequadamente entendido sem que se leve emconsideração mecanismos sistêmicos que priorizamo lucro. Motivo pelo qual ela defende que a econo-mia dispõe de relativa autonomia frente às normassociais. Como Habermas, Fraser assume a existên-cia de um certo dualismo social.

O recurso de Fraser a Habermas não im-plica, contudo, que ela aceite como um todo asdistinções dualistas estabelecidas por ele. Pelocontrário, ela faz diversas críticas à teoria socialdualista desenvolvida por ele, e, afirmando apossibilidade de que ela seja entendida de doismodos, a saber, como substantiva ou analítica,parte da segunda para a elaboração de sua pró-pria teoria social.21 Com essa teoria, no entanto,Fraser, como Honneth, procura tratar das difi-culdades que encontra no modelo habermasiano.O que faz, a nosso ver, por meio de um desloca-mento, e não de um abandono da distinção en-tre sistema e mundo da vida e de uma alteraçãosignificativa na maneira como Habermas conce-be as relações de poder e o surgimento das pa-tologias sociais.

A retomada da teoria social proposta porHabermas, feita explicitamente pela autora des-de seus escritos da década de 80, não é, contu-do, uniforme. Em um primeiro momento, elabusca confrontar alguns aspectos problemáticosque identifica no modelo habermasiano, passan-do, em trabalhos mais recentes, a recuperar neleaquilo que poderia ser visto como frutífero a umateoria social. Apesar disso, boa parte das ques-tões que norteiam seus escritos e das soluçõesque apresenta a elas já se encontram – mesmoque apenas em gérmen – em seus primeiros arti-gos, como é o caso de “O que é crítico na TeoriaCrítica? O argumento de Habermas e o Gênero”(Fraser, 1989, p.113-143). Nesse artigo, Fraserdirige a Habermas críticas semelhantes àquelas

desenvolvidas por Honneth em Crítica do Poder eaponta para possíveis saídas que serão posterior-mente elaboradas por ela. Diferentemente das deHonneth, contudo, as saídas apresentadas porFraser não caminham na direção de uma dissolu-ção da distinção entre as esferas sociais, mas naformulação de um dualismo social perspectivo.O que, não obstante, só vem a fazer claramenteem escritos posteriores.

Partindo, nesse artigo, de uma definiçãotomada por ela de Marx, segundo a qual teoriacrítica é “o autoaclaramento das lutas e desejosde uma época” (1989, p.13), Fraser procura mos-trar que, apesar dos potenciais críticos presen-tes em sua teoria, Habermas não teria consegui-do dar conta daquele que deveria ser seu papelcomo teórico crítico, a saber, aclarar, dentre ou-tros, os objetivos do movimento feminista.22 To-mando, então, o modelo de Habermas tal comoele aparece em Teoria da Ação Comunicativa eem artigos publicados por ele nesse período, Fraserprocura explicitar que o dualismo social ali pro-posto é contraproducente, uma vez que encobree mesmo reforça algumas das injustiças de gêne-ro presentes na sociedade contemporânea. Sementrar à fundo nas críticas dirigidas a Habermasdesse ponto de vista, nos restringiremos aqui aindicar que Fraser aponta para diversas deficiên-cias presentes no modelo habermasiano. Defici-ências muito semelhantes àquelas destacadas porHonneth.

No que se refere à primeira dessas defici-ências, as críticas dirigidas por Fraser a Habermaspõem em questão o estatuto que ele teria dado àdistinção entre duas esferas sociais, seja do pon-to de vista da reprodução material e simbólicada sociedade, seja do ponto de vista das duasformas de integração por meio das quais a socie-dade se reproduziria como um todo. Em um pri-

21 Honneth defende que a distinção estabelecida por Fraserentre a economia e a cultura não é analítica (Honneth,2003c). Apesar disso, Fraser não defende o dualismo so-cial substantivo que identifica na teoria de Habermas, masum dualismo social perspectivo. As duas esferas sociaispossuiriam, para ela, características particulares, mas sóse encontram relativamente diferenciadas.

22 Ao fazer isto, Fraser parece afirmar que os teóricos críti-cos devem se pautar pelos objetivos imediatos dos movi-mentos sociais (Fraser, 1989, p.113-114). Entretanto, seanalisarmos a gênese da noção de paridade de participa-ção, da qual Fraser lança mão neste artigo, ela aponta parauma estrutura normativa mais próxima à proposta porHabermas em sua teoria do discurso. Nesse sentido, osmovimentos feministas são levados em consideração ape-nas porque questionam impedimentos sociais à paridadede participação (Bressiani, 2010, cap.1).

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meiro momento, Fraser problematiza a distinçãoque Habermas estabelece entre duas formas de re-produção social: a material, atrelada ao que elechama de trabalho social, e a simbólica, que englo-ba a produção cultural, a integração social e osprocessos de individualização e socialização. Noque diz respeito a isso, Fraser procura apontar paraa dificuldade que tal distinção teria no que se refe-re à classificação de diversas atividades sociais,tais como a criação de filhos que, segundo ela, éentendida por Habermas apenas como parte dareprodução simbólica da sociedade (Fraser, 1989,p.122-119).

