recepÇÃo da tradiÇÃo indÍgena na literatura · ... as lendas do sul nada mais são que o...

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1 RECEPÇÃO DA TRADIÇÃO INDÍGENA NA LITERATURA DE SIMÕES LOPES NETO Agemir Bavaresco, Luís Borges e Mateus Weizenmann 1 Introdução Consideramos que Simões Lopes Neto intentava originalmente um projeto didático- pedagógico. Ao virem a lume os textos de Terra gaúcha, 2 através da divulgação de Carlos Diniz (2003, 124-137), foi possível a comprovação da hipótese lançada por Lígia Chiappini em No entretanto dos tempos (1988), mas já intuída na pequena biografia escrita, em 1985, por Antônio Hohlfeldt. O exame do "verdadeiro Terra gaúcha", para utilizarmos uma expressão de Carlos Diniz, permite concluir que o projeto simoniano no que tange a sua missão como escritor se esboçara na conferência de 1904, Educação cívica, e prosseguiu nesse livro infanto-juvenil, calcado em princípios pedagógicos e nacionalistas, cuja finalidade era inculcar ideais patrióticos nas crianças brasileiras, segundo o modelo de De Amicis 3 . Profundamente influenciado pelo positivismo e pelo evolucionismo, eivado pela concepção iluminista, Simões Lopes Neto entendia que, no Brasil, o progresso estava identificado com a disseminação da educação. Sua percepção do problema não era apenas de modo a definir uma noção de progresso restrita ao desenvolvimento econômico, mas também e principalmente vinculava-o à idéia de emancipação política e social do homem brasileiro, ultrapassando a restrição entre educação formal e não formal, eis que ele mesmo era um autodidata. Como vimos seu projeto de "divulgador cultural", ação imediata decorrente de sua vocação de educador/escritor é anterior à publicação das Lendas do sul, se, conforme já afirmamos, seu projeto nasce por volta do ciclo das conferências cívicas (1904-1906), tendo sua feição perfeitamente delineada quando da publicação do Cancioneiro guasca, em 1910. 1 Membros do Grupo de Pesquisa Simoniano da UCPel/Instituto Superior de Filosofia. 2 Não se trata da obra homônima, que versa sobre a história do Rio Grande do Sul, editada postumamente, em 1955, pela Sulina, mas de outra, de feitio didático, inspirada no Cuore, de Amicis, e que permanece inédita. 3 Cf. CHIAPPINI, Lígia. Prefácio. In DINIZ, Carlos F. Sica, ob. cit., p.12.

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RECEPÇÃO DA TRADIÇÃO INDÍGENA NA LITERATURA

DE SIMÕES LOPES NETO

Agemir Bavaresco, Luís Borges

e Mateus Weizenmann1

Introdução

Consideramos que Simões Lopes Neto intentava originalmente um projeto didático-

pedagógico. Ao virem a lume os textos de Terra gaúcha, 2 através da divulgação de Carlos

Diniz (2003, 124-137), foi possível a comprovação da hipótese lançada por Lígia

Chiappini em No entretanto dos tempos (1988), mas já intuída na pequena biografia escrita,

em 1985, por Antônio Hohlfeldt.

O exame do "verdadeiro Terra gaúcha", para utilizarmos uma expressão de Carlos

Diniz, permite concluir que o projeto simoniano no que tange a sua missão como escritor se

esboçara na conferência de 1904, Educação cívica, e prosseguiu nesse livro infanto-juvenil,

calcado em princípios pedagógicos e nacionalistas, cuja finalidade era inculcar ideais

patrióticos nas crianças brasileiras, segundo o modelo de De Amicis 3.

Profundamente influenciado pelo positivismo e pelo evolucionismo, eivado pela

concepção iluminista, Simões Lopes Neto entendia que, no Brasil, o progresso estava

identificado com a disseminação da educação. Sua percepção do problema não era apenas

de modo a definir uma noção de progresso restrita ao desenvolvimento econômico, mas

também e principalmente vinculava-o à idéia de emancipação política e social do homem

brasileiro, ultrapassando a restrição entre educação formal e não formal, eis que ele mesmo

era um autodidata.

Como vimos seu projeto de "divulgador cultural", ação imediata decorrente de sua

vocação de educador/escritor é anterior à publicação das Lendas do sul, se, conforme já

afirmamos, seu projeto nasce por volta do ciclo das conferências cívicas (1904-1906), tendo

sua feição perfeitamente delineada quando da publicação do Cancioneiro guasca, em 1910.

1 Membros do Grupo de Pesquisa Simoniano da UCPel/Instituto Superior de Filosofia.

2 Não se trata da obra homônima, que versa sobre a história do Rio Grande do Sul, editada postumamente, em

1955, pela Sulina, mas de outra, de feitio didático, inspirada no Cuore, de Amicis, e que permanece inédita. 3 Cf. CHIAPPINI, Lígia. Prefácio. In DINIZ, Carlos F. Sica, ob. cit., p.12.

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Lendas do sul foi publicado no ano seguinte ao de Contos gauchescos, apesar disso,

todo o livro já era conhecido do público, com exceção da Salamanca do Jarau. Em

verdade, as Lendas do sul nada mais são que o Cancioneiro guasca expurgado da parte do

popularium de trovas e quadrinhas compiladas do folclore rio-grandense, acrescentada a

lenda da Salamanca.

A 1ª edição do Cancioneiro guasca, de 1910, trazia, pois, todas as lendas que

comporiam o livro Lendas do sul, de 1913, com a exceção citada. A partir da 2ª edição o

Cancioneiro, aparecido também pela editora Echenique, de Pelotas, em 1917, não mais

trará as lendas, sendo este o perfil editorial adotado até hoje. Tratava-se de um elemento de

marketing. Até 1928 - lembremos que um dos grandes fatores que desencadearam a

inserção do autor pelotense no sistema literário do Rio Grande do Sul foi o surgimento da

chamada "edição acolherada", da Globo, em 1926 - o maior sucesso editorial de Simões

Lopes Neto era o Cancioneiro guasca.

Como então lançar no mercado uma obra (Lendas do sul) que praticamente repetia

outra aparecida três anos antes (Cancioneiro guasca) ? O editor Sílvio da Cunha Echenique

separou do Cancioneiro a parte relativa às lendas, dando feitio diferente a cada uma das

obras. A estratégia funcionou tão bem que o leitor hodierno, sem acesso às raras primeiras

edições dessas obras, sequer desconfia que as Lendas do sul, quase inteirinhas, já se

encontravam no Cancioneiro guasca.

Situando a composição e publicação dos textos que apareceram em Lendas do sul

no período compreendido entre os anos de 1906-1913, vale ressaltar também o contexto

precário da realidade educacional que mobilizava intensamente a inteligência positivista do

País, uma vez que o número de escolas (desconsiderado a inadequação dos currículos e da

formação dos professores) para a demanda e as necessidades da nação.

Grandes pensadores e educadores, tais como José Veríssimo (1857-1916) e Alberto

Torres (1865-1917), dedicavam-se a examinar as mazelas sociais do Brasil, através do

diagnóstico de suas políticas e metodologias educacionais.

Nas primeiras décadas do século XX as principais preocupações da novel república

brasileira eram:

- a fragmentação do território nacional;

- a modernização econômica do país.

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Para sanar ou, pelo menos, minorar esses dois problemas propunha-se o

fortalecimento do sentimento cívico, tipicamente encarnado por intelectuais como Olavo

Bilac (1865-1918) e Coelho Neto (1864-1934), e a rápida formação de mão-de-obra

qualificada para o implemento da industrialização do Brasil.

Lembremos que a República foi o resultado de um golpe militar e que Simões,

embora democrata convicto e republicano desde a juventude, conforme o atestam seus

trabalhos no A pátria, de 1888, possuía um imenso orgulho de ter sido capitão da Guarda

Nacional do Império.

Nesse sentido, o escritor era um homem profundamente sintonizado com o espírito

de seu tempo, que confundia progresso com pensamento positivista, e civismo com

militarismo. Sua vida e sua obra foram uma tentativa de resposta àquelas duas grandes

preocupações dos anos iniciais da República Velha, naqueles tempos, então novíssima.

Simões Lopes Neto buscou obsessivamente ser capitão de indústria e educador,

chegando mesmo a ser professor na Escola de Comércio, em Pelotas/RS. Antes de tudo,

porém, havia nele uma ânsia, um afã patriótico que o levava a uma ação cidadã, expressa

em seus inúmeros e malogrados empreendimentos, nos seus compêndios de história e

psicultura, nos seus projetos de reforma ortográfica, na Coleção Brasiliana de cartões

postais, para a "divulgação dos fastos da história nacional", e dos seus livros didáticos,

como o caso do "verdadeiro Terra gaúcha", para o ensino de crianças.

Na medida em que o capital ia escasseando, o crédito sumindo e as falências se iam

sucedendo o Velho Capitão foi, cada vez mais, direcionando seus projetos para a área

literária, sem perder o fito no objetivo didático-pedagógico. A literatura de Simões Lopes

Neto, dotada de alto nível artístico, uma vez esboroados seus sonhos de "vulgarizador

cultural" através da publicação de livros propriamente didáticos, foi utilizada por ele de

maneira restrita, embora com fins elevados, consoante a concepção pragmático-positivista

da atividade do intelectual - definida por uma palavra hoje fora de moda: "publicista". Para

tanto, Simões pretendia que sua ficção desse a conhecer ao Brasil e aos próprios rio-

grandenses sua fala, sua gente, sua história e seus costumes.

A própria recepção crítica da obra simoniana padeceu desse mal. Desde os

primeiros textos críticos, tais como os de Coelho da Costa (1912) e Antônio de Mariz

(1913), até os atuais, como o de Everton Pereira da Silva (1998), considerou-se a escritura

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simoniana como um repositório fiel da história sul-rio-grandense. A esse respeito afirma

Arendt:

A ficção simoniana é entendida pela crítica como um arquivo em que se encontra depositada

a história sul-riograndense, desde os seus primórdios até o começo do século XX, sendo

esse o motivo pelo qual o escritor não obteve o reconhecimento literário dos seus livros na

época da publicação. O próprio trabalho de recolhimento do material folclórico assume,

assim, um ar de pesquisa historiográfica (Arendt, 2004, 93).

E adiante:

Somente nos anos 40 e 50, os estudiosos passam a questionar a originalidade da matéria

folclórica e a comprovar que Simões Lopes estivesse estilizou os textos orais, o que acaba,

de certo modo, dispersando o caráter historiográfico da ficção. A obra começa a ser lida e

afirmada do ponto de vista da sua literariedade, ainda instável nos anos 20 e 30, cujo

período enfatiza principalmente os aspectos historiográficos e folclóricos da produção

simoniana (Idem).

Carlos Reverbel ao realizar uma enquete, em 1955, procurou estabelecer as dez

obras fundamentais da bibliografia sul-riograndense. A primeira colocada foi Viagem ao

Rio Grande do Sul (1820), de Saint-Hilaire, a segunda colocação foi obtida por Contos

gauchescos e Lendas do sul (1949), de Simões Lopes Neto.

Ao todo, entre as dez obras escolhidas, quatro são literárias, sendo as demais do

campo da história, da sociologia, da geografia e da etnografia.

Por que uma obra historiográfica e uma obra literária encabeçaram a lista?

Segundo Arendt (Idem, 90) a resposta pode ser encontrada em três direções

diferentes: 1) nos depoimentos dos próprios participantes da enquete e na sua relação com a

crítica simoniana anterior; 2) na situação editorial e crítica de Contos gauchescos e Lendas

do sul, nos anos 50; 3) na presença de Carlos Reverbel como realizador da enquete.

Nesse sentido é interessante, para efeito de exemplificação, o depoimento do

historiador Sérgio da Costa Franco, um dos participantes da enquete realizada por Reverbel,

através do Correio do Povo, de Porto Alegre, entre os meses de setembro e dezembro de

1955:

Apesar de obras de ficção, os contos e lendas, especialmente as Lendas do sul, de J. Simões

Lopes Neto, não podem fugir a esta relação. Tal a sua força telúrica, de tal modo autêntica a

sua elaboração literária, que escapam ao padrão comum da ficção regionalista, para se

transformarem em legítimas manifestações folclóricas. E não se conheceria a cultura

gaúcha, sem as ter estudado (Apud Arendt, 2004, 90).

Essa visão que reduz o literato Simões Lopes Neto ao folclorista, ou ao escritor

naturalista, quase sociólogo, prejudica o entendimento do escritor propriamente dito. Dessa

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maneira, o estudo das lendas, neste caso daquelas denominadas Missioneiras, possibilita o

alargamento da compreensão do lugar ocupado pelo elemento de cunho folclórico e/ou

histórico na literatura simoniana, eliminando a falsa dicotomia entre o Simões Lopes Neto

artista e o Simões Lopes Neto folclorista/historiador. Para o autor de Contos gauchescos

(1912) o material recolhido na tradição oral é matéria-prima para sua arte. Arte, porém,

que, dentro do ideário da "ilustração tupiniquim" e do "positivismo moreno", deve atender a

uma função social: a educação popular.

Numa época em que educação/instrução eram quase sinônimos e tinham por

modelos expressivos a prosa e a poesia parnasiana (sem falar na oratória bacharelesca),

com sua inerente verborragia e rebuscamento, e no qual a crítica literária (e até os debates

jurídico-políticos, vide debate Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro), praticamente, se restringia

a querelas gramaticais e filológicas, a literatura de Simões Lopes Neto faz um profundo

corte, por assim dizer, na metodologia e no pensamento que embasava a ideologia

republicana de "educar o povo".

Ao invés, de forçar as pessoas a aprenderem o latim ou a macaquear o vocabulário

de Rui Barbosa ou Coelho Neto, Simões Lopes buscava compreender e preservar a alma

popular, e, a partir desse processo, com seus contos/parábolas desenvolver o sentimento

telúrico, o qual proveria a sede de conhecer a história e desenvolver a pátria.

Sabemos, todavia, o quanto o decênio Farroupilha ficou encravado no imaginário

social histórico do Rio Grande do Sul. Parte desse imaginário, no ambiente da recém

inaugurada República dava a impressão negativa de separatismo. Simões Lopes Neto cioso

desse receio, e ávido de preservar e divulgar a história e as tradições do Rio Grande do Sul,

intentava, no cumprimento de seu programa cívico, integrar e fortalecer tanto o telurismo

gáucho, quanto o sentimento de brasilidade.

Assim como Euclides da Cunha e Lima Barreto, Simões Lopes Neto compreendia

que ao escritor cabia a missão de colocar seus livros a serviço do país. O autor de Lendas

do sul (1913) foi buscar no pensamento do século XIX as raízes para construir o necessário

"instinto de nacionalidade", para utilizarmos a tão célebre expressão de Machado de Assis.

Poder-se-ia resumir o Brasil literário (e assim podemos dizer o Brasil cultural e

filosófico) até o tempo de Simões Lopes Neto em dois grandes blocos, a saber: o

romantismo e o real-parnaso-naturalismo. O primeiro bloco, didaticamente, vai de 1836 a

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1870; e o segundo, de 1881 até 1902, estendo-se difusamente, mesclando tendências

diversas, até as vésperas do Modernismo.

Historicamente o romantismo brasileiro, sobretudo sintetizado em figuras como

José de Alencar e Bernardo Guimarães, na prosa, e Gonçalves Dias e Castro Alves, na

poesia, responderam literariamente às questões relativas à criação de uma língua e

consciência nacionais - emancipação cultural - e à luta pela abolição da escravatura, que

representava a modernização econômica e o desenvolvimento das instituições jurídico-

políticas, colocando o Brasil no rol das nações civilizadas.

Os países do Novo Mundo, sobretudo os da América do Sul, buscavam fabricar uma

tradição política, filosófica e artística que justificasse suas aspirações emancipatórias. Deste

modo, as nações européias não ibéricas, seduziam, em especial a França, essas jovens

nações, oferecendo, no plano econômico, o liberalismo, e no filosófico-cultural, a

ilustração.

O indianismo está, intimamente, ligado à cultura do romantismo, não só brasileiro,

mas também europeu, que lhe é anterior. De qualquer modo, encontrou solo fértil em terras

brasileiras, devido não só a fatores históricos, bem como, a necessidade de forjar uma

mitologia que auxiliasse a criação de uma identidade nacional.

O pai espiritual do romantismo brasileiro foi o francês Ferdinand Denis, autor de

um Resumo de história literária do Brasil. Tal como nossos indianistas literários – José de

Alencar, principalmente – Denis leu várias obras etnográficas de viajantes europeus que

vieram aos trópicos, inclusive ao Brasil, e descreveram as sociedades indígenas.

Antes mesmo de Ferdinand Denis, o arcadismo brasileiro já mostrava pendão

indianista, adotando um padrão de comportamento típico do “bom selvagem”, tal como

aparece no Caramuru (1781), de José de Santa Rita Durão.

A heroicização do índio possui na literatura brasileira uma dupla função: cultural e

política. De uma só vez, o índio-herói representa o espírito puro e saudável, inclusive

moralmente, do brasileiro, e ao mesmo tempo, é pretexto para, conforme a tese de

Gonçalves de Magalhães, introdutor do romantismo no Brasil entender que a

“Independência do Brasil foi apenas rebelião triunfante dos antigos donos da terra contra os

seus opressores de três séculos” (Holanda, 1986, 17).

