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JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS Ano XXXII - Número 1082 - De 21 de Março a 3 de Abril de 2012 Portugal (Cont.) €2,80 - Quinzenário - Diretor José Carlos de Vasconcelos A RETROSPETIVA NO MUSEU BERARDO nikias skapinakis gonçalo tocha CORVO, O FILME DA ILHA A CONSTITUIÇÃO EUROPEIA LIDA PELO JURISTA E CIENTISTA POLÍTICO PORTUGUÊS j. j. gomes cano- tilho escreve sobre jürgen habermas Declarações de Amor À Língua Portuguesa ANOS DO JL Páginas 8 a 5

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JORNAL DE LETRAS,

ARTES E IDEIAS

Ano XXXII - Número 1082 - De 21 de Março a 3 de Abril de 2012Portugal (Cont.) €2,80 - Quinzenário - Diretor José Carlos de Vasconcelos

a retrospetiva no museu berardo

nikias skapinakis

gonçalo tochacorvo, o filme da ilha

a constituição europeia lida pelo jurista e cientista

político português

j. j. gomes cano-tilho escreve sobre jürgen habermas

Declarações de AmorÀ Língua Portuguesa

ANOS DO JL

Páginas 8 a 5

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D E S TA Q U E 2

O poeta, ensaísta e crítico literário João Rui de Sousa, 83 anos, foi distinguido com o Prémio Vida Literária da As-sociação Portuguesa de Escritores/Caixa Geral de Depósi-tos. O galardão, no valor de 25 mil euros, é atribuído de dois em dois anos, e já foi entregue a autores como José Saramago, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny ou Vítor Aguiar e Silva.

Nascido em 1928, em Lisboa, João Rui de Sousa for-mou-se em Agronomia e em Ciências Histórico Filosófi-

cas. Estreou-se na escrita na revista Cassiopeia, da qual foi um dos fundadores. Circulação (1960), A Hipérbole da Cidade (1960), Corpo Terrestre (1972), O Fogo Repartido (1983), Enquanto a Noite, a folhagem (1991) são alguns dos seus livros de poemas. Mais recentemente, em 2008, editou Quarteto para as próximas chuvas. Fez crítica literária no JL, integrando o ‘quarteto’ composto por Fernando Guimarães, Manuel Frias Martins e Ernesto Mello e Castro. No ensaio publicou, entre outros, Fernando Pessoa em-pregado de escritório e António Ramos Rosa ou o Diálogo com o universo. Editou ainda Antologia e Poesias Completas, de Adolfo Casais Monteiro.

breve encontro

vida de poesia premiada

JOÃOREIS DE

JL: O que significa este prémio? Como o sentiu?

João Rui de Sousa: Fiquei muito surpreendido e ‘embatucado’, até por causa dos nomes dos meus antecessores. É um incentivo, uma palavra de ânimo para alguém que não tem por hábito andar nas parangonas. Julgo que é um reconhecimento de um trabalho de mais de meio século, tanto na poesia como na crítica literária e no ensaio. O prémio é também para aqueles que, sossegada e si-lenciosamente, me têm apoiado e incentivado ao longo dos anos. Partilho-o com eles. Deve-se muito aos outros.

É poeta, ensaísta, crítico e investigador.Para si, ao longo dos anos, qual destes papéis tem sido o principal?

Sem desprimor para as outras artes, julgo que é o papel de poe-ta. A poesia é mais espontânea, a mais criativa das artes. Embora considere que há muita criatividade na crítica e no ensaio. O prof. Jacinto Prado Coelho dizia isto muitas vezes. Mas creio que a po-esia, postas as coisas nos pratos da balança, é a que pesa mais no meu percurso.

SOUSA

é um incentivo, uma palavra de ânimo para al-guém que não tem por hábito andar nas pa-rangonas

Está a trabalhar num novo livro?

Tenho um livro de poemas em preparação, mas não está fechado. Ainda estou hesitante quanto ao título. Será algo sobre Lisboa a que chamarei Um roteiro sentimental ou Uma cartografia sentimental. Trata-se da Lisboa que eu tenho vivido e que me tem tocado aqui ou ali. É Aquele que está mais próximo de ser editado.

Mas pesa sem pesar...

Sim. Dá-me liberdade. Num ensaio há um condicionalismo. Fala--se sobre qualquer coisa, ao passo que na poesia fala-se sobre nós próprios, sobre o que vem à cabeça, à alma.

