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II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades
Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013
RECONHECIMENTO DE DIREITOS E ACESSO AO JUDICIÁRIO: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA PARA ESTUDO SOBRE VARIÁVEIS
DETERMINANTES EM FAVELAS CARIOCAS
MOREIRA, RAFAELA S. (1); FRAGALE FILHO, ROBERTO (2)
1. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
Avenida Marcos Valdemar Reis, s/n – Campus do Gragoatá Bloco O, 3º andar, Niterói – RJ - Cep: 24210-340
RESUMO
Este trabalho visa aprofundar elementos de investigação sobre a temática do acesso à justiça tendo como foco o contexto das favelas da cidade do Rio de Janeiro. O artigo inicia com a análise do contexto das favelas na cidade - rupturas e continuidades – destacando relevantes fatos históricos e dados quantitativos. Na sequencia, apresenta pesquisa feita em 2011 sobre a relação dos moradores destas favelas com a justiça formal, reconhecendo suas contribuições e limitações para compreensão das variáveis determinantes do acesso à justiça formal por moradores de favelas. Com a proposta de superar as limitações desta pesquisa, o artigo passa ao levantamento e análise de relevantes estudos tanto nacionais como internacionais, desde os estudos clássicos às pesquisas mais recentes no tema do acesso à justiça, sistematizando-os e identificando os caminhos já traçados pela bibliografia e os caminhos ainda em aberto. Através da identificação de vias não percorridas, é traçada pré-proposta de pesquisa de campo em favela em duas abordagens - institucional e comunitária - para análise mais minuciosa das variáveis determinantes do reconhecimento de direitos e no efetivo acesso ao judiciário no universo da favela.
Palavras-chave: Favela – Rio de Janeiro – Acesso à Justiça – Levantamento bibliográfico
PONTO DE PARTIDA: A FAVELA COMO CENÁRIO
Através da análise histórica do fenômeno das favelas na cidade do Rio de Janeiro nos
deparamos com uma realidade complexa, fluida e envolta em ambiguidades e choques de
percepções. Entre as facetas desta história destacamos aqui: (1) A capacidade de resistência
dos moradores de favelas; (2) A consolidação da favela com fato social (anos 1980); (3) A
década em que a favela entra na moda (anos 1990); (4) A preocupação tardia com o
levantamento de dados (décadas de 1940 e 1950); (5) A constância da imprensa
―desinformadora‖ e; (6) A construção da visão dicotômica entre o morro e o asfalto. Desde o
surgimento até os dias de hoje, a incorporação das favelas a cidade formal constitui um
desafio ao poder público. Como veremos neste tópico, as favelas do Rio de Janeiro estão hoje
com mais de um século de existência em vivem plena expansão.
Alguns destaques na história das favelas
Apesar da vitória do fenômeno da favela sobre todas as tentativas de extermínio que
contra ele empreendidas ao longo de um século, na década de 1980, a ideia de que as favelas
eram doença social a ser eliminada não cabia mais nos discursos políticos. As favelas não
eram mais episódio, mas fato social consolidado na cidade (Cavalcanti, 2009).
Pouco após consolidada, na década de 1990 a favela entra na moda, no entanto, a
recente fama que conquista não é resultado de cem anos de história de lutas, mas da
degeneração de valores e violência gerados pelo crime. Tanto no cenário nacional - através
da televisão e dos jornais - quanto no cenário internacional - através das telas de cinema –, a
violência e a atmosfera de ilegalidade nas favelas passam a ser amplamente divulgadas com
fetichismo (Baumann, 2009). Resultado este da combinação de uma mídia (des)informadora
com a escassez de dados sobre favelas e suas dimensões na cidade. A primeira favela já
contava com 50 anos de existência quando foi realizado o primeiro recenseamento
(Valladares, 2005, 62). Os primeiros recenseamentos na década de 1940 e 1950 traziam
dados conflitantes e imprecisos sendo corrigidos ao longo das décadas seguintes, a partir de
novas pesquisas que até hoje ainda são realizadas a fim de diagnosticar a evolução das
favelas cariocas. A demora e a insuficiência na geração de dados sobre as favelas aliada a
presença massiva de especulações alarmistas da imprensa são a combinação perfeita para a
construção de perspectivas fantasiosas e irreais destes espaços urbanos. Um exemplo disto
é a percepção da cidade do Rio de Janeiro como ―cidade partida‖ (Ventura, 1994). Como
veremos a seguir, a favela não é realidade uniforme ao longo da cidade (Cavalcanti, 2009;
Moreira, 2011).
Alguns dados quantitativos
Se observarmos o mapa da cidade do Rio de Janeiro a partir de sua divisão territorial
em cinco áreas de planejamento municipais a luz do índice de desenvolvimento social
calculado pela ONU (CAVALLIERI & LOPES, 2008), verificamos que as menores taxas de
desenvolvimento sociais estão na área de planejamento ―4‖ e ―5‖ - AP4 e AP5 - que
correspondem a ―Zona Oeste‖ e os melhores em contra partida estão concentrados na ―Zona
Sul‖ (AP2).
