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'Recebi ameaças de morte. Diziam que era ladrão de corações' João Queiroz de Melo, cirugião do primeiro transplante cardíaco recebe óscar da saúde S Págs. 84-28

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'Recebi ameaças de morte.Diziam que era ladrãode corações'João Queiroz de Melo, cirugião do primeirotransplante cardíaco recebe óscar da saúdeS Págs. 84-28

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JOÃO QUEIROZ E MELOCIRURGIÃO CARDÍACO

'Recebi ameaçasde morte. Diziamque era ladrãode corações'

Marta F. [email protected]

Liderou o primeiro transplante cardíaco nopaís, em 1986. Hoje, reformado, tem uma em-presa de reprocessamento de dispositivos mé-dicos e diz que o futuro passa por hospitaismais Verdes', o que podia poupar milhões. Eestá a recuperar os Caminhos de Santiago: aos73 anos, tem palmilhado centenas de quilóme-tros. Recebe hoje o Prémio Nacional de Saúde.A cirurgia foi uma vocação desdepequenino?A vocação desde pequeno era sermédico. O meu avô era médico,como hoje se diria um João Sema-

na do Pinhal Interior. Andava dealdeia em aldeia e foi o exemplodele que me fez querer ser médi-co. Ser cirurgião foi algo que apa-receu mais tarde, com a influên-cia novamente de outros familia-res meus, nomeadamente o prof.Mendes Ferreira, que era uma fi-

gura saliente naquela altura namesma zona.

Nasce em Tomar em 1945. Vem paraLisboa quando?Vim para Lisboa fazer o liceu, afamília tinha casa cá e lá. Estudeino colégio S. João de Brito.

Que memórias tem dessa Lisboados anos 50?Era outro mundo. Para mim, vin-do de uma família que tinha capa-cidade de viver bem, era um mun-do fácil. Jogávamos à bola, às ve-

zes no meio da rua, outras vezes

em campo. la-se bastante ao cine-

ma, o que na altura era já umagrande extravagância. Ia ao Con-

des, ao S. Jorge, ao Roma. Sabía-

mos divertimo-nos sem grande so-

fisticação.

Estudava muito?Toda a vida fui bom aluno, deveestar nos meus genes o querer serbom aluno.

Frequenta a Faculdade de Medici-

na da Universidade de Lisboa nosanos 60, com o movimento estudan-til muito mobilizado. Como era o am-biente?Foram anos agitados. Eram cur-sos relativamente pequenos, com60 e poucos alunos, faziam-se ami-

gos para a vida.

Envolvia-se nas questões políticas?

Sim, mas de uma forma muito críti-ca. Tinha muito a percecão de queera preciso mudar mas também ti-nha a percecão de quem controlavao ritmo da mudança, nomeadamen-te da enorme influência do ParidoComunista no movimento estudan-

til - com quem não concordava emtermos de orientação política,

Era fácil estar a favor da mudançanão estando com o movimento es-tudantil?Eu estava muito envolvido naação católica, na JUC, éramosuma força importante de mudan-ça... mas quer dizer, quem nãofosse ferozmente socialista, já eraum perigoso conservador. Masconvivíamos e respeitávamo-nostodos uns aos outros. Devo dizerque hoje acho imensa graça vercomo os revolucionários da altu-ra estão agora.

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Porquê o coração?Não foi tanto o coração. Já tinhaacabado o curso e percebi que a ci-

rurgia cardíaca era uma área com-pletamente nova, onde havia mui-to a fazer. Na altura havia imensos

cirurgiões gerais. Eu trabalhavanos Hospitais Civis de Lisboa e naaltura éramos nós que procuráva-mos os doentes, que era uma coi-sa que eu não via muito bem.Achava que era o doente que nosdevia procurar a nós. Quando meformei em 68 o médico era o cen-tro do sistema, isto hoje acabou.

