reconhecimento de direitos e acesso ao … ii coninter/artigos/205.pdf · uniforme entre as favelas...

16
II CONINTER Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013 RECONHECIMENTO DE DIREITOS E ACESSO AO JUDICIÁRIO: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA PARA ESTUDO SOBRE VARIÁVEIS DETERMINANTES EM FAVELAS CARIOCAS MOREIRA, RAFAELA S. (1); FRAGALE FILHO, ROBERTO (2) 1. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito Avenida Marcos Valdemar Reis, s/n Campus do Gragoatá Bloco O, 3º andar, Niterói RJ - Cep: 24210-340 [email protected] RESUMO Este trabalho visa aprofundar elementos de investigação sobre a temática do acesso à justiça tendo como foco o contexto das favelas da cidade do Rio de Janeiro. O artigo inicia com a análise do contexto das favelas na cidade - rupturas e continuidades destacando relevantes fatos históricos e dados quantitativos. Na sequencia, apresenta pesquisa feita em 2011 sobre a relação dos moradores destas favelas com a justiça formal, reconhecendo suas contribuições e limitações para compreensão das variáveis determinantes do acesso à justiça formal por moradores de favelas. Com a proposta de superar as limitações desta pesquisa, o artigo passa ao levantamento e análise de relevantes estudos tanto nacionais como internacionais, desde os estudos clássicos às pesquisas mais recentes no tema do acesso à justiça, sistematizando-os e identificando os caminhos já traçados pela bibliografia e os caminhos ainda em aberto. Através da identificação de vias não percorridas, é traçada pré-proposta de pesquisa de campo em favela em duas abordagens - institucional e comunitária - para análise mais minuciosa das variáveis determinantes do reconhecimento de direitos e no efetivo acesso ao judiciário no universo da favela. Palavras-chave: Favela Rio de Janeiro Acesso à Justiça Levantamento bibliográfico

Upload: vuongtuong

Post on 13-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades

Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013

RECONHECIMENTO DE DIREITOS E ACESSO AO JUDICIÁRIO: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA PARA ESTUDO SOBRE VARIÁVEIS

DETERMINANTES EM FAVELAS CARIOCAS

MOREIRA, RAFAELA S. (1); FRAGALE FILHO, ROBERTO (2)

1. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito

Avenida Marcos Valdemar Reis, s/n – Campus do Gragoatá Bloco O, 3º andar, Niterói – RJ - Cep: 24210-340

[email protected]

RESUMO

Este trabalho visa aprofundar elementos de investigação sobre a temática do acesso à justiça tendo como foco o contexto das favelas da cidade do Rio de Janeiro. O artigo inicia com a análise do contexto das favelas na cidade - rupturas e continuidades – destacando relevantes fatos históricos e dados quantitativos. Na sequencia, apresenta pesquisa feita em 2011 sobre a relação dos moradores destas favelas com a justiça formal, reconhecendo suas contribuições e limitações para compreensão das variáveis determinantes do acesso à justiça formal por moradores de favelas. Com a proposta de superar as limitações desta pesquisa, o artigo passa ao levantamento e análise de relevantes estudos tanto nacionais como internacionais, desde os estudos clássicos às pesquisas mais recentes no tema do acesso à justiça, sistematizando-os e identificando os caminhos já traçados pela bibliografia e os caminhos ainda em aberto. Através da identificação de vias não percorridas, é traçada pré-proposta de pesquisa de campo em favela em duas abordagens - institucional e comunitária - para análise mais minuciosa das variáveis determinantes do reconhecimento de direitos e no efetivo acesso ao judiciário no universo da favela.

Palavras-chave: Favela – Rio de Janeiro – Acesso à Justiça – Levantamento bibliográfico

PONTO DE PARTIDA: A FAVELA COMO CENÁRIO

Através da análise histórica do fenômeno das favelas na cidade do Rio de Janeiro nos

deparamos com uma realidade complexa, fluida e envolta em ambiguidades e choques de

percepções. Entre as facetas desta história destacamos aqui: (1) A capacidade de resistência

dos moradores de favelas; (2) A consolidação da favela com fato social (anos 1980); (3) A

década em que a favela entra na moda (anos 1990); (4) A preocupação tardia com o

levantamento de dados (décadas de 1940 e 1950); (5) A constância da imprensa

―desinformadora‖ e; (6) A construção da visão dicotômica entre o morro e o asfalto. Desde o

surgimento até os dias de hoje, a incorporação das favelas a cidade formal constitui um

desafio ao poder público. Como veremos neste tópico, as favelas do Rio de Janeiro estão hoje

com mais de um século de existência em vivem plena expansão.

Alguns destaques na história das favelas

Apesar da vitória do fenômeno da favela sobre todas as tentativas de extermínio que

contra ele empreendidas ao longo de um século, na década de 1980, a ideia de que as favelas

eram doença social a ser eliminada não cabia mais nos discursos políticos. As favelas não

eram mais episódio, mas fato social consolidado na cidade (Cavalcanti, 2009).

Pouco após consolidada, na década de 1990 a favela entra na moda, no entanto, a

recente fama que conquista não é resultado de cem anos de história de lutas, mas da

degeneração de valores e violência gerados pelo crime. Tanto no cenário nacional - através

da televisão e dos jornais - quanto no cenário internacional - através das telas de cinema –, a

violência e a atmosfera de ilegalidade nas favelas passam a ser amplamente divulgadas com

fetichismo (Baumann, 2009). Resultado este da combinação de uma mídia (des)informadora

com a escassez de dados sobre favelas e suas dimensões na cidade. A primeira favela já

contava com 50 anos de existência quando foi realizado o primeiro recenseamento

(Valladares, 2005, 62). Os primeiros recenseamentos na década de 1940 e 1950 traziam

dados conflitantes e imprecisos sendo corrigidos ao longo das décadas seguintes, a partir de

novas pesquisas que até hoje ainda são realizadas a fim de diagnosticar a evolução das

favelas cariocas. A demora e a insuficiência na geração de dados sobre as favelas aliada a

presença massiva de especulações alarmistas da imprensa são a combinação perfeita para a

construção de perspectivas fantasiosas e irreais destes espaços urbanos. Um exemplo disto

é a percepção da cidade do Rio de Janeiro como ―cidade partida‖ (Ventura, 1994). Como

veremos a seguir, a favela não é realidade uniforme ao longo da cidade (Cavalcanti, 2009;

Moreira, 2011).