Francisca Cunha Rêgo

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D E S TA Q U E3vai acontecer

Um conjunto de trabalhos preparatórios de diversas obras de Miguel Palma, numa exposição que é uma espécie de prolongamento do seu próprio atelier. Chama-se justamente Atelier Utopia, inaugura-se a 25 de Março, na Galeria da Fundação EDP, no Porto, e tem curadoria de Bruno Leitão. Permite desvendar, nas suas várias fases e em diferentes peças, o próprio processo criativo do artista, nascido em 1964 e que começou a expor nos anos 80. Tem realizado numerosas exposições no país e no estrangeiro, entre as quais a recente Linha de Montagem, no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian. Patente até 1 de Julho.

ATELIERUTOPIA

de miguel palma, no porto

Linguas e culturas latinas: dos riscos da incompreensão ao desafio da intercompreensão é o tema do 6º Festlatino, Festival Internacional de Culturas, Lín-guas e Literaturas Neolatinas, que se realiza em Recife, no Brasil. A 29 de Março, a partir das 9, na Residência André de Gouveia da Cité Internacional Universitária de Paris, decorre um dos seus seminários pre-paratórios Esta iniciativa conta com organização de Ana Paixão e José Manuel Esteves, da Uni-versidade de Paris e Saulo Nei-va, da Universidade de Cler-mont. O Festlatino tem como objectivo principal contribuir para o reforço das ligações en-tre culturas latinas.

Portugal no Brasil: pontes para o presente é o título do 6º co-lóquio internacional que o Polo de Pesquisa sobre Rela-ções Luso-Brasileiras (PPRLB), vinculado ao Centro de Estudos do Real Gabinete Português de Leitura, promove de 9 a 13 de Abril, no Rio de Janeiro, para assinalar o Ano de Portugal no Brasil. No próximo JL daremos o devido destaque a esta inicia-tiva que conta com a participa-ção de investigadores e profes-sores universitários de ambos os países. A comissão organiza-dora é constituída pelos profs. doutores Gilda Santos, Luciana Salles, Mônica Genelhu Fagun-des e Roberto Loureiro.

Eduardo Prado Coelho será homenageado a 29 de Março - data do seu aniversário - na Casa Fernando Pessoa, em Lis-boa. A partir das 14:30 (e até as 19horas) serão lidos textos da sua autoria. Haverá uma se-leção disponível para os parti-cipantes - organizada por Ma-ria Manuel Viana e Margarida Lages - mas cada um poderá ler qualquer texto que trouxer. Nascido em Lisboa, em 1944, filho do prof. catedrático Ja-cinto do Prado Coelho, Edu-ardo licenciou-se em Filologia Românica, na Faculdade de Letras, da Universidade de Lis-boa. Deixou uma vasta biblio-grafia universitária e ensaística - também em inúmeros jornais - destacando-se um longo es-tudo de teoria literária.

Os desempregados vão entrar gratuitamente em museus e monumentos, e beneficiar de descontos nos teatros nacionais e na Cinemateca Portuguesa. É uma medida da Secretaria de Estado da Cultura que entra em vigor a partir de dia 27. Para beneficiar dos descontos basta a apresentação de um comprovativo de inscrição no Instituto de Emprego e Forma-ção Profissional ou qualquer outro documento emitido pela Segurança Social. Na Cinema-teca Portuguesa, o bilhete fica a 1,35euros, no Teatro D.Maria II, a 6 euros. No São João o des-conto é de 50%, e nos espectá-culos da Companhia Nacional de Bailado e do São Carlos é de 25%.

DIA EDUARDOPRADO COELHO

PORTUGAL NO BRASIL6º FESTLATINO

DESCONTOS PARA DESEPREGADOS

dgartes sus-pende apoios

Em 2012, a Direção-Geral das Artes (DGArtes), não vai abrir os concursos para os apoios pon-tuais e anuais às artes, anunciou semana passa-da Samuel Rego, diretor do organismo. Noutra frente o mesmo responsável fez saber que, no próximo mês de abril, inaugura um novo con-curso para a atribuição de apoios financeiros a projetos artísticos que se desenvolvam no estran-geiro, considerando que, “no atual contexto, a existência de dispositivos de internacionalização dirigidos ás artes é crucial para o fomento do empreendedorismo e para o alargamento de mercados no setor artístico”. Com uma dotação financeira de 600 mil de euros, a linha de apoio destina-se a um máximo de 100 candidaturas de entre as áreas artísticas tuteladas pela DGArtes, entre as quais a arquitetura, artes visuais, dança, design, fotografia, musica e teatro.