Mas havia mordomias?Mordomias nunca houve, era o

respeito das pessoas. As condi-ções de trabalho no âmbito do ser-

viço público sempre fora assim,salários baixos. Sempre ouvi o paide um colega meu que era médi-

co, portanto de uma geração commais 20 ou 30 anos que nós, con-tar uma história: quando eram in-

ternos, fizeram uma vez queixa aSalazar porque o médico ganha-va menos que o porteiro do hospi-tal. Indignação que Salazar enten-deu que era justa e resolveu comum despacho: baixando o saláriodo porteiro.É uma anedota?Não tenho os dados históricos,mas falei com várias pessoas daaltura que nos diziam que era ver-dade!

Quando recorda os hospitais de Lis-boa nesses anos 60, que imagenslhe vêm à memória?Era tudo diferente. Nada destamedicina moderna que temoshoje existia. Um ventilador arti-ficial que hoje é uma coisa de ro-tina na altura era um privilégioque só alguns serviços tinham.Não há comparação possível. Os

exames, análises que temos hoje...nada disto existia.

Acha que isso deu outra sabedoriaaos médicos da sua geração?Dá-nos uma experiência de vidadiferente, tínhamos de nos con-centrar mais nos doentes. Mas re-

pare: a observação era fundamen-tal, mas quando é possível nós

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com os nossos olhos e mãos dete-tarmos a doença, é porque estámuito avançada. Hoje, com a tec-

nologia de que dispomos, a doen-

ça é diagnosticada em fases ini-ciais em que ainda não dá sinais.As novas tecnologias criaram ummundo aliciante e vieram obrigara uma postura médica completa-mente diferente.

Vivi parao Hospital de

Santa Cruz.Trabalhávamos

brutalmente.

Fiz algumaprivada,

temporariamente.Não entendo

como é possível,em Portugal, o

normal sertrabalhar para

um hospitale para a

concorrência aomesmo tempo

E não criarão ainda mais a expec-tativa de que tudo se pode resol-ver?Isso sem dúvida, as pessoas acham

que, perante um diagnóstico, osmédicos têm de poder resolvertudo. O médico resolve muita coi-

sa mas ainda não é um deus.

0 momento em que o médico sente

que é falível é muito marcante?Sim, mas não muito. Quando façoas coisas convicto de que fiz o me-

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lhor possível, fico de consciênciatranquila. Se um médico se deixaenvolver muito por esses senti-mentos afetivos, torna-se difícilsobreviver à profissão. Temos de

nos ajustar.

Uma vez perguntaram-lhe como ti-nha sido pegar no coração de JorgeSampaio e respondeu que os cora-ções são todos iguais. É uma pos-tura fria?É verdadeiro, tem de ser assim.Uma pessoa quando está ali nãoestá a pensar quem é o doente.

Ao início era mais emotivo? É algo

que se treina?Não sei, acho que sempre fui assim.Não me analisei a esse ponto [risos].

Ter feito o primeiro transplante de

coração em Portugal é o seu maiorfeito medico?De modo nenhum, fiz operaçõesmuito mais complexas do que o

transplante. Acho que o transplan-te tem mais impacto pelo grandevalor simbólico que o coração tem.A grande dificuldade foi que, parafazer um transplante, foi precisohaver equipas extensas, organiza-das e coordenadas, com protocoloscertos. Fazer isso em 1986 é que foitotalmente inesperado e para mimé a maior razão de sucesso. Nin-guém imaginaria, até no estrangei-ro, que isso fosse possível no Por-

tugal da altura. Ainda olhavampara nós quase como se fôssemos

um país muito subdesenvolvido.Em termos de técnica cirúrgica, naaltura já fazíamos em Santa Cruzoperações mais complicadas. O

transplante é uma técnica simples.

A primeira doente, ainda assim, tevede ser corajosa?Eva Pinto era uma mulher de fé.Nunca teve dúvidas de que ia seroperada e de que tudo ia correrbem. A psicologia de um doenteafeta muito os resultados. Elanunca duvidou de que estava pre-destinada a ser o primeiro caso desucesso num transplante de cora-ção em Portugal e dizia-o aberta-mente nas conversas que tínha-mos. Dizia: 'Não se preocupe quevai correr tudo bem'.