Alguns dados quantitativos

Se observarmos o mapa da cidade do Rio de Janeiro a partir de sua divisão territorial

em cinco áreas de planejamento municipais a luz do índice de desenvolvimento social

calculado pela ONU (CAVALLIERI & LOPES, 2008), verificamos que as menores taxas de

desenvolvimento sociais estão na área de planejamento ―4‖ e ―5‖ - AP4 e AP5 - que

correspondem a ―Zona Oeste‖ e os melhores em contra partida estão concentrados na ―Zona

Sul‖ (AP2).

No que tange ao recente crescimento das favelas, esta variação também se manifesta

nas diferentes áreas de planejamento municipais. Em dados gerais, em 2010, o crescimento

das favelas comparado ao da cidade formalmente constituída era de quatro novos1 indivíduos

a mais por ano nas favelas para um novo indivíduo a mais por ano na cidade formal (Cavallieri

& Lopes, 2012). Este crescimento mais acelerado na favela não se dá, todavia, de maneira

uniforme entre as favelas nas diferentes regiões da cidade. Enquanto a população das favelas

da Zona Sul (AP2) e de parte da Zona Oeste (AP5) cresciam a uma taxa de 15% ao ano, a

população das favelas de outra parte da Zona Oeste (AP4) – que inclui a Barra da Tijuca e

Jacarepaguá - crescia a todo vapor marcando 53% ao ano (Cavallieri & Lopes, 2012).

Figura 1 – Mapa das favelas da cidade do Rio de Janeiro em 2008, tal como publicado pelo IPP, com destaques em vermelho com números indicativos das taxas de crescimento populacional anual das favelas, por área de planejamento municipal, segundo estudo de Cavallieri e Lopes (2012) baseado no Censo 2010. Cada destaque com taxa de crescimento corresponde a uma Área de Planejamento Municipal da cidade: AP1= 28%; AP2=15%; AP3=11%; AP4=53%; AP5=15%;

Conhecer e entender esta dinâmica realidade parece ser o primeiro passo a ser dado no

sentido de atender efetivamente demandas da coletividade, compor as desarmonias do tecido

social e distribuir direitos com equidade. Com todas as suas imperfeições, ao longo da história

desta cidade, não resta dúvida que o Estado nunca esteve tão presente nas favelas como nos

dias atuais (Moreira, 2011). Saber se esta presença estatal nas favelas se traduz na

1 Novos indivíduos podem ser por natalidade ou por fluxos migratórios internos entre regiões do Brasil.

democratização do acesso aos direitos é nossa questão central. Seguimos nossa

investigação rumo a relação entre moradores de favelas e periferias e o Poder Judiciário.

UMA PROBLEMÁTICA: O ACESSO À JUSTIÇA FORMAL NESTE

CONTEXTO

Pesquisas realizadas desde a década de 1980 no Brasil apontam um crescimento

significativo no número de demandas judiciais (Sadek, 2004). Este aumento no número de

demandas judiciais, no entanto, quando devidamente qualificado revela que nas últimas

décadas, ―mais do que a democratização no acesso ao Judiciário, defrontamo-nos com uma

situação paradoxal: a simultaneidade da existência de demandas de mais e de demandas de

menos; ou, dizendo-o de outra forma, poucos procurando muito e muitos procurando pouco

ou não procurando‖ (Sadek, 2004: 12). Apesar da expectativa de que os muitos que procuram

pouco ou não procuram o sistema judicial estejam concentrados nas camadas mais

empobrecidas da sociedade, com menores rendas e mais baixos níveis de escolaridade,

Santos, em pesquisa mais recente (2008), afirmou que cada vez mais os ―pobres urbanos”

(Santos, 2008: 11) estariam conscientes de seus direitos e sugeriu ainda uma relação direta

entre consciência de direitos e demandas judiciais afirmando que os pobres urbanos estariam

cada vez mais frequentemente recorrendo às instâncias legais, como os tribunais, para

protegerem ou exigirem a efetiva execução de seus direitos (Santos, 2008:19).

O TJRJ e a favela carioca

Investigamos a procedência de tal assertiva para a realidade da cidade do Rio de Janeiro

através de pesquisa no acervo jurisprudencial do TJRJ (Moreira, 2011). Neste levantamento,

identificamos que, ao longo das últimas três décadas, há um aumento significativo no número

de recursos que discutem questões relacionada as favelas no TJRJ. Esta investigação

aponta, entre outros resultados, para um significativo aumento do número de demandas

propostas por moradores de favelas no Tribunal de Justiça e revela que este aparente

aumento não acontece de forma uniforme entre as favelas de diferentes áreas da cidade. Ele

é mais concentrado nas favelas das áreas com melhores índices de desenvolvimento social -

como as favelas da ―Zona Sul‖ da cidade (AP2) - e parece estagnado nas favelas das áreas

com os piores índices de desenvolvimento social - como a ―Zona Oeste‖ da cidade (AP5). A

pesquisa sugere recente mudança no cenário do acesso de moradores de favelas à justiça ao

longo do tempo na cidade do Rio de Janeiro tanto na quantidade de demanda quanto na

qualidade do direito demandado e sugere ainda forte desigualdade na distribuição deste

acesso em um cenário interfavelas considerando os diferentes espaços urbanos nos quais

estas estariam inseridas. Apesar do panorama revelado, esta pesquisa (Moreira, 2011) não

apresenta conclusões mais efetivas sobre quais e como fatores no nível da oferta e da

demanda poderiam influenciar este acesso. É a partir desse caminho ainda aberto que

daremos inicio – ou continuidade - ao estudo sobre o acesso à justiça na cidade do Rio de

Janeiro, desenvolvendo preliminarmente uma análise mais aprofundada das principais obras

publicadas neste tema para levantamento de variáveis a serem testadas em pesquisa de

campo.

Estudos clássicos sobre acesso à justiça formal

A clássica obra de Cappelletti e Garth (1978) apresenta o acesso à justiça de maneira

mais ampla e exaustiva até hoje já concebida, motivo pelo qual, após mais de três décadas,

continua sendo referência estruturante para os estudos que se aventuram nesta temática. O

trabalho reconhece a possibilidade do tema do acesso à justiça consubstanciar o debate do

ideal de justo, mas opta por não se ater a esta abordagem, elegendo a abordagem do acesso

à justiça como acesso ao sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar direitos e resolver

litígios sob o auspício do Estado.