Contrapondo-se a uma distinção forte en-tre esses dois tipos de reprodução social, Fraserafirma que a criação dos filhos possui elementosindispensáveis tanto para a reprodução simbóli-ca quanto para a reprodução material da socie-dade que, como é indicado por ela, não teriacomo ocorrer não fosse pela sobrevivência dascrianças garantida, dentre outras coisas, pela ali-mentação dada aos filhos. Ao contrário do quese poderia pensar, a criação dos filhos envolveos dois tipos de reprodução social e não podeser reduzida a nenhum deles em particular. Odualismo presente nessa atividade não se res-tringe, entretanto, a ela. Mesmo as atividadesrelacionadas ao trabalho social, responsável pelaprodução de bens e alimentos em geral, não po-dem ser entendidas apenas como responsáveispela reprodução material da sociedade. Segun-do ela, a própria produção ocorre por meio derelações culturalmente elaboradas e simbolica-mente mediadas, dentre as quais, por exemplo,a divisão entre trabalhos masculinos e femini-nos. O próprio funcionamento da economia esta-ria, dessa forma, vinculado a valores e normassociais. Assim, também a esfera do trabalho soci-al possuiria elementos responsáveis, de algumamaneira, pela reprodução simbólica da sociedadee não poderia ser vista como normativamenteneutra. Fraser afirma, então, que uma distinçãoestanque entre duas formas de reprodução soci-al é inadequada para a conceitualização das dife-rentes atividades responsáveis pela reprodução

social como um todo.Com isso em vista, Fraser conclui pela ne-

cessidade de que as duas formas de reproduçãosocial identificadas por Habermas sejam enten-didas como dois diferentes aspectos da socieda-de, que se encontram interligados. Conclusão que,mesmo sem rejeitar explicitamente uma distin-ção entre duas formas de reprodução social, negaclaramente que ela possa ser entendida como umadistinção estanque, que atribui a diferentes esfe-ras sociais – que também não devem ser clara ouobjetivamente diferenciadas – a responsabilida-de por um tipo específico de reprodução social.Fraser atenua, assim, a distinção entre as duasformas de reprodução social que identifica notrabalho de Habermas.

A crítica de Fraser ao dualismo habermasianonão para, no entanto, por aqui, mas se estendeaos diferentes níveis em que ele pensa a distin-ção social entre sistema e mundo da vida. Consi-derando, então, uma segunda distinção propos-ta por Habermas, agora no tocante às duas for-mas de integração, a sistêmica e a social, Fraserbusca mostrar que também elas não podem sercompletamente distinguidas, tal como o fariaHabermas. Questionando, mais uma vez, a pos-sibilidade de que o dualismo habermasiano possaser proficuamente interpretado como uma dis-tinção estanque ou substantiva entre diferentesformas de ação, integração e reprodução social,Fraser indica, a partir de elementos empíricos,que nem no interior da economia nem na famí-lia a integração seria absolutamente sistêmica ousocial. Tanto uma quanto a outra são, segundoela, perpassadas por diferentes formas deintegração.

Posicionando-se, então, criticamente fren-te a Habermas e defendendo uma posição quepoderíamos, à primeira vista, aproximar da deHonneth, Fraser afirma, nesse artigo, que não épossível distinguir claramente entre uma esferasocial absolutamente livre de normas e uma ou-tra na qual relações de poder e imperativos eco-nômicos não desempenham, em principio, qual-quer papel. Com o objetivo de criticar, em dife-

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rentes níveis, a defesa de um dualismo substan-tivo que poderia ser encontrado em Habermas,Fraser afirma, então, que:

... em poucos, se é que em algum, dos contextos deação humana as ações são coordenadas de formaabsolutamente não-consensual e absolutamentenão-normativa. Por mais moralmente dúbio que sejao consenso e por mais problemático que seja o con-teúdo e o status das normas, virtualmente todo con-texto de ação humana envolve alguma forma deambos. No mercado capitalista, por exemplo, tro-cas estratégicas e maximizadoras de utilidade ocor-rem frente um horizonte de significados e normascompartilhados intersubjetivamente; agentes nor-malmente subscrevem mesmo que apenas taci-tamente a noções comumente aceitas de reci-procidade e a alguma concepção compartilhadasobre os significados sociais dos objetos, incluin-do que tipos de coisas são consideradastrocáveis. [...] O sistema econômico capitalistatem uma dimensão moral-cultural. Da mesmaforma, poucos, se é que algum, dos contextos deação humana são completamente destituídos decálculo estratégico (1989, p.118).

Recusando uma das possíveis interpreta-ções ensejadas pelo texto de Habermas, a qual“seria muito extrema para que fosse útil à teoriasocial” (1989, p.117), Fraser defende uma posi-ção, à primeira vista, bastante semelhante à deHonneth (2003b, p.188). Como ele, ela parecerecusar que a economia e a burocracia estatalsejam realmente autônomas e procura indicarque talvez não haja qualquer contexto de açãohumana que esteja, por um lado, livre de nor-mas e valores compartilhados e, por outro, isen-to de relações de poder; chegando a criticar, in-clusive, o uso que Habermas faz desse termo aorestringi-lo à esfera burocrática da sociedade.23

Nesse sentido, Fraser tenta não somente mostrara impossibilidade de se estabelecer uma distin-ção substantiva entre as esferas sociais, bemcomo a de distinguir tão claramente entre as for-mas de ação que, conforme dito acima, não sãounidimensionais. Impossibilidade e recusa que,no entanto, não a levam a questionar a própriadivisão da sociedade entre sistema e mundo davida, mesmo que o que ela virá a entender por

sistema não possua a mesma força atribuída porHabermas a esse termo.

Além disso, como Honneth, ela afirma queenxergar na sociedade apenas a tendência de am-pliação do sistema para além de seus limitesdesejáveis é insuficiente, assim como o é a com-preensão proposta por Habermas acerca das pa-tologias sociais, cujas causas estariam, segundoele, na colonização do mundo da vida pelo siste-ma. Ao questionar a separação estanque ensejadapelo texto de Habermas e mostrar que o funcio-namento da economia depende de normas, Fraserafirma que é preciso perceber também como opróprio sistema está sendo influenciado a todotempo pelo mundo da vida e incorpora, muitasvezes, valores ou significados sociais,instrumentalizando-os.24 Apesar das semelhan-ças que possui com o modelo de Honneth, a teo-ria social desenvolvida por Fraser não abandonapor completo o dualismo proposto porHabermas, mas relativiza suas fronteiras e exa-mina suas interrelações.25 Tal abordagem, paraela, permite uma compreensão mais adequada dasociedade em seus diferentes aspectos, sem abrirmão de sua complexidade, ao mesmo tempo emque possibilitaria uma melhor conceitualização dos

23 Como afirma ela, “restringir o uso do termo ‘poder’ a contextosburocráticos me parece um erro grave” (Fraser, 1989, p. 121).