Tranquilizava a equipa?Sim, era ela a tranquilizar-nos.

Não foi, ainda assim, um passo pa-cífico.Na altura havia alguma contro-vérsia em Portugal em torno dacolheita de órgãos. Um ano antesum jornalista tinha escrito um li-vro chamado O Escândalo dosTransplantes, em que considera-va que havia uns grupos médicoscom umas negociatas a recolherórgãos de pessoas vivas.

Sem fundamento?Ele questionava a existência demorte cerebral, sendo um igno-rante no assunto, e como na altu-ra a colheita era feita no Hospitalda Cruz Vermelha, que era priva-do, considerava que havia umanegociata. Portanto sabíamos queia haver controvérsia quando sevoltasse a fazer um transplante de

qualquer outro órgão. Dito isto,ele tinha razão em dois ou três as-

petos. Um dos quais era que, sen-do indispensável que houvesseconsentimento para colher ór-gãos, a forma como isso na alturase fazia era ridícula: éramos to-dos dadores a não ser que trouxés-

semos uma declaração a dizer quenão queríamos dar órgãos. Nin-guém vai para uma discoteca e de-

pois tem um acidente de automó-vel e aparece com um papel.

Hoje existe o registo nacional de nãodadores.Sim, isto hoje está completamen-te ultrapassado. Qualquer cidadão

que seja contra que os seus órgãosseja utilizado, tem toda a facilida-de em o fazer. Isto eram questões

que antes ou depois teriam de sercorrigidas, como foram. Mas sa-bíamos que isto ia dar nas vistas,como deu. Recebi ameaças de mor-te por escrito, cartas.

Chamavam-lhe oportunista?Ladrão de corações, que andava amatar pessoas. Durante umas se-

manas antes de sair de casa demanhã espreitava pelo vidro a verse via alguém suspeito.

Era um workaholic? Como era arti-cular o hospital com a família, comos filhos?Eu vivi para o Hospital de SantaCruz, posso dizê-lo com toda aclareza. Era lá que estava de ma-nhã à noite, ao fim de semana. :

Trabalhávamos brutalmente,mas como toda a vida trabalheinos diferentes sítios por onde es-

tive, isso era o normal. Claro quefoi com prejuízo da atenção quedispensei à família, claramente.

Os filhos foram para médicos?

Nenhum, depois do exemplo...Trabalhar muito e muito mal

pago no Serviço Nacional de Saú-

de, nenhum deles quis.

Não trabalhou no privado?Fiz alguma privada mas muitotemporariamente e depois parei.

É difícil compatibilizar estar nos dote

lados?Eu entendo que se deve trabalharcom profissionalismo e sempretentei trabalhar só num sítio, queacho que é a única forma de tra-balhar com grande eficiência.Não compreendo como é que é

possível, em Portugal, o normalser trabalhar para um hospital e

para a competição ao mesmo tem-

po, é uma contradição filosófica.Se um engenheiro trabalhar ao

mesmo tempo para duas ou três

companhias de telemóveis, nin-guém o iria aceitar. Em Portugal,na Saúde, aceita-se isto com amaior naturalidade, é uma roti-na. Como noutros países aliás,não os mais desenvolvidos.

0 Governo devia ir por aí, pela se-

paração entre público e privado?Acho que está entre uma série de

tabus consignados pelo SNS, en-

tre os quais a ideia de que somostodos iguais, os que trabalham e

os que não trabalham, os que se

dedicam e os que não se dedicam.