festa da francofonia

Exposições, cinema, musica, conferencias e en-contros gastronómicos são algumas das ativida-des que compõem a Festa da Francofonia que decorre em oito cidades portuguesas- Lisboa, Porto, Caldas da Rainha, Coimbra, Espinho, Gui-marães, Setúbal e Vila Nova de Gaia- até 24 de março. Hoje, quarta-feira 21, pelas 18 horas, no auditório do Institut Français du Portugal, em Lisboa, François de Closets, escritor e jornalista, autor de mais uma vintena de ensaios sobre a sociedade contemporânea francesa é o arador da conferência l´orthographe, une passion françai-se. Lá force (in)tranquile dês annés 80: questions posées à lá culture fraçaise é outra das conferen-cias desta festa, a 22, a partir das 9 e 30, na Fa-culdade de Letras do Porto. Na música destaque para o concerto de 23, às 18, no Palácio da Foz, em Lisboa, do violinista Krasimir Dzhambazov.

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D E S TA Q U E 4

L IVRARIA CAMÕES,NO RIO,

REABRE COM A ALMEDINA

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D E S TA Q U E5

A Almedina vai reabrir, no Rio de Janeiro, a Livraria Camões, encerrada em janeiro pela imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), adianta ao JL, em primeira mão, José Miguel Marques Mendes, CEO daquele grupo editorial. “Vamos fazer todos os esforços para não deixar morrer esse projeto histórico”, afirma o responsável. Durante os próximos cinco anos, mediante um contrato de arrendamento, a Almedina vai explorar a livraria, mantendo a aposta forte na literatura, o que fez de Camões nos últimos 40 anos, um dos pilares da promoção da literatura e da cultura portugueses no Brasil. É o final feliz de uma noticia que, em janeiro do ano passado, suscitou vários protestos, assim que a INCM anunciou o seu encerramento. “Esta livraria é ponto de referência fundamental, umbigo dos estudantes de Literatura Portuguesa no meu pais, desde um tempo em que nenhuma obra portuguesa era editada no Brasil e ela nos supria do que preciso fosse”, argumentava na altura, Maria Lúcia dal Ferra, profª titular da Un. Federal de Sergipe, num dos abaixo-assinados que então circularam, incluindo em Portugal, por iniciativa de Maria Teresa Horta, Manuel Alegre e Manuel Mendes.

Foi ao ler estas noticias que os administradores da Almedina, um dos mais dinâmicos novbos grupos editoriais portugueses, o maior na área do Direito, mas também com forte ligações ao en-saio e as Ciências Sociais nomeadamente através da chancela edi-ções 70, decidiram avançar. O próprio José Miguel Marques Men-des contactou a imprensa Nacional Casa da Moeda, chegando a um acordo nas últimas semanas. Agora, serão feitas obras de melhoria para uma abertura nos próximos meses. “Não estão previstas gran-des intervenções mas queremos aproximar a livraria à imagem que temos em Portugal”, explica o administrador. Em Portugal, as Livrarias Almedina têm a marca dos arquitetos Francisco e Manuel Aires Mateus, cujos projetos para o grupo já foram premiados. No Rio de Janeiro, no entanto, o espaço, na Rua

Bitencourt Silva, no centro do Rio, é menos versátil pois tem ape-nas 70 m2 e um mezanino logo à entrada. “Mas será sempre um espaço bonito”, grande José Miguel Marques Mendes. A reabertura da Livraria Camões surge na sequência de internacionalização do grupo Almedina e da inversão da sua estratégia fora do pais. Não é uma aposta nova. Não é uma aposta nova. No Rio de Janeiro, o grupo chegou a ter um showroom, entretanto encerrado, só com livros seus e mantem ainda um site dirigido aos leitores brasileiros (www.almedina.com.br). Mas até agora, assegura o administrador, ainda não havia uma “estratégia arrojada e global”. “Até há bem pouco tempo a Almedina era apenas exportadora e distribuidora. Agora vamos apostar na edição e na venda de livros em todo o espaço da Lusofonia”. À semelhança do Rio de Janeiro será criada mais uma livraria no Brasil, em São Paulo – estão a ser estudadas três possibilidades – e até ao final de 2012, outras em angola e Moçambique. Neste três países vão avançar também equipas para a edição de livros na área do Direito, seguindo o modelo usado em Portugal: texto de lei, por um lado, e legislação comentada e anotada, por outro. “Sempre com a colaboração de autores locais” assegura José Miguel Marques Mendes. Entre os títulos já previs-tos destaca-se a Constituição Brasileira, comentada e anotada por especialistas, sob A direção do prof. José Joaquim Gomes Canoti-lho. Sem revelar os montantes envolvidos, o CEO da Almedina ga-rante que se trata de um investimento significativo que requererá “muito músculo, suor e motivação”. É o que tem pedido aos seus colaboradores dizendo-lhe que se trata de “uma nova era dos Des-cobrimentos”. Sem megalomanias, apenas procurando criar, em parceria, “boas obras”.