No que tange ao recente crescimento das favelas, esta variação também se manifesta
nas diferentes áreas de planejamento municipais. Em dados gerais, em 2010, o crescimento
das favelas comparado ao da cidade formalmente constituída era de quatro novos1 indivíduos
a mais por ano nas favelas para um novo indivíduo a mais por ano na cidade formal (Cavallieri
& Lopes, 2012). Este crescimento mais acelerado na favela não se dá, todavia, de maneira
uniforme entre as favelas nas diferentes regiões da cidade. Enquanto a população das favelas
da Zona Sul (AP2) e de parte da Zona Oeste (AP5) cresciam a uma taxa de 15% ao ano, a
população das favelas de outra parte da Zona Oeste (AP4) – que inclui a Barra da Tijuca e
Jacarepaguá - crescia a todo vapor marcando 53% ao ano (Cavallieri & Lopes, 2012).
Figura 1 – Mapa das favelas da cidade do Rio de Janeiro em 2008, tal como publicado pelo IPP, com destaques em vermelho com números indicativos das taxas de crescimento populacional anual das favelas, por área de planejamento municipal, segundo estudo de Cavallieri e Lopes (2012) baseado no Censo 2010. Cada destaque com taxa de crescimento corresponde a uma Área de Planejamento Municipal da cidade: AP1= 28%; AP2=15%; AP3=11%; AP4=53%; AP5=15%;
Conhecer e entender esta dinâmica realidade parece ser o primeiro passo a ser dado no
sentido de atender efetivamente demandas da coletividade, compor as desarmonias do tecido
social e distribuir direitos com equidade. Com todas as suas imperfeições, ao longo da história
desta cidade, não resta dúvida que o Estado nunca esteve tão presente nas favelas como nos
dias atuais (Moreira, 2011). Saber se esta presença estatal nas favelas se traduz na
1 Novos indivíduos podem ser por natalidade ou por fluxos migratórios internos entre regiões do Brasil.
democratização do acesso aos direitos é nossa questão central. Seguimos nossa
investigação rumo a relação entre moradores de favelas e periferias e o Poder Judiciário.
UMA PROBLEMÁTICA: O ACESSO À JUSTIÇA FORMAL NESTE
CONTEXTO
Pesquisas realizadas desde a década de 1980 no Brasil apontam um crescimento
significativo no número de demandas judiciais (Sadek, 2004). Este aumento no número de
demandas judiciais, no entanto, quando devidamente qualificado revela que nas últimas
décadas, ―mais do que a democratização no acesso ao Judiciário, defrontamo-nos com uma
situação paradoxal: a simultaneidade da existência de demandas de mais e de demandas de
menos; ou, dizendo-o de outra forma, poucos procurando muito e muitos procurando pouco
ou não procurando‖ (Sadek, 2004: 12). Apesar da expectativa de que os muitos que procuram
pouco ou não procuram o sistema judicial estejam concentrados nas camadas mais
empobrecidas da sociedade, com menores rendas e mais baixos níveis de escolaridade,
Santos, em pesquisa mais recente (2008), afirmou que cada vez mais os ―pobres urbanos”
(Santos, 2008: 11) estariam conscientes de seus direitos e sugeriu ainda uma relação direta
entre consciência de direitos e demandas judiciais afirmando que os pobres urbanos estariam
cada vez mais frequentemente recorrendo às instâncias legais, como os tribunais, para
protegerem ou exigirem a efetiva execução de seus direitos (Santos, 2008:19).
O TJRJ e a favela carioca
Investigamos a procedência de tal assertiva para a realidade da cidade do Rio de Janeiro
através de pesquisa no acervo jurisprudencial do TJRJ (Moreira, 2011). Neste levantamento,
identificamos que, ao longo das últimas três décadas, há um aumento significativo no número
de recursos que discutem questões relacionada as favelas no TJRJ. Esta investigação
aponta, entre outros resultados, para um significativo aumento do número de demandas
propostas por moradores de favelas no Tribunal de Justiça e revela que este aparente
aumento não acontece de forma uniforme entre as favelas de diferentes áreas da cidade. Ele
é mais concentrado nas favelas das áreas com melhores índices de desenvolvimento social -
como as favelas da ―Zona Sul‖ da cidade (AP2) - e parece estagnado nas favelas das áreas
com os piores índices de desenvolvimento social - como a ―Zona Oeste‖ da cidade (AP5). A
pesquisa sugere recente mudança no cenário do acesso de moradores de favelas à justiça ao
longo do tempo na cidade do Rio de Janeiro tanto na quantidade de demanda quanto na
qualidade do direito demandado e sugere ainda forte desigualdade na distribuição deste
acesso em um cenário interfavelas considerando os diferentes espaços urbanos nos quais
estas estariam inseridas. Apesar do panorama revelado, esta pesquisa (Moreira, 2011) não
apresenta conclusões mais efetivas sobre quais e como fatores no nível da oferta e da
demanda poderiam influenciar este acesso. É a partir desse caminho ainda aberto que
daremos inicio – ou continuidade - ao estudo sobre o acesso à justiça na cidade do Rio de
Janeiro, desenvolvendo preliminarmente uma análise mais aprofundada das principais obras
publicadas neste tema para levantamento de variáveis a serem testadas em pesquisa de
campo.