Quando se quer gerir em condi-

ções de igualdade 200 ou 300 milfuncionários, é de facto impossí-vel. Uma vez disse a um ministroda Saúde, um homem muito com-

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petente, que não era assim tão

competente: tem as melhores fá-

bricas, os melhores funcionários

mas deixa-os ir trabalhar ao mes-

mo tempo para a competição, com

as fábricas a custar dinheiro. To-

dos sabemos que as instalações do

SNS não são bem aproveitadas à

conta disto, não têm blocos a fun-

cionar a tempo inteiro. Claro queos médicos a trabalhar 35 horascom um salário miserável têm di-

reito a querer ir ganhar dinheironoutro lado, mas isto algum diavai ter de ser encarado de frente.E acho que não vai ser quando fo-

rem os médicos ou gestores a

mandar no sistema, mas quandoforem os doentes.

Imagina uma cada vez maior Inter-

venção dos doentes?Com certeza. Cada vez mais o

doente vai querer saber porque é

que é tratado aqui e não ali, quaissão os resultados e depois esco-

lher. E o financiamento acompa-nhará o doente. Acho que no nos-

so país ainda há muita gente a

pensar que o SNS deve ser orga-nizado como era há 40 anos. Não

percebem que isso é destruir o

SNS.

Tem havido um aumento da contes-

tação dos profissionais, críticas a

uma Ingerência das Finanças. Com

o SNS quase a completar 40 anos,como olha para o sistema?Acho que o SNS tem um proble-ma de sustentabilidade. Mas gos-taria também de estar mais infor-mado sobre a qualidade dos cui-dados que presta: hoje não temos

informação fidedigna sobre a qua-lidade.

Há dados sobretudo sobre quanti-dade?Sim e alguns marcadores grossei-

ros, por exemplo dizer que a mor-talidade na operação a uma hér-nia inguinal é zero. Isto é o espe-rado: se alguém tiver umamortalidade muito grande, serámá prática. Precisamos de indi-cadores que nos permitam perce-ber se os tratamentos são feitos

em momento oportuno, com segu-

rança e com os resultados espera-dos, não só à saída do hospital -que é habitualmente o que temos- mas daí a três ou seis meses. Nofundo, que nos permitam saber se

aquilo serviu para alguma coisa.

Porque é que não se vai por ai?

Falta de coragem política dos su-

cessivos governantes, subdesen-

volvimento cultural do país, não

confiança na sociedade civil.Quem tem de se mobilizar é a so-

ciedade civil, as sociedades cientí-ficas - o Governo está em observa-

ção. Não compreendo como é quehoje se gasta tanto dinheiro a ava-liar qualidade mas as certificaçõessão quase todas para metodolo-

gias, processos e instalações, não

para resultados. No serviço que di-

rigi havia algumas certificações

que obrigavam os enfermeiros a

perder 23 % do seu tempo a preen-cher formulários e check-lists quenão serviam para nada.

Há indicadores de tempos de espe-ra elevados. Confia na resposta do

SNS?Eu sou um privilegiado porqueconheço. Fui operado quatro ve-

zes, três no público e uma no pri-vado. Duas vezes tive complica-

ções e nenhuma delas consta dos

registos, porque a forma de regis-tar estes eventos não é exaustiva.Confio no SNS e sempre que pre-ciso de um tratamento, se houverno SNS, vou ao SNS...

...mas sendo médico, conhece sem-

pre alguém que o pode ajudar a

orientar no sistema.Eu não sou exemplo. O exemplo é

a minha mulher a dias que foi ao

SNS, pediram-lhe exames, demo-

raram um ano a fazer os examese quando voltou à consulta disse-

ram-lhe que como já tinha passa-do tanto tempo os exames já nãoserviam e tinha de repetir. Portan-to ela descontou para as consul-

tas, para os exames, para as con-

venções e o valor daquilo foi zero.

Parece-lhe que quem decide ao lon-

go do tempo tem tido essa perce-ção?Creio que temos de ter mesmo umadescentralização. Não é possívelser ali no ministério, na João Cri-

sóstomo, que se manda no país in-

teiro. A João Crisóstomo tem de

controlar, exigir, acompanhar, masé impensável que tudo o que se pas-

sa no país seja decidido central-mente em Lisboa. Porque é que o

Hospital de Santa Cruz tem de ter

as mesmas regras que um hospitalem Freixo de Espada a Cinta? Toda

a minha vida lutei para ter inde-

pendência no meu serviço, que é

aquilo que se chama os centros de

responsabilidade integrados.