24 Segundo Fraser, “as sociedades capitalistas contemporâ-neas estão permeadas por ideologias sobre o quanto váriasatividades contribuem para o bem estar social. [...] essasideologias têm efeitos reais. Mas elas dificilmente são osúnicos fatores que afetam as variações salariais. Os fatorespolítico-econômicos são também importantes, tais como aoferta e a demanda para diferentes tipos de trabalhos, abalança de poder entre trabalho e capital, o vigor dasregulações sociais, incluindo o salário mínimo, a disponi-bilidade e o custo da melhora da tecnologia, a facilidadecom que firmas podem mudar suas operações para luga-res nos quais as bases salarias são menores, o custo docrédito e as taxas internacionais de câmbio.” (Fraser, 2003b,p.215; 2003a, p.212-220). Em um artigo no qual trata doprincípio de paridade de participação, Rainer Forst afir-ma, seguindo Fraser, que não é possível compreender aeconomia a partir de relações de reconhecimento. Comodiz ele, “às vezes, parece que a injustiça não é primaria-mente vinculada a questões de reconhecimento, pois al-gumas profissões com uma compensação extremamente altanão possuem alta estima, tais como ser um gerente de umagrande corporação ou um corretor imobiliário. É verdade,como diz Honneth, que a esfera econômica é parte de umaesfera geral cultural do reconhecimento, mas muitos fenô-menos de injustiça no interior daquela esfera parecempossuir outras causas e seguir uma diferente lógica demercado ou ‘sistêmica’ que precisa ser identificada ecriticada” (Forst, 2008, p. 318).

25 Em um texto no qual trata da controvérsia que se estabele-ceu entre Fraser Honneth, Thomas McCarthy aponta paraum problema no dualismo de Fraser, que distingueredistribuição de reconhecimento. Segundo ele, ela teria

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diversos mecanismos que dão origem às injustiças.Esses mecanismos devem ser também pensados nointerior da interação social, que pode estar na ori-gem de normas assimétricas. Tal como Honneth,Fraser procura, então, apontar para a necessidadede pensar as relações de poder também a partir dasinterações sociais, isto é, das relações comunicati-vas, sem o que, como afirma, teríamos uma concep-ção por demais simplificada e mesmo limitada daspatologias sociais. Como diz Fraser,

... a abordagem de Habermas não consegueteorizar o caráter patriarcal, mediado por normasdo sistema administrativo e econômico-oficial docapitalismo tardio. Da mesma forma, ele não con-segue teorizar o caráter sistêmico, mediado pelodinheiro e pelo poder, da dominação masculinana esfera doméstica do mundo da vida do capi-talismo tardio. Consequentemente, sua tese dacolonização não consegue compreender que oscanais de influência entre instituições do siste-ma e do mundo da vida são multidirecionais(1989, p.137).

Tendo, em um primeiro momento, apon-tado para como o capitalismo não é absoluta-mente autônomo, mas depende de uma certamoralidade, o que implica uma primeira formade regulação do sistema por normas comunica-tivas, Fraser defende, num segundo, que existi-riam também outras normas – assimétricas – que,elaboradas intersubjetivamente, estruturam dealguma maneira o próprio funcionamento do sis-tema e constituem, por si só, patologias sociais.Esse é o caso da subordinação feminina, que te-ria parte de suas origens nas interações sociaisque fazem parte do mundo da vida, e não podeser entendida como um mero resultado da suacolonização sistêmica. Haveria, assim, patologi-as sociais cuja causa não estaria na ampliação dosistema, mas no “interior” do próprio mundo davida.26 Patologias pensadas por ela a partir da

distinção entre normas estabelecidas em contex-tos de interação normativamente assegurados,em contraposição às normas estabelecidas emcontextos de interação comunicativos. Normas evalores poderiam ser, assim, o resultado de co-municações distorcidas, mas cujas distorções nãoteriam se originado do sistema, via monetarizaçãoou burocratização, mas dos próprios contextosde interação que fazem parte do mundo da vida.É, então, na distinção entre esses dois diferentestipos de normas sociais, encontrada por ela nopróprio Habermas (Fraser, 1989, p.142-143), quese localiza, a nosso ver, a origem do dualismoentre redistribuição e reconhecimento que Fraserapresenta cerca de uma década depois.

Assim, se Fraser parece direcionar críticasmuito semelhantes às de Honneth a Habermas eaponta para praticamente os mesmos problemasno dualismo entre sistema e mundo da vida, épossível ver, já aqui, a origem das diferenças entresuas posições. Isso porque, enquanto Honnethprocura mostrar que relações de poder fazem partedo “social” e que esse mesmo “social” é aquilo queestrutura o sistema, concluindo, em razão disso,pela necessidade de dissolver quaisquer dualismose de pensar as relações de poder e a comunicaçãoconjuntamente, Fraser, por sua vez, aceita que es-sas interrelações existam, mas admite uma diferen-ciação, ainda que relativa, entre as esferas do siste-ma e do mundo da vida. Ao contrário de Honneth,portanto, Fraser assume uma certa diferenciação daeconomia que produziria, ela também, injustiçassociais. Contrapondo-se simultaneamente a Honnethe a Habermas, Fraser parece defender, com seudualismo, uma posição intermediária à deles.