Estudos clássicos sobre acesso à justiça formal
A clássica obra de Cappelletti e Garth (1978) apresenta o acesso à justiça de maneira
mais ampla e exaustiva até hoje já concebida, motivo pelo qual, após mais de três décadas,
continua sendo referência estruturante para os estudos que se aventuram nesta temática. O
trabalho reconhece a possibilidade do tema do acesso à justiça consubstanciar o debate do
ideal de justo, mas opta por não se ater a esta abordagem, elegendo a abordagem do acesso
à justiça como acesso ao sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar direitos e resolver
litígios sob o auspício do Estado.
Entre as variáveis identificadas por Cappelletti & Garth (1978) foram enumeradas
como obstáculos: (1°) Custos - custas judiciais, honorários advocatícios e eventual
sucumbência; (2°) Pequenas causas – quanto menor o valor do pedido, mais alto o custo
proporcional para autoria de uma ação; (3°) Tempo - compreendido como agravador de custo
financeiro. Além destes, outras variáveis identificadas por Marc Galanter (1974) ligadas a
possibilidades estratégicas das partes foram incorporadas, quais sejam: (4°) Vantagem
financeira – de uma parte em relação a outra; (5°) Litigantes habituais e sua vantagem sobre
os eventuais; (6°) Aptidão para reconhecer um direito –relacionada à recursos financeiros,
educação, ―meio‖ e ―status social‖; (7°) ―Disposição psicológica‖ –apontado como relacionado
ao item ―6°‖, é o que faz como que o indivíduo busque efetivamente meios de se informar e
agir como, por exemplo, a procura por advogados ou conselheiros comunitários para
determinados assuntos jurídicos e etc.
Para transpor os obstáculos acima identificados, conjuntos de propostas de soluções
visando grupos de obstáculos específicos, foram colocadas em prática em diferentes
momentos ao longo do tempo em diferentes países, a maioria deles na Europa. Temos,
assim, as famosas ―ondas de acesso à justiça‖ de Cappelletti e Garth (1978) que podem ser
resumidas em: (1°) Assistência judiciária para os pobres – a partir de 1965, os primeiros
esforços teriam se dado em torno da assistência judiciária para os pobres2; (2°) Interesses
2 Analisam modelos testados na Europa e Estados Unidos entre outros. O modelo utilizado na Europa, Sistema
Judicare, trazia remuneração de honorários a advogados paga pelo estado em valores atrativos para a maioria dos advogados bons, mas não resolvia o problema do: reconhecimento das questões enquanto questões jurídicas e da busca pelo auxílio especializado. Outra crítica é que não estaria preparado para transcender aos remédios
difusos - reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses
difusos3; e, por fim, (3°) a emergência de uma concepção mais ampla de acesso à Justiça4.
Kim Economides (1999), professor de direito da Exeter University Centre for Legal
Interdisciplinary, na Inglaterra, organiza e amplia a leitura de acesso à justiça feita por seus
predecessores Cappelletti e Garth (1978) a partir de duas abordagens: (1) metodológica - dos
estudos sobre mobilização das leis pelos cidadãos5; e (2) epistemológica - das definições
contemporâneas de justiça6 que sugere a indagação quanto ao conteúdo da Justiça.
Sugere ainda que, para avançar-se na definição de soluções práticas efetivas na
promoção do acesso à justiça, é necessário empreender a pesquisa sobre o acesso à justiça
em termos tridimensionais, ou seja, é preciso compreender: a) a natureza da demanda dos
serviços jurídicos; b) a natureza da oferta desses serviços jurídicos; e c) a natureza do
problema jurídico que os clientes possam desejar trazer ao fórum da justiça. Neste sentido,
citando o trabalho de Carlin e Howard publicado nos anos 1960, Economides (1999) aponta
quatro estágios cruciais pelos quais o cidadão comum passa antes de ingressar nos tribunais.