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José de Alencar, o mais típico dos indianistas, faz uma crítica ao etnocentrismo dos

viajantes europeus que escreveram sobre o Brasil. Baseando-se no pressuposto de que o

índio era um análogo nativo do cavaleiro medieval europeu, o autor de o Guarani (1857),

observa que o caráter do selvagem brasileiro foi “deprimido por cronistas e noveleiros

ávidos de inventarem monstruosidades para impingi-las ao leitor” (Alencar, 1958, 353).

Nosso enunciado problemático é: Dentro desse contexto sócio-literário e dos

debates em torno dos problemas e da identidade nacional, em que Simões Lopes Neto

contribuiu para inserir-lhe algo da identidade e da cultura gaúcha sul-riograndense?

Diante disso, podemos propor a seguinte hipótese: O índio, pois, era o Brasil, assim

como para Simões Lopes Neto, o gaúcho era o pampa. Ao tratar, das lendas Missioneiras, o

autor procura incorporar um fator comum entre a tradição brasileira e a identidade rio-

grandense, fazendo com que o personagem indígena assuma dentro da cultura regional do

Rio Grande do Sul, o papel de elo integrador da nacionalidade.

Simões Lopes Neto escreveu sete breves textos em prosa, denominados Argumento

de outras lendas - Missioneiras, em que encontramos, de modo mais explícito, a recepção

em sua literatura da tradição indígena. As lendas são as seguintes: A mãe do ouro, Cerros

Bravos, A casa de M’Bororé, Zaoris, O Angüera, Mãe mulita e São Sepé/Lunar de Sepé. É

possível encontrar em outros textos, ao longo de sua obra, também, a referência à tradição

indígena. No entender de Sica Diniz (2004), os melhores textos sobre a recepção indígena

em Simões Lopes Neto são: Salamanca do Jarau, A casa de M’Bororé e São Sepé/Lunar

de Sepé. Levando em conta esta posição, sobre estes textos fundamentais, bem como os

acima mencionados, faremos uma breve análise dos mesmos. Nosso objetivo é apresentar a

recepção da tradição indígena na literatura simoniana, mostrando como o autor recriou

tradições escritas e orais anteriores.

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1 – A MÃE DO OURO

Segundo Câmara Cascudo o verbete Mãe do Ouro refere-se a “um mito,

inicialmente, meteorológico, ligado aos protomitos ígneos, posteriormente, ao ciclo do

ouro. No Rio Grande do Sul é informe, agindo com trovões, fogo, vento, dando o rumo da

mudança” (Câmara Cascudo, 1993, 455). Temos três sentidos nesta definição: a) Um ligado

ao fogo; b) Outro relacionado ao metal ouro. c) E uma referência específica ao Rio Grande

do Sul. Aqui, o verbete está ligado à tempestade, entendo-se que o fogo é associado aos

raios. O importante a ressaltar é que ele dá o rumo da mudança.

Vejamos a estrutura do texto:

1ª parte: Há uma metamorfose do corpo humano em serra de pedra: os ossos viram

pura pedra; a carne em terra negra; os cabelos em mato; o sangue em cascatinhas e

vertentes; os buracos do corpo (boca e olhos, nariz e ouvidos) em lugares ocados; as veias

em ferro; os nervos em ouro e “são os veeiros amarelos que se entranham por aí abaixo,

adentro da crosta, tal e qual como os nervos estão entranhados na carnadura da gente” (S,

177,15) 4.

2ª parte: A alma que governa tudo é a Mãe do Ouro. Ela tem três funções: a) É

imortal e defende “os nervos dos castigados, os veeiros da fortuna”. O termo veeiro tem

dois significados: Trata-se de uma fenda ou filão e também pode ser o imposto que se

pagava à coroa portuguesa na exploração de uma mina. Aqui, o veio da fortuna é o ouro

entranhado no interior do cerro; b) A Mãe do Ouro é uma entidade protetora que no dia do

“Perdão” auxilia para que “cada um ache o que seu é”; c) Ela é mãe “que chama socorro”,

ou seja, é uma intercessora diante dos castigos advindos dos temporais (S, 177,20).

3ª parte: A Mãe do Ouro muda de lugar, quando “rebenta um cerro”: De noite,

diante do fogo dos raios ela muda para outro lugar; ao meio-dia, em pleno sol, não se sabe

qual o lugar que ela toma, apenas vislumbra-se o rumo (S, 177,25).

O texto faz remontar ao contexto histórico na região missioneira em que os

portugueses e espanhóis destruíram aquelas reduções na busca de ouro. Há, também, uma

procura de explicação do fenômeno natural, buscando a causa dos cerros, raios, trovões. A

4 Para as citações dos textos de Simões Lopes Neto utilizaremos a edição crítica estabelecida por Lígia

Chiappini, conforme referência bibliográfica. A abreviação será a seguinte: “S”, número da página e linha.

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originalidade simoniana, na Mãe do ouro, é ir além da etiologia, para dar-lhe uma dimensão

histórica, ou seja, mostrar a resistência indígena face ao invasor. A tradição indígena

permanece no texto, no que diz respeito, a simbiose corpo-natureza.

O grande símbolo é a Mãe do Ouro, “que governa tudo, que não se sabe o que é, que

é a Alma, que não morreu” (S, 177,17). Ela é a alma que mantém a fusão do corpo-

natureza, a proximidade com a natureza, a simbiose com o mundo.

Pode-se estabelecer uma aproximação entre a Mãe do Ouro e Maria, pois ambas são

femininas e tem uma função de prestar socorro aos castigados. O tema do castigo está

vinculado ao do pecado e perdão. Trata-se da influência cristã jesuítica que organizou os

povos indígenas em reduções.

Temos o tema do castigo e castigados que perpassa o texto. Inicialmente, a

explicação da serra de pedra encontra-se num “castigo do céu” que endureceu de repente o

cerro (S, 177,5). Depois, a Mãe do Ouro é isenta do castigo, por isso pode defender os

castigados (os nervos, os veios de ouro) (S, 17, 20). E a explicação final afirma que a causa

dos raios, trovões e ventos são o castigo. Porém, a Mãe do Ouro, como a Alma imortal está

junto à serra de pedra sempre clamando por socorro.

2 – CERROS BRAVOS

Este texto continua a desenvolver o mesmo tema do anterior, ou seja, a união entre

natureza e corpo, os saqueadores de ouro, os cerros revoltados e o castigo. O pequeno texto

que é o mais breve dentre todas as Missioneiras, é composto de um parágrafo, uma frase

inicial e uma final. A primeira frase, enuncia os mortos pelo castigo e aqueles que estão

semivivos ainda cambaleantes resistem em meio às dores. Mesmo assim, alguns destes

insistem em cobiçar o ouro. Então, os cerros enfurecem-se e resistem face aos saqueadores,

pois o ouro é como os seus nervos, que ao serem tirados provoca dor (S, 177,30). Aqui, fica

explícito a referência aos cobiçadores de ouro que arrancam à força o ouro dos cerros.

Interessante perceber que a revolta dos cerros é devida à dor causada neles. É como se ao

tirarem o ouro estivessem matando o corpo-natureza.

A revolta dos cerros é tamanha contra os saqueadores, que se estes teimam, acabam

morrendo. Os cerros aqui, de fato, tornam-se bravos, pois reagem diante do inimigo como

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podem: “por força do encantamento somem-se”, ou “atiram temporais de uns para outros

tão medonhos, que eriçam o cabelo e prendem o passo dos homens, mesmo os mais

desabusados” (S, 177,35).

Na constatação de Granada, “raro é o cerro, penhasco e escarpado, desde a

Cordilheira dos Andes até às Comarcas do Uruguai, Paraná e Paraguai, que não tenha sua

salamanca ou cova encantada, que não contenha considerável riqueza de ouro e prata em

suas entranhas, que não se embraveça e dê bramidos estrepitosos” (Granada, 1896, 150).

3 – A CASA DE M‟BORORÉ

Segundo Granada, M‟bororé é um nome guarani que significa casa encantada das

antigas Missões jesuíticas. A origem desta lenda estaria ligada a violenta expulsão dos

jesuítas decretada por Carlos III, a qual provocou a idéia de um provável achado de

tesouros. Então, começou a supor-se, erradamente, que os jesuítas esconderam, no tempo

da expulsão, grandes riquezas. Porém, segundo Granada, os padres da Companhia foram

surpreendidos, de tal forma que não foi possível tomar nenhuma riqueza, nem falar com

ninguém, nem se quer despedir-se de seus neófitos, foram conduzidos até Montevidéu e

Buenos Aires, onde foram embarcados para a Europa. De modo que, ainda que tivessem

tido riquezas, não teriam podido esconde-las. Porém, o fato é que nos destruídos povos das

antigas Missões havia, por todas as partes, junto às árvores e os muros, poços escavados

com a esperança de tirar alguma porção de ouro ou de prata maciços. “Por isso mesmo, em

meio aos imensos bosques que existem no território das Missões, acha-se, segundo as

imaginações tradicionais de seus habitantes, a casa branca sem portas nem janelas de

M’bororé, onde os jesuítas expulsos esconderam os riquíssimos tesouros que possuíam”

(Granada, 1896, 155-156).

Para Granada, “as riquezas dos jesuítas que se supõe escondidas na casa branca de

M’bororé, nunca existiram”. Parte foram usadas nos seus templos, e outras foram enviadas

à Europa para as finalidades de sua Ordem. A mãe do ouro e da prata, acrescenta o autor,

era a força de trabalho aplicado com método e esmero (id. p. 157).

Esta lenda, na versão simoniana, pode ser dividida em duas partes:

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a) A primeira, descreve um mato grosso e no interior do mesmo há uma “casa de pedra

branca, branca como si encaliçada, e sem porta em nenhum lado nem janela em

nenhuma altura” (S, 178,10). Dentro desta casa estão as barras de ouro e prata,

sendo que em cima das mesmas estão objetos religiosos em ouro e nos corredores

da casa estão sacos de moedas de ouro.

b) A segunda, fala daquele que faz, dia e noite, a ronda da casa branca. Trata-se de

“um índio velho, cacique que foi, M‟bororé, de nome, amigo dos santos padres das

Sete Missões da serra que dá vertente para o Uruguai” (S, 178,20).

É nesta segunda parte, que há uma nova interpretação em relação a Granada, pois

Simões Lopes atribui o nome de M‟bororé a um índio. Ora, este diante da expulsão dos

padres jesuítas, imediatamente, junto com os seus guerreiros carregou de todos os lugares o

ouro e a prata para a casa branca. De fato, os índios não tinham interesse nos metais

preciosos, altamente, cobiçados pelos brancos a tal ponto que estes “matavam os nascidos

aqui, e matavam-se uns aos outros” para apoderar-se do ouro e da prata (S, 178,25).

Qual era, então, o interesse de M‟bororé em guardar essas arrobas? Porque “era

amigo dos santos padres das Sete Missões, guardou tudo e espera por eles, rondando a casa

branca [...] ronda e espera...” (S, 178,30).

4 – ZAORIS

Simões Lopes Neto no final desta lenda coloca uma nota explicativa que diz o

seguinte: “Em relação ao argumento destas lendas – 1.4 – reportamo-nos ao raciocinado

estudo do Sr. Pe. C. Teschauer, sob o título – Lenda do Ouro – (Rev. do Instituto do Ceará,

tom. XXV – 1911), (S, 179,40). Aqui, encontramos a fonte em que o autor se baseou para

elaborar essas primeiras quatro lendas. Aliás, há de se notar que Simões Lopes Neto, como

se verá, adiante, fará referência à fonte pesquisada para elaborar essas lendas e o próprio

poema Lunar de Sepé.

Encontramos em Granada a definição do termo Zaoris. Este seria um termo herdado

dos mouros, pois o termo zaori parece ser arábico5. Zaori equivale ao que pratica a

geomancia, sendo esta uma magia e adivinhação supersticiosa através dos corpos terrestres,

5 Daniel Granada escreve zahoris com “h”, porém, nós o usaremos sem, para seguir a versão simoniana.

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ou com linhas, círculos ou pontos feitos no chão. Esta definição reporta-se ao Diccionario

de la Lengua Castellana da Real Academia Española (Granada, 1896,164, nota 1). O

Dicionário Houaiss, complementa: Geomancia é a “adivinhação através das figuras

formadas por um punhado de terra que se atira ao acaso sobre o chão ou qualquer outra

superfície”.

Na península ibérica existiam estes zaoris, espécie de bruxos, que foram levados ao

novo mundo. São pessoas dotadas da faculdade de ver através de corpos opacos, de

descobrir o que está oculto, mesmo que esteja debaixo da terra. São os olhos que lhes

permitem a proeza da adivinhação, a tal ponto, que penetram paredes e a profundidade da

terra. Sua principal função é descobrir minas e tesouros. A tradição popular afirma que

Deus dá esta graça aos que nascem na sexta-feira santa. No entanto, isto deve ser, antes,

obra do gênio do mal. Prossegue, Granada, dizendo que os arquivos da Inquisição são a

prova de que o zaori recebe do diabo a faculdade de ver na obscuridade através dos corpos

opacos. “O fogo e a luz emanados do sol que o índio adora, os quais também devem ser

uma das formas e disfarces infinitos com que o diabo oculta sua figura para assombrar e

enlouquecer o mundo com invenções estupendas, formou seus zahoris” (id. p. 165). O autor

descreve casos de mulatas escravas de Santiago do Chile e Lima que se tornaram zaoris

através do influxo do sol ou de um raio. Enfim, na América do Sul, os zaoris tiveram um

espaço de ação muito grande, pois deveriam se ocupar em descobrir os tesouros enterrados

pelos vassalos dos Incas quando da invasão dos espanhóis, ou então, por ocasião, da

expulsão dos jesuítas em 1768 (id. p. 167).

Simões Lopes Neto conta esta lenda na ótica do cristianismo, dando uma

reinterpretação com personagens, tais como São Miguel, a Virgem Maria e os anjos da

guarda. O texto pode ser dividido em três partes:

a) O julgamento: Na sexta-feira santa ocorreu o julgamento dos carrascos que mataram

Jesus Cristo. O arcanjo Miguel recebe a ordem de executar a sentença através dos

anjos que guardavam a cruz. Da couraça de ouro de Miguel emana um brilho

luzente.

b) As crianças assinaladas: As pessoas, já nascidas, estavam todas condenadas pelo

pecado de ter maltratado Jesus Cristo, salvo, as crianças ainda não nascidas, pois

não tinham culpa do ocorrido. Porém, o arcanjo Miguel esqueceu de avisar os anjos

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da guarda de não castigarem as crianças inocentes. Então, a Virgem Maria fez um

milagre. Fez com que o “vento das asas de prata do arcanjo ventasse sobre os olhos

dos que fossem nascendo nesse dia santo” (S, 179,20). Assim, todos os olhos das

crianças, nascidas na sexta-feira santa, ficaram marcados, sendo dotados, deste

modo, de uma faculdade especial: “Podiam ver através da água até o seu fundo, e

através das muralhas e montanhas até o outro lado delas, porque tudo ficou

transparente para eles” (S, 179,24).

c) Os zaoris: Ora, como o arcanjo permaneceu na terra, o dom da faculdade de ver no

interior de materiais físicos, ficou aqui, e em todas as sexta-feiras santas esse

mesmo fenômeno se repete. Então, “para esses, nada existe escondido ou enterrado

que os seus olhos não vejam, como os dos outros homens, de dia claro; e isso

porque nasceram em sexta-feira santa: são os Zaoris” (S, 179,30).

Assim, todos aqueles que nascem em uma sexta-feira da Paixão são zaoris. Há uma

cristianização deste mito de origem árabe, que na sua versão espanhola apresenta a

contradição entre Deus e o diabo, pois, ao mesmo tempo, atribui-se a eles o dom de

conceder aos zaoris, a faculdade de ver no interior do físico. Na versão simoniana, ocorre

uma inversão: Não é mais o demônio que forma os zaoris, senão que o arcanjo Miguel.

Portanto, o zaori, que era um adivinho pagão, torna-se uma criança inocente: “Em todas as

sextas-feiras santas procuram os olhos das crianças recém-nascidas, que então ficam com

o dom de ver no escuro e através qualquer tapamento de pedra, madeira, ou ferro” (S,

179,27). Os seus olhos com brilho mágico e misterioso, possuem o poder de ver através de

corpos opacos, localizando tesouros escondidos, tais como barras de ouro ou prata, jóias,

pedras preciosas etc.

Simões Lopes Neto opera uma dupla metamorfose na lenda original: a) De um

lado, cristianiza e vincula a lenda a figura do arcanjo Miguel, muito venerado nas

Missões, por influência, obviamente, dos padres jesuítas. b) De outro, também esta lenda

que se encontra na região do Rio da Prata, Chile, Paraguai e Rio Grande do Sul, diz

respeito à localização das riquezas e tesouros enterrados pelos índios, com a finalidade de

salvaguardar seu ouro dos ibéricos. Portanto, a lenda é relida a partir do contexto sul-

americano, e, especificamente, situado na região missioneira, donde vem a tradição

indígena.