Conceito que este Governo se com-

prometeu a concretizar.Quase todos os governos o têm

prometido e depois nenhum o

promove. Há dificuldades: comoos orçamentos são fechados, os

serviços, mesmo que sejam inde-

pendentes, não têm grande mar-gem de manobra. Um centro quefuncione bem tem de ter capaci-dade de gerar riqueza adicional e

de a usar. O único centro de res-

ponsabilidade que funcionoucom alguma normalidade foi o

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Centro de Cirurgia Cardiotoráci-ca do prof. Manuel Antunes emCoimbra. Porque é que nunca se

conseguiu que isso fosse replica-do noutros sítios? Tentei sempreque tivéssemos as mesmas con-

dições e nunca conseguimos.Houve uma altura em que todos

os médicos do meu serviço só tra-balhavam em cirurgia cardíacaem Santa Cruz. De 2005 para cá,criaram-se restrições financeirastão graves que os médicos, parachegar ao final do mês e pagar as

contas, tiveram de procurar ou-

tras alternativas. E não tocaramnos mais velhos, tocaram nosmais novos, o que é uma grandeaposta no futuro.

O que muda em 2005?A partir desse ano os médicos dei-

xaram de ser admitidos em dedi-

cação exclusiva, das 35 horas de

trabalho passaram a ter de dedi-car à urgência 12 horas, portantoficam nos serviços 23 horas. A di-

vidir por quatro dias, dá cinco ho-

ras. Eu era pontual: das Bh3o às

15h30 tinha médicos, depois dis-

so desapareciam... lam fazer unsbiscates algures.

Como vê o atual ministro da Saúde?

Acho que entrou com muitobom senso, com uma formamuito ponderada. Agora... nãolhe sei responder ou não quero,mas não acredito que seja pos-sível com a atual orientação irmuito longe. Diria que será qua-se impossível.

É um sentimento comum?Continuo a correr o 3 hospitaisde norte a sul do país e são rarosos hospitais onde os profissio-nais vestem a camisola, pelocontrário, parece que a despi-ram. Fico perplexo quando hojeem dia a linguagem habitualnum hospital é dizer 'eles', nãoé dizer 'nós'. Isto médicos, enfer-meiros, toda a gente. É uma mu-dança de estado de eispírito quevai demorar uma geração a re-cuperar. Inverteram as regras do

jogo de forma absolutamente pe-nalizadora, seguramente para os

médicos. Mesmo que agora quei-

ram mudar alguma coisa, per-deu-se a confiança. Ninguém ga-rante que quando o Governo fazuma coisa, o seguinte não vaidesmanchar. Uma pe ssoa tem asua vida montada, fez o seu in-vestimento e dizem-lhe vem tra-balhar assim, daqui a quatroanos muda tudo...O ânimo não melhorou com a saída

limpa?

Isto é um movimento, como lhedisse, que começou em 2005, ain-da não se falava em resgate. Tema ver com opções políticas e comtabus nefastos que rodeiam o SNS.

Já falou da questão da exclusivida-de, mas que outros tabus importaabordar?Tem de haver separação e as pes-soas têm de tratar os seus doentes

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graves e menos graves no mesmosítio. Exclusividade é uma pala-vra que hoje é quase proibida de

dizer, mas isto tem de resolver-se.Ou aumentam salários para ga-rantir a exclusividade, ou autori-zam clínica privada nos hospitaispúblicos, isto tudo de uma formadisciplinada e clara.