individuais, ou seja, não atenderia interesses difusos. No modelo utilizado nos EUA, os advogados eram remunerados pelos cofres públicos (Programa de Serviços Jurídicos do Office of Economic Opportunity – Legal Service Corporation) e adota o uso de advogados com objetivo aproximação da população atendida para disseminação da informação sobre direitos e compreensão dos obstáculos locais, ou ―barreiras de classe‖, dando a estes advogados mais ferramentas para super estas barreiras com maior eficiência. A proposta vai além da intenção de superação de barreira econômica, se propondo a atingir a problemática da desinformação e das demandas difusas de uma determinada população. As limitações práticas deste modelo foram: (a) agressividade dos advogados; (b) incapacidade de criar tais advogados em escala; (c) paternalismo das equipes de advogados - ―Tratem-se os pobres simplesmente como indivíduos comuns, só que com menos dinheiro‖ eram a recomendação da época para estes advogados. (Cappelletti e Garth, 1978: 16); (d) o fato de depender de apoio governamental e ir muitas vezes contra o governo, demandando independência do poder governamental direto. Entre o primeiro e o segundo modelos, destacam-se as experiências implementadas na Suécia e Canadá com modelos mistos. 3 As soluções nesta onda são direcionadas a viabilizar litígios de interesse público. As propostas trazem questões
atinentes ao processo civil: legitimidade ativa e trâmite processual, e ainda, a ideia de ação governamental – proposta por órgãos governamentais com poder de barganha – entre outras propostas em nível processuais. As propostas não abrangem a problemática da disposição psicológica e das questões prévias de mobilização e organização local comunitária, etapas necessárias para proposição de uma ação para defesa de interesses difusos. 4 Abrange as duas primeiras e vai além: métodos que tornem os novos direitos efetivos. Engloba mudanças na
estrutura do próprio tribunal, ou seja, mudança de cunho administrativo e procedimentos judiciais e extrajudiciais. Trabalha com a ideia de adaptação do processo civil ao tipo de litígio. Diferentes tipos de litígio podem apresentar diferentes barreiras de acesso para diferentes pessoas. Seria o caso de personalizar a prestação jurisdicional aos contextos aos quais ela atenderá. Analisa essa diferença por tema e valor envolvido, causas que exigem soluções rápidas e as que podem suportar longas deliberações, mediação quando as relações precisarem ser preservadas entre outras detalhadas em tópicos. Entre os tópicos foram destacados: (1) reforma dos procedimentos judicias em geral- relacionada ao devido processo legal; (2) métodos alternativos – Juízo arbitral, conciliação e mediação; (3) procedimentos especiais – para causas de pequeno valor, tribunais de vizinhança, tribunais para consumidor, tribunais para litígios de trabalho e tribunais especializados em ―novos‖ direitos; (4) mudanças nos métodos para prestação de serviços jurídicos – uso de parajurídicos e planos de assistência jurídica; (5) simplificação do direito - criação de um direito mais acessível as pessoas comuns;
5 Que inclui: (a) o estudo das necessidades jurídicas não atendidas; e (b) o conhecimento e opinião sobre a justiça.
6 No aspecto epistemológico o acesso à justiça está, portanto, vinculado aos temas de cidadania e
constitucionalismo, apoiando e reforçando o Estado de Direito. Economides (1999) afirma que ―o desafio atual não é alargar os direitos — ou elaborar declarações de direitos (por mais importantes que estas sejam para os
Inicialmente o indivíduo precisa ter (1) a consciência, ou o reconhecimento de que
determinado problema é um problema jurídico, e na sequëncia (2) a vontade de iniciar ação
(judicial ou não) para solucioná-lo, em outras palavras, a vontade de solucionar a questão
ainda que não se saiba exatamente o que é cabível para esta solução. O passo seguinte seria
(3) a procura efetiva de um advogado, ou de um órgão ou uma pessoa capaz de fornecer a
informação/consulta especializada, para, por fim, (4) decidir pela contratação efetiva de
advogado ou serviço legal, ainda que gratuito, para ingresso da ação cabível.
Neste caminho, as profissões jurídicas, mais que o governo propriamente, seriam
determinantes de sucesso ou desestímulo para o cidadão comum na busca do judiciário para
resolução de conflitos ou acesso aos direitos. Economides (1999) sustenta que o principal
obstáculo a ser superado sob este aspecto é o fato de que a grande proximidade dos
advogados quanto à administração da justiça estaria cegando-os quanto à diferença entre
uma justiça civil e uma justiça cívica. Diante desta problemática diagnosticada, propõe uma
quarta onda de reformas que trariam para a discussão do acesso à justiça a dimensão ética e
política da administração da justiça. Mais do que no campo da demanda, essa discussão
estaria no campo da oferta, e a investigação a ser empreendida relacionada passaria por
questões como: (1) quem acessa, e sob que condições, o ensino superior em direito; e (2)
quais os padrões mínimos de profissionalização de um profissional do direito7. Esta onda traz
para as universidades e para os órgãos de classe, como a ordem dos advogados, a
corresponsabilidade direta pela promoção do acesso a justiça.
Apesar do grande número de investigações empreendidas neste tema, os estudos de
Cappelletti e Garth (1978) e Economides (1999) para nós são referências chaves para
empreender investigações na temática do acesso à justiça. No entanto, é importante lembrar
que os contextos estruturantes dos pensamentos dos autores ora apresentados trazem uma
gama de problemas originados em matrizes diferentes. Em outras palavras, Cappelletti e
Garth (1978) tratavam da transição de um modelo de justiça dogmática e formalista do estado
liberal burguês – no qual o Estado não intervinha positivamente como garantidor do acesso à
justiça - para um modelo no qual o Estado precisa atuar positivamente pelo direito a ter
direitos (o Welfare State) e, ao lado de pesquisadores ―ocidentais‖ como Economides (1999)
debruçavam-se sob problemas que surgem na crise desse Estado de bem estar social. Como
veremos adiante, estes pesquisadores dos países centrais estão tratando de problemas
nomeadamente iguais, mas estruturalmente diferentes dos que surgem na realidade dos
advogados constitucionalistas e para o simbolismo político) —, mas encontrar meios e recursos para tornar, tanto ―efetivos‖, quanto ―coativos‖, os direitos que os cidadãos já têm‖ (p. 71).