Para ela, dissolver como um todo as distin-ções entre as esferas sociais e defender que a eco-nomia não tenha se diferenciado e não possuamecanismos relativamente autônomos não consti-tui um diagnóstico adequado da sociedade. Estaretomado a separação habermasiana entre sistema e mun-

do da vida que havia criticado anteriormente em “What’sCritical About Critical Theory”. A nosso ver, Fraser reto-ma o dualismo de Habermas, mas, ao fazê-lo, torna as fron-teiras entre a economia e a cultura fluídas, fazendo comque a distinção entre essas esferas sociais seja relativa enão substantiva (McCarthy, 2005).

26 Em um artigo no qual procura contrapor seu modeloteórico à teoria de Fraser, Forst afirma que ela trata deinjustiças e não de patologias sociais, uma vez que se

afasta de quaisquer concepções do que seria uma socie-dade eticamente saudável. A utilização que fazemos dotermo patologias sociais não faz referência ao que serianecessário à autorrealização, mas corresponde a algoanálogo às injustiças, isto é, àquilo que impede a realiza-ção do princípio de paridade de participação (Forst, 2008,p.310-311).

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só poderia ser abarcada por meio de um dualismosocial que, apto a perceber as particularidades dasesferas sociais, conseguisse também pensar suasinterrelações e, mais do que isso, fazer sua crítica.Dualismo que, pensado a partir de Habermas, nãose confunde com aquele proposto por ele. Afinal,o dualismo de Fraser aponta também para doismecanismos geradores de injustiça na sociedade,que Habermas reduz a apenas um. Ao contráriodele, portanto, Fraser defende que seria precisodistinguir os mecanismos de interação social pro-dutores de injustiça dos mecanismos sistêmicos27

produtores de injustiça e, por fim, a própriainteração comunicativa, que estaria na basenormativa de seu modelo teórico.

O diagnóstico de época desenvolvido porFraser faz, então, ao contrário de Habermas, umadistinção entre dois tipos de injustiça: aquelas re-lacionadas à distribuição de bens materiais, anco-radas primordialmente na economia política e,portanto, em formas sistêmicas de integração, eas relacionadas ao reconhecimento, dependen-tes, principalmente, de padrões de valoraçãocultural e, consequentemente, de formas sociaisde integração presentes na base do mundo davida. Esses dois mecanismos estariam, entretan-to, interligados e não poderiam ser concebidosindependentemente do outro, motivo pelo qualFraser afirma que as injustiças relativas àredistribuição e ao reconhecimento não remon-tam exatamente à economia e à cultura.28 Fraserabandona, assim, a compreensão unilateral queHabermas possui nesse período sobre as patologi-as sociais. Desse modo, se Fraser retoma o dualismohabermasiano, ela o faz deslocando-o. Trata-se, paraela, de pensar as duas esferas sociais, a econômicae a cultural, que gerariam, por meio de dois meca-

nismos interrelacionados, formas relativamentedistintas de subordinação.29

Para Fraser, seria preciso não somente ate-nuar o dualismo proposto por Habermas, comotambém acrescentar à sua teoria uma noção ex-pandida de patologias sociais, sem a qual nãoseria possível entender adequadamente uma par-te das injustiças presentes hoje na sociedade, nasquais o que está em causa não é nem o sistema,nem sua intervenção no mundo da vida, mas ospróprios significados e valores que, apesar deterem sido construídos socialmente, não são le-gítimos. Seria preciso atentar para as relações dedominação presentes na própria reprodução sim-bólica da sociedade, bem como questionar osmecanismos econômicos que geram impedimen-tos à participação paritária de todos na socieda-de.30 A concepção habermasiana sobre a origemdas patologias sociais seria, assim, unilateral. Pre-so ainda a uma chave “instrumentalista” oueconomicista, ele não teria dado conta de partedas injustiças existentes, as quais já teriam sido,inclusive, questionadas pelos movimentos femi-nistas ou antirracistas que estão, em certa medi-da, lutando pela alteração de padrões sociais hi-erárquicos presentes na sociedade, isto é, pelaalteração de conteúdos do mundo da vida, social-mente construídos. Contrapondo-se a Habermas,Fraser procura “desneutralizar” a economia, afir-mando que ela está em disputa, e, além disso, exa-minar as relações de dominação presentes no inte-rior da própria interação social. Esse objetivo é tam-

27 Esses mecanismos são concebidos por ela, em um primei-ro momento, apenas do ponto de vista da economia, aoqual acrescentou recentemente um elemento político queseria irredutível ao econômico, na medida em que a esferapolítica teria, ela também, se diferenciado (Fraser, 2008b).

28 Em razão de normas culturais assimétricas, trabalhos quevenham a ser tomados como femininos podem, por exem-plo, se tornar menos rentáveis; caso no qual aredistribuição material exige a alteração de normas cultu-rais e não necessariamente a reestruturação de mecanis-mos econômicos. De qualquer forma, tendo em vista essasinterrelações e a necessidade de que as diferentes causasdas injustiças sociais sejam identificadas, Fraser defende

uma diferenciação – mesmo que relativa – entre dois me-canismos sociais produtores de injustiça.

29 Mecanismos que, como Habermas, Fraser pensa a partirde Weber, que teria diagnosticado a diferenciação entretrês e não duas esferas sociais distintas, a econômica, apolítica e a de status. Fraser adicionou à sua teoria umaterceira dimensão da justiça, a política. Com isso, afirmaela, sua teoria aproxima-se da de Weber, que teria distin-guido três esferas sociais (Fraser, 2008b).