Entre as variáveis identificadas por Cappelletti & Garth (1978) foram enumeradas

como obstáculos: (1°) Custos - custas judiciais, honorários advocatícios e eventual

sucumbência; (2°) Pequenas causas – quanto menor o valor do pedido, mais alto o custo

proporcional para autoria de uma ação; (3°) Tempo - compreendido como agravador de custo

financeiro. Além destes, outras variáveis identificadas por Marc Galanter (1974) ligadas a

possibilidades estratégicas das partes foram incorporadas, quais sejam: (4°) Vantagem

financeira – de uma parte em relação a outra; (5°) Litigantes habituais e sua vantagem sobre

os eventuais; (6°) Aptidão para reconhecer um direito –relacionada à recursos financeiros,

educação, ―meio‖ e ―status social‖; (7°) ―Disposição psicológica‖ –apontado como relacionado

ao item ―6°‖, é o que faz como que o indivíduo busque efetivamente meios de se informar e

agir como, por exemplo, a procura por advogados ou conselheiros comunitários para

determinados assuntos jurídicos e etc.

Para transpor os obstáculos acima identificados, conjuntos de propostas de soluções

visando grupos de obstáculos específicos, foram colocadas em prática em diferentes

momentos ao longo do tempo em diferentes países, a maioria deles na Europa. Temos,

assim, as famosas ―ondas de acesso à justiça‖ de Cappelletti e Garth (1978) que podem ser

resumidas em: (1°) Assistência judiciária para os pobres – a partir de 1965, os primeiros

esforços teriam se dado em torno da assistência judiciária para os pobres2; (2°) Interesses

2 Analisam modelos testados na Europa e Estados Unidos entre outros. O modelo utilizado na Europa, Sistema

Judicare, trazia remuneração de honorários a advogados paga pelo estado em valores atrativos para a maioria dos advogados bons, mas não resolvia o problema do: reconhecimento das questões enquanto questões jurídicas e da busca pelo auxílio especializado. Outra crítica é que não estaria preparado para transcender aos remédios

difusos - reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses

difusos3; e, por fim, (3°) a emergência de uma concepção mais ampla de acesso à Justiça4.

Kim Economides (1999), professor de direito da Exeter University Centre for Legal

Interdisciplinary, na Inglaterra, organiza e amplia a leitura de acesso à justiça feita por seus

predecessores Cappelletti e Garth (1978) a partir de duas abordagens: (1) metodológica - dos

estudos sobre mobilização das leis pelos cidadãos5; e (2) epistemológica - das definições

contemporâneas de justiça6 que sugere a indagação quanto ao conteúdo da Justiça.

Sugere ainda que, para avançar-se na definição de soluções práticas efetivas na

promoção do acesso à justiça, é necessário empreender a pesquisa sobre o acesso à justiça

em termos tridimensionais, ou seja, é preciso compreender: a) a natureza da demanda dos

serviços jurídicos; b) a natureza da oferta desses serviços jurídicos; e c) a natureza do

problema jurídico que os clientes possam desejar trazer ao fórum da justiça. Neste sentido,

citando o trabalho de Carlin e Howard publicado nos anos 1960, Economides (1999) aponta

quatro estágios cruciais pelos quais o cidadão comum passa antes de ingressar nos tribunais.

individuais, ou seja, não atenderia interesses difusos. No modelo utilizado nos EUA, os advogados eram remunerados pelos cofres públicos (Programa de Serviços Jurídicos do Office of Economic Opportunity – Legal Service Corporation) e adota o uso de advogados com objetivo aproximação da população atendida para disseminação da informação sobre direitos e compreensão dos obstáculos locais, ou ―barreiras de classe‖, dando a estes advogados mais ferramentas para super estas barreiras com maior eficiência. A proposta vai além da intenção de superação de barreira econômica, se propondo a atingir a problemática da desinformação e das demandas difusas de uma determinada população. As limitações práticas deste modelo foram: (a) agressividade dos advogados; (b) incapacidade de criar tais advogados em escala; (c) paternalismo das equipes de advogados - ―Tratem-se os pobres simplesmente como indivíduos comuns, só que com menos dinheiro‖ eram a recomendação da época para estes advogados. (Cappelletti e Garth, 1978: 16); (d) o fato de depender de apoio governamental e ir muitas vezes contra o governo, demandando independência do poder governamental direto. Entre o primeiro e o segundo modelos, destacam-se as experiências implementadas na Suécia e Canadá com modelos mistos. 3 As soluções nesta onda são direcionadas a viabilizar litígios de interesse público. As propostas trazem questões

atinentes ao processo civil: legitimidade ativa e trâmite processual, e ainda, a ideia de ação governamental – proposta por órgãos governamentais com poder de barganha – entre outras propostas em nível processuais. As propostas não abrangem a problemática da disposição psicológica e das questões prévias de mobilização e organização local comunitária, etapas necessárias para proposição de uma ação para defesa de interesses difusos. 4 Abrange as duas primeiras e vai além: métodos que tornem os novos direitos efetivos. Engloba mudanças na

estrutura do próprio tribunal, ou seja, mudança de cunho administrativo e procedimentos judiciais e extrajudiciais. Trabalha com a ideia de adaptação do processo civil ao tipo de litígio. Diferentes tipos de litígio podem apresentar diferentes barreiras de acesso para diferentes pessoas. Seria o caso de personalizar a prestação jurisdicional aos contextos aos quais ela atenderá. Analisa essa diferença por tema e valor envolvido, causas que exigem soluções rápidas e as que podem suportar longas deliberações, mediação quando as relações precisarem ser preservadas entre outras detalhadas em tópicos. Entre os tópicos foram destacados: (1) reforma dos procedimentos judicias em geral- relacionada ao devido processo legal; (2) métodos alternativos – Juízo arbitral, conciliação e mediação; (3) procedimentos especiais – para causas de pequeno valor, tribunais de vizinhança, tribunais para consumidor, tribunais para litígios de trabalho e tribunais especializados em ―novos‖ direitos; (4) mudanças nos métodos para prestação de serviços jurídicos – uso de parajurídicos e planos de assistência jurídica; (5) simplificação do direito - criação de um direito mais acessível as pessoas comuns;