é um incentivo, uma palavra de ânimo para alguém que não tem por hábito andar nas parangonas

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D E S TA Q U E 6

JOSÉ CARLOSDE VASCONCELOS

32 anos de fidelidade

aos objectivos de sempre

Só em datas ou números ´redondos` temos assinalado de forma especial os aniversários do JL. Quando comple-tamos um ano de existência, embora deforma discreta, naturalmente o fizemos. E depois só na centésima edição, íamos no 4º ano de vida (entretando, face ao êxito do jornal (passáramos de quinzenário a semanário), dedi-camos uma capa à “efeméride”. Uma capa com o 100 ocupando-a toda, do mesmo grande pintor e desenha-dor, João Abel Manta, que fizera as cinco primeiras capas

com números e nas nossa páginas deixara uma extraordinária série de retratos e ilustrações, que já são são parte do património artísti-co português dessa época. A partir daí, o nº 200 teve só uma cha-mada, e apenas nos nº s 500 e 1000 (e no 1001, prolongamento o anterior, mas dedicado aos escritores e artistas mais novos, que sempre estiveram também no centro da nossa atenção) voltamos aos destaques de capa e às edições com matérias especiais. Como aconteceu nos 20 e 25 anos, quando aqui deixaram a sua opinião e o seu testemunho sobre o JL grandes figuras do mundo lusófono, incluindo alguns Presidentes da Republica.

A que vem esta ´conversa`, se não fazemos agora nada de com-parável? Não fazemos, mas assinalamos a entrada no nosso 32º. ano de publicação ininterrupta sem nenhuma falha, ao longo de 1082 edições, com um “tema” que nos é particularmente caro: a Língua Portuguesa. A Lingua Portuguesa, que como ali se sublinha, é fundamento e uma das principais razões de ser, se não a princi-pal, do JL, que por ela, pela sua dignificação, valorização, expansão

SE AGORA ASSINALAMOS, mesmo de forma discreta, este ani-versário, é também porque julgamos impor-se fazê-lo na situa-ção de crise tão gravre que vivemos, com reconhecida intensidade também nos media. Assim, impõem-se dizer que continua este JL que há muito tempo tanto considera uma espécie de “milagre”. “Milagre”, digo eu, só possível graças a compreensão e ao apoio de todos que, a vários níveis, sabem o que significa para o nosso pais, a nossa cultura e a nossa língua (e apesar do descaso de outros que tinham obrigação de o saber…), np âmbito de uma empresa como a Impresa e com o esforço dos que o fazem, a começar pelos nosso colaboradores.

E muito haveria a acrescentar. Sublinho apenas crer que esta edição constitui uma boa amostra de que o JL continua a ser e a representar como único órgão de comunicação social português e de língua portuguesa com a sua qualidade, a sua periodici-dade, as suas características, os seus combates. Pela nossa parte continuaremos assim, a existir e resistir, como “jornal de letras e ideias” livre e independente, português e lusófono, na fidelidade incessante renovada e rejuvenescida, aos seus valores, princípios e objetivos de sempre.

continuaremos a existir e resistir como jl, livre e independente, portu-guês e lusófono

e divulgação, desde o início se tem batido em ´todas as frentes`. Batido pela língua portuguesa, por tudo o que significa em si mes-ma, como nosso e mais belo património, ontem, hoje e sempre; e como elo mais forte da nossa ligação com os países de idioma co-mum, instrumento mais poderoso da lusofonia, a devem defender, ensinar, promover, com destaque para o seu Instituto internacional (IILP). IILP sobre o qual inúmeras vezes aqui escrevi, pugnando, sem qualquer êxito, nestas colunas e fora delas, para que fosse feito o necessário para que cumprisse pelo menos uma parte dos fins com que foi criado, o que continua a não acontecer.