7 Neste segundo aspecto Economides (1999) questiona o currículo das faculdades de direito e propõe uma
necessária discussão abrangente dos valores fundamentais que deveriam governar os operadores do direito, onde quer que escolham exercer sua profissão.
países periféricos como é o caso da realidade brasileira. A realidade brasileira está mais
próxima do que apresenta o professor chileno Branies quando lembra que as pessoas em seu
país estão fora do sistema institucional. Quando isto acontece, não importa o quanto se
promova acesso aos tribunais, não há demandas a propor. Em suma, um sistema de reformas
antes de ser implementado deve partir de um diagnóstico local para identificação das
necessidades de reforma e, após a implementação das propostas, os novos modelos devem
ser monitorados. Passamos, assim, ao diagnóstico da nossa realidade a partir de algumas
referências da produção nacional.
Algumas referências nacionais
Localizada entre bacharéis de direito sociologicamente orientados, a sociologia do
direito no Brasil surge, coincidentemente ou não, com as primeiras pesquisas sobre acesso à
justiça (Junqueira, 1996). Os motivos do despertar do interesse brasileiro para esta temática
estão relacionados ao processo político e social da abertura política e, em particular, à
emergência do movimento social que então se inicia na década de 1980. A discussão sobre
acesso à justiça no Brasil é provocada não pela crise do Estado de bem-estar social como
acontece na Europa e nos Estados Unidos, mas pela exclusão da grande maioria da
população de direitos sociais básicos, entre os quais o direito à moradia e à saúde (Junqueira,
1996). As principais questões brasileiras no momento do Florence Project eram diferentes
daquelas que o motivavam nos países centrais (Junqueira, 1996). No Brasil, o desafio era a
expansão de direitos básicos aos quais a maioria da população não tinha acesso tanto em
função da tradição liberal individualista do ordenamento jurídico, como em razão da histórica
marginalização sócio econômica dos setores subalternizados (Junqueira, 1996).
Tomamos como marco inicial no diagnóstico da problemática do acesso à justiça no
Brasil os estudos de Boaventura de Sousa Santos. No final dos anos 1980, Santos (1989)
traçou a trajetória da sociologia da administração da justiça no Brasil, apontando os
obstáculos sociais, econômicos e culturais para o acesso à justiça e chamando atenção para
o fato de ser o tema que mais diretamente equaciona as relações entre o processo civil e a
justiça social e entre igualdade jurídico formal e desigualdade social e econômica (1989b: 45).
Dentre os obstáculos ao acesso à justiça, Santos (1989b; 1996) identificou entraves
tanto no campo da demanda (distância social, desconhecimento de direitos e de meios para o
encaminhamento das demandas para o poder judiciário) como em relação à oferta
(burocracia, formalismo, custos, lentidão da prestação jurisdicional). No campo da demanda,
Santos sustentou que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto
maior quanto mais baixo é o estado social a que pertencem e que essa distância tem como
causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais,
ainda que uns e outros possam estar mais remotamente relacionados com as desigualdades
econômicas (Santos, 1989: 48). Em outras palavras, um cidadão com menos recursos
econômicos, sociais e culturais tenderia a conhecer menos seus direitos pela dificuldade de
identificar o que lhe afeta como um problema jurídico. Ainda que esse indivíduo reconheça
seus direitos e questões jurídicas, seria preciso ter vontade de recorrer às vias formais de
resolução de conflitos8 para materialização do acesso ao judiciário.
A partir de então uma série de estudos se seguiram, entre eles os estudos de Aguiar
(1991), Junqueira (1996), Burgos (1999), Pandolfi (1999), Grynspan (1999), Sadek (2001),
Strozemberg (2001), Ferro (2002), Faria (2003), Veronese (2003), Sadek (2004), Moreira
(2006), Santos (2008), Moreira (2011) entre outros. Em recente artigo publicado, Fragale
(2013) faz um recenseamento de alguns dos principais estudos no tema refletindo que, não
obstante o esforço e contribuição no nível metodológico e epistemológico na temática do
acesso à justiça empreendidos por Economides (1999), os trabalhos sobre acesso à Justiça
desenvolvidos no Brasi continuam centrados na tradição inicial de Cappelleti e Garth (1978).