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5 – ANGÜERA: A METAMORFOSE DO ÍNDIO

Angüera é, segundo Granada, um termo guarani que significa fantasma. Os guaranis

temiam muito os angüeras, almas saídas dos corpos dos defuntos. Os líderes guaranis para

fazer-se temer pelos índios, os ameaçavam com fantasmas que sairiam das cavernas com

enormes espadas para vingar-se, caso não os obedecessem (Granada, 1896, 485).

Simões Lopes Neto conta esta lenda assim:

a) A cristianização do índio: Segunda a versão de Granada, Angüera é um fantasma,

anônimo. Simões Lopes Neto, porém, personifica num índio, o nome de Angüera, dando-

lhe as características físicas de “grande, forçudo e valente”, porém, é “triste, carrancudo e

calado” (S, 179,35). É interessante observar que o autor afirma que Angüera, “enquanto foi

pagão” tinha esse estado de espírito tristonho. De fato, Simões Lopes Neto deixa veicular o

preconceito cultural da época: O índio é um pagão em relação ao europeu cristão. Ser pagão

era um conceito depreciativo. Depois, ao encontrar-se com os padres jesuítas, foi por eles

batizado. E como era costume, na época, trocava-se o nome ao receber o sacramento do

batismo. Ele foi chamado de Generoso. Ora, ao se tornar cristão acontece uma mudança:

“Angüera, que era triste, deixou a casca da tristura, e como Generoso, de nome bento ficou

prazenteiro” (S, 180,5). Percebe-se que há uma diferenciação entre o estágio de índio-pagão

e índio-cristão, dando a entender que o último é melhor que o anterior. Ele segue todo o

itinerário de um neófito, recebendo todos os sacramentos até à morte.

b) “Alma penada”: Depois de morto, “sua alma saiu-lhe do corpo”, começa, então,

uma grande aventura entre os vivos, pois, entra nas casas e provoca ruídos; toca viola,

assobia, sopra a chama do fogo etc. A alma do Generoso é divertida e brincalhona e

continua a vagar no cotidiano das pessoas.

c) A historização da lenda: Generoso entrava nos salões de dança, “intrometia-se e

sapateava também, sem ser visto”. Aqui, Simões Lopes Neto, faz uma referência explícita à

história do Rio Grande do Sul, ao escrever que o índio Generoso participava das danças no

tempo dos Farrapos (S, 180,25).

Vê-se que Angüera passa por várias metamorfoses: religiosa (pagão-cristão),

existencial (triste-alegre), histórica (Sete Povos-Guerra dos Farrapos) e metafísica (corpo-

alma). Pode-se dizer que a tradição indígena permanece viva em todo o tempo, tecendo a

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formação do gaúcho, dando-lhe alma para estar em constante mutação, sem perder a sua

identidade.

6 – MÃE MULITA6

6.1- Mito e literatura

Costuma-se chamar "mito" a um relato fabuloso, que abriga a noção de narrativa

tradicional, geralmente, de conteúdo religioso ou a ele relacionado. Os mitos, com

freqüência, referem-se a grandes feitos heróicos, que são considerados o fundamento ou o

começo de uma comunidade ou mesmo de todo o gênero humano. É comum apresentarem

também como motivo os fenômenos da natureza, explicando-os de maneira alegórica, como

é o caso das ninhadas do tatu-mulita.

A narração mitológica envolve, basicamente, pretensos acontecimentos relativos a

épocas primordiais, antes do surgimento dos homens, como o caso dos mitos de origem

(cosmogônicos), ou dos "primeiros" homens, como o de Adão e Eva. Uma das

características do mito é que o acontecimento fabuloso narrado aconteceu em um tempo

passado impreciso ou muito remoto, como os tempos bíblicos.

O mito aparece e funciona como mediação entre o sagrado e o profano, condição

necessária à ordem do mundo e às relações entre os seres e os fenômenos naturais. Sendo o

homem um ser de profunda relação com o sagrado, logo pensadores e estudiosos

manifestaram interesse por exame mais acurado dos mitos. Dois autores deram especial

atenção ao problema do mito: Vico e Schelling.

Giovani Battista Vico (1668-1744) em sua obra Principi di una scienza nuova

intorno alla comuna natura delle nazioni (1744), geralmente citada apenas como Scienza

nuova, fala em "conhecimento fantástico" ou "formas fantásticas de conhecimento", que

são, respectivamente, a língua e a poesia. Pretende, a fim de construir sua teoria

epistemológica, deduzir da etimologia das palavras um saber sobre a história primitiva em

que as línguas se formaram. Para ele, a poesia teria sido a primeira forma de comunicação

da humanidade, uma vez que os povos antigos eram essencialmente poéticos. Daí provém

6 O título original deste ensaio é A Mãe mulita, de Simões Lopes Neto, através de uma hermenêutica

simbólica da prosopopéia.

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seu interesse pelos mitos. Vico rejeita a idéia, dominante nos séculos XVII e XVIII, de que

as narrativas mitológicas seriam alegorias filosóficas, reconhecendo, entretanto, que nelas

há resquícios de verdades históricas (Cf. Abrão, 1999, 264-266).

Friedrich Schelling (1775-1854) durante toda a sua vida se interessou por temas

relativos à metafísica, teologia, religião e mitologia. Teve seus cursos sobre Filosofia da

Revelação e Filosofia da Mitologia, proferidos em Berlim, publicados postumamente por

seu filho. Nesses cursos e noutras obras expôs uma preocupação teístico-metafísica, em que

busca integrar espírito e natureza. Seu sistema filosófico se constitui numa mediação entre

o idealismo subjetivo de Kant e Fichte e o idealismo objetivo de Hegel. O sistema de

identidade do "Eu" e o "Não-eu", proposto por Schelling, se apresenta de modo que o

Absoluto seja a um só tempo sujeito e objeto. Em seu pensamento há um vivo senso de

arte. Sua concepção do Absoluto é a unidade entre espírito e natureza, que se revela na

história, na arte, na religião e na mitologia. Em relação a este último ponto, Schelling

estimou que os mitos são uma forma de pensamento que representa um dos modos como se

revela o Absoluto através do processo histórico (Cf. Abrão, 1999, 341-344).

A análise científica dos mitos começou com o antropólogo Friedrich Max Müller.

Sua explicação a respeito dos mitos era que eles representavam a descrição poética de fatos

da natureza. Mais tarde, James Frazer, em sua obra monumental, em 12 volumes, The

Golden bough (1890-1915), considerou os mitos explicações narrativas de ritos, cujo

sentido já não era compreendido pelos que o celebravam.

Na antropologia moderna, entretanto, a essas hermenêuticas prevaleceram as teorias

estruturalistas de Levi-Strauss, que identificam nos relatos mitológicos o reflexo de

determinadas estruturas sociais, e a psicanálise de Freud, que entende os mitos como

racionalizações da mente primitiva em face dos conflitos do indivíduo e deste com a família

e a sociedade.

Será com a Renascença que a mitologia, sobretudo grega, começa a ser importante

para a literatura propriamente dita, fornecendo motivos, personagens e enredos. Será,

todavia, com o advento da Ilustração que as narrativas mitológicas servirão a diferentes fins

no uso do texto literário. Os mitos se constituíram então num vasto sistema de referências

que é familiar a todos os homens cultos daquele período. As metáforas míticas oferecem

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um sentido imediatamente reconhecível para os leitores e que, portanto, se torna um recurso

amplamente utilizado pelos escritores dos séculos XVI a XVIII.

Foi, conforme já nos referimos, durante o Iluminismo que mito e literatura se

imbricaram definitivamente para diferentes finalidades. Voltaire, por exemplo, escreveu seu

Édipo (1718) para denunciar o poder do clero na França. Goethe retomando um anônimo

do século XVI, escreve Fausto (1808), uma metáfora de recriação prometéica.

Lançando um breve olhar sobre importantes escritores do século XX, observa-se a

permanência e a estilização literária das narrativas míticas. O mito de Electra (1903) pode

ser identificado na obra de Hugo von Hoffmannsthal, o de Orestes em As moscas (1943), de

Sartre; o de Medéia em alguns argumentos das peças de Robinson Jeffers; e Antígona, obra

de Sófocles, em sua força de crítica política, encontra um sentido redivivo no teatro de Jean

Cocteau e Brecht.

6.2 - Fábula, mito, lenda, superstição e estilização literária

A fábula como forma literária específica é uma narração breve, em prosa ou verso,

cujos personagens são, geralmente, animais e, sob uma ação alegórica, encerra uma

instrução, um princípio geral ético, político ou literário, que se depreende naturalmente do

caso narrado. A fábula comporta assim duas partes, a que La Fontaine chamou corpo e

alma: a narrativa e a moralidade. Aquela trabalha as imagens, que constituem a forma

sensível, o corpo dinâmico e figurativo da ação. Esta opera com conceitos, que são "a

verdade falando aos homens". Deve-se salientar, porém, que para o leitor moderno a

literariedade possui precedência sobre o ensinamento moral. Enfatize-se que, para o gosto

moderno, a narrativa deve ser o elemento dominante. A moralidade ou significação

alegórica anima o corpo narrativo, mas de maneira velada, ficando nas entrelinhas. Os

antigos tinham um ponto de vista diferente. Para eles, a parte filosófica era o drama, a

vivacidade das imagens para chegar mais diretamente ao alvo moral. Tanto cifrada na

invenção do papel desses dois elementos, quanto mais se avança na história da fábula, mais

se vê decrescer o tom didático em proveito do entrecho.

A fábula acabou por tornar-se um gênero popular no século XVIII, La Fontaine teve

muitos seguidores: Jean Pierre de Florian (França); Tomás Iriarte (Espanha); George

Bertolá (Itália); Bocage (Portugal), que traduziu La Fontaine em versos; John Gay

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(Inglaterra). Estes autores elevam a fábula, originalmente um gênero popular, baseado em

fontes folclóricas, a uma literatura sofisticada, geralmente, de cunho filosófico-moral ou de

crítica política.

Na Alemanha, Lessing reagiu contra a hiperliteralização da fábula, apresentando em

Fabeln (1759) uma introdução em que expõe essa excessiva literalização como perversão

do gênero e uma traição de suas raízes. Apesar disso, foi Christian Gellert, contemporâneo

de Lessing, o fabulista mais popular entre os germânicos, com suas histórias engraçadas,

conforme os prejuízos da época, motejando mulheres, pobres e burgueses. Contudo, o

melhor escritor de fábulas do século XIX foi o russo Ivan Krilov. Este escritor russo foi

também jornalista satírico e dramaturgo. Após traduzir La Fontaine, em 1805, escrevendo

sob sua influência Basni (1809). Sua prosa realista é viva e saborosa, recheada de

provérbios populares, o que fornece a seu texto uma grande força epigramática. Retirando a

fábula dos salões luxuosos, devolveu-a ao povo, no vigor telúrico do pitoresco do campônio

russo. Todas essas qualidades lhe possibilitam êxito imediato.

Tendo, pois, a fábula uma tradição que atravessou os tempos, vinda do Oriente e da

Antigüidade Clássica, chegou até a Europa moderna e contemporânea. Também a língua

portuguesa e inclusive o Brasil sofreram sua influência, embora neste último caso, esta só

se fez sentir tardiamente.

Indo buscar as esporádicas contribuições em língua portuguesa dos fabulistas,

encontramos no século XVI, Sá de Miranda, que compôs O rato do campo e o rato da

cidade e O cavalo e o cervo. Em Portugal, depois de Bocage, o poeta Almeida Garret

publicou Fábulas e contos (1853). Em terras lusas, todavia, o melhor fabulista é Cabral do

Nascimento, também poeta, cuja obra Fábulas apareceu somente uma centúria após.

No Brasil, destarte a longa vigência do cânone lingüístico e temático dos clássicos

portugueses e a posterior influência francesa no romantismo, já em 1860, a fábula fez-se

gênero de destaque com as Fábulas , de Luiz de Vasconcelos, obra que introduziu a fauna e

a flora no contexto da estrutura narrativa da fábula, buscando nacionalizá-la.

No campo do estudo, registro e adaptação de fábulas, lendas e superstições

brasileiras, estilizadas literariamente, ninguém superou os esforços de Monteiro Lobato,

ainda que tenha tido predecessores e pósteros ilustres, tais como J. Simões Lopes Neto,

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com suas Lendas do sul (1913), e Catulo da Paixão Cearense, com Fábulas e alegorias

(1945).

Lígia Chiappini afirma que a tradição oral, fonte dos mitos, lendas, fábulas e

superstições, se transformou em conto culto em J. Simões Lopes Neto (Chiapinni, 1988,

150). Para ela: “Lendas do sul é um livro que reúne narrativas diversas e o material

folclórico que o sustenta não pode ser, em bloco, chamado de lendas, pelo contrário, estas

se mesclam com mitos e supertições, no mínimo” (Idem, ibidem.).

A pesquisadora ao tentar definir o tipo de material com que J. Simões Lopes Neto

trabalha nas Lendas do sul, se depara com distinções pouco claras entre a fábula, o mito, a

lenda e a superstição. Chiappini não está interessada nessas classificações em si mesmas,

senão naquilo em que elas podem auxiliar na compreensão de sua poética (Idem, 151).

Ainda para a pesquisadora, lenda é uma história vinculada a hagiografia, aplicando-se a

classificação de lenda a uma história fabulosa dotada de fundo religioso.

Seguindo Afonso Arinos, em suas Lendas e tradições brasileiras (1917), Chiappini

entende que para distinguir lenda e mito, se deve fixar no caráter religioso da primeira,

enquanto, embora o segundo também transite por aí, se prenda mais à narrativa sobre

deuses e heróis epopéicos. Outro aspecto importante, é que ela considera mito aquelas

histórias que indagam pelas origens dos fenômenos naturais (Idem, 153).

A autora de No entretanto dos tempos (1988) referindo-se ao folclorista Câmara

Cascudo, em Literatura oral no Brasil, endossa sua própria constatação quanto à confusão

terminológica. A fim de propiciar uma solução operativa a essa questão, recorre à

autoridade de Mircea Eliade:

[...] o mito é uma história sagrada que conta as origens remotas de um povo. Uma história

do illo tempore, sempre repetida, retoma pelo rito, enquanto a crença subsista. A mesma

história se transforma em ficção, "história falsa", quando morre a crença que sustentava a

sua verdade. O mito passa a sobreviver, então, pela literatura, como os mitos gregos,

imortalizados por Homero, numa época em que começavam a morrer enquanto histórias

sagradas (Idem., 153).

Chiappini continua sua exposição afirmando a distinção entre os vários tipos de

narrativas que se alimentam em sua fonte das raízes da tradição folclórica (narrativas

míticas, lendárias ou fabulísticas) e a superstição, conforme Câmara Cascudo:

O que Câmara Cascudo considera mito (por exemplo, os "demônios infernais", espalhados

pela selva brasileira, "deuses da floresta tropical", que o missionário classificou como forças

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demoníacas, tais como o Curupira, o Mboitatá, o Igupiara de que fala Anchieta, já em

1560), um autor como Ambrozetti, em Supersticiones y Leyendas del Rio de la Plata, dá

como supertição (Idem,154).

E adiante:

Assim, mito, lenda e superstição se aparentam, mas se distinguem. Mas essas distinções, no

fundo, se complicam em traços comuns e recorrentes. Se insisto em aproveitar o conceito de

superstição para introduzir traços distintivos entre fenômenos que Câmara Cascudo chama

genericamente de mitos, no folclore brasileiro, é porque em Simões Lopes, essa distinção

vai ser útil [...] (Idem, 154-155).

De fato, também julgamos de muita utilidade essas distinções e classificações, pois

através delas podemos averiguar a natureza do texto, suas fontes e o estilo do registro

lingüístico usado por J. Simões Lopes Neto.

6.3 - Sinopse de Mãe mulita

Desde a epígrafe, retirada do Cancioneiro guasca (1910), a história se constrói na

tentativa de explicar o nascimento das ninhadas do tatu-mulita, isto é, porque, a cada vez,

nascem somente machos ou somente fêmeas e nunca ninhadas mistas. Isto nos é dito na

reveladora expressão do narrador: “este bicho foi mandado ficar assim [...]”.

Tendo Maria e José fugido para o Egito, a fim de escaparem da crueldade de

Herodes, a certa altura do caminho foram alcançados pela tropa do rei, que pretendia matar

o Menino Jesus e aprisionar seus santos pais. A Virgem, entretanto, entre rogos e choro,

consegue demover o centurião de mau intento e deu-lhe como paga um burro petiço.

Vendo-se sem o animal, Maria e José prosseguiram a viagem, a custo, empurrando o

carrinho onde ia dormindo, muito sossegado, o Menino Jesus.

A tropa do rei ia voltar, porém, o burro empacou. Depois de ser sovado pelo

centurião e de apanhar de todos os soldados continuou imóvel. Sentindo-se enganado o

centurião, furioso, resolveu voltar e persistir na empreitada malévola. A Virgem e São José

não viam o que estava acontecendo, mas ouviam os cascos dos cavalos e as blasfêmias,

assim, apuravam forças, empurrando o carrinho.

Então, o Menino Jesus acordou e teve fome, mas devido ao cansaço e a aflição, o

seio de Maria não teve leite. Ela chorava de pesar e o Menino, de fome. Nisto, por ali

passava uma mulita e Nossa Senhora lhe disse:

- Mulita, se tens filhos, dá-me uma gota do teu leite para o meu filho!...