30 Para Fraser, os mecanismos econômicos não são absoluta-mente autônomos, uma vez que poderiam ser alteradospelos conflitos sociais, cujo surgimento não é pensadopor ela a partir do desenvolvimento da economia. Emboraafirme, em determinados momentos, que os mecanismoseconômicos possuem uma especificidade frente à culturae, portanto, às normas sociais, Fraser não estabelece um“abismo intransponível entre os aspectos ‘simbólicos’ e‘materiais’ da realidade social”, como afirma Honneth(Honneth, 2003b, p.134). Apesar disso, a distinção queFraser faz entre esses aspectos não pode ser dita analítica,mas relativa (Honneth, 2003c, p.285-294).

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bém o de Honneth, que, no entanto, acabadirecionando seus esforços para a elaboração de umateoria na qual a comunicação dirige o funcionamen-to de todas as esferas sociais, inclusive o da econo-mia. O que o teria impedido de conceitualizar asinjustiças de caráter econômico e de entender suasparticularidades.

Ao desenvolverem seus modelos críticos,Fraser e Honneth procuram, então, cada qual aseu modo, desenvolver teorias sociais que consi-gam dar conta daquilo que, para eles, a deHabermas não daria, isto é, da influência de nor-mas no interior da economia e das assimetrias erelações de poder reproduzidas por meio dainteração social. As saídas que apresentam são,contudo, distintas. E, é precisamente no que dizrespeito a elas que se situa um dos principaispontos em disputa entre eles no interior do de-bate sobre redistribuição e reconhecimento.

O DUALISMO PERSPECTIVO DE NANCYFRASER ENTRE HABERMAS E HONNETH

Ao criticar o dualismo social proposto porHabermas e afirmar que as lutas por reconheci-mento seriam responsáveis pelo desenvolvimentoda sociedade como um todo, Honneth propõeuma teoria social específica que, diferentementedaquela elaborada por Fraser, não é dualista.Embora assuma, em determinados momentos,que a economia e a burocracia estatal funcio-nem de modo relativamente inquestionado,Honneth sustenta que ambas dependem de queas normas sociais nas quais se baseiam sejamimbuídas de legitimidade pelos concernidos.Além disso, em diversos momentos, Honnethdefende uma versão ainda mais forte de seumonismo social, segundo a qual o capitalismonão apenas dependeria do consentimento tácitodos concernidos, mas seria também regido pordiferentes princípios de reconhecimento.31 Nes-

sa versão, que consiste no principal alvo das críti-cas de Fraser, Honneth defende que, atualmente, adivisão do trabalho e o funcionamento da econo-mia teriam deixado de ser diretamente reguladospelo princípio da honra e teriam passado a serregulados pelo princípio meritocrático da “produ-ção individual”, ou pelo princípio democrático do“respeito igual”. Como afirma ele:

... com o estabelecimento gradual de um novomodelo de valor assegurado pela burguesia eco-nomicamente ascendente frente à nobreza, o prin-cípio da honra baseado no estamento perdeu,inversamente, sua validade, de forma que a po-sição social do indivíduo se tornou agoranormativamente independente de origem e pos-ses. A estima que o indivíduo passou a merecerlegitimamente não é mais decidida com baseem seu pertencimento a um estamento com có-digos de honra correspondentes, mas, pelo con-trário, com base nas produções individuais nointerior da estrutura da divisão de trabalho in-dustrialmente organizada. [...] Uma parte da hon-ra atribuída hierarquicamente foi, de certa for-ma, democratizada designando a todos os mem-bros da sociedade igual respeito por sua digni-dade e autonomia como pessoas de direito, en-quanto outra parte foi, de certa forma,‘meritocratizada’: cada um deveria desfrutar deestima social conforme sua produção enquantoum “cidadão trabalhador”. ( 2003b, p.165-166)

Com a revolução burguesa, a distribuiçãomaterial, antes realizada e legitimada por meio detítulos de nobreza ou códigos de honra, teria pas-sado a depender da aplicação de dois princípiosnormativos, ligados a duas diferentes esferas de re-conhecimento, a da estima e a do respeito (Cf.Honneth, 2003b, p.159-177). Para Honneth, por-

31 Para responder às críticas de Fraser, Honneth diminui, emalguns momentos, a importância que as relações de reco-nhecimento possuem frente à economia, chegando mesmoa afirmar que o funcionamento da economia é normativo

apenas na medida em que depende de um consentimentotácito dos concernidos. Nessa versão mais fraca, a relaçãoentre a economia e as relações de reconhecimento ocorre-ria de forma indireta, uma vez que a própria economiafuncionaria de forma relativamente inquestionada. Como,nessa versão, a teoria de Honneth acaba se aproximandode Fraser, optamos por não tratar de forma mais detida daspassagens em que Honneth parece defender um certodualismo social, mesmo que fraco, mas apenas apontarpara o fato de que o estatuto da normatividade da econo-mia parece, por vezes, variar em sua teoria. Afinal, essaspassagens poderiam fortalecer a posição de Fraser, segun-do a qual os mecanismos econômicos relativamenteinquestionados teriam de ser alterados para que todosviessem a deter as condições objetivas para participar comopares da interação social. Conclusão que exigiria que exi-gências de redistribuição fossem diferenciadas das de re-conhecimento (Honneth, 2003c, p.288-289; 2003b,p.132-134).

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tanto, o surgimento do capitalismo corresponderiaa uma alteração nos princípios normativos que jus-tificam a distribuição de renda e a divisão social dotrabalho, e não, tal como para Habermas, aautonomização ou diferenciação da economia fren-te à normatividade em geral.