Neste recenseamento, Fragale (2013) faz a leitura das pesquisa publicadas no Brasil a partir
de quatro eixos distintos: (1) Experiências ―inovadoras‖9 – descrição e análise de experiências
de êxito realizadas pelo Judiciário para ampliar o acesso; (2) Casos de ―fronteira‖ 10 –
situações limites e propostas de solução; (3) ―Juizados Especiais‖ 11 - experiências dos
8 Mais recentemente, Boaventura de Sousa Santos adiciona ao conceito de demanda real e demanda potencial, o
conceito de demanda suprimida (Santos, 2008). Sobre isso, Sadek (2004) também afirma que, apesar da multiplicação dos conflitos ocorrida com o crescimento da população urbana – pois em um intervalo de menos de 50 anos a sociedade brasileira predominantemente rural e agrária transforma-se em urbana e industrial – ―[esta] potencialidade de conflitos foi, no entanto, em grande parte, contida pela ausência de vida democrática e pelo descrédito na justiça‖ (Sadek, 2004: 11). Sobre os elementos ―condicionantes‖ da procura pela via institucional de acesso à justiça, em análise sobre o Poder Judiciário enquanto ―agência pública prestadora de serviços‖, Sadek (2004) afirma que ―[a] potencialidade de conversão de litígios em demanda por serviços judiciais depende, da consciência de direitos e da credibilidade na máquina judicial‖ (Sadek, 2004:11). Neste sentido, Grynszpan (1999) concorda que a construção do que ele chama de ―consciência de cidadania‖, pode influenciar o acesso às instituições muito mais substancialmente que às reformas em nível institucional: ―Acreditar, porém, que a simples abertura institucional, a ampliação por si só, da oferta de serviços judiciários, será suficiente para gerar em aumento correspondente da procura, uma pronta reação positiva da população, em todos os seus setores, é tomar como dada a legitimidade da justiça, naturalizando o que, de fato, é efeito de processos históricos, sociais, de imposição, de produção‖ (Grynszpan, 1999: 102). A discriminação social do acesso à justiça é, portanto, fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista possa parecer, e não pode ser reduzida a uma questão meramente econômica (Santos, 1989: 49) no entanto, não há indicadores mais precisos dos elementos determinantes desta complexidade.
9 ―É um interessante exemplo desse filão o livro ―Casos de sucesso: acesso à justiça‖, organizado por Ana Paula
Rocha do Bonfim, Renata Barbosa de Araújo Duarte e Jeane Rocha Duarte, no qual são examinados, entre outros, os casos do ―Balcão de Justiça e Cidadania‖, na Bahia, e o ―Expressinho‖, no Rio de Janeiro‖. (Fragale, 2013: 269)
10 ―O texto ―Direito na fronteira ou fronteira do direito: experiências de projetos do programa nacional Balcões de
Direito‖, de Alexandre Veronese é um ótimo arquétipo dessa abordagem‖. (Fragale, 2013: 270)
11 ―Sem dúvida, o exemplo paradigmático dessa perspectiva é o trabalho desenvolvido por Luiz Werneck Vianna,
Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos‖. (Fragale, 2013: 270).
diferentes Juizados Especiais; (4) ―Defensoria Pública‖ 12 - oferta de serviços jurídicos
gratuitos. Entre os trabalhos apontados por Fragale (2013) como exemplos destes quatro
eixos, destacamos alguns com os quais interagimos e pudemos correlacionar com o contexto
das favelas cariocas que serão tratadas por esta pesquisa em fase de trabalho de campo.
Considerando nosso interesse nas favelas da cidade do Rio de Janeiro e
encaminhando o nosso olhar pelo viés das variáveis que poderiam afetar o cenário do acesso
à justiça nessas favelas, destacamos as análises de Grynszpan (1999) ao comparar o acesso
aos hoje extintos Juizados de Pequenas Causas das favelas da Rocinha e Pavão Pavãozinho,
na região metropolitana do Rio de Janeiro. Quanto à abrangência, verificamos que este
segundo abrangia demandas não apenas de moradores da favela do Pavão-Pavãozinho,
como também do bairro de Ipanema (Zona Sul). Dado este fato, foi constatado no Juizado de
Pequenas Causas do Pavão-Pavãozinho, forte presença de usuários com alto capital escolar.
Foi verificado ainda neste Juizado que sua utilização se dava basicamente por pessoas que
não moravam na favela. Por outro lado, o Juizado da Rocinha apresentava um contraponto
interessante: ―[a] quase totalidade dos processos ali existentes [era] (...) de pessoas da
própria área [pois este Juizado apenas atendia moradores da favela da Rocinha] (...), contudo
o número de processos [no Pavão-Pavãozinho era] bem superior, ainda que ambos [tivessem]
o mesmo tempo de existência‖ (Grynszpan, 1999: 109). Apesar de analisar a relação entre
escolaridade e a procura pelas vias formais de acesso aos direitos, Grynszpan (1999) não
discute ou quantifica o quão determinante seria este indicador em relação a outros
indicadores na conformação da realidade analisada no campo da demanda13 e não adentra
nas especificidades do campo da oferta, ou seja, não analisa as variáveis no nível da oferta
dos serviços jurídicos, que, como vimos, poderiam estimular ou desestimular o acesso dos
moradores de favelas a estes juizados. Por fim, resta lembrar que a pesquisa também não se
propôs levantar a natureza dos problemas jurídicos que os moradores destas comunidades
desejariam levar a estes juizados, independente dos assuntos que estes juizados se
proponham dar solução.