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A mulita deu a gota de leite, mas era pouco e o Menino continuou a chorar. Chorou

de pesar também a Virgem, e disse:

- Mulita, chama as tuas filhas, para cada uma dar uma gota de leite para o meu

filho!...

A ninhada era grande, mas as filhas da mulita, porém, eram poucas. Todavia, cada

uma deu gotas de leite para alimentar o Menino, que calou-se farto.

Vendo que o centurião e sua tropa se aproximavam, Maria, muito aflita, rogou:

- Mulita, dá-me tua força, para puxar o carro do meu filho!... E a mulita puxou, mas

era tão pouca sua força, que de nada adiantou. E os soldados cada vez mais perto...

Nossa Senhora chorou de medo e tornou a dizer:

- Mulita, chama os teus filhos, para darem a sua força e correrem, puxando o carro

do meu filho!...

- Senhora Virgem, respondeu a mulita, a minha ninhada é grande, porém nela os

filhos são poucos...

Mesmo assim o carrinho puxado pelos filhos da mulita ia andando depressa.

Porquanto sejam os cavalos maiores que as mulitas, estes iam vencendo terreno e se

aproximando. Nesse momento, levantou-se tremendo temporal de areia, que obrigou a tropa

perseguidora a dispersar-se e desistir. Quando já estava salvo o Menino, Nossa Senhora

tornou a dizer:

- Mulita, em memória das gotas de leite das tuas filhas, em memória da força dos

teus filhos, deste dia em diante, de cada vez que deres ninhadas, será sempre ou só de

fêmeas ou só de machos!...

Nisso, de bom grado, concordou a mulita. Solicitando que a sua comadre, a tatua,

tivesse também ninhadas como as suas, com o que a Virgem prontamente anuiu.

6.4 - Estrutura de Mãe mulita e breve hermenêutica

A Mãe mulita é um texto de natureza híbrida. Conforme vimos, as classificações

que se referem a mito, fábula e superstições são bastante imprecisas e, de modo geral, são

aplicadas indiscriminadamente. Mãe mulita possui algo do mito se pensarmos que é uma

explicação alegórica dos fenômenos naturais. Não deixa de ser fábula pela presença de

animais antropomorfizados e também é superstição se a esse termo concebermos o sentido

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de crendice popular. Deste modo, verificamos que nesse caso de Mãe mulita

especificamente, o autor quis guardar o mais intocado possível o registro do argumento

contra sua estilização literária, o que nos é revelado pela seguinte declaração: “O

argumento destas duas lendas [Angüera e Mãe Mulita] está desenvolvido baseado na

tradição longínqua e é de notar a acomodação bizarra dos elementos do seu entrecho.”

(Lopes Neto, 1988, 182).

A estrutura do texto, dado o arranjo ingênuo dos elementos do entrecho, é bem

simples: 1°) Intróito; 2º) Desenvolvimento; 3º) Clímax; 4º) Desenlace.

1º) No intróito dá-se-nos o motivo da história, isto é, explicar as ninhadas do tatu-

mulita;

2º) O desenvolvimento ou trama é aquela parte em que a harmonia é quebrada. A

Sagrada Família está em fuga para o Egito, até aqui há equilíbrio. A fome do menino Jesus

e o soldados em seu encalço são os fatores que complicam a trama;

3º) O clímax ocorre quando aparece a mulita e estamos no auge da ação;

4º) O desenlace ou desfecho acontece quando passado o perigo, através da

providencial tempestade de areia, todos estão em segurança e contentes.

O intróito propõe um sentido para a história, o desenvolvimento é história

propriamente dita, que necessita de um clímax e de uma conclusão. Mãe mulita é mito no

intróito, é lenda no desenvolvimento, é superstição na conclusão e é narrativa fabulística no

contexto geral de sua literariedade. Examinemos mais acuradamente este último ponto.

Pelo exposto, a fábula compõe-se de duas partes: a forma exterior (a literariedade) e

a interna (o ensinamento moral). Mãe mulita pode ser também analisada sob esta hipótese,

uma vez que em sua estrutura híbrida prevalece a personificação de animais.

O esquema simbólico de Mãe mulita se reflete na própria estrutura narrativa,

funcionando não apenas como fio condutor do entrecho, mas também servindo para a

construção de uma chave hermenêutica. Vejamos o paralelismo entre estrutura narrativa (1)

e estrutura metafórica (2): o intróito (1) vai desde a abertura do texto até o empacar do

burro petiço (2), que desencadeia a desarmonia; o desenvolvimento da ação (1) se passa

todo em função das sucessivas súplicas da Virgem à Mãe mulita e seus respectivos

ajutórios (2); daí em diante temos o clímax (1), representado pela aproximação dos cavalos

dos perseguidores (2) e o desfecho (1), em que aparece a providencial tempestade (2), que

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dispersou a tropa, pôs em segurança a Sagrada Família e alegoricamente explica o

nascimento das ninhadas de tatu. Além disso, cada um desses símbolos (burro, tatu e

tempestade), respeitando a predominância fabulística da narrativa, encerra um ensinamento

moral.

O BURRO

O burro é um dos animais que mais contraditoriamente são interpretados entre as

diversas culturas e mesmo dentro delas. A tradição judaico-cristã é, em geral, favorável à

imagem do burro, do asno ou jumento, fazendo-os representar a humildade e a humilhação.

Assim é que José leva Jesus e Maria no lombo de um burro. Essa representação da

humildade nos é confirmada em Provérbios 16,18-19: “A arrogância precede a ruína, e o

espírito altivo a queda. É melhor ser humilde com os pobres, do que repartir o despojo com

os soberbos”. Outros exemplos favoráveis são: a jumenta de Balaão (Números, 22, 22-35) e

também o entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (Marcos, 11, 1-11). Além destes pode-se

citar, pelo menos, mias dez passagens bíblicas que se referem a asno, burro ou jumento.

Todavia, pela estrutura narrativa de Mãe Mulita percebemos que o burro é um ponto

de desarmonia. Foi sua teimosia que enraiveceu o centurião e desencadeou, novamente, a

perseguição. Uma tradição cristã não ortodoxa vê o burro como uma representação de

divindades funestas. Mais próxima das interpretações da tradição egípcia (onde o burro é

associado ao assassino de Osíris), indiana (deus Nairrita, guardião da região dos mortos),

grega (associada a Dionísio) e romana (associada a Príapo) é a conhecida imagem da noite

de Natal, no presépio, em que aparecem ao lado da manjedoura o burro e o boi. Esa

imagem foi retirada do evangelho apócrifo do pseudo-Mateus, em que o primeiro simboliza

os pagãos e o segundo, os cristãos (BIEDERMAN, 1994, 41). Com base nessas

interpretações é que o burro petiço de Simões Lopes Neto aparece, ao contrário da tradição

bíblica canônica, como um ponto de desequilíbrio e desarmonia. O burro representa forças

maléficas ou mesmo demoníacas. A essa imagem da tradição bíblica apócrifa, associam-se

os conceitos dos alquimistas que vêem no burro um demônio de três cabeças: uma

representando o mercúrio (a guerra), a outra o sal (o dinheiro) e a terceira o enxofre (o

mal), todos estes são os princípios materiais da natureza: o ser obstinado. Do mesmo modo,

a arte renascentista pintou diversos estados de alma com os traços de um asno: o

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desencorajamento espiritual do monge, a depressão moral, a preguiça, a luxúria, a

estupidez, a teimosia (Chevalier & Gheerbrant, 1994, 94).

A lição do burro: em qualquer ponto de sua vida, aquilo que dado momento serviu

para ajudá-lo (lembremos que na narrativa simoniana, o burro petiço puxava o carro na

fuga da Sagrada Família para o Egito), pode se transformar em grande problema.

O TATU

O xamanismo é um sistema religioso primitivo de algumas sociedades da Ásia, da

África e de outras tribos da América que possuem como figura central o xamã, feiticeiro ou

pajé, cujas práticas incluem o estado de transe, o poder de curar doenças e a comunicação

com espíritos da natureza (Cf. Holanda Ferreira, 1986, 1796). Nesse último ponto é que

encontramos os "animais de poder", estes são os espíritos que no mundo natural

representam as diversas personalidades humanas, em suas virtudes e defeitos.

Ao observarmos as características dos tatus encontramos similaridades de posturas

psíquicas e comportamentais com os seres humanos. O tatu-mulita, cujo nome científico é

Dasypus septemcintus, é um animal de pequeno porte, que possui uma carapaça convexa

com sete cintas móveis. As orelhas são grandes e pontiagudas, sua cauda é relativamente

curta com ponta fina e revestida de anéis, sendo as unhas estreitas e fortes. Seus hábitos são

crepusculares e noturnos. Alimenta-se de raízes e pequenos invertebrados que encontra

revolvendo a terra com o focinho. Foi descrito e classificado, em 1758, por Linnaeus, que o

colocou na classe dos Mammalias, na ordem dos Xenarthras e na família dos Dasypodidae

(Cf. Grande Enciclopédia dos animais).

Não é de espantar que o tatu-mulita seja personagem da mitologia popular, uma vez

que sua ocorrência no Brasil é muito comum, estando distribuída a espécie desde o Pará até

o Rio Grande do Sul, indo até o interior do Mato Grosso (Idem). O tatu-mulita possui,

conforme já se disse, uma forte carapaça com sete cintas móveis. Tal condição dota-o de

uma perfeita armadura. Afirmam Sams e Carson, referindo-se simbolicamente ao tatu: "Sua

carapaça protetora é parte de seu ser, de tal forma que ele pode facilmente se enrolar em

torno de si mesmo, transformando-se numa bola resistente que não pode ser penetrada por

seus inimigos" (Sams & Carson, 2000, 163).

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Quantas vezes necessitamos nos esconder ou nos proteger daqueles que são uma

ameaça para nossa segurança ou querem invadir nosso espaço? Na história relatada por

João Simões Lopes Neto é Maria quem está mais oprimida, o papel de José é totalmente

secundário, e o menino Jesus é indefeso. Haverá maior invasão ao universo de uma mulher

do que o iminente assassínio de um filho? Num caso desses é preciso fugir e erguer uma

carapaça protetora, se necessário resistir e confrontar o perigo.

O tatu não representa apenas a defesa contra o mundo hostil. Ao contrário de sua

carapaça, o seu ventre é macio e extremamente vulnerável. Metaforicamente essa imagem

nos diz que é necessário reconhecer e vivenciar, sem medo, a condição humana, também

repleta de vulnerabilidade.

O próprio filho de Maria, sendo Filho de Deus, se fez homem, isto é, encarnou-se,

voluntariamente por amor à humanidade. Ele, sendo divino, fez-se vulnerável, todavia, essa

vulnerabilidade não é fraqueza, é a capacidade de estar aberto ao sofrimento como caminho

de elevação e solidariedade espiritual na certeza da vitória, através da demarcação de um

território que impede a ação predatória do perigo e do mal.

A lição do tatu: "Esse território é protegido pela carapaça, não se pode deixar,

entretanto, que a armadura se transforme numa prisão e nem que seus medos sejam seus

carcereiros" (Sams & Carson, 2000, 165) ou ainda: "O casco da integridade, a segurança de

propósitos e metas o protegerão dos desequilíbrios que o cercam." (Cf. Wagner, 2003).

A TEMPESTADE

A tempestade é, por excelência, um tema romântico, sendo o Sturm und Drang, na

década de 1770, um significativo exemplo disso. No fundo, o amor à tempestade ou à

tormenta é representativo das aspirações do homem para uma vida intensa, cheia de perigo

e emoção. Chateaubriand (1768-1848), um dos mais típicos autores do romantismo

europeu, assim se expressou:

Levantai-vos, depressa, tormentas desejadas, que deveis arrebatar René para os espaços de

uma outra vida faz eco ao de Ossian: "Levantai-vos, ó ventos tormentosos de Erin; brami,

furacões dos urzais; que eu morra no meio da tempestade, raptado numa nuvem pelos

fantasmas irritados dos mortos." (Capell, 1946, 41-42)

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A metáfora da tempestade não está presente apenas na moderna tradição do

Ocidente, embora esta - sobretudo no romantismo - se alimente de fontes folclóricas e

populares mais antigas e de variegadas origens.

Na mitologia africana encontramos Iansã ou Oyá como o orixá feminino ligado ao

vento, ao trovão, ao relâmpago e à tempestade. Conta a lenda que Oyá recebeu de Olorum a

missão de transformar a natureza através do movimento (o vento) que ela provoca com sua

dança. Às vezes, o vento se transmuta em tormenta, o que ao provocar destruição também

dá ensejo à renovação do ciclo natural. Mas geralmente Oyá se mostra gentil, soprando

apenas uma brisa, que espalhando sementes, renova a criação e semeia vida. Além disso,

esse vento manso é responsável pelo processo de evaporação de todas as águas da terra,

provocando as chuvas tão necessárias à fertilização do solo e ao equilíbrio natural. (Cf.

Verger, 1997)

Na Nigéria, Oyá é a deusa ligada ao rio Niger. Ela é a principal esposa de Xangô.

Impetuosa, de forte personalidade, ela é também rainha dos espíritos dos mortos. Oyá foi a

única mulher de Xangô que o acompanhou em sua fuga à terra de Tapa, mas se

desencorajou em Ira, sua cidade natal. Aí, desenganada do amor, suicidou-se ao receber a

notícia da morte de Xangô. Os tornados, furacões e tempestades são o resultado de sua

tristeza e descontentamento.

Oyá ou Iansã é puro movimento. Não pode ficar parada para não restringir a

constante renovação do mundo natural. a lenda também nos relata que embora tenha sido

esposa de Xangô, Oyá ou Iansã percorreu vários reinos e seduziu diversos reis. Foi paixão

de Ogum, Osogiyan e de Exú. Conviveu e seduziu Osossi, Logum-Edé, tentando, em vão,

conquistar Obaluaê. Depois de muitas peripécias e amores, ao chegar ao reino de Obaluaê,

este, desconfiado perguntou o que Oyá queria. Ela respondeu: "quero ser sua amiga". Dito

isto fez para ele a dança dos ventos. Dessa dança vem a tempestade que representa a paixão

indômita e frustrada de Iansã. (Idem, ibidem, 1997)

Conforme se pode observar na mitologia dos orixás há uma intervenção

sobrenatural no mundo natural - na verdade, uma representação alegórica (poética) dos

fenômenos da natureza. A tempestade é explicada através da imagem do descontentamento

ou da paixão de Oyá. (Idem, 1997)

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Embora de tradições culturais distintas, a tormenta ou a tempestade na Bíblia não

difere no sentido, basicamente, da simbologia africana: o fenômeno é uma manifestação ou

intervenção divina de cólera, socorro ou manifestação de Sua glória. Pode-se dar como

exemplo de cada um desses casos, respectivamente a destruição de Sodoma e Gomorra

(Gênesis 19, 24), a passagem do Mar Vermelho por Moisés (Êxodo 14, 21) e o Salmo 29,

em que se exalta o poder de Deus (Salmos 29, 4-8).

É nestes três sentidos que João Simões Lopes Neto em seu texto Mãe mulita coloca

a tempestade de areia. É manifestação da divina cólera porque os soldados são punidos por

perseguirem a Sagrada Família. É socorro porque quando tudo já parecia perdido, posto que

os cavalos são mais rápidos que as mulitas, a tempestade vem e dispersa o centurião e o

restante da tropa. Finalmente, é também manifestação da glória e do poder divino, pois só

Deus em Sua infinita ação providencial poderia gerar um fenômeno natural forte a ponto de

vencer a determinação do ódio e da injustiça.

A lição da tempestade: Deus está no controle de tudo, para punir ou socorrer.

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7 – SÃO SEPÉ/LUNAR DE SEPÉ 7

Por volta do século XII a Europa Ocidental vive o Renascimento comercial e

urbano. Com a expansão dos domínios muçulmanos e a conseqüente tomada de Jerusalém

pelos seguidores de Maomé, emerge, entre os europeus, o desejo de empreender as

cruzadas. Cabe ressaltar que esta intervenção militar representava, além do questionável

interesse religioso, um novo horizonte para a expansão econômica do continente, na qual a

burguesia fora a principal beneficiada. “Para as cidades comerciais italianas, por exemplo,

era muito vantajoso que as cruzadas utilizassem suas embarcações para atingirem terras

orientais. Desejavam aumentar seus lucros mediante a expansão das transações comerciais”

(Aquino, 1982, 14).

As expedições ao Oriente Médio lançaram um novo alento à economia. As rotas

marítimas propiciaram, aos venezianos e genoveses, a possibilidade de um grande acúmulo

de riquezas, por intermediarem a entrada de produtos do oriente para os consumidores

europeus, cobrando altos impostos sobre as mercadorias. No despontar do século XV as

principais rotas comerciais mediterrânicas mantinham-se sob o monopólio das cidades

italianas que, em aliança com os muçulmanos do Oriente, dificultavam as atividades

comerciais na Europa. Com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453, o

estrangulamento comercial tornou-se mais acentuado, porquanto estes taxaram as

especiarias de modo a encarecer muito o preço de revenda. Estes fatores impulsionaram os

países ibéricos a empreender expedições pelo Atlântico, no intento de encontrar caminhos

alternativos para a Ásia. Tais empreendimentos contaram com o financiamento da

burguesia, classe, então, melhor provida em recursos móveis, ou seja, dinheiro.