5 Que inclui: (a) o estudo das necessidades jurídicas não atendidas; e (b) o conhecimento e opinião sobre a justiça.

6 No aspecto epistemológico o acesso à justiça está, portanto, vinculado aos temas de cidadania e

constitucionalismo, apoiando e reforçando o Estado de Direito. Economides (1999) afirma que ―o desafio atual não é alargar os direitos — ou elaborar declarações de direitos (por mais importantes que estas sejam para os

Inicialmente o indivíduo precisa ter (1) a consciência, ou o reconhecimento de que

determinado problema é um problema jurídico, e na sequëncia (2) a vontade de iniciar ação

(judicial ou não) para solucioná-lo, em outras palavras, a vontade de solucionar a questão

ainda que não se saiba exatamente o que é cabível para esta solução. O passo seguinte seria

(3) a procura efetiva de um advogado, ou de um órgão ou uma pessoa capaz de fornecer a

informação/consulta especializada, para, por fim, (4) decidir pela contratação efetiva de

advogado ou serviço legal, ainda que gratuito, para ingresso da ação cabível.

Neste caminho, as profissões jurídicas, mais que o governo propriamente, seriam

determinantes de sucesso ou desestímulo para o cidadão comum na busca do judiciário para

resolução de conflitos ou acesso aos direitos. Economides (1999) sustenta que o principal

obstáculo a ser superado sob este aspecto é o fato de que a grande proximidade dos

advogados quanto à administração da justiça estaria cegando-os quanto à diferença entre

uma justiça civil e uma justiça cívica. Diante desta problemática diagnosticada, propõe uma

quarta onda de reformas que trariam para a discussão do acesso à justiça a dimensão ética e

política da administração da justiça. Mais do que no campo da demanda, essa discussão

estaria no campo da oferta, e a investigação a ser empreendida relacionada passaria por

questões como: (1) quem acessa, e sob que condições, o ensino superior em direito; e (2)

quais os padrões mínimos de profissionalização de um profissional do direito7. Esta onda traz

para as universidades e para os órgãos de classe, como a ordem dos advogados, a

corresponsabilidade direta pela promoção do acesso a justiça.

Apesar do grande número de investigações empreendidas neste tema, os estudos de

Cappelletti e Garth (1978) e Economides (1999) para nós são referências chaves para

empreender investigações na temática do acesso à justiça. No entanto, é importante lembrar

que os contextos estruturantes dos pensamentos dos autores ora apresentados trazem uma

gama de problemas originados em matrizes diferentes. Em outras palavras, Cappelletti e

Garth (1978) tratavam da transição de um modelo de justiça dogmática e formalista do estado

liberal burguês – no qual o Estado não intervinha positivamente como garantidor do acesso à

justiça - para um modelo no qual o Estado precisa atuar positivamente pelo direito a ter

direitos (o Welfare State) e, ao lado de pesquisadores ―ocidentais‖ como Economides (1999)

debruçavam-se sob problemas que surgem na crise desse Estado de bem estar social. Como

veremos adiante, estes pesquisadores dos países centrais estão tratando de problemas

nomeadamente iguais, mas estruturalmente diferentes dos que surgem na realidade dos

advogados constitucionalistas e para o simbolismo político) —, mas encontrar meios e recursos para tornar, tanto ―efetivos‖, quanto ―coativos‖, os direitos que os cidadãos já têm‖ (p. 71).

7 Neste segundo aspecto Economides (1999) questiona o currículo das faculdades de direito e propõe uma

necessária discussão abrangente dos valores fundamentais que deveriam governar os operadores do direito, onde quer que escolham exercer sua profissão.

países periféricos como é o caso da realidade brasileira. A realidade brasileira está mais

próxima do que apresenta o professor chileno Branies quando lembra que as pessoas em seu

país estão fora do sistema institucional. Quando isto acontece, não importa o quanto se

promova acesso aos tribunais, não há demandas a propor. Em suma, um sistema de reformas

antes de ser implementado deve partir de um diagnóstico local para identificação das

necessidades de reforma e, após a implementação das propostas, os novos modelos devem

ser monitorados. Passamos, assim, ao diagnóstico da nossa realidade a partir de algumas

referências da produção nacional.

Algumas referências nacionais

Localizada entre bacharéis de direito sociologicamente orientados, a sociologia do

direito no Brasil surge, coincidentemente ou não, com as primeiras pesquisas sobre acesso à

justiça (Junqueira, 1996). Os motivos do despertar do interesse brasileiro para esta temática

estão relacionados ao processo político e social da abertura política e, em particular, à

emergência do movimento social que então se inicia na década de 1980. A discussão sobre

acesso à justiça no Brasil é provocada não pela crise do Estado de bem-estar social como

acontece na Europa e nos Estados Unidos, mas pela exclusão da grande maioria da

população de direitos sociais básicos, entre os quais o direito à moradia e à saúde (Junqueira,

1996). As principais questões brasileiras no momento do Florence Project eram diferentes

daquelas que o motivavam nos países centrais (Junqueira, 1996). No Brasil, o desafio era a

expansão de direitos básicos aos quais a maioria da população não tinha acesso tanto em

função da tradição liberal individualista do ordenamento jurídico, como em razão da histórica

marginalização sócio econômica dos setores subalternizados (Junqueira, 1996).

Tomamos como marco inicial no diagnóstico da problemática do acesso à justiça no

Brasil os estudos de Boaventura de Sousa Santos. No final dos anos 1980, Santos (1989)

traçou a trajetória da sociologia da administração da justiça no Brasil, apontando os

obstáculos sociais, econômicos e culturais para o acesso à justiça e chamando atenção para

o fato de ser o tema que mais diretamente equaciona as relações entre o processo civil e a

justiça social e entre igualdade jurídico formal e desigualdade social e econômica (1989b: 45).