Os princípios normativos que regulam asrelações de reconhecimento, das quais depende-ria o desenvolvimento e as mudanças sociais emgeral, possuem, assim, uma posição de centralidadena teoria social de Honneth. Para ele, não hámecanismos econômicos que funcionem quaseque independentemente de relações comunica-tivas e que possam ser tomados como uma cau-sa específica de injustiças sociais. As assimetriasrelativas à divisão social do trabalho e à distri-buição desigual de renda não se originariam di-retamente de mecanismos do sistema econômi-co, mas de uma aplicação específica de diferen-tes princípios de reconhecimento que regulam omercado.32 Nesse sentido, aqueles que visam aalterar a economia não devem lutar diretamentepela reestruturação de mecanismos sistêmicos,como defende Fraser, mas pela alteração dos prin-cípios de reconhecimento que regem a econo-mia. Lutas que poderiam mobilizar dois dife-rentes princípios de reconhecimento para justi-ficarem suas demandas, o da igualdade de direi-tos ou o da estima social. Como afirma Honneth:

... existem atualmente dois caminhos abertos paraos sujeitos demandarem o reconhecimento daparticularidade de sua situação de vida ou per-sonalidade, para conseguirem lutar por umamaior quantidade de estima social e,consequentemente, mais recursos: Por um lado,até um determinado limiar, politicamente nego-ciado, é possível mobilizar a aplicação de direi-

tos sociais que garantam a todo membro da soci-edade um mínimo de bens essenciais indepen-dentemente de sua produção; o caminho abertocom isso segue o princípio da igualdade de direi-tos na medida em que, por meio da mobilizaçãoargumentativa do princípio da igualdade, pode-se aduzir fundamentos normativos que façamcom que um mínimo de bem estar econômicoseja um imperativo do reconhecimento legal. Poroutro lado, contudo, na realidade social cotidia-na do capitalismo, existe também a possibilidadede apelar para as conquistas de alguém como algo‘diferente’, uma vez que elas não recebem consi-deração suficiente ou estima social sob a estrutu-ra hegemônica de valores prevalecente. Uma figu-ra suficientemente diferenciada desse tipo de lutapor reconhecimento só é possível, certamente,quando levamos em consideração o fato de quetanto a demarcação social de profissões quanto aforma da divisão social de trabalho é, como umtodo, o resultado das valorações culturais das ca-pacidades específicas para a produção. Hoje temse tornado particularmente claro que a constru-ção social dos campos de atividades profissionaisé determinada e perpassada por preconceitos so-bre o perfil e o limite das capacidades femininas.[...] Tudo isso mostra o quanto a legitimação daordem de distribuição social deve a visões cultu-rais sobre a contribuição de diferentes grupos ouestratos para a reprodução social. Não somentequais atividades podem ser valorizadas como ‘tra-balho’ e, portanto, elegíveis à profissionalização,mas também quão alto deve ser o retorno socialpara cada atividade profissionalizada é determi-nado por um modelo de classificação e esquemasde valores que estão profundamente ancoradosna cultura da sociedade capitalista-burguesa.(2003b, p.181-182)

Dependendo da quantidade e do conjun-to de bens sociais que a sociedade considera le-gítimo garantir a todos, independentemente daprodução de cada um, teríamos uma economiamais ou menos liberal. Dependendo, por sua vez,das capacidades socialmente valoradas em umasociedade, bem como do grau de estima de quedisporiam os diferentes cargos e os grupos sociaisque costumam preenchê-los, poderíamos anali-sar as bases salariais atribuídas às diferentes pro-fissões. Dessa forma, para que as assimetrias derenda e de recursos fossem remediadas, seria pre-ciso alterar, de dentro, as relações de reconheci-mento que as regem e embasam normativamentee não, como afirma Fraser, regular ou alterar, defora, os mecanismos sistêmicos da economia, atra-vés das medidas de redistribuição.

32 Como afirma Honneth, “as regras que organizam a distri-buição de bens materiais derivam do grau de estima socialde que desfrutam os grupos sociais, de acordo com hierar-quias institucionalizadas de valor, ou uma ordemnormativa. [...] Conflitos por distribuição [...] são semprelutas simbólicas acerca da legitimidade do dispositivosociocultural que determina o valor das atividades, dosatributos e contribuições. [...] Resumindo, é uma luta peladefinição cultural daquilo que faz com que uma atividadeseja socialmente necessária e valorosa.” (Honneth, 2001,p. 54). Também Christopher Zurn aborda as diferentesrespostas que Honneth dá a Fraser e afirma que Honnethdefende um monismo social ancorado em relações de re-conhecimento (Zurn, 2005, p.108-117).

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Para Honneth, então, a economia e seusmecanismos estão subordinados à interação social,motivo pelo qual eles não precisariam ser compre-endidos em suas especificidades. Para Fraser, con-tudo, não é isso o que acontece. De acordo com ela,o funcionamento do sistema não depende direta-mente de expectativas normativas, mas opera demaneira relativamente impessoal através de proces-sos que priorizam a maximização do lucro. Nessesentido, para Fraser, a tentativa de Honneth deentender a divisão social do trabalho e a diferençana distribuição de recursos por meio do conceitode reconhecimento fecha os olhos para a existên-cia desses mecanismos e, por isso, não dá contade analisar adequadamente a sociedade capitalistaatual (Fraser, 2003b, p.211-222). Para Fraser, a res-posta dada por Honneth às dificuldades que iden-tifica no modelo teórico de Habermas não é plena-mente satisfatória, mesmo que ele tenha apontadona direção correta.33 Recusando a possibilidade deque a sociedade possa ser compreendida de formaunilateral, Fraser defende, então, opondo-se a ele, anecessidade de pensar um dualismo socialperspectivo. Como afirma ela, nesse sentido:

...o dualismo perspectivo assume que socieda-des capitalistas diferenciam a ordem de um mer-cado sistemicamente integrado de ordens soci-ais reguladas por valores. Como resultado, tantoa integração sistêmica quanto a integração socialsão essenciais para essas sociedades. Ao contrá-rio da abordagem de Honneth, portanto, a minhaatenta para ambas dimensões e elucida suasinterações mútuas. (2003b, p.222)34

Como mecanismos econômicos possuem

certa autonomia frente a normas socialmenteconstruídas, a complexidade e mesmo os diferen-tes aspectos das relações de dominação existentesexigiriam, para serem compreendidos, uma teo-ria social perspectivo-dualista, com a qual Fraser seafasta tanto de Honneth quanto de Habermas.