Os portugueses foram os primeiros que, desbravando a costa africana, atingiram o

Índico, chegando a Índia e ao extremo oriente. Ainda envolvida na retomada de seu

território em poder dos mouros, a Espanha retarda suas expedições pelo Atlântico,

concorrendo para isto sua falta de unidade política e territorial, pois estava dividida em

reinos independentes em constantes conflitos. A união espanhola efetuou-se com o

casamento de Isabel e Fernando, herdeiros, respectivamente, dos tronos de Castela e

7 Este texto de Mateus Weizenmann foi o resultado das atividades de pesquisa como bolsista BIC/UCPEL, em

2004, no GPS/ISF, sob o título de Roteiro de leitura da história das Missões Jesuíticas por meio do Lunar de

Sepé, de João Simões Lopes Neto.

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Aragão. No processo de formação do Estado Nacional incorporou-se o reino de Navarra e

efetuou-se a conquista de Granada. Enquanto os aragoneses estavam mais interessados em

competir com o monopólio italiano do que investir em uma expedição incerta pelo

Atlântico, a burguesia castelhana mantinha o propósito de chegar às Índias pelo mesmo

caminho traçado pelos navios lusitanos, porém, “impossibilitados de costear a África,

devido à precedência portuguesa que impedia a ação de concorrentes, viram-se (os

espanhóis) obrigados a navegar pelo Ocidente para chegar ao Oriente” (Aquino, 1982, 20-

21). Chegando ao Novo Mundo, que inicialmente se pensara ser a Ásia, visavam

estabelecer relações mercantis, o que logo se transformou em intento colonizador.

A economia da época moderna direcionava o olhar para a extração de metais

preciosos, especialmente ouro e prata, pela praticidade que ofereciam como bens móveis.

Para garantir a riqueza de um país acreditava-se que o acúmulo de moeda devia ser

efetivado, tornando-se necessário reduzir as importações e buscar mercados consumidores

para expandir o volume de produtos exportados.

As colônias apresentaram-se como cenário perfeito para a execução do projeto

econômico europeu: pois além de garantir abundância de matérias primas, extraídas por um

preço mínimo, devido ao uso que se fazia da mão de obra escrava, estavam condenadas a

negociar sua produção somente com a metrópole. A população local passou a ser vista

como mero instrumento de trabalho a serviço da Coroa. Esporadicamente os invasores

brancos se aliavam a algumas tribos para alimentar ódios existentes entre os nativos da

terra, a fim de enfraquecer a ambos valendo-se de falsas promessas a determinados grupos

indígenas.

A legitimação das atrocidades cometidas pelos colonizadores assentava-se no falso

uso da doutrina cristã, com o chamado Estado de Cristandade. Igreja e cristianismo eram

instâncias distantes, porquanto a religião, ao ser institucionalizada, foi posta a serviço de

ambições pessoais e de Estados despóticos. Alegando-se levar aos nativos a verdade

revelada, os invasores europeus se lhes faziam guerra em caso de não subordinação, seus

crimes tornavam-se assim facilmente perdoados e até mesmo ovacionados, em nome de

uma cruz estupidamente carregada.

“Antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os índios, sem

intérprete, mas diante de um escrivão público, um extenso e retórico Requerimiento que os

exortava a se converterem à santa fé católica: „Se não o fizerdes, ou nisso puserdes

maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente

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contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, e vos sujeitarei ao

jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos

farei escravos, e como tais vos venderei, e disporei de vós como Sua Majestade mandar, e

tomarei vossos bens e vos farei todos os males que puder...‟” (Galeano, 1985, 25).

Inicialmente aclamados como deuses, logo os espanhóis mostraram a que vieram,

quando, pela busca por riquezas, promoveram matanças, mesmo em lugares onde eram bem

recebidos, a exemplo do que ocorreu em México-Tenochtitlan, antiga capital do Império

Asteca.

“A dúvida a respeito da identidade dos homens de Castela subsistiu até o momento em que,

já hóspedes dos astecas em Tenochtitlan, perpetraram a matança do templo maior. O povo

em geral acreditava que os estrangeiros eram deuses. Mas quando viram seu modo de

comportar-se, sua cobiça e sua fúria, forçados por esta realidade, mudaram sua maneira de

pensar: os estrangeiros não eram deuses, mas popolocas, ou bárbaros, que tinham vindo

destruir sua cidade e seu modo de vida” (Portilla, 1985, 17).

Para os castelhanos a corrida pelo ouro e a prata estava acima de qualquer interesse

evangelizador. Aproveitando-se da autoridade de seu Deus, instituíram a exploração da

força de trabalho dos nativos, criando as chamadas encomiendas, forma mascarada de

escravizar o povo. “Para poder seguir aprovechandose de los indios sin tenerlos

formalmente como esclavos fue creada la encomienda, mediante la cual el encomendero, a

quien era entregados todos los índios de uma región para que los protegiera y procurar su

adoctrinamiento, lo que hacia era explotarlos hasta la muerte” (Guadarrama, 1993, 50-52).

A respeito da legitimidade da escravidão, diferentes correntes de pensamento

surgem na etapa da conquista, destacando-se as seguintes: indigenista, em favor dos

direitos dos nativos, tendo como principal representante o frei Bartolomé de Las Casas;

centrista, interessada em assegurar os interesses do Estado, sendo Francisco de Vitória o

principal expoente e a escravista, liderada por Juan Ginés de Sepúlveda, que, a serviço da

classe colonialista, em busca da riqueza e do poder, justifica a exploração do oprimido e

defende a supremacia natural européia, inspirada na concepção de Aristóteles de que uns

nascem para serem livres enquanto outros, por natureza, são escravos.

Las Casas denunciou os abusos ocorridos com as comunidades indígenas,

posicionando-se a favor da liberdade de culto, o que significou o respeito à pluralidade

cultural naquele momento. Manifestou-se contra as torturas, abusos sexuais e assassinatos

que sofreram os indígenas no processo de colonização. Na obra O paraíso destruído, afirma

que seus conterrâneos: “Ensinavam os cães a fazer em pedaços um índio à primeira vista.

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Estes cães faziam grandes matanças e como por vezes os índios matavam algum, os

espanhóis fizeram uma lei entre eles, segundo a qual por um espanhol morto faziam morrer

cem índios” (Las Casas, 1996, 31).

O relato de Las Casas aponta e critica a idéia de superioridade racial vigente entre

os europeus. Através de suas denúncias, tentou minar a condição de estigmatizados que

viviam os índios, promovendo o respeito ao seu modo de viver. Numa época em que a

clássica dicotomia corpo x alma, herdeira da tradição grega, elevava a segunda à condição

superior em relação ao primeiro, pela suposta ligação direta com a divindade, se pôs em

discussão a existência de uma substância além da corpórea entre os índios. Estes teriam

alma? A dúvida implicava pôr em prova se realmente eram humanos. Ginés de Sepúlveda,

defendendo o direito de escravidão, declara:

“Lo perfecto deve imperar sobre lo imperfecto, lo fuerte sobre lo débil. Dado que los

aborígenes son imperfectos y debiles frente a los españoles, estos deben dominarlos y

ponerlos a su servicio, porque asi lo establece la ley natural. Esta es, además, un labor

civilizatoria y de caridad para con los pobres indios, que son bárbaros, incultos, impíos,

inhumanos (Guadarrama, 1993, 75)”.

Após se travarem discussões entre as diferentes concepções vigentes neste período,

as autoridades espanholas reconhecem a humanidade indígena, ainda que se suponha que o

índio necessite de orientação constante para não cair numa vida corruptível e se afastar da

religião dos seus novos soberanos. Apesar de humanos, continuam à margem, carregando

um estigma por pertencerem a uma cultura com outros valores. Este é o pano de fundo da

organização colonial da América hispânica no século XVI, longe de ser pensada como

verdadeiramente cristã. Se pensarmos nos Dez mandamentos recebidos por Moisés no

monte Sinai, percebemos as inumeráveis contradições éticas que perpassaram o modelo

colonialista que justamente matava em prol do respeito às leis cristãs, princípios como não

matar! e não roubar! foram relegados ao esquecimento diante do valor material que as

minas do Novo Mundo podiam oferecer, e assim tem se repetido a crise de valores na

história das sociedades.

“Uma única bolsa de pimenta valia, na Idade Média, mais do que a vida de um homem, mas

o ouro e a prata eram as chaves que o Renascimento empregava para abrir as portas do

paraíso no céu e as portas do mercantilismo capitalista na terra. A epopéia dos espanhóis e

portugueses na América combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e o saqueio

das riquezas nativas. O poder europeu estendia-se para abarcar o mundo” (Galeano, 1985,

26).

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O Tratado de Tordesilhas, com o qual Portugal e Espanha dividiram o mundo com

uma linha imaginária a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, concedeu à Coroa

Espanhola a maior parte do território americano, incluindo o atual estado do Rio Grande do

Sul. Com o despontar da extração de metais preciosos, a Espanha tornou-se a maior

potência colonial européia, contudo, a grande extensão de terras a tornava vulnerável às

expedições portuguesas em seu território e a pirataria de outras nações do Velho Mundo,

em especial Inglaterra, Holanda e França.

Diante da necessidade de conter o perigo lusitano que se dirigia do Brasil em

direção à porção ocidental do continente sul-americano, a Coroa Espanhola encontrava-se

em frágil posição de defesa, não possuindo exército capaz de conter a fúria de seus

concorrentes pelo ouro e a prata abundante em suas colônias. A descoberta das minas de

Potosi, no atual território do Peru, dera aos espanhóis a sensação de ter encontrado a fonte

inesgotável de riquezas, o que fizera com que o Imperador Carlos V lhe outorgasse o título

de Vila Imperial e uma placa contendo a seguinte inscrição: “Sou o rico Potosi, do mundo

sou o tesouro, sou o rei das montanhas e sou a inveja dos reis” (Galeano, 1985, 33). O

esplendor desta cidade encravada nos Andes alimentava o desejo de poder e a ostentação

sem limites.

“Dizem que até as ferraduras dos cavalos eram de prata, no auge da cidade de

Potosi. De prata eram os altares das igrejas e as asas dos querubins nas procissões:

em 1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas da cidade foram

desempedradas, da matriz até a igreja de Recoletos, e totalmente cobertas com

barras de prata. Em Potosi a prata levantou templos e palácios, mosteiros e cassinos,

foi motivo de tragédia e de festa, derramou sangue e vinho, incendiou a cobiça e

gerou desperdício e aventura. A espada e a cruz marchavam juntas na conquista e na

espoliação colonial. Para arrancar a prata da América, encontravam-se em Potosi os

capitães e ascetas, toureiros e apóstolos, soldados e frades. Convertidas em bolas e

lingotes, as vísceras da rica montanha alimentaram substancialmente o

desenvolvimento da Europa” (Galeano, 1985, 32).

Contrariamente à abundância do lado hispânico, não foram encontradas

significativas minas metálicas no território brasileiro, o que acarretou no avanço português

em direção ao oeste, com as entradas dos bandeirantes paulistas. Para conter as investidas

destes, a Espanha precisava ocupar as terras sobre as quais julgava ter direitos, formando

um escudo às suas minas, assim, enviou padres jesuítas a fim de conquistar súditos à Coroa

por meio do Evangelho. Além dos fins defensivos, também visava uma saída pelo Atlântico

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para escoar seus produtos, visto esta medida facilitar o transporte dos mesmos da colônia à

metrópole, constituindo-se num modo mais rápido e econômico.

As primeiras missões onde hoje se compõe o território brasileiro foram edificadas

na região dos rios Paraná e Paraguai. As missões de Guaíra, contudo, foram arrasadas pelos

bandeirantes paulistas. Estes, além de saquear a produção da redução, capturavam um

grande número de indígenas a fim de vendê-los como escravos em São Paulo, no Rio de

Janeiro e na Bahia. Migrando para o sul, índios e jesuítas atingiram o rio Uruguai, fundando

novas reduções e ampliando o contato com a povoação guarani que habitava estas terras.

Os índios guaranis, além da caça e da pesca, praticavam a agricultura, o que foi um

aspecto que facilitou a aceitação destes aos padres que na região se fixavam. Os jesuítas

trouxeram um aparato tecnológico capaz de expandir a produção agrícola, carente diante

dos parcos recursos à disposição destes nativos. Cabe ressaltar que a produção de alimentos

consistia um grave problema enfrentado pela população guaranítica, a terra se esgotava, o

que os obrigava a empreender migrações constantes, caracterizando-se como nômades. A

fome se abatia sobre a população que enfrentava ainda outro grave problema: as lutas

contra tribos inimigas da Campanha e do Planalto mantinham-se como uma ameaça

constante às suas vidas e liberdades.

“O sistema produtivo preconizado pelos padres configurava um extraordinário salto

tecnológico – enxada, arado, adubação, irrigação, rotação de culturas, produção de

sementes, etc. e, em geral, uma economia planificada. Ao se tornarem súditos da

Coroa, subtraíam-se à encomienda e recebiam proteção contra os paulistas. Os

guaranis negociavam estas duas condições com a Coroa através dos jesuítas”

(Freitas, 1982, 30).

Assim, o projeto missioneiro representava vantagens tanto para o rei de Castela

quanto para os guaranis, e também para os jesuítas, em seu intento catequizador.

A primeira redução em terras riograndenses foi a de São Nicolau do Piratini, estabelecida

pelo jesuíta Roque Gonzáles de Santa Cruz, em três de maio de 1626. Composta

inicialmente por 280 famílias, transcorrido um ano já contava com uma população de 2500

habitantes. Entre os anos 1626 e 1637 outros padres da Companhia de Jesus fundaram mais

quinze reduções no atual território do Rio Grande do Sul, estendendo-se da bacia do

Uruguai até a do Jacuí.

O processo de colonização européia na Província de São Pedro teve as missões

jesuíticas como marco inicial, embora comumente tenha se atribuído à chegada do

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brigadeiro português Silva Paes, onde foi erigida a cidade de Rio Grande, como primeiro

foco da dita "civilização". Esta deturpação dos fatos se deu com o fim de resguardar os

interesses de Portugal sobre o território, visto que o reconhecimento da ocupação

espanhola, representada pela Companhia de Jesus, implicava em uti posidetis, ou direito de

posse aos castelhanos. Por este motivo os manuais de história nos chegaram falseando a

realidade com um escopo já definido pelos interesses lusitanos em tempos passados. Cabe

ressaltar que após a chegada da Companhia de Jesus, por mais de um século, os

portugueses se limitaram a cruzar o território apenas praticando uma economia predatória,

não empreendendo qualquer atividade que caracterizasse um processo civilizatório.

Enquanto os portugueses apenas trafegavam pela região, os jesuítas se estabeleciam

com o intuito de criar comunidades auto-suficientes e que professassem a fé cristã,

mantendo relativa autonomia política.

“Aos colonizadores jesuítas se deve o conhecimento da geografia, da zoologia e da botânica

do território (...) Introduziram e propagaram o gado vacum, cavalar e ovino – base futura da

economia riograndense e, mais que isso, desenvolveram junto com os índios a técnica de

pastoreio que havia de ser adotada depois pelos portugueses e seus descendentes. A própria

invocação de Rio Grande de São Pedro, que o território teve até a proclamação da

República, foi dada pelos colonizadores jesuítas” (Freitas, 1982, 15).

O período anterior a 1641 foi caracterizado por intensas invasões bandeirantes, entre

elas a de Raposo Tavares (1639) e a de Fernão Dias Paes Leme (1639), ambas ocorridas em

reduções próximas ao Jacuí. Em 12/03/1641, porém, os paulistas comandados por Jerônimo

Pedroso, na margem oriental do rio Uruguai foram derrotados pelo exército guarani, na

chamada Batalha de M’bororé o que abriu as portas para um novo período na região

missioneira. Com a defesa guaranítica os bandeirantes cessaram o tráfico de escravos nos

domínios jesuíticos. Inicia-se uma época de relativa paz nas reduções, o que possibilitou

um grande desenvolvimento no plano econômico.

Segundo Décio Freitas, a locação das reduções exigia alguns requisitos que assim o

autor descreve:

“Cada redução constituía uma unidade urbano-rural rigorosamente planejada. Compreendia

uma área de trinta ou quarenta léguas, mais ou menos, segundo o número de habitantes e a

qualidade das terras. Estipulou-se que o local da povoação devia medir no mínimo cem

hectares de terreno plano, algo elevado e aberto para o sul, de onde sopravam os ventos

refrescantes; devia possuir abundância de águas e de matas, bem como ficar longe dos

pântanos. A distância entre uma redução e outra não podia normalmente ultrapassar de três

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léguas espanholas (15 km); excepcionalmente, a distância podia chegar a dez léguas. Esta

proximidade visava facilitar as comunicações e a defesa” (Freitas, 1982, 44).

Os jesuítas dinamizaram o processo de urbanização do território, implantaram nas

reduções o traçado retangular espanhol, com ruas cortadas em ângulos retos. A população

se concentrava quase exclusivamente dentro do perímetro urbano.

“Cada redução formava, pois, uma unidade mais ou menos auto-suficiente. Salvo no caso

das estâncias, não havia separação entre cidade e campo. Os que trabalhavam na terra

moravam no centro urbano; tinham uma existência coletiva, não ficando submetidos ao

isolamento a que está condenado o camponês” (Freitas, 1986, 45).