Dentre os obstáculos ao acesso à justiça, Santos (1989b; 1996) identificou entraves

tanto no campo da demanda (distância social, desconhecimento de direitos e de meios para o

encaminhamento das demandas para o poder judiciário) como em relação à oferta

(burocracia, formalismo, custos, lentidão da prestação jurisdicional). No campo da demanda,

Santos sustentou que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto

maior quanto mais baixo é o estado social a que pertencem e que essa distância tem como

causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais,

ainda que uns e outros possam estar mais remotamente relacionados com as desigualdades

econômicas (Santos, 1989: 48). Em outras palavras, um cidadão com menos recursos

econômicos, sociais e culturais tenderia a conhecer menos seus direitos pela dificuldade de

identificar o que lhe afeta como um problema jurídico. Ainda que esse indivíduo reconheça

seus direitos e questões jurídicas, seria preciso ter vontade de recorrer às vias formais de

resolução de conflitos8 para materialização do acesso ao judiciário.

A partir de então uma série de estudos se seguiram, entre eles os estudos de Aguiar

(1991), Junqueira (1996), Burgos (1999), Pandolfi (1999), Grynspan (1999), Sadek (2001),

Strozemberg (2001), Ferro (2002), Faria (2003), Veronese (2003), Sadek (2004), Moreira

(2006), Santos (2008), Moreira (2011) entre outros. Em recente artigo publicado, Fragale

(2013) faz um recenseamento de alguns dos principais estudos no tema refletindo que, não

obstante o esforço e contribuição no nível metodológico e epistemológico na temática do

acesso à justiça empreendidos por Economides (1999), os trabalhos sobre acesso à Justiça

desenvolvidos no Brasi continuam centrados na tradição inicial de Cappelleti e Garth (1978).

Neste recenseamento, Fragale (2013) faz a leitura das pesquisa publicadas no Brasil a partir

de quatro eixos distintos: (1) Experiências ―inovadoras‖9 – descrição e análise de experiências

de êxito realizadas pelo Judiciário para ampliar o acesso; (2) Casos de ―fronteira‖ 10 –

situações limites e propostas de solução; (3) ―Juizados Especiais‖ 11 - experiências dos

8 Mais recentemente, Boaventura de Sousa Santos adiciona ao conceito de demanda real e demanda potencial, o

conceito de demanda suprimida (Santos, 2008). Sobre isso, Sadek (2004) também afirma que, apesar da multiplicação dos conflitos ocorrida com o crescimento da população urbana – pois em um intervalo de menos de 50 anos a sociedade brasileira predominantemente rural e agrária transforma-se em urbana e industrial – ―[esta] potencialidade de conflitos foi, no entanto, em grande parte, contida pela ausência de vida democrática e pelo descrédito na justiça‖ (Sadek, 2004: 11). Sobre os elementos ―condicionantes‖ da procura pela via institucional de acesso à justiça, em análise sobre o Poder Judiciário enquanto ―agência pública prestadora de serviços‖, Sadek (2004) afirma que ―[a] potencialidade de conversão de litígios em demanda por serviços judiciais depende, da consciência de direitos e da credibilidade na máquina judicial‖ (Sadek, 2004:11). Neste sentido, Grynszpan (1999) concorda que a construção do que ele chama de ―consciência de cidadania‖, pode influenciar o acesso às instituições muito mais substancialmente que às reformas em nível institucional: ―Acreditar, porém, que a simples abertura institucional, a ampliação por si só, da oferta de serviços judiciários, será suficiente para gerar em aumento correspondente da procura, uma pronta reação positiva da população, em todos os seus setores, é tomar como dada a legitimidade da justiça, naturalizando o que, de fato, é efeito de processos históricos, sociais, de imposição, de produção‖ (Grynszpan, 1999: 102). A discriminação social do acesso à justiça é, portanto, fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista possa parecer, e não pode ser reduzida a uma questão meramente econômica (Santos, 1989: 49) no entanto, não há indicadores mais precisos dos elementos determinantes desta complexidade.

9 ―É um interessante exemplo desse filão o livro ―Casos de sucesso: acesso à justiça‖, organizado por Ana Paula

Rocha do Bonfim, Renata Barbosa de Araújo Duarte e Jeane Rocha Duarte, no qual são examinados, entre outros, os casos do ―Balcão de Justiça e Cidadania‖, na Bahia, e o ―Expressinho‖, no Rio de Janeiro‖. (Fragale, 2013: 269)

10 ―O texto ―Direito na fronteira ou fronteira do direito: experiências de projetos do programa nacional Balcões de

Direito‖, de Alexandre Veronese é um ótimo arquétipo dessa abordagem‖. (Fragale, 2013: 270)

11 ―Sem dúvida, o exemplo paradigmático dessa perspectiva é o trabalho desenvolvido por Luiz Werneck Vianna,

Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos‖. (Fragale, 2013: 270).

diferentes Juizados Especiais; (4) ―Defensoria Pública‖ 12 - oferta de serviços jurídicos

gratuitos. Entre os trabalhos apontados por Fragale (2013) como exemplos destes quatro

eixos, destacamos alguns com os quais interagimos e pudemos correlacionar com o contexto

das favelas cariocas que serão tratadas por esta pesquisa em fase de trabalho de campo.

Considerando nosso interesse nas favelas da cidade do Rio de Janeiro e

encaminhando o nosso olhar pelo viés das variáveis que poderiam afetar o cenário do acesso

à justiça nessas favelas, destacamos as análises de Grynszpan (1999) ao comparar o acesso

aos hoje extintos Juizados de Pequenas Causas das favelas da Rocinha e Pavão Pavãozinho,

na região metropolitana do Rio de Janeiro. Quanto à abrangência, verificamos que este

segundo abrangia demandas não apenas de moradores da favela do Pavão-Pavãozinho,

como também do bairro de Ipanema (Zona Sul). Dado este fato, foi constatado no Juizado de

Pequenas Causas do Pavão-Pavãozinho, forte presença de usuários com alto capital escolar.