Tendo em vista, a impossibilidade de estabe-lecer uma distinção rígida entre o sistema e o mun-do da vida e repensando as diversas formas deinteração entre ambos, bem como seu funcionamen-to, Fraser reformula, então, o dualismo habermasianoe desenvolve um dualismo perspectivo, com o qualprocura apontar também para as diferentes origensdas injustiças sociais. Nesse sentido, Fraser afir-ma que, nas sociedades modernas:

... a estrutura de classes deixa de espelhar perfei-tamente a ordem de status, mesmo que cada umadelas influencie a outra. Uma vez que o mercadonão constitui o único e completamente difusomecanismo de valoração, a posição no mercadonão dita o status social. Padrões de valor culturalparcialmente resistentes ao mercado impedemque injustiças de distribuição se convertam in-teiramente e sem exceções em injustiças destatus. Má distribuição não necessariamente im-plica falta de reconhecimento, embora ela certa-mente contribua para a última. Similarmente,uma vez que nenhum princípio [...] constitui oúnico e completamente difuso princípio deredistribuição, o status não dita a posição de clas-se. Instituições econômicas relativamente autô-nomas impedem que injúrias de status se con-vertam inteiramente e sem exceções em injusti-ças de distribuição. A falta de reconhecimentonão se converte diretamente em má distribui-ção, embora ela também certamente contribuapara a última. Como resultado, não se pode en-tender essa sociedade atentando exclusivamen-te para uma única dimensão da vida social. Nãose pode ler a dimensão econômica diretamenteda subordinação cultural, nem a cultural dire-tamente da econômica. [...] Por fim, não se podededuzir a má distribuição diretamente a faltade reconhecimento, nem a falta de reconheci-mento a má distribuição. (Fraser, 2003a, p.53-54[grifos nossos])

Defendendo uma posição intermediária entreaquelas presentes nos trabalhos de Honneth eHabermas, Fraser desenvolve uma teoria social queprocura abarcar a complexidade dos aspectos so-ciais existentes. Teoria social que, como indicadoacima, se encontra atrelada a um diagnóstico dis-

33 Para ela, a análise social de Honneth está parcialmentecorreta, já que atenta para a influência que normas sociaisexercem no funcionamento da economia e na divisão soci-al do trabalho. Não obstante, Honneth teria ido muito lon-ge em suas afirmações e acabou, por isso, superestimandoo papel das relações de reconhecimento no interior dasociedade e obscurecendo o importante papel desempe-nhado por mecanismos econômicos relativamente autô-nomos no funcionamento do sistema capitalista e na dis-tribuição de recursos.

34 Fraser afirma também que, “no que a isso se refere, minhaabordagem se assemelha àquela de Jürgen Habermas. Aocontrário dele, contudo, eu não substancializo a distinçãoentre sistema e mundo da vida. Ao tratá-lasperspectivamente, contudo, eu possibilito uma explica-ção mais complexa de suas mútuas imbricações que suaconcepção unidimensional da ‘colonização do mundoda vida’” (2003b, p.235, nota 14).

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tinto daqueles apresentados por esses autores so-bre as relações de dominação, uma vez que apontapara um dualismo também nas origens das injus-tiças sociais. Contrapondo-se, então, aos dois au-tores, Fraser adota uma posição intermediária que,mesmo sem negar o dualismo habermasiano entresistema e mundo da vida, procura relativizar suasfronteiras e desenvolver uma teoria do poder queconsiga atentar para as diferentes origens das pa-tologias sociais, que Habermas e Honneth teriamcompreendido de modo unilateral.

Ao afirmar que as diferentes formas de in-justiça existentes exigem de uma teoria que sepretenda crítica, hoje, que ela seja dualista, Fraserrecusa tanto o monismo proposto por Honnethquanto o dualismo proposto por Habermas, bemcomo a compreensão unilateral que ambos pos-suem sobre o surgimento das patologias sociais.Distanciando-se de Habermas, ela examina osmecanismos patológicos presentes no própriomundo da vida, assim como aqueles que têmcomo causa a economia, cujas fronteiras seriam,para ela, fluidas. Ao contrário de Honneth, porsua vez, ela mantém o conceito de sistema, namedida em que aceita, mesmo que parcialmen-te, a diferenciação e autonomização relativa daesfera econômica da sociedade, que estaria naorigem de parte das injustiças sociais.

Assim, enquanto Honneth, partindo dedeterminadas críticas frente ao dualismo socialpresente em Teoria da Ação Comunicativa, de-senvolve um monismo social centrado no con-ceito de reconhecimento, Fraser, partindo de crí-ticas muito semelhantes, elabora um dualismosocial perspectivo, com base no qual defende queas sociedades contemporâneas requerem tantoredistribuição quanto reconhecimento. A disputaentre o monismo do reconhecimento propostopor Honneth e o dualismo entre redistribuição ereconhecimento proposto por Fraser se estabe-lece, então, quando os autores procuram superaro dualismo social de Habermas e a compreensãoque ele possui sobre a origem das patologias soci-ais em Teoria da Ação Comunicativa. A pergun-ta acerca da possibilidade de que o conjunto de

injustiças existentes seja compreendido a partirdo conceito de reconhecimento, ou acerca da ne-cessidade de recorrer, para isso, ao par conceitualredistribuição e reconhecimento, nos remete auma disputa entre Fraser e Honneth quanto aosdiferentes caminhos adotados por eles na tentati-va de superar os problemas que identificam nodiagnóstico da sociedade proposto por Habermas.