Enfocando o cotidiano agrário da população missioneira, refere-se Simões Lopes

Neto:

“Cheiravam as brancas flores

Sobre os verdes laranjais;

Trabalhava-se na folha

Que vem dos altos ervais;

Comia-se das lavouras

Da mandioca e milharais” (Lopes Neto, 1988, 184).

A economia das missões mantinha o caráter de subsistência, o que não impedia que

se efetuassem exportações. Predominavam as tradicionais lavouras de mandioca, milho e

tabaco, bem como outros produtos agrícolas incorporados pelos padres, tais como: algodão,

açúcar, cânhamo e trigo.

A extração da erva-mate era intensa e bem aceita no mercado. Era o principal

produto de exportação das reduções. O lucro era direcionado à compra de manufaturas não

disponíveis naquelas comunidades. De qualidade superior à erva produzida pelos

espanhóis, dos ervais guaraníticos dirigia-se a mercadoria a Buenos Aires, Santa Fé, Chile e

Peru. Convém destacar que, devido à distância das missões aos locais de extração, os

jesuítas desenvolveram um modo de produção artificial da erva-mate. Calcados em técnicas

de engenharia efetuavam projetos de irrigação das lavouras, o que somava para a

construção de uma economia planificada e sólida.

A indústria contava com olarias, fornos de fundição de ferro, curtumes, matadouros,

moinhos d‟água e vento, fábricas de carros e carroças, armas, pólvora, secadores de erva-

mate e construção de embarcações de pequeno calado às margens dos rios. Havia também

indústria tipográfica, editorial e manufatureira. “Havia em cada redução trinta ou quarenta

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oficinas manufatureiras, em que trabalhavam ferreiros, tecelões, chapeleiros, curtidores,

carpinteiros, oleiros, escultores, pintores etc” (Freitas, 1982, 47).

Diante do salto no desenvolvimento de uma produção primitiva a um modelo

planificado pelos jesuítas, se pode afirmar que “o sistema configurou uma revolução

econômica, na medida em que os índios passaram de uma economia neolítica itinerante

para uma economia sedentária de alto nível técnico” (Freitas, 1982, 46).

O texto Lunar de Sepé, escrito por Simões Lopes Neto com base em um relato

indígena, apresenta uma sociedade harmoniosa e de acordo com as leis de Deus, a qual:

“Ninguém a vida roubava

Do semelhante cristão,

Nem pobreza existia

Que chorasse pelo pão

Jesus Cristo era contente

E dava sua benção” (Lopes Neto, 1988, 184).

Os padres implantaram um coletivismo que não se apresentava tão estranho aos

guaranis. Estas comunidades antes da presença da Companhia de Jesus, mantinham uma

existência conjunta. Apesar de cada família ter sua plantação, o trabalho era executado em

grupo. O produto da caça era repartido pelo caçador a todos os cidadãos. Os jesuítas

implantaram um comunismo cristão que, institucionalizado nas reduções, pode ser

considerado, conforme Décio Freitas, “o primeiro experimento socialista em terras

brasileiras” (Freitas, 1982, 16).

As reduções representaram a erradicação da fome e a proteção dos guaranis diante

das guerras contra seus vizinhos, o que não afastara eventuais conflitos com os

bandeirantes. “Formavam comunidades prósperas e pacíficas, dedicadas à produção

agrícola, pastoril, extrativista e artesanal. Em quase todas floresciam a arquitetura, a

pintura, a escultura, a decoração e a música. Os índios se alfabetizavam rapidamente na sua

própria língua” (Freitas, 1982, 15). Também é mérito dos jesuítas a criação das primeiras

gramáticas guaranis.

A produção efetuava-se nas terras denominadas Abambaé e Tupambaé, enquanto a

primeira existia individualmente para cada família, a segunda servia a toda comunidade e

todos trabalhavam no seu cultivo.

“O Abambaé, inexistente como propriedade privada voltada para a produção na tribo

guarani, foi institucionalizado a partir da legislação espanhola colonial, e passou a funcionar

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como propriedade das famílias que estavam reunidas em torno dos caciques. Era controlada

pelos alcaides e o produto guardado em sacos nos depósitos, com a identificação do

proprietário que deles retirava o que necessitava. Era com os frutos do Tupambaé,

entretanto, que se mantinham as viúvas e os órfãos, se atendiam aos necessitados, quando o

produto do Abambaé terminava, alimentavam as expedições que partiam em busca da erva-

mate ou em direção das estâncias de gado, para fornecer víveres para o deslocamento das

tropas indígenas das Missões, quando em campanha militar ou em marchas de

reconhecimento, para manutenção da igreja e dos padres (o Cura e seu companheiro) e

finalmente para garantir as reservas para a próxima semeadura” (Kern, 1982, 74).

Desse modo, o Tupambaé simbolizava o espírito comunitário no processo de

produção, estando cada indivíduo comprometido com o suprimento de bens necessários a

todos. Nesta terra a fome de um era problema coletivo, assim se pode pensar que “nem

pobreza existia que chorasse pelo pão” (Lopes Neto, 1988, 184). A solidariedade não estava

fechada dentro de cada redução, cada um dos povos era responsável pelo abastecimento dos

vizinhos. “Se a safra de uma redução fracassava, por inundação, seca ou qualquer outro

motivo, as demais estavam obrigadas a provê-la do que faltava, em alimentos, manufaturas

etc.” (Freitas, 1982, 52). O Tupambaé mantinha uma função social, dele retirava-se a

quantia necessária de alimentos para o consumo diário das famílias.

A organização política previa que todos os meios de produção pertenciam à

redução, de materiais empregados para a produção agrícola, como arados e enxadas, a bois

e sementes. Cada trabalhador utilizava os equipamentos e devia se comprometer em

entregá-los em bom estado.

“As casas constituíam propriedade da redução, que as entregava em usufruto aos casais.

Entendia-se que não havia necessidade de herança, dado que, ao casar, os filhos recebiam

sua própria casa (...) Somente havia propriedade privada dos objetos de uso pessoal: redes

de dormir, panelas de cerâmica, arcos e flechas, animais de estimação, bem como tudo o

que fosse por eles fabricado e legitimamente adquirido” (Freitas, 1982, 51).

Diferente do modo econômico vigente na Europa e mesmo no restante das colônias,

a circulação da moeda não se efetivava nas missões. Visto que as necessidades eram

suprimidas por uma economia voltada para a subsistência e o bem estar de todos, não se

fazia necessária a troca de valores. Por ser exaltado o aspecto religioso, a humildade cristã e

o trabalho eram assinalados como virtudes fundamentais.

“A sociedade guarani, em plena fase de transição cultural e integrando-se, paulatinamente,

na sociedade espanhola, não foi obrigada pela força à atividade econômica. A sustentação

do esforço foi dada pela própria fé difundida pelos jesuítas, pela mística e pelo solidarismo

da religião cristã” (Kern, 1982, 80).

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O comunismo cristão dos missioneiros não estava fundamentado em razões

econômicas, mas sim no igualitarismo religioso. Segundo Clóvis Lugon, em sua obra A

República comunista cristã dos guaranis:

“O comunismo aplicado pelos jesuítas não era moderado. Um comunismo alicerçado em

razões essencialmente econômicas poderia ser mais facilmente moderado, na acepção

burguesa, por exemplo, admitindo substanciais desigualdades de renda. Na República

Guarani, as condições de vida correspondiam, em princípio, ao gênero de atividade, nada

mais. Do ponto de vista fraternal que dominava, uma mais-valia teria parecido um abuso, ao

passo que, com as concepções sobretudo econômicas, poder-se-ia pensar na possibilidade

de atribuir rendas privilegiadas, excedendo as possibilidades razoáveis de consumo, e

pretender-se-ia justificar tal forma de exploração pela necessidade de estimular a produção

ou acelerar a formação de uma elite vinculada ao regime” (Lugon, 1977, 342).

O modelo de sociedade descrito por Lugon parece estar de acordo com o projeto

cristão de fraternidade e solidariedade. Obedecendo a hierarquia dos caciques, as diferenças

de tratamento efetuavam-se por uma questão de respeito à autoridade, longe de representar

a formação de uma casta separada dos demais membros da sociedade, embora os

governantes e suas famílias mantivessem status diferenciado. “O Cabildo e seus

Corregedores gozavam de situação especial, na Missão, pois era aos magistrados e

funcionários índios que se destinavam lugares na Igreja e seus filhos tinham o privilégio de

ir à escola. Eram igualmente isentos de tributação. Recebiam rações duplas de carne, boas

vestimentas e outros suplementos” (Kern, 1982, 49).

Embora seguindo internamente um modelo de política econômica diverso da

organização da metrópole, o sistema das reduções mantinham-se alinhado à Espanha,

prestando-lhe contas sobre suas decisões. Por longo tempo as missões representaram os

interesses de Castela, mas com seu desenvolvimento tornara-se um aliado perigoso. Na sua

fundação cada índio apresentou-se a fim de livrar-se dos abusos que os espanhóis cometiam

naquelas terras, solicitando tornarem-se súditos do rei. “O tributo se pagava se o viso-rei o

pedia” (Lopes Neto, 1988, 184) e as prestações militares eram aos guaranis solicitadas com

freqüência, a fim de defender Assunção, Santa Fé e Buenos Aires e lutando contra os

portugueses da Colônia do Sacramento que, fundada em 1680, servia de entreposto para o

contrabando.

“Era impossível a instalação de estabelecimentos militares ao longo de toda fronteira do

Império Colonial Americano. Não havia meios humanos disponíveis, nem mesmo

pecuniários, pois o tesouro estava sendo sangrado pelas guerras européias. Nem mesmo as

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cidades espanholas do Prata, nesta época, tinham recursos para a sua defesa e o contingente

demográfico era muito restrito” (Kern, 1982, 157).

Assim torna-se claro o significado da afirmação de Simões Lopes Neto que “até

sangue se mandava na gente moça que ia...” (Lopes Neto, 1988, 184), pois somente com a

defesa a cargo dos índios reduzidos, as cidades sob o jugo espanhol estavam seguras. E

para responder a pergunta “Por que havia aquele mal, se o pecado não havia?” (Lopes Neto,

1988, 184), expressão que se refere ao horror da Guerra Guaranítica, devemos nos reportar

aos interesses que dominavam as potências coloniais da época, expressos pelo Tratado de

Madri. O pacto que acabara com as Missões, selado em 1750 entre Portugal e Espanha,

previa que esta cedesse os Sete Povos, o oeste de Santa Catarina e Paraná, o Mato Grosso e

o Amazonas em troca de territórios no Pacífico e a Colônia do Sacramento. Na ocasião os

portugueses lançavam vistas às reduções pela abundância de gado bovino na região. Seu

interesse era aguçado pela valorização do couro no mercado europeu.

“A transação correspondia a interesses bem nítidos das duas potências coloniais. Portugal

deixara de ter interesse na Colônia do Sacramento, dada a evidência de que só

proporcionava vantagens aos ingleses, que a usavam para fazer contrabando no Prata. Não

havia motivo, pois, para que aquela inútil posição comercial continuasse a constituir um

pomo de discórdia entre as duas potências. A troca desta posição pelo vasto território dos

Sete Povos era largamente compensadora e foi na verdade um dos lances mais hábeis da

diplomacia portuguesa no Prata.

Na ótica da coroa espanhola, as missões já não tinham a mesma importância do começo do

século XVII. Primeiro: o desenvolvimento da tecnologia militar anulava sua utilidade para

este fim, a menos que os missioneiros fossem bem armados, coisa que a Coroa, sempre

temerosa de uma rebelião, não estava disposta a fazer. Segundo: o crescimento econômico e

demográfico da colônia platina já permitia dispensar o concurso dos missioneiros. Terceiro:

era motivo crescente de apreensão para a Coroa a crescente autonomia dos missioneiros,

traduzida na recusa de pagar o dízimo e a prestação de serviços militares estranhos aos

interesses dos índios. Quarto: a prosseguir o desenvolvimento missioneiro, surgiria um

Estado independente, não sendo casual que por este tempo começasse a circular na Europa e

em particular na Espanha, rumores de que os jesuítas tencionavam criar um Reino ou

Império” (Freitas, 1982, 68).

Expulsos da terra de seus ancestrais, era natural que os guaranis resistissem, e o

fizeram. O derramamento de sangue era certo, por este motivo os jesuítas tentaram

inutilmente persuadi-los a abandonar suas casas. Ao deixarem as reduções, estava prevista

sua locação em outras regiões da colônia espanhola. Era intento dos portugueses

estabelecer casais açorianos na região. Com a resistência guaranítica, as coroas ibéricas se

aliaram para empreender sua expulsão.

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A insurreição começou em São Nicolau do Piratini, se alastrando pelas demais

reduções. Os rebeldes alegavam que “não era necessário mais que a doutrina cristã para

saber que o que tratavam os reis em sua linha divisória era injusto” (Freitas, 1982, 70). Em

palavras indignadas questionava-se a população guaranítica, que sempre esteve a serviço da

Coroa Espanhola prestando-lhe serviços militares e pagando-lhe o devido tributo: Por que

seu rei rejeitaria seus vassalos, fazendo-os morrer e passar por miséria em outras terras?

“Eram armas de Castela

Que vinham do mar de além;

De Portugal também vinham,

Dizendo por nosso bem:

Mas quem faz gemer a terra...

Em nome da paz não vem!” (Lopes Neto, 1988, 184).

O episódio da guerra nas missões é narrado no texto simoniano com um

posicionamento marcadamente favorável aos vencidos. Interrogando que motivos aquela

sociedade teria dado ao seu rei para que então se tornasse inimiga, encontra-se o elogio de

um povo que obedecia as decisões políticas da Coroa e se consagrava ao culto do Deus que

se lhes apresentaram. Agora a terra geme tão somente pela ganância de seus soberanos, que

agiam conforme o preceito de Maquiavel de que os fins justificam os meios, pois

contrariavam o que uma autêntica moral cristã haveria de exigir, em virtude de um pacto

que visava beneficiar mais uma vez somente seus cofres.

Em abril de 1753 os jesuítas finalmente entregaram as terras e a autoridade que lhes

foi investida sobre os índios ao clero oficial e aos governantes espanhóis, mediante

escritura pública, o que foi considerada uma traição pelos guaranis. Em seguida, a

Companhia de Jesus foi expulsa do território, bem como das demais colônias espanholas e

portuguesas.

Muitos confrontos marcaram o decurso da guerra pela posse das Missões. De São

Miguel surge Sepé Tiarajú, guerreiro guarani que comandou tropas para defender o leste,

de onde marchava o exército lusitano. Sua atuação provocou o atraso da incorporação do

território a Portugal. Obrigados a abandonarem suas expedições, os exércitos dos países

ibéricos, que inicialmente planejaram atacar por duas frentes de batalha, unem forças

formando um único grupo de combate. Sua chegada à redução de São Miguel vitima o

chefe indígena em 7 de fevereiro de 1756. Três dias após sua morte, com o resultado da

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batalha de Caiboaté, é definida a guerra, favorecendo Portugal e Espanha, o que deu início

à marcação dos territórios.

Lançaram-se cavaleiros

E infantes, com partazanas,

Contra os Tapes defensores

Do seu pomar e cabanas;

A mortandade batia,

Como ceifa de espanadas...

Couraças duras, de ferro,

Davam abrigo à vida

Dos muitos, que, assim fiados,

Cercavam um só na lida!...

Um só que de flecha e arco,

Entra na luta perdida... (Lopes Neto, 1988, 185).

As cenas de batalha, reconstituídas pela literatura, apresentam a agressão que

rapidamente exterminou a resistência devido ao desequilíbrio bélico entre índios e brancos.

O Lunar de Sepé, narrado sob a óptica guaranítica, denuncia a falta de justificativas

aceitáveis às conseqüências da assinatura do Tratado de Madri, expresso nos seguintes

versos:

Dócil gente, não receia,

As iras de Portugal:

Porque nunca houve lembrança

De haver-lhe feito algum mal:

Nunca manchara seu teto...;

Nunca comera seu sal!...

E de Castela, tampouco

Esperava tal furor;

Pois sendo seu soberano,

Respeitara seu senhor;

Já lhe dera ouro e sangue,

E primazia e honor!... (Lopes Neto, 1988, 185).

A terra fora tomada e vendidas às estâncias a particulares. Houve saques às igrejas,

restando pouco da iconografia jesuítica que as adornavam. A população entrou em

decadência, sendo condenada à fome e doenças oriundas do contato com os novos

habitantes que chegavam. Passou a ser cada vez mais comum a embriagues e a prostituição

entre os índios. Estariam eles interessados nas liberdades de seu novo sistema? No que se

agarrar mediante o destino que lhes fora designado?

Sepé Tiarajú tornou-se símbolo de resistência e foi considerado santo, ao menos no

imaginário popular.

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Eram armas de Castela

Que vinham do mar de além;

De Portugal também vinham:

Dizendo, por nosso bem...

Sepé-Tiaraiú ficou santo

Amém! Amém! Amém!... (Lopes Neto, 1988, 187).

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8 - A TEINIAGUÁ NA SALAMANCA DO JARAU 8

Na lenda Salmanca do Jarau, Simões Lopes Neto coloca em Teiniaguá o símbolo

indígena, por excelência, que faz a síntese das religiões, culturas e etnias.