Foi verificado ainda neste Juizado que sua utilização se dava basicamente por pessoas que

não moravam na favela. Por outro lado, o Juizado da Rocinha apresentava um contraponto

interessante: ―[a] quase totalidade dos processos ali existentes [era] (...) de pessoas da

própria área [pois este Juizado apenas atendia moradores da favela da Rocinha] (...), contudo

o número de processos [no Pavão-Pavãozinho era] bem superior, ainda que ambos [tivessem]

o mesmo tempo de existência‖ (Grynszpan, 1999: 109). Apesar de analisar a relação entre

escolaridade e a procura pelas vias formais de acesso aos direitos, Grynszpan (1999) não

discute ou quantifica o quão determinante seria este indicador em relação a outros

indicadores na conformação da realidade analisada no campo da demanda13 e não adentra

nas especificidades do campo da oferta, ou seja, não analisa as variáveis no nível da oferta

dos serviços jurídicos, que, como vimos, poderiam estimular ou desestimular o acesso dos

moradores de favelas a estes juizados. Por fim, resta lembrar que a pesquisa também não se

propôs levantar a natureza dos problemas jurídicos que os moradores destas comunidades

desejariam levar a estes juizados, independente dos assuntos que estes juizados se

proponham dar solução.

Também sobre Juizados Especiais, destacamos aqui o trabalho de Burgos (2007) que

agrega valor em relação ao trabalho acima analisado, trazendo para reflexão o conceito de

―justiça de proximidade‖. A justiça de proximidade seria capaz de gerar longa e complexa

12 Neste tema Fragale (2013) destaca o trabalho de Maria Aparecida Lucca (2003) intitulado ―Acesso à justiça e

cidadania‖ e os trabalhos de Cleber Francisco Alves intitulado ―Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil‖ (2006) e ―Acesso à Justiça em Preto e Branco: retratos institucionais da Defensoria Pública‖ (2004).

13 Em sua conclusão, Grynszpan se atém ao reconhecimento prévio do sujeito enquanto cidadão como requisito

para posterior reconhecimento e acesso à direitos, em uma compreensão de cidadania oposta historicamente à concepção de privilégio: ―Significando generalização dos direitos e, da mesma forma, democratização do acesso aos meios, como justiça, de salvaguarda destes mesmos direitos‖. (Grynszpan, 1999: 112)

reforma na cultura dos profissionais do direito que atuam em determinada localidade. Este

conceito de justiça de proximidade não é de todo inédito, tendo sido tratado com outro nome

por Cappelletti e Garth (1978) ao falarem da experiência norte americana no ―Legal Service

Corporation‖ 14 . Este conceito também foi tratado e teve sua relevância registrada por

Economides (1988) ao falar sobre a realidade das favelas cariocas. Economides (1999)

sugeriu ser a ideia de justiça de proximidade de suma importância para promoção do efetivo

acesso à justiça em contextos como o das favelas.

(...) Por conseguinte, caso serviços jurídicos estatais, na forma de centros de aconselhamento ou de justiça, sejam estabelecidos em comunidades onde as necessidades sejam particularmente agudas — no contexto brasileiro isto poderia ocorrer dentro das favelas, tais serviços preventivos poderiam ter um efeito impactante em termos de estímulo à demanda (e uso) dos serviços judiciais. (Economides, 1999, p. 68)

Sobre o conhecimento acerca da justiça de proximidade, Burgos (2007) conclui que já

existe, por parte das instituições, conhecimento suficiente sobre a ideia de proximidade, bem

como nas universidades, mas, por se tratar de um saber difuso e desarticulado, sofre

obstáculos a sua plena e ampla implementação em forma de política pública – o que já vem

sendo feito em outros lugares como na Europa.

Assim como estes, outros autores brasileiros do campo da sociologia jurídica vêm

analisando a relação entre a população pobre e o poder judiciário, reconhecendo a forte

relação entre indicadores sociais15 e acesso à justiça. Ainda assim, como vimos, este não

parece ser um campo de estudos totalmente explorado. Sobre as pesquisas na temática do

acesso à justiça no Brasil, Economides (1999) observa que sua grande maioria se concentra

no campo da demanda mais do que no campo da oferta: de um lado as necessidades jurídicas

não atendidas e de outro o conhecimento e opinião do público em geral sobre a justiça.

Segundo ele, faltam estudos no campo da oferta. Além disso, a explicação do cenário, ainda

que apenas no campo da demanda, meramente pelo viés da renda ou da pobreza, seria uma

análise grosseira incapaz de explicar este complexo fenômeno. Neste sentido, lembrando a

14 Vide nota de pé de página 10.

15

―Testes de correlação entre indicadores de desenvolvimento socioeconômico e quantidade de demandas que chegam até os serviços judiciais indicam que as variáveis sociais e econômicas provocam reflexos na demanda pelo Judiciário e no desempenho deste poder. No que se refere aos efeitos do IDH (índice de desenvolvimento humano) na procura pelo Judiciário, é possível afirmar que melhoras neste índice possuem correlação positiva com o aumento no número de processos entrados na justiça (correlação de Spearman de 0,7333). Isto é, aumentos nos níveis de escolaridade, de renda e na longevidade contribuem para o crescimento na demanda por serviços judiciais (...). Analisando este tema a partir das regiões geográficas brasileiras, Sadek conclui: Em relação às regiões, o IDH permite-nos afirmar que o Nordeste e o Norte reúnem os mais baixos indicadores socioeconômicos do país, durante todo o período. Em contraste, o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste apresentam as melhores condições no que diz respeito às dimensões captadas pelo IDH. Testes de correlação indicam que quanto mais alto é o IDH, melhor é a relação entre processos entrados e população, existindo uma associação significativa entre o grau de desenvolvimento socioeconômico e o número de processos entrados por habitante (correlação de Spearman de –0,7662). (Sadek, 2004: 14-15).

pesquisa de Mayhew, Economides (1999) apontou que, muitas vezes, ―a natureza e o estilo

dos serviços jurídicos oferecidos são (...) fatores cruciais que influenciam, quando não

determinam, a mobilização da lei‖ (p. 72).

Por fim, ainda no âmbito da produção nacional, destacaremos as reflexões de José

Murilo de Carvalho que se relacionam de forma complementar com pontos chaves como o

conceito de ―aptidão para reconhecer direitos‖ e a ―disposição psicológica‖ para buscar

informação ou ingressar com uma ação em juízo. José Murilo de Carvalho acredita que, no

Brasil, a busca por instâncias formais de resolução de conflitos são uma questão também

relacionada intrinsecamente à passagem de uma cultura cívica - em que o indivíduo não se

reconhece como sujeito de direitos - para uma cultura cívica em que este indivíduo não

apenas se reconhece como sujeito de direitos, mas se sente, consequentemente, capaz de

fazer valer esses direitos (Carvalho, 2004)16. Esta é, no entanto, reflexão que requer um

espaço próprio para ser comportada em toda a sua profundidade, passando por construções e

interdisciplinaridades que não teremos a pretensão de abarcar, pelo menos neste momento.