Também sobre Juizados Especiais, destacamos aqui o trabalho de Burgos (2007) que
agrega valor em relação ao trabalho acima analisado, trazendo para reflexão o conceito de
―justiça de proximidade‖. A justiça de proximidade seria capaz de gerar longa e complexa
12 Neste tema Fragale (2013) destaca o trabalho de Maria Aparecida Lucca (2003) intitulado ―Acesso à justiça e
cidadania‖ e os trabalhos de Cleber Francisco Alves intitulado ―Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil‖ (2006) e ―Acesso à Justiça em Preto e Branco: retratos institucionais da Defensoria Pública‖ (2004).
13 Em sua conclusão, Grynszpan se atém ao reconhecimento prévio do sujeito enquanto cidadão como requisito
para posterior reconhecimento e acesso à direitos, em uma compreensão de cidadania oposta historicamente à concepção de privilégio: ―Significando generalização dos direitos e, da mesma forma, democratização do acesso aos meios, como justiça, de salvaguarda destes mesmos direitos‖. (Grynszpan, 1999: 112)
reforma na cultura dos profissionais do direito que atuam em determinada localidade. Este
conceito de justiça de proximidade não é de todo inédito, tendo sido tratado com outro nome
por Cappelletti e Garth (1978) ao falarem da experiência norte americana no ―Legal Service
Corporation‖ 14 . Este conceito também foi tratado e teve sua relevância registrada por
Economides (1988) ao falar sobre a realidade das favelas cariocas. Economides (1999)
sugeriu ser a ideia de justiça de proximidade de suma importância para promoção do efetivo
acesso à justiça em contextos como o das favelas.
(...) Por conseguinte, caso serviços jurídicos estatais, na forma de centros de aconselhamento ou de justiça, sejam estabelecidos em comunidades onde as necessidades sejam particularmente agudas — no contexto brasileiro isto poderia ocorrer dentro das favelas, tais serviços preventivos poderiam ter um efeito impactante em termos de estímulo à demanda (e uso) dos serviços judiciais. (Economides, 1999, p. 68)
Sobre o conhecimento acerca da justiça de proximidade, Burgos (2007) conclui que já
existe, por parte das instituições, conhecimento suficiente sobre a ideia de proximidade, bem
como nas universidades, mas, por se tratar de um saber difuso e desarticulado, sofre
obstáculos a sua plena e ampla implementação em forma de política pública – o que já vem
sendo feito em outros lugares como na Europa.
Assim como estes, outros autores brasileiros do campo da sociologia jurídica vêm
analisando a relação entre a população pobre e o poder judiciário, reconhecendo a forte
relação entre indicadores sociais15 e acesso à justiça. Ainda assim, como vimos, este não
parece ser um campo de estudos totalmente explorado. Sobre as pesquisas na temática do
acesso à justiça no Brasil, Economides (1999) observa que sua grande maioria se concentra
no campo da demanda mais do que no campo da oferta: de um lado as necessidades jurídicas
não atendidas e de outro o conhecimento e opinião do público em geral sobre a justiça.
Segundo ele, faltam estudos no campo da oferta. Além disso, a explicação do cenário, ainda
que apenas no campo da demanda, meramente pelo viés da renda ou da pobreza, seria uma
análise grosseira incapaz de explicar este complexo fenômeno. Neste sentido, lembrando a
14 Vide nota de pé de página 10.
15
―Testes de correlação entre indicadores de desenvolvimento socioeconômico e quantidade de demandas que chegam até os serviços judiciais indicam que as variáveis sociais e econômicas provocam reflexos na demanda pelo Judiciário e no desempenho deste poder. No que se refere aos efeitos do IDH (índice de desenvolvimento humano) na procura pelo Judiciário, é possível afirmar que melhoras neste índice possuem correlação positiva com o aumento no número de processos entrados na justiça (correlação de Spearman de 0,7333). Isto é, aumentos nos níveis de escolaridade, de renda e na longevidade contribuem para o crescimento na demanda por serviços judiciais (...). Analisando este tema a partir das regiões geográficas brasileiras, Sadek conclui: Em relação às regiões, o IDH permite-nos afirmar que o Nordeste e o Norte reúnem os mais baixos indicadores socioeconômicos do país, durante todo o período. Em contraste, o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste apresentam as melhores condições no que diz respeito às dimensões captadas pelo IDH. Testes de correlação indicam que quanto mais alto é o IDH, melhor é a relação entre processos entrados e população, existindo uma associação significativa entre o grau de desenvolvimento socioeconômico e o número de processos entrados por habitante (correlação de Spearman de –0,7662). (Sadek, 2004: 14-15).
pesquisa de Mayhew, Economides (1999) apontou que, muitas vezes, ―a natureza e o estilo
dos serviços jurídicos oferecidos são (...) fatores cruciais que influenciam, quando não
determinam, a mobilização da lei‖ (p. 72).