O discurso de Blau introduz a origem da lenda na cidade de Salamanca na Espanha

e nomeia duas etnias: “os tais mouros e mais outros espanhóis”.

a) A guerra de religiões ou de duas culturas - oriente X ocidente: Há uma luta, na

Espanha, entre o catolicismo e o islamismo. Estes últimos são vencidos pelos católicos, daí

serem obrigados a “ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita”. Os mouros, “fingidos de

cristãos, passaram o mar e vieram dar nessas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro,

prata, pedras finas” (S, 143,2).

b) A gente pampeana, Anhangá-pitã e Tupã. Como era essa “gente nativa”? “Era

gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã

despejava sem conta, para todos, das suas mãos sempre abertas e fazedoras” (S, 143,19-22).

A gente pampeana da campanha e da serra é sem cobiça, ao inverso, dos europeus que

cobiçam riquezas.

Aparecem duas entidades metafísicas: Anhangá-pitã, “do tupi-guarani: diabo

Vermelho” (S, nota 5, 165) e Tupã: para os tupis é o trovão, que os missionários jesuítas

designaram de Deus. O primeiro é identificado com o diabo, enquanto o segundo é o

doador generoso de bens.

c) A metamorfose da fada moura: Teiniaguá surge do sopro de Anhangá-pitã que

através do condão mágico lhe tira a cabeça e implanta em seu lugar uma pedra transparente,

“vermelha como brasa”. Então, Anhangá-pitã carrega teinianguá “sobre a correnteza do

Uruguai, até as suas nascentes”. Porém, ele “só não tomou tenência que a Teiniaguá era

mulher”, porque se trata de um personagem híbrido que assume muitas figurações no

desenrolar da lenda. Daí, a dificuldade de reconhecer uma única identidade, pois ela carrega

em si o ser híbrido mulher-lagartixa; a pluralidade étnica: moura e índia; a diferença etária

velha e jovem. Ela compreende o máximo de contradições e a capacidade de

8 Remetemos ao estudo amplo desta lenda em: BAVARESCO, Agemir. Aprender a ser gaúcho. A Salamanca

do Jarau de J. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS Editor, 2003. Esta parte segue de perto o referido texto.

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metamorfosear-se, permanentemente, por isso Anhangá-pitã não foi capaz de reconhecer

sua identidade.

Neste segundo capítulo, apresentam-se algumas etnias fundadoras da identidade do

gaúcho: os europeus e os índios. Além destes, somam-se, sabemos pela história, os

portugueses, negros e outros. O gaúcho é o resultado da miscigenação étnica. Aprende-se

que a identidade do gaúcho não se forma pela exclusão. A “gente pampeana” forma-se pela

inclusão de um conjunto étnico.

A Teiniaguá é como o santão, uma personagem que passa por muitas metamorfoses.

O que a diferencia, porém, do santão é que ela é uma personagem híbrida, porque é, ao

mesmo tempo, animal e mulher. Ela conhece todas “as riquezas”, “sabe dos tesouros”, e

mantém a memória das origens:

“As riquezas da Teiniaguá espalhadas aos quatro ventos são a própria história que se repetirá, pela

força da palavra, de boca em boca, para que a memória não deixe morrer esse rastro das origens

sagradas do gaúcho. O vento, espécie de intermediário do céu e da terra, é como a palavra poética,

que tenta refazer a unidade, perdida com a fragmentação dos mitos no correr da história” (Chiappini,

1988,212).

Convivem nela o máximo de contradições: Ela é a síntese de etnias, pois é moura e

índia, ou seja, reúne em si o oriental, o europeu e o povo autóctone. Ela é também, a jovem

e a velha, isto é, a “princesa moura” (cap. IV) e a “velha carquincha” (cap. X). Ela é uma

“fada velha” (cap. II), algo mitológico e uma mulher, (cap II: “Só não tomou tenência que

teiniaguá era mulher”).

Uma outra contradição central em Teiniaguá é ser “bicho imundo” e causa do

pecado, e ao mesmo tempo, aquela que liberta o sacristão e, de certa forma é a salvadora do

mesmo (cap. V). Ela é a causa da condenação (“por ter tido amores com mulher moura,

falsa, sedutora e feiticeira”- cap. V) e de salvação do sacristão (“Mas um milagre se fez,

fiquei sozinho, abandonado, mas também ouvindo o chamado carinhoso da teiniaguá” -

cap. V). Há como que uma aproximação ambígua entre a Teiniaguá/Eva (causa do pecado)

e Teiniaguá/Maria (causa da salvação: “os olhos do meu rosto viam a consolação da graça

de Maria Puríssima que se alonjava... mas os olhos do pensamento viam a tentação do riso

mimoso da teiniaguá”- S, 151,30).

A oposição entre o mal e o bem é enunciado no cap. II, quando aparece Anhangá-

pitã, que é a figuração indígena do diabo da cristandade européia. Frente a ele está Tupã

que é o bondoso. O mal faz parte da condição humana, porém, ele toma feições sócio-

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culturais que, no caso da comunidade indígena, é amenizado ou superado através das

estruturas coletivas: “Anhangá-pitã folgou muito; folgou, porque a gente nativa daquelas

campanhas e a destas serras era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe,

a fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta” (S, 143,20). Ora, a Teiniaguá, passa a ser

identificada como a única causadora do pecado/mal.

Teiniaguá parece combinar em si ao mesmo tempo o bem (o divino) e o mal (o

diabólico), pois é “parente do diabo, [...] dos Zaoris: aqueles que, segundo alguns por pacto

divino e, segundo outros, por pacto diabólico, enxergam “através dos corpos opacos”,

capazes de “descobrir o que está oculto, embora seja debaixo de sete palmos de terra”

(Chiappini, 1988, 188). Ela não só é parente do diabo, mas é “filha de Anhangá-Pitã”(id. p.

188). Essa ambigüidade de forças divino-diabólicas que Teiniaguá encarna prolonga-se do

começo ao fim da lenda. Logo no capítulo II, Blau fazendo memória do que a sua avó lhe

contara afirma que Anhangá-pitã, “cansado, pegou no cochilo pesado [...], só não tomou

tenência que a teiniguá era mulher” (S, 144,10). Ora, enquanto o diabo dorme Teiniaguá

age de tal forma que não é reconhecida como uma mulher. Ela não revela a sua verdadeira

identidade, mas permanece um ser híbrido. A cristandade colonial não a reconhece;

enquanto isso Teiniaguá vai passando por uma evolução identitária até que ao final é

reconhecida como uma nova mulher: a “tapuia formosa”. Essa contradição permeia “o

conto todo, implícita, tornando a explicitar-se no final, como uma espécie de chave ou

moral da história: a teiniaguá era mulher” (Chiappini, 1988,193). No capítulo X, Teiniaguá

é reconhecida por Blau Nunes, enquanto personagem coletivo representante do gaúcho. Ela

não foi reconhecida por Anhangá-pitã, daí porque ele ficou desgostoso e se escondeu, pois

não foi capaz de tomar consciência que ela era uma mulher. O projeto da cristandade

colonial a identificou sempre como algo estranho e causador do mal. Há uma incapacidade

de reconhecer a identidade da mulher. De um lado, ela não seria identificada com o pecado

enquanto índia, e de outro, pode ser entendido, que enquanto moura e mulher jovem é

enquadrada dentro da cristandade colonial como a origem do pecado. Nela está a

culpa/castigo e também o prazer. Para a moral institucional há o dilema entre o que

prescreve a religião oficial e as práticas não prescritas entre os nativos.

O drama do sacristão e da teiniagúá parece estar se encaminhado para uma tragédia

pampeana, pois o sacristão é condenado à morte. No entanto, a Teiniaguá aparece como

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promessa de reconciliação: do sangue de nós ambos nascerá uma nova gente (cf. S,148,20).

E de fato, no cap. X, acontece a realização desta utopia, os dois formam um par novo. No

capítulo final acontece uma última metamorfose em três momentos: “a velha carquincha

transformou-se na teiniaguá”, “a teiniaguá na princesa moura” e a “moura numa tapuia

formosa”. O que temos, aqui, é uma síntese de opostos superados no diálogo intercultural

de diferentes experiências históricas: a velha carquincha e a jovem moura; de etnias

autóctones e estrangeiras: a moura e a índia; de éticas tradicionais e locais: a ética cristã, a

islã e a indígena. O resultado desta interculturalidade é a “tapuia formosa”.

Teiniaguá (termo de origem indígena: teiú/lagarto + aguaíca/manceba) é um

personagem que faz parte da cultura popular nas regiões das Missões e da Campanha do

RS. A tese de Cícero Galeno Lopes é que Teiniaguá é um personagem híbrido 9. A

interpretação lenda-conto de Flávio L. Chaves já mostra a relação híbrido-dialógica entre o

texto ou as tradições originais e o texto do autor. A interpretação corrente é que a Teiniaguá

está marcada pelo mal, porém, Cícero G. Lopes entende a partir da hibridação que é

necessário compreender este personagem, enquanto contraditório. O próprio nome

Teiniaguá é híbrido, porque é resultado da composição de um réptil e uma moça.

O par Teiniaguá e santão aparece no texto com as iniciais minúsculas denotando a

função ou categorias. No caso do santão parece apontar uma certa transgressão. O nome

identificaria o seu batismo cristão, no entanto, o suposto nome nunca é mencionado. O

nome teria sido importante, porque ele exercia a função de sacristão. Porém, a ausência do

nome poderia significar a perda de sua identidade cristã-católica expressa na linha da

doutrina da cristandade colonial. Ele desempenhara a função de sacristão, perdendo essa

atividade depois que fora flagrado mantendo relações amorosas com Teiniaguá. A condição

posterior após sua expulsão da comunidade de Santo Tomé acontece junto ao cerro do

Jarau. Aqui, ele é denominado de santão. Este encontrara o amor junto à Teiniaguá-mulher.

Ora, isto é uma contradição, porque se une com ela fora do casamento, o que constitui para

a Igreja católica um ato ilícito, portanto, pecaminoso. Além disso une-se a uma “princesa

moura”, de outra religião. A contradição está no conflito entre “a cruz bendita” dos

9 . García Canclini estudando as culturas híbridas afirma que a hibridação é uma noção fundamental para

compreender a história latino-americana. A tese da hibridação defende que a modenidade européia não

eliminou as tradições autóctones, mas “deu lugar a formas sincréticas onde as matrizes indígenas, espanholas

e portuguesas foram reelaboradas para constituir uma mistura” (Bernd e Lopes, 1999, p. 22).

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católicos e o “crescente dos infiéis” muçulmanos. Há um processo de assimilação-

hibridação em que se misturam tradições religiosas e valores diferentes (cf. Galeno Lopes,

1999).

Teiniaguá é mulher-lagartixa graças a um pacto com Anhagá-pitã. Ora, este pacto

tem um caráter híbrido, porque ela recebe de um lado, o carbúnculo deste último que lhe dá

luz, ou seja, símbolo do pensamento e do poder além do animal. De outro lado, ela herda,

ao mesmo tempo, do pacto com o demônio o estigma do mal. Esta caracterização do mal,

presente em Teiniaguá, é devida à versão religiosa que constrói as forças opostas no mundo

como sendo a luta entre o bem e o mal. Esta luta de opostos acontece historicamente, no

caso, Teiniaguá, em conseqüência de sua origem árabe, oposta aos espanhóis, é identificada

como a que encarna o mal.

Prosseguindo na análise do processo de hibridação religiosa em santão, e a

hibridação antropomórfica de Teiniaguá, pode-se constatar ainda no texto, outros indícios

relacionados à teoria do personagem híbrido. A miscegenação entre árabes e cristãos

ocorrida na península ibérica e seus desdobramentos religiosos; a prática da magia atribuída

aos árabes opõe-se e relaciona-se com o culto religioso; Teiniaguá é identificada com uma

bruxa, por isso é perseguida pelos tribuinais da Inquisição espanhola; Teiniaguá toma

diversas figurações e, ao mesmo tempo, carrega em si diversas contradições que constituem

um personagem com multidentidades: ela é moura e convive com cristãos; é mulher é

réptil, ou seja, humana e não-humana; gera felicidade e causa infelicidade, provoca prazer

ao santão e leva-o ao pecado/castigo; é muçulmana e jovem e vem para a América no

ventre de uma fada velha, num navio cheio de cristãos e padres; ela é a causa da

condenação do sacristão (por luxúria, apostasia e sacrilégio) e da salvação pois ela faz

romper a terra, assusta os verdugos e liberta-o de suas amarras.

Percebe-se que a Teiniaguá encarna em si o máximo de contradição, sobretudo na

oposição entre o símbolo do mal (mulher/bicho imundo) e, ao mesmo tempo, o símbolo do

amor e da felicidade (“saudade do seu cativo e soberano amor”, S, 149, 37; “de teiniaguá,

que me enfeitiçou de amor” S, 152, 6). Uma leitura unidimensional atribui a ela somente o

mal, própria da herança da cultura ocidental dualista que separa bem/mal. No entanto,

segundo a tese do personagem híbrido, Teiniaguá apresenta-se como a síntese da oposição

pois ela nasce da voz múltipla do povo, do embate de muitas consciências entre negativo-

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positivo. “Esses sinais apareceriam ao longo da literatura gaúcha, como marca da

necessidade do amor e, simultaneamente, como marca do aprisionamento masculino

exercido pela mulher (humana e não-humana)” (Galeno Lopes, 1999, 35).

Segundo Cícero G. Lopes “a hibridez é já marca da transgressão. A transgressão só

é possível na desobediência e na paixão, i. e, na ação, na mobilidade, na modificação

(porque a pureza perece de imobilidade). Essas marcas, como se pode perceber, estão nas

ações do casal Teiniaguá-Santão, especialmente nela, porque por dupla natureza, designada

na nominação” (id., p. 35). Teiniaguá desestabiliza o sacristão, pois o leva a sair do estado

de vida em que estava submisso na redução de São Tomé. Ora, a ação dela pode ser

compreendida como o símbolo de superação da dependência colonial. “Talvez esse tenha

sido o maior pecado encontrado nas ações da Teiniaguá, que só pode ser concebido sob a

visão colonialista” (id., p. 35). Há rebeldia nas palavras e ações do casal que se voltam

contra o sistema de cristandade colonial e anunciam a formação de um novo mundo, assim

expresso por Teiniaguá:

“Serás o meu par.... si a cruz do teu rosário me não esconjurar... Si não, serás ligado ao meu flanco,

para, quando quebrado o encantamento, do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e

sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu lhe carrearás

por via dessas” (S, 148, 17-21).

Na Salamanca do Jarau, pode-se encontrar referências cronológicas tais como: São

Tomé foi fundada pelos padres jesuítas em 1632. Aqui, o sacristão ajuda no serviço

litúrgico. Após ter sido condenado pelo pecado cometido com Teiniaguá, consegue fugir

com ela para o cerro do Jarau. Neste local, encontra-se com Blau que descreve, então, as

suas andanças.

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CONCLUSÃO

- O significado das Lendas do sul na obra de Simões

- A natureza híbrida do texto

- A preservação do folclore como referência identitária

- O ensinamento filosófico-moral

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(texto de L. Borges – primeira redação – conferir)

6.1- Mito e literatura

Costuma-se chamar "mito" a um relato fabuloso, que abriga a noção de narrativa

tradicional, geralmente, de conteúdo religioso ou a ele relacionado. Os mitos, com

freqüência, referem-se a grandes feitos heróicos, que são considerados o fundamento ou o

começo de uma comunidade ou mesmo de todo o gênero humano. É comum apresentarem

também como motivo os fenômenos da natureza, explicando-os de maneira alegórica, como

é o caso das ninhadas do tatu-mulita.

A narração mitológica envolve, basicamente, pretensos acontecimentos relativos a

épocas primordiais, antes do surgimento dos homens, como o caso dos mitos de origem

(cosmogônicos), ou dos "primeiros" homens, como o de Adão e Eva. Uma das

características do mito é que o acontecimento fabuloso narrado aconteceu em um tempo

passado impreciso ou muito remoto, como os tempos bíblicos.

O mito aparece e funciona como mediação entre o sagrado e o profano, condição

necessária à ordem do mundo e às relações entre os seres e os fenômenos naturais. Sendo o

homem um ser de profunda relação com o sagrado, logo pensadores e estudiosos

manifestaram interesse por exame mais acurado dos mitos. Dois autores deram especial

atenção ao problema do mito: Vico e Schelling.

Giovani Battista Vico (1668-1744) em sua obra Principi di una scienza nuova

intorno alla comuna natura delle nazioni (1744), geralmente citada apenas como Scienza

nuova, fala em "conhecimento fantástico" ou "formas fantásticas de conhecimento", que

são, respectivamente, a língua e a poesia. Pretende, a fim de construir sua teoria

epistemológica, deduzir da etimologia das palavras um saber sobre a história primitiva em

que as línguas se formaram. Para ele, a poesia teria sido a primeira forma de comunicação

da humanidade, uma vez que os povos antigos eram essencialmente poéticos. Daí provém

seu interesse pelos mitos. Vico rejeita a idéia, dominante nos séculos XVII e XVIII, de que

as narrativas mitológicas seriam alegorias filosóficas, reconhecendo, entretanto, que nelas

há resquícios de verdades históricas (Cf. Abrão, 1999, 264-266).