Se não o quê? 0 SNS arrisca mes-mo ficar um serviço dos pobres,como alguns vaticinam?Acho que é para aí que estamosa caminhar. Hoje aceita-se compnatural que haja médicos tare-feiros no SNS que vão lá umashoras por dia. É absolutamente

intolerável. Hoje sou visto porum médico e amanhã por outro,não pode ser. Não há falta de mé-dicos em Portugal, o que estápéssimo é a gestão social dos mé-dicos. O tempo dos médicos estámal aproveitado.

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Salvador Sobral foi transplantadono seu antigo serviço no Hospitalde Santa Cruz. Acompanhou estecaso?

Não, estou completamente afasta-do. Saí do hospital, saí. E se sou-besse alguma coisa não dizia, porrazões óbvias. Tenho orgulho emdizer que formei uma equipa comgrande qualidade.

Qual foi para si a maior lição da me-dicina?Humildade. A necessidade de terpermanentemente uma posturade humildade.

Com os outros e com aquilo de quese é capaz?É uma pessoa não pensar que é

Deus e não se deixar deslumbrarcom o seu posicionamento de do-mínio sobre os outros. A medici-na deve ser muito mais uma ati-vidade de compaixão do que de

vanglória.

Como passa os seus dias?

Faço imensa coisa. Quis iniciaruma atividade em Portugal queconheço desde que trabalhei naAmérica que é o reprocessamen-to de dispositivos médicos. É algoque se faz há 30 anos nos EUA, há20 anos na Alemanha e que cánão existia. Acabei por fazer umaempresa que representa a maiorempresa alemã nesta área e con-tinuo nesta luta que é cultural,mas não só. O SNS podia pouparmilhões de euros se fizesse o re-processamento.

Hoje o habitualnos hospitais é

dizer 'eles' £ não'nós'. E umamudança de

espírito que vaidemorar a

inverter, perdeu--se a confiança

Os hospitaissão os maiores

poluidoresdepois daindústria

siderúrgica.O SNS podia

poupar milhões

A medicinadeve ser muito

mais umaatividade de

compaixão doque de vanglória

99A ideia de se reutilizar dispositivosmédicos tem sido um pouco contro-versa.Cá. Se o reprocessamento está au-torizado pela legislação, se estácertificado e é feito em condiçõesidênticas às que existem lá fora -e se, na América, são as empresasque dizem que os dispositivos mé-dicos que só podem ser usadosuma vez que fazem o reprocessa-mento - esta é uma controvérsiaartificial. São hábitos culturais e

mais que isso: o SNS podia pou-par milhões cumprindo o estadoda arte...

Alguém ia perder milhões?

Digo apenas isso: podia pouparmilhões. No Porto isto já se faz: O

Hospital de S. João recorre ao re-processamento profissional hácinco anos. O Santo António tam-

bém. Quando se diz que não há di-

nheiro, há centenas de atividades

que podiam proporcionar ao SNScentenas de milhões de euros de

poupança por ano. O reprocessa-mento é só dezenas. É aquilo queo Papa Francisco descreve comoconversão ecológica e estamos aanos-luz disso: os hospitais são os

maiores poluidores do nosso am-biente depois da indústria side-

rúrgica.

De que atividades fala?De toda a forma como é gerida a

eletricidade, os sacos de plástico.Em Portugal, nos hospitais, pro-duzem-se 70 mil toneladas de lixo

por ano, pelo menos, isto são da-dos de 2008. Dizemos que paísescomo a América são muito maus,mas na América sabem quantolixo produzem e reduzem. Nósaqui não medimos ou medimos

pouco e não sabemos.

Tem-se falado em economizar pa-pel e tinteiros, com as receitas ecredenciais eletrónicas.Eu estou a falar de lixo tipo 3 e 4, li-xos que são contaminantes gravese que exigem procedimentos espe-ciais de tratamento para nos des-

cartarmos dele. Claro que os lixosurbanos também têm interesse,por exemplo os plásticos. Há movi-mentos na América por exemploem torno dos 'green hospitais'. Dos

plásticos hospitalares fazem-se ta-

petes, mangueiras, é um mundo.Como vivi 50 anos dentro dos hos-

pitais, não estou a criticar nin-guém porque eu também não estava :

consciente disto até ter começadoa olhar para a Saúde de fora.