Em questão, no debate sobre redistribuiçãoe reconhecimento, estão, assim, as diferentes te-orias sociais elaboradas por Fraser e Honnethcom o objetivo superar as dificuldades que en-contram em Habermas e de apresentar um mo-delo de teoria crítica que consiga diagnosticar osbloqueios e tendências à emancipação. Objetivoque nos remete à seguinte pergunta, que se en-contra no cerne do debate entre eles: é mesmopossível, tal como defende Honneth, afirmar queos mecanismos econômicos dependem de umconsenso normativo, isto é, é possível afirmarque o mercado capitalista e suas formas de dis-tribuição de renda são possíveis apenas na me-dida em que se baseiam em relações de reconhe-cimento e dispõem de legitimidade da parte dosque são por ele afetados? Tal posição teria comoconsequência a conclusão de que o conjunto deinjustiças sociais existentes tem como causa re-lações assimétricas de reconhecimento e pode-ria ser adequadamente conceitualizado apenas apartir do conceito de reconhecimento. Ou, aocontrário, é necessário estabelecer, como propõeFraser, uma distinção entre duas esferas sociaisque, mesmo interligadas, teriam se diferenciadoe gerariam dois tipos de subordinação relativa-mente distintos? Isto é, se formas de integraçãoeconômicas podem ser ditas relativamente au-tônomas e levariam ao estabelecimento de in-justiças que não poderiam ser adequadamentecompreendidas como efeitos de hierarquiassocioculturais. Caso no qual o dualismo de Fraser,que distingue as injustiças e as exigências relati-vas à redistribuição e ao reconhecimento, seriamais adequado do que o monismo de Honnethpara diagnosticar as patologias sociais existen-tes. Afinal, nesse caso, seria preciso alterar tanto

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os padrões culturais de valoração, via reconheci-mento, quanto reestruturar os mecanismos econô-micos, via redistribuição, para que todos pudes-sem participar como pares da sociedade.

O debate entre Fraser e Honneth sobreredistribuição e reconhecimento põe, assim, emquestão se é mesmo possível afirmar que o de-senvolvimento da sociedade depende, como umtodo, das relações de reconhecimento, ou se épreciso diferenciar, ainda que relativamente, aeconomia de outros âmbitos sociais reguladosdiretamente por normas. Independentemente daresposta que dão a essa questão, contudo, am-bos os autores recusam que as injustiças possamser adequadamente compreendidas a partir datese da colonização do mundo da vida pelo sis-tema e apontam para a necessidade de que asrelações de poder existentes sejam também pen-sadas a partir das interações sociais. Além disso,tanto Fraser quanto Honneth, cada um a seumodo, defendem que o sistema não é neutro enem absolutamente autônomo, colocando-o no-vamente em disputa e recusando, com isso, ele-mentos do modelo teórico de Habermas.

(Recebido para publicação em 03 de junho de 2011)(Aceito em 19 de julho de 2011)

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Nathalie Bressiani - Doutoranda em Filosofia. Professora da Fundação Escola de Sociologia e Políticade São Paulo – FESPSP. Possui graduação e mestrado em Filosofia na USP. É integrante do grupo deFilosofia Alemã, bem como do Núcleo de Direito e Democracia do CEBRAP. Trabalha com temas relaci-onados à filosofia política e teoria social, atuando principalmente nos temas: teoria crítica, reconheci-mento, democracia deliberativa, participação política e redistribuição. Publicou artigos sobre NancyFraser e Axel Honneth.

REDISTRIBUTION AND RECOGNITION - NANCYFRASER BETWEEN JÜRGEN HABERMAS AND

AXEL HONNETH

Nathalie Bressiani

Taking as a guide the question about thepossibility of understanding the existing set of injusticesfrom the concept of recognition or the need to resort, forthis, to the conceptual pair of redistribution andrecognition, this paper aims to argue that the disputebetween Honneth’s monism and Fraser’s dualism andrefers to discrepancies in their social theories. From areconstruction of the criticisms leveled by the authorsto the social dualism of Jürgen Habermas, as well asdifferent social theories developed in order to resolvethem, we will also seek to show that the answers theyhave found to these difficulties are in the center of deba-te about redistribution and recognition and that Fraser,developing a perspectival social dualism, adopts anintermediate position regarding those supported byHabermas and Honneth.

KEYWORDS: redistribution, recognition, social theory,Nancy Fraser, Axel Honneth.

REDISTRIBUTION ET RECONNAISSANCE -NANCY FRASER ENTRE JÜRGEN HABERMAS ET

AXEL HONNETH

Nathalie Bressiani

Le débat entre Nancy Fraser et Alex Honnethsur la redistribution et la reconnaissance englobe unemultitude de questions. Notre fil conducteur sera laquestion concernant les possibilités de comprendrel’ensemble des injustices qui existent à partir duconcept de reconnaissance ou du besoin de faire appel,pour cela, à deux concepts qui vont de pair, laredistribution et la reconnaissance. Nous défendonsdans cet article l’hypothèse selon laquelle le différendentre le monisme de Honneth et le dualisme de Fraserest le fruit de divergences dans leurs théories sociales.De la reconstruction des critiques formulées par cesdeux auteurs au dualisme social de Jürgen Habermasainsi que des différentes théories sociales développéesen vue de les résoudre, nous essayerons de montrer queles solutions proposées par ces derniers, pour résoudreces difficultés, sont au cœur des débats concernant laredistribution et la reconnaissance et que Fraser, à par-tir du moment où il a développé un dualisme socialperspectif, a adopté une position intermédiaire à cellesque Honneth et Habermas ont soutenues.

MOTS-CLÉS: redistribution, reconnaissance, théoriesociale, Nancy Fraser, Axel Honneth.