Por fim, ainda no âmbito da produção nacional, destacaremos as reflexões de José
Murilo de Carvalho que se relacionam de forma complementar com pontos chaves como o
conceito de ―aptidão para reconhecer direitos‖ e a ―disposição psicológica‖ para buscar
informação ou ingressar com uma ação em juízo. José Murilo de Carvalho acredita que, no
Brasil, a busca por instâncias formais de resolução de conflitos são uma questão também
relacionada intrinsecamente à passagem de uma cultura cívica - em que o indivíduo não se
reconhece como sujeito de direitos - para uma cultura cívica em que este indivíduo não
apenas se reconhece como sujeito de direitos, mas se sente, consequentemente, capaz de
fazer valer esses direitos (Carvalho, 2004)16. Esta é, no entanto, reflexão que requer um
espaço próprio para ser comportada em toda a sua profundidade, passando por construções e
interdisciplinaridades que não teremos a pretensão de abarcar, pelo menos neste momento.
Apresentada esta breve e ilustrativa amostra de produções nacionais mais sensíveis
ao nosso viés de tratamento do tema de acesso à justiça, seguimos nossa reflexão com os
próximos passos deste estudo.
PRÓXIMOS PASSOS DESTA PESQUISA...
Fragale (2013) resume o cenário dos trabalhos oriundos do campo jurídico da seguinte
forma:
(...) são, essencialmente, normativos e construídos a partir de uma representação ideal da realidade, que, no fundo, assume a existência de um efetivo acesso à Justiça como consequência ―natural‖ de sua simples inscrição na lei e da regulamentação da oferta de serviços jurídicos especializados, como é o caso da defensoria pública. Por sua vez, os trabalhos dos demais campos são construídos a partir de uma decodificação da realidade e, para tanto, utilizam estratégias tão dispares quanto a observação participante e reflexiva ou o recenseamento estatístico. (Fragale, 2013, p. 271)
Entre essas duas perspectivas, o presente trabalho seguirá com a construção do
método para sua entrada no campo, privilegiando exame do real, com a coleta de dados em
loco. Desta forma, nossa investigação será aprofundada através de pesquisa de campo em
16
Segundo Carvalho (2004), nossa tradição oitocentista está mais próxima de um estilo de cidadania construída de cima para baixo, em que predominaria a cultura política súdita, quando não a paroquial (2004: 340). Deste modo, após de todos os movimentos políticos e sociais vividos pela sociedade brasileira ao longo dos dois últimos séculos, especialmente após o término da guerra do Paraguai ―[no] mínimo, pode-se dizer que muitos se tomaram conscientes da presença do Estado; em alguns foi despertada a consciência da nação como comunidade de pertencimento‖ (Carvalho, 2004: 355). Nesse sentido Carvalho utiliza a expressão de cidadãos em negativo para expressar um potencial de participação que não encontra canais de expressão dentro do arcabouço institucional e que, também, não tem condições de articular arcabouço alternativo: ―O brasileiro foi forçado a tomar conhecimento do Estado e das decisões políticas, mas de maneira a não desenvolver lealdade em relação às instituições‖ (Carvalho, 2004: 356).
favelas cariocas em duas vias: (1) Institucional Judicial – através do diagnóstico da oferta de
atendimento jurídico no núcleo do projeto Justiça Itinerante do TJRJ em favelas da cidade do
Rio de Janeiro - e (2) Comunitária – através da análise da conformação social e urbana das
favelas que recebem esses núcleos, suas demandas em potencial e conhecimento acerca da
justiça.
O método de pesquisa que será proposto elegerá núcleos do projeto Justiça Itinerante
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e sua relação com as comunidades
faveladas por eles atendidas. O motivo da escolha desta relação para análise consiste na
intenção de criar um micro universo de análise capaz de reproduzir em uma escala maior
―favela/Justiça Itinerante‖ a relação ―cidade do Rio de Janeiro/TJRJ‖. A variação nos índices
de desenvolvimento social das diferentes áreas de planejamento urbanas seria projetada no
universo da favela através do seu recorte em subsetores censitários e também poderia ser
projetada interfavelas a partir da eleição para comparação de, pelo menos, dois desses
núcleos do projeto Justiça Itinerante localizados em áreas da cidade do Rio de Janeiro com
índices de desenvolvimento social significativamente díspares. O intuito deste esforço é
aprofundar a análise das variáveis sociais determinantes do reconhecimento de direitos e no
efetivo acesso ao judiciário no universo da favela explorado em toda a sua riqueza e
desigualdade.
O presente trabalho visa, portanto, aprofundar a investigação na temática do acesso à
justiça para apurar os mecanismos determinantes para que situações de fato sejam
decodificadas como relações jurídicas e para que relações jurídicas em potencial se tornem
demandas reais frente ao judiciário na realidade das favelas cariocas. Para tanto, seguiremos
no levantamento do conhecimento e reflexões gerados no caminho já percorrido pela
bibliografia produzida até a presente data. Com o devido aprofundamento bibliográfico e
refinamento reflexivo gerado definiremos justificadamente as variáveis e amostra a serem
analisada em nosso campo de investigação.
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