Sempre teve preocupações am-bientais?Sim. Neste momento também es-tou muito dedicado aos caminhosde Santiago. Assim que me refor-mei, estive na Universidade Cató-lica durante três anos e depois saíe fui fazer os caminhos.

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Desde o Porto?Desde França, são 870 quilóme-tros, de Saint-Jean-Pied-de-Port aSantiago. Fiquei deslumbrado.Depois fiz o caminho português apartir de Valença com uma neta.Depois fiz sozinho, porque paramim o caminho de Santiago é

uma jornada espiritual isolada.Depois encontramos tantas pes-soas que acaba por não o ser. De-pois fiz o caminho primitivo pe-las Astúrías e achei que queriacontribuir para melhorar os ca-minhos em Portugal.

Sou católico,praticante, masquando estavano hospital só

pensava emcorações.

Seguramentetive casos de

pessoas

com fé quesobreviveram e

que não consigoperceber como

ffSão maus?Os caminhos abaixo de Braga são

muito deficientes, com muito alca-trão e tubo de escape. Fiz-me asso-ciado de uma associação chamadaVia Lusitana e fizemos uma pro-posta que o Turismo de Portugalapoiou e estamos a reconstruir os

caminhos de Santiago pelo inte-rior do país, de Tavira a Trancoso.Somos todos voluntários. De Évo-

ra a Trancoso está praticamenteincluído e o Presidente da Repu-blica vai à apresentação públicadeste caminho no dia 4 de maio.

Começou a andar aos 70 anos ou

sempre andou?Comecei a andar aos 50 e tal. Façoassim uns desportos náuticos.Mas os caminhos de Santiago pelointerior, com mais de 90% do ca-minho em terra batida, pelo meio

da floresta, será uma oportunida-de para as pessoas. É algo que meocupa bastante.

Sempre foi um homem de fé?Sim, católico, praticante, desdemiúdo.

Mesmo na fase de maior trabalhono hospital?Sim, quer dizer, quando estavamuito envolvido no hospital só

pensava em corações.

Mas pedia uma intervenção divina

para que tudo corresse bem?

Bom, não olho para Deus com esse

ar interesseiro. Mas há muitas coi-sas que me intrigam, talvez outraspessoas achassem milagres. Eunão consigo chegar a esse ponto,sou muito objetivo, mas existeuma divindade que é fundamental

para o ser humano e os homens se-

riam todos melhores se acreditas-sem que essa divindade existe.

Na medicina alguma vez ficou deboca aberta?Seguramente houve alguns casosde pessoas com fé que sobrevive-ram e que não consigo percebercomo. De resto há um caso que não

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vou contar pois se dissesse porme-nores saber-se-ia quem é, mas é

inacreditável. Foi uma pessoa quedeu umas provas de fé e que esta-va condenada face ao conhecimen-to médico e hoje está viva.

Receber o Prémio Nacional de Saú-de deixa-o feliz?Dos prémios que recebi, é o maissignificativo. Somos selecionados

por pares, pelos bastonários dasOrdens e isso tem enorme valor.Mas recebo-o com a consciênciade que isto aconteceu por causade um grupo. Sou a face visível,mas muito do que fiz só foi possí-vel por causa do grupo.

Daqueles que vestia a camisola?

Sim, porque há 50 anos era raroque um diretor de serviço deixas-

se os mais jovens trabalhar. O Dr.Machado Macedo chamou para asua volta jovens que estavam emvárias partes do mundo e não foisó para nos atrair, deixou-nos mes-mo trabalhar. Com isso ganhámosnós, ganhou ele e ganhou o país.Na altura isso era extremamenteraro, hoje as pessoas já percebe-ram que se não trabalharem emgrupo não chegam a lado nenhum.