Apresentada esta breve e ilustrativa amostra de produções nacionais mais sensíveis

ao nosso viés de tratamento do tema de acesso à justiça, seguimos nossa reflexão com os

próximos passos deste estudo.

PRÓXIMOS PASSOS DESTA PESQUISA...

Fragale (2013) resume o cenário dos trabalhos oriundos do campo jurídico da seguinte

forma:

(...) são, essencialmente, normativos e construídos a partir de uma representação ideal da realidade, que, no fundo, assume a existência de um efetivo acesso à Justiça como consequência ―natural‖ de sua simples inscrição na lei e da regulamentação da oferta de serviços jurídicos especializados, como é o caso da defensoria pública. Por sua vez, os trabalhos dos demais campos são construídos a partir de uma decodificação da realidade e, para tanto, utilizam estratégias tão dispares quanto a observação participante e reflexiva ou o recenseamento estatístico. (Fragale, 2013, p. 271)

Entre essas duas perspectivas, o presente trabalho seguirá com a construção do

método para sua entrada no campo, privilegiando exame do real, com a coleta de dados em

loco. Desta forma, nossa investigação será aprofundada através de pesquisa de campo em

16

Segundo Carvalho (2004), nossa tradição oitocentista está mais próxima de um estilo de cidadania construída de cima para baixo, em que predominaria a cultura política súdita, quando não a paroquial (2004: 340). Deste modo, após de todos os movimentos políticos e sociais vividos pela sociedade brasileira ao longo dos dois últimos séculos, especialmente após o término da guerra do Paraguai ―[no] mínimo, pode-se dizer que muitos se tomaram conscientes da presença do Estado; em alguns foi despertada a consciência da nação como comunidade de pertencimento‖ (Carvalho, 2004: 355). Nesse sentido Carvalho utiliza a expressão de cidadãos em negativo para expressar um potencial de participação que não encontra canais de expressão dentro do arcabouço institucional e que, também, não tem condições de articular arcabouço alternativo: ―O brasileiro foi forçado a tomar conhecimento do Estado e das decisões políticas, mas de maneira a não desenvolver lealdade em relação às instituições‖ (Carvalho, 2004: 356).

favelas cariocas em duas vias: (1) Institucional Judicial – através do diagnóstico da oferta de

atendimento jurídico no núcleo do projeto Justiça Itinerante do TJRJ em favelas da cidade do

Rio de Janeiro - e (2) Comunitária – através da análise da conformação social e urbana das

favelas que recebem esses núcleos, suas demandas em potencial e conhecimento acerca da

justiça.

O método de pesquisa que será proposto elegerá núcleos do projeto Justiça Itinerante

do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e sua relação com as comunidades

faveladas por eles atendidas. O motivo da escolha desta relação para análise consiste na

intenção de criar um micro universo de análise capaz de reproduzir em uma escala maior

―favela/Justiça Itinerante‖ a relação ―cidade do Rio de Janeiro/TJRJ‖. A variação nos índices

de desenvolvimento social das diferentes áreas de planejamento urbanas seria projetada no

universo da favela através do seu recorte em subsetores censitários e também poderia ser

projetada interfavelas a partir da eleição para comparação de, pelo menos, dois desses

núcleos do projeto Justiça Itinerante localizados em áreas da cidade do Rio de Janeiro com

índices de desenvolvimento social significativamente díspares. O intuito deste esforço é

aprofundar a análise das variáveis sociais determinantes do reconhecimento de direitos e no

efetivo acesso ao judiciário no universo da favela explorado em toda a sua riqueza e

desigualdade.

O presente trabalho visa, portanto, aprofundar a investigação na temática do acesso à

justiça para apurar os mecanismos determinantes para que situações de fato sejam

decodificadas como relações jurídicas e para que relações jurídicas em potencial se tornem

demandas reais frente ao judiciário na realidade das favelas cariocas. Para tanto, seguiremos

no levantamento do conhecimento e reflexões gerados no caminho já percorrido pela

bibliografia produzida até a presente data. Com o devido aprofundamento bibliográfico e

refinamento reflexivo gerado definiremos justificadamente as variáveis e amostra a serem

analisada em nosso campo de investigação.

Bibliografia básica ABRAMO, Pedro. 2003. A Dinâmica do Mercado de Solo Informal em Favelas e a Mobilidade

dos Pobres. Disponível em <http://www.armazemdedados.rio.rj.br/arquivos/105a%20 dinâmica%20do%20mercado%20de%20solo%20informal%20em%20favelas.PDF>. Acesso em: 06 de abr. de 2009.

BAUMAN, Zydmunt. 2009. Entrevista Especial com Zidmunt Bauman: Ecologia Humana.

Disponível em: < http://www.portaldomeioambiente.org.br/ecologia-humana/2142-entrevista-especial-zygmunt-bauman-primeira-parte.html>. Acesso em 17 de outubro de 2010.

VIAL, Adriana; CAVALLIERI, Fernando. 2012. Favelas na cidade do Rio de Janeiro: Quadro

populacional com base no censo de 2010. Revista Coleção Estudos Cariocas. Instituto Pereira Passos. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. n° 20120501. Maio de 2012. 20p.

BURGOS, Marcelo Baumann. 2007. Agências de proximidade no Brasil: Um balanço de

pesquisa empíricas. CEDES. Centro de estudos de direito e sociedade. Boletim

junho-julho. p.1-11.

CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. 1978. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris. 168p.

CAVALLIERI, Fernando & LOPES, Gustavo Perez. 2008. Índice De Desenvolvimento Social –

Comparando As Realidades Microurbanas Da Cidade Do Rio De Janeiro. Armazém de

Dados. Prefeitura Da Cidade Do Rio De Janeiro. Instituto Municipal de Urbanismo

Pereira Passos. Diretoria de Informações Geográficas.

CITTADINO, Gisele. 2000. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos de Filosofia

Constitucional Contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris. 246p.

_____. 2002. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de

poderes. In: VIANNA, Werneck (org.) A democracia e os três poderes no Brasil. Belo

Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAFERJ. p. 17- 42.