Friedrich Schelling (1775-1854) durante toda a sua vida se interessou por temas

relativos à metafísica, teologia, religião e mitologia. Teve seus cursos sobre Filosofia da

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Revelação e Filosofia da Mitologia, proferidos em Berlim, publicados postumamente por

seu filho. Nesses cursos e noutras obras expôs uma preocupação teístico-metafísica, em que

busca integrar espírito e natureza. Seu sistema filosófico se constitui numa mediação entre

o idealismo subjetivo de Kant e Fichte e o idealismo objetivo de Hegel. O sistema de

identidade do "Eu" e o "Não-eu", proposto por Schelling, se apresenta de modo que o

Absoluto seja a um só tempo sujeito e objeto. Em seu pensamento há um vivo senso de

arte. Sua concepção do Absoluto é a unidade entre espírito e natureza, que se revela na

história, na arte, na religião e na mitologia. Em relação a este último ponto, Schelling

estimou que os mitos são uma forma de pensamento que representa um dos modos como se

revela o Absoluto através do processo histórico (Cf. Abrão, 1999, 343-346).

A análise científica dos mitos começou com o antropólogo Friedrich Max Müller.

Sua explicação a respeito dos mitos era que eles representavam a descrição poética de fatos

da natureza. Mais tarde, James Frazer, em sua obra monumental, em 12 volumes, The

Golden bough (1890-1915), considerou os mitos explicações narrativas de ritos, cujo

sentido já não fora compreendido pelos que o celebraram.

Na antropologia moderna, entretanto, a essas hermenêuticas prevaleceram as teorias

estruturalistas de Levi-Strauss, que identificam nos relatos mitológicos o reflexo de

determinadas estruturas sociais, e a psicanálise de Freud, que entende os mitos como

racionalizações da mente primitiva em face dos conflitos do indivíduo e deste com a família

e a sociedade.

Será com a Renascença que a mitologia, sobretudo grega, começa a ser importante

para a literatura propriamente dita, fornecendo motivos, personagens e enredos. Será,

todavia, com o advento da Ilustração que as narrativas mitológicas servirão a diferentes fins

no uso do texto literário. Os mitos se constituíram então num vasto sistema de referências

que é familiar a todos os homens cultos daquele período. As metáforas míticas oferecem

um sentido imediatamente reconhecível para os leitores e que, portanto, se torna um recurso

amplamente utilizado pelos escritores dos séculos XVI a XVIII.

Foi, conforme já nos referimos, durante o Iluminismo que mito e literatura se

imbricaram definitivamente para diferentes finalidades. Voltaire, por exemplo, escreveu seu

Édipo (1718) para denunciar o poder do clero na França. Goethe retomando um anônimo

do século XVI, escreve Fausto (1808), uma metáfora de recriação prometéica.

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Lançando um breve olhar sobre importantes escritores do século XX, observa-se a

permanência e a estilização literária das narrativas míticas. O mito de Electra (1903) pode

ser identificado na obra de Hugo von Hoffmannsthal, o de Orestes em As moscas (1943), de

Sartre; o de Medéia em alguns argumentos das peças de Robinson Jeffers; e Antígona, obra

de Sófocles, em sua força de crítica política, encontra um sentido redivivo no teatro de Jean

Cocteau e Brecht.

6.2 - Fábula, mito, lenda, superstição e estilização literária

A fábula como forma literária específica é uma narração breve, em prosa ou verso,

cujos personagens são, geralmente, animais e, sob uma ação alegórica, encerra uma

instrução, um princípio geral ético, político ou literário, que se depreende naturalmente do

caso narrado. A fábula comporta assim duas partes, a que La Fontaine chamou corpo e

alma: a narrativa e a moralidade. Aquela trabalha as imagens, que constituem a forma

sensível, o corpo dinâmico e figurativo da ação. Esta opera com conceitos, que são "a

verdade falando aos homens". Deve-se salientar, porém, que para o leitor moderno a

literariedade possui precedência sobre o ensinamento moral. Enfatize-se que, para o gosto

moderno, a narrativa deve ser o elemento dominante. A moralidade ou significação

alegórica anima o corpo narrativo, mas de maneira velada, ficando nas entrelinhas. Os

antigos tinham um ponto de vista diferente. Para eles, a parte filosófica era o drama, a

vivacidade das imagens para chegar mais diretamente ao alvo moral. Tanto cifrada na

invenção do papel desses dois elementos, quanto mais se avança na história da fábula, mais

se vê decrescer o tom didático em proveito do entrecho.

A fábula acabou por tornar-se um gênero popular no século XVIII, La Fontaine teve

muitos seguidores: Jean Pierre de Florian (França); Tomás Iriarte (Espanha); George

Bertolá (Itália); Bocage (Portugal), que traduziu La Fontaine em versos; John Gay

(Inglaterra). Estes autores elevam a fábula, originalmente um gênero popular, baseado em

fontes folclóricas, a uma literatura sofisticada, geralmente, de cunho filosófico-moral ou de

crítica política.

Na Alemanha, Lessing reagiu contra a hiperliteralização da fábula, apresentando em

Fabeln (1759) uma introdução em que expõe essa excessiva literalização como perversão

do gênero e uma traição de suas raízes. Apesar disso, foi Christian Gellert, contemporâneo

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de Lessing, o fabulista mais popular entre os germânicos, com suas histórias engraçadas,

conforme os prejuízos da época, motejando mulheres, pobres e burgueses. Contudo, o

melhor escritor de fábulas do século XIX foi o russo Ivan Krilov. Este escritor russo foi

também jornalista satírico e dramaturgo. Após traduzir La Fontaine, em 1805, escrevendo

sob sua influência Basni (1809). Sua prosa realista é viva e saborosa, recheada de

provérbios populares, o que fornece a seu texto uma grande força epigramática. Retirando a

fábula dos salões luxuosos, devolveu-a ao povo, no vigor telúrico do pitoresco do campônio

russo. Todas essas qualidades lhe possibilitam êxito imediato.

Tendo, pois, a fábula uma tradição que atravessou os tempos, vinda do Oriente e da

Antigüidade Clássica, chegou até a Europa moderna e contemporânea. Também a língua

portuguesa e inclusive o Brasil sofreram sua influência, embora neste último caso, esta só

se fez sentir tardiamente.

Indo buscar as esporádicas contribuições em língua portuguesa dos fabulistas,

encontramos no século XVI, Sá de Miranda, que compôs O rato do campo e o rato da

cidade e O cavalo e o cervo. Em Portugal, depois de Bocage, o poeta Almeida Garret

publicou Fábulas e contos (1853). Em terras lusas, todavia, o melhor fabulista é Cabral do

Nascimento, também poeta, cuja obra Fábulas apareceu somente uma centúria após.

No Brasil, destarte a longa vigência do cânone lingüístico e temático dos clássicos

portugueses e a posterior influência francesa no romantismo, já em 1860, a fábula fez-se

gênero de destaque com as Fábulas , de Luiz de Vasconcelos, obra que introduziu a fauna e

a flora no contexto da estrutura narrativa da fábula, buscando nacionalizá-la.

No campo do estudo, registro e adaptação de fábulas, lendas e superstições

brasileiras, estilizadas literariamente, ninguém superou os esforços de Monteiro Lobato,

ainda que tenha tido predecessores e pósteros ilustres, tais como J. Simões Lopes Neto,

com suas Lendas do sul (1913), e Catulo da Paixão Cearense, com Fábulas e alegorias

(1945).

Lígia Chiappini afirma que a tradição oral, fonte dos mitos, lendas, fábulas e

superstições, se transformou em conto culto em J. Simões Lopes Neto (Chiapinni, 1988,

150). Para ela: “Lendas do sul é um livro que reúne narrativas diversas e o material

folclórico que o sustenta não pode ser, em bloco, chamado de lendas, pelo contrário, estas

se mesclam com mitos e supertições, no mínimo” (Id. ibid.).

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A pesquisadora ao tentar definir o tipo de material com que J. Simões Lopes Neto

trabalha nas Lendas do sul, se depara com distinções pouco claras entre a fábula, o mito, a

lenda e a superstição. Chiappini não está interessada nessas classificações em si mesmas,

senão naquilo em que elas podem auxiliar na compreensão de sua poética (Id., 151). Ainda

para a pesquisadora, lenda é uma história vinculada a hagiografia, aplicando-se a

classificação de lenda a uma história fabulosa dotada de fundo religioso.

Seguindo Afonso Arinos, em suas Lendas e tradições brasileiras (1917), Chiappini

entende que para distinguir lenda e mito, se deve fixar no caráter religioso da primeira,

enquanto, embora o segundo também transite por aí, se prenda mais à narrativa sobre

deuses e heróis epopéicos. Outro aspecto importante, é que ela considera mito aquelas

histórias que indagam pelas origens dos fenômenos naturais (Id., 153).

A autora de No entretanto dos tempos (1988) referindo-se ao folclorista Câmara

Cascudo, em Literatura oral no Brasil, endossa sua própria constatação quanto à confusão

terminológica. A fim de propiciar uma solução operativa a essa questão, recorre à

autoridade de Mircea Eliade:

[...] o mito é uma história sagrada que conta as origens remotas de um povo. Uma história

do illo tempore, sempre repetida, retoma pelo rito, enquanto a crença subsista. A mesma

história se transforma em ficção, "história falsa", quando morre a crença que sustentava a

sua verdade. O mito passa a sobreviver, então, pela literatura, como os mitos gregos,

imortalizados por Homero, numa época em que começavam a morrer enquanto histórias

sagradas (Id., 153).

Chiappini continua sua exposição afirmando a distinção entre os vários tipos de

narrativas que se alimentam em sua fonte das raízes da tradição folclórica (narrativas

míticas, lendárias ou fabulísticas) e a superstição, conforme Câmara Cascudo:

O que Câmara Cascudo considera mito (por exemplo, os "demônios infernais", espalhados

pela selva brasileira, "deuses da floresta tropical", que o missionário classificou como forças

demoníacas, tais como o Curupira, o Mboitatá, o Igupiara de que fala Anchieta, já em

1560), um autor como Ambrozetti, em Supersticiones y Leyendas del Rio de la Plata, dá

como supertição (Id.,154).

E adiante:

Assim, mito, lenda e superstição se aparentam, mas se distinguem. Mas essas distinções, no

fundo, se complicam em traços comuns e recorrentes. Se insisto em aproveitar o conceito de

superstição para introduzir traços distintivos entre fenômenos que Câmara Cascudo chama

genericamente de mitos, no folclore brasileiro, é porque em Simões Lopes, essa distinção

vai ser útil [...] (Id., 154-155).

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De fato, também julgamos de muita utilidade essas distinções e classificações, pois

através delas podemos averiguar a natureza do texto, suas fontes e o estilo do registro

lingüístico usado por J. Simões Lopes Neto.

6.3 - Sinopse de "Mãe mulita"

Desde a epígrafe, retirada do Cancioneiro guasca (1910), a história se constrói na

tentativa de explicar o nascimento das ninhadas do tatu-mulita, isto é, porque, a cada vez,

nascem somente machos ou somente fêmeas e nunca ninhadas mistas. Isto nos é dito na

reveladora expressão do narrador: “este bicho foi mandado ficar assim [...]”.

Tendo Maria e José fugido para o Egito, a fim de escaparem da crueldade de

Herodes, a certa altura do caminho foram alcançados pela tropa do rei, que pretendia matar

o Menino Jesus e aprisionar seus santos pais. A Virgem, entretanto, entre rogos e choro,

consegue demover o centurião de mau intento e deu-lhe como paga um burro petiço.

Vendo-se sem o animal, Maria e José prosseguiram a viagem, a custo, empurrando o

carrinho onde ia dormindo, muito sossegado, o Menino Jesus.

A tropa do rei ia voltar, porém, o burro empacou. Depois de ser sovado pelo

centurião e de apanhar de todos os soldados continuou imóvel. Sentindo-se enganado o

centurião, furioso, resolveu voltar e persistir na empreitada malévola. A Virgem e São José

não viam o que estava acontecendo, mas ouviam os cascos dos cavalos e as blasfêmias,

assim, apuravam forças, empurrando o carrinho.

Então, o Menino Jesus acordou e teve fome, mas devido ao cansaço e a aflição, o

seio de Maria não teve leite. Ela chorava de pesar e o Menino, de fome. Nisto, por ali

passava uma mulita e Nossa Senhora lhe disse:

- Mulita, se tens filhos, dá-me uma gota do teu leite para o meu filho!...

A mulita deu a gota de leite, mas era pouco e o Menino continuou a chorar. Chorou

de pesar também a Virgem, e disse:

- Mulita, chama as tuas filhas, para cada uma dar uma gota de leite para o meu

filho!...

A ninhada era grande, mas as filhas da mulita, porém, eram poucas. Todavia, cada

uma deu gotas de leite para alimentar o Menino, que calou-se farto.

Vendo que o centurião e sua tropa se aproximavam, Maria, muito aflita, rogou:

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- Mulita, dá-me tua força, para puxar o carro do meu filho!... E a mulita puxou, mas

era tão pouca sua força, que de nada adiantou. E os soldados cada vez mais perto...

Nossa Senhora chorou de medo e tornou a dizer:

- Mulita, chama os teus filhos, para darem a sua força e correrem, puxando o carro

do meu filho!...

- Senhora Virgem, respondeu a mulita, a minha ninhada é grande, porém nela os

filhos são poucos...

Mesmo assim o carrinho puxado pelos filhos da mulita ia andando depressa.

Porquanto sejam os cavalos maiores que as mulitas, estes iam vencendo terreno e se

aproximando. Nesse momento, levantou-se tremendo temporal de areia, que obrigou a tropa

perseguidora a dispersar-se e desisitir. Quando já estava salvo o Menino, Nossa Senhora

tornou a dizer:

- Mulita, em memória das gotas de leite das tuas filhas, em memória da força dos

teus filhos, deste dia em diante, de cada vez que deres ninhadas, será sempre ou só de

fêmeas ou só de machos!...

Nisso, de bom grado, concordou a mulita. Solicitando que a sua comadre, a tatua,

tivesse também ninhadas como as suas, com o que a Virgem prontamente anuiu.

6.4 - Estrutura de Mãe mulita e breve hermenêutica

A Mãe mulita é um texto de natureza híbrida. Conforme vimos, as classificações

que se referem a mito, fábula e superstições são bastante imprecisas e, de modo geral, são

aplicadas indiscriminadamente. Mãe mulita possui algo do mito se pensarmos que é uma

explicação alegórica dos fenômenos naturais. Não deixa de ser fábula pela presença de

animais antropomorfizados e também é superstição se a esse termo concebermos o sentido

de crendice popular. Deste modo, verificamos que nesse caso de Mãe mulita

especificamente, o autor quis guardar o mais intocado possível o registro do argumento

contra sua estilização literária, o que nos é revelado pela seguinte declaração: “O

argumento destas duas lendas [Angüera e Mãe Mulita] está desenvolvido baseado na

tradição longínqua e é de notar a acomodação bizarra dos elementos do seu entrecho.”

(Lopes Neto, 1988, 182).

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A estrutura do texto, dado o arranjo ingênuo dos elementos do entrecho, é bem

simples: 1°) Intróito; 2º) Desenvolvimento; 3º) Clímax; 4º) Desenlace.

1º) No intróito dá-se-nos o motivo da história, isto é, explicar as ninhadas do tatu-

mulita;

2º) O desenvolvimento, ou trama, é aquela parte em que a harmonia é quebrada. A

Sagrada Família está em fuga para o Egito, até aqui há equilíbrio. A fome do menino Jesus

e o soldados em seu encalço são os fatores que complicam a trama;

3º) O clímax ocorre quando aparece a mulita e estamos no auge da ação;

4º) O desenlace ou desfecho acontece quando passado o perigo, através da

providencial tempestade de areia, todos estão em segurança e contentes.

O intróito propõe um sentido para a história, o desenvolvimento é história

propriamente dita, que necessita de um clímax e de uma conclusão. Mãe mulita é mito no

intróito, é lenda no desenvolvimento, é superstição na conclusão e é narrativa fabulística no

contexto geral de sua literariedade. Examinemos mais acuradamente este último ponto.

Pelo exposto, a fábula compõe-se de duas partes: a forma exterior (a literariedade) e

a interna (o ensinamento moral). Mãe mulita pode ser também analisada sob esta hipótese,

uma vez que em sua estrutura híbrida prevalece a personificação de animais.

Simbolicamente podemos resumir Mãe mulita em três elementos: o burro, a mulita e

a tempestade. O burro é um dos animais que mais contraditoriamente são interpretados

entre as diversas culturas e mesmo dentro delas. A tradição judaico-cristã é, em geral,

favorável à imagem do burro, do asno ou jumento, fazendo-os representar a humildade e a

humilhação. Assim é que José leva Jesus e Maria no lombo de um burro. Essa

representação da humildade nos é confirmada em Provérbios 16,18-19: “A arrogância

precede a ruína, e o espírito altivo a queda. É melhor ser humilde com os pobres, do que

repartir o despojo com os soberbos”. Outros exemplos favoráveis são: a jumenta de Balaão

(Números, 22, 22-35) e também o entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (Marcos, 11, 1-

11).

Todavia, pela estrutura narrativa de Mãe Mulita percebemos que o burro é um ponto

de desarmonia. Foi sua teimosia que enraiveceu o centurião e desencadeou, novamente, a

perseguição.

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