_____. 2004. Poder Judiciário, ativismo judicial e democracia. Revista ALCEU. V.08 – n° 09.

jul-dez. p. 105-112.

ECONOMIDES, Kim. 1999. Lendo as ondas do ―movimento de acesso à justiça‖:

epistemologia versos metodologia? In: PANDOLFI, Dulci Chaver et AL (Orgs.).

Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. p.61-76.

FALCÃO, Joaquim de Arruda; LOPES, José Reinaldo de Lima. 1989. Democratização e

serviços legais. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direito e Justiça, a função social do

judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A. p.145-158

FARIA, José Eduardo. 1989a. Apresentação. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direito e

Justiça, a função social do judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A. p.05-15.

_____. 1989b. O modelo liberal de direito e Estado. Direito e Justiça, a função do judiciário. In:

FARIA, José Eduardo (org.). Direito e Justiça, a função social do judiciário. São Paulo:

Editora Ática S.A. p.19-36.

_____. 1989c. Ordem Legal x Mudança social: a crise do Judiciário e a formação do

magistrado. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direito e Justiça, a função social do

judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A.. p.95-110.

FARIA, José Eduardo & LOPES, José Reinaldo de Lima. 1989. Pela democratização do

Judiciário. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direito e Justiça, a função social do judiciário.

São Paulo: Editora Ática S.A. p.159-166.

FRAGALE FILHO, Roberto. 2005. Quando a empiria é necessária. In: XIV Congresso

Nacional do CONPEDI, Florianópolis (SC). p.323.

FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. 2004. A pesquisa em Direito:

diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação. Brasília. Vol. 2.

p.53-70.

FRAGALE FILHO, Roberto. 2013. Perto do mundo, longe da capital: Acesso à justiça e

jurisdição trabalhista no município de São João de Meriti. Passagens. Revista

Internacional de História política e Cultura jurídica. Rio de Janeiro. Vol. 5. N°2.

maio-agosto. p. 262-285.

GERALDO, Pedro Barros; FONTAINHA, Fernando; VERONESE, Alexandre. 2010. Sociologia

empírica do direito: Uma introdução. Revista Ética e Filosofia Política. Nº 12. Vol. 2. p.

1-13.

GRYNSPAN, Mario. 1999. Acesso e recurso à justiça no Brasil: algumas questões. In:

Pandolfi D.; Carvalho S.M.; Carneiro L.P.; Grynszpan M. (Org.). Rio de janeiro:

Fundação Getúlio Vargas. 24p.

GRYNSPAN, Mario. 2004. As favelas cariocas como espaço de disputas: poder público,

terceiro setor, associação de moradores e tráfico de drogas. Latin American Studies

Association LASA Congress Paper Archive.

JUNQUEIRA, Eliane Botelho. 1996. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo. Revista Estudos

Históricos. N° 18. p. 389-402.

JUNQUEIRA, Eliane Botelho et al. 1997. Juízes: retrato em preto e branco. Rio de Janeiro:

Editora Letra Capital. 208 p.

MINAYO, Maria Cicília de S. & SANCHES, Odécio. 1993. Quantitativo-Qualitativo: Oposição

ou Complementaridade? Revista Caderno de Saúde Pública: Rio de Janeiro, 9 (3),

jul/set. p. 239-262.

MOREIRA, Rafaela Selem. 2006. Efetivação de Direitos: Limites e possibilidades no contexto

de uma favela carioca. Pontifícia Universidade Católica. Departamento de Direito.

Monografia de conclusão de curso. 139p.

_____. 2007. Mediação de Conflitos: Limites e Possibilidades no Contexto de uma Favela

Carioca. Revista Direito, Estado e Sociedade - n.30 - jan/jun 2007. p 212 – 229.

_____. 2011. Democratização do Judiciário na cidade do Rio de Janeiro: Um Estudo sobre o

acesso individual e coletivo de moradores de favelas à Justiça contextualizado a luz de

uma história de desigualdades. Pontifícia Universidade Católica. Departamento de

Direito. Dissertação de Mestrado. 171p.

____. 2013; CITTADINO, Gisele. Acesso individual e coletivo de moradores de favelas à

justiça. Revista Brasileira de Ciências Sociais – Volume 28. n.82 - fev 2013. p 33 – 48.

PANDOLFI, Dulce; GRYNSPAN, Mario. Poder público e favelas: uma relação delicada. In:

Cidades: Histórias e desafios. Rio de Janeiro: FGV. 246p.

ROCHA, Marisa Lopes da.; AGUIAR, Kátia Faria de. 2003. Pesquisa-intervenção e a

produção de novas análises. Revista Psicologia ciência e profissão. N° 23 (4). p.64-73.

RUIVO, Fernando. 1989. Aparelho Judicial, Estado e Legitimação. In: FARIA, José Eduardo

(org.). Direito e Justiça, a função social do judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A. p.

66-94.

SANTOS, Boaventura de Souza. 1988. O discurso e o poder; ensaio sobre a sociologia da

retórica jurídica. Porto Alegre: Editora Fabris. 115p.

_____. 1989a. Introdução à sociologia da administração da justiça. In: FARIA, José Eduardo

(org.). Direito e Justiça, a função social do judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A. p.

39-65.

_____. 1989b. Justiça popular, dualidade de poderes e estratégia socialista. In: FARIA, José

Eduardo (org.). Direito e Justiça, a função social do judiciário. São Paulo: Editora Ática

S.A. p. 185-205.

SANTOS, Boaventura de Souza; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João;

FERREIRA, Pedro Lopes. 1996. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas.

Portugal: Centro de Estudos Judiciários. Edições Afrontamento.

_____. 2007. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. São Paulo:

Editora Boitempo. 126p.

_____. 2008. Para uma revolução democrática da justiça. 2ª Edição. São Paulo: Editora

Cortez. Coleção questões da nossa época; v. 134. 119p.

VALADARES, Licia do Prado. 2005. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com.

Rio de Janeiro: FGV. 249p.

VERBICARO, Loiane Prado. 2008. Um estudo sobre as condições facilitadoras da

judicialização da política no Brasil. Revista Direito GV, SÃO PAULO 4(2) jul-dez 2008.p.

389-406.

VIANNA, Luiz Werneck. 1999. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio

de Janeiro: Editora Revan. pp. 01-44