editorial

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D IA MUNDIAL DA POESIAuma edição exclusiva dos melhores poemas de 2011

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T E M A 8

“DECLARAÇÕES DEa cristalina música das esferas

AMOR” À L ÍNGUAMeu amor,Todos os dias te encontro, e todos os dias te perco. Já na luz da meninice, quando em minha inconsciência trocava as sílabas da tua voz, me habituavas ao êxtase, afagando-me e traindome, e propon-do-me os mistérios que te habitam. Como acontece com os que muito se amam, e que por causa disso sofrem a tirania dos códigos, e a arbitrariedade das reformas, a nossa história tem sido alegre e triste’, e ora arrebatada, ora paciente. Sobrevivemos entretanto por estratégias dificílimas, e que nos condenam à perpétua inquietação Se te persigo em excesso, empenhando- me na procura com de-

masiada energia, afastas-te de mim num elegante volteio, tocado pela sombra do desprezo. E logo me sobressalto na tua ausência, e me lanço na busca do que te conforma, a aragem ciciante, a agitar as silvas onde as amoras despontam, a ás-pera nasalação, gritada por Clitemnestra no ato de apunhalar o seu homem. Acostumei - me ao calor da tua presença, e tão inseparável de mim te tornaste que te confundem comigo, e me tomam por aquilo que tu mesma éS’1 sibila deste cabo da Europa, a irradiar oráculos pelas sete partidas do mundo. Muitas vezes te calei no coração, re-

ceoso de que o ímpeto do desejo te erodisse sem remédio, e con-fesso que não raro abusei da tua entrega, arrastando-te por sonoros labirintos, ou por perigosas acrobacias, e cobrindote de adereços que apenas me perdoavas pela juventude do afeto que me enton-tecia, Com o tempo porém ensinaste-me o segredo do respeito, e consenti em tua discreta e solene integridade, Jamais me negaste o gosto de te poupar às sevícias que por aí, e impunemente, te humi-lham, colocando-te diante de espelhos que te deformam, e mago-ando-te no que de mais íntimo possuis, a fim de que, muito para além da carne, o puro espírito se revele, Percebi em suma por que motivo não existe em toda a Terra engenho bastante para te tra-duzir, harmónica como voas em tua funda essência, incompatível com truques e arranjinhos, e adversa aos circunlóquios com que te iludem a verdade, À medida que envelheço, e me sinto igual a ti, há paisagens do teu corpo de que me vou esquecendo, lembrando--me todavia, e como que por milagre, de muitas que supunha não guardar na memória. Todos os dias te encontro, e todos os dias te perco. Não será isto indício de que um no outro nos engastámos, e de que morreremos no abraço que ninguém ousará desmanchar? Quero dizer-te assimque, viajando ambos, tu e eu, pela cristalina música das esferas, ao silêncio da eternidade é que nos destinamos, e à glória efémera do tal verbo em que tudo principia. Beijo-te os pés, meu amor.

PORTUGUESAa língua portuguesa é e sempre foi fundamento e pelo menos uma das principais razões de ser do jl (ler comentário, na p. 3). assim, quando chegamos aos 32 anos, assinalámo-los com outras tantas curtas “declarações de amor” ou “cartas de amor” à nossa língua. foi isso que pedimos a criadores de todo o vasto espaço do idioma comum, embora acentuando que poderiam escrever sobre ela de qualquer outro modo ou ângulo - como é o caso

da crónica de josé luís peixoto (p. 43). e na

próxima edição haverá mais

tão inseparável de mim te tornaste que te confundem comigo, e me tomam por aquilo que tu mesma és, sibila deste cabo da europa

Mário Cláudio, português, fic-cionista e poeta

(CARTA À LÍNGUA PORTU-GUESA, ROFETIZANDO AMOR ETERNO, E EXPRIMINDO UM VOTO DE SILÊNCIO)

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T E M A9

“DECLARAÇÕES DEAMOR” À L ÍNGUA

PORTUGUESAa língua portuguesa é e sempre foi fundamento e pelo menos uma das principais razões de ser do jl (ler comentário, na p. 3). assim, quando chegamos aos 32 anos, assinalámo-los com outras tantas curtas “declarações de amor” ou “cartas de amor” à nossa língua. foi isso que pedimos a criadores de todo o vasto espaço do idioma comum, embora acentuando que poderiam escrever sobre ela de qualquer outro modo ou ângulo - como é o caso

da crónica de josé luís peixoto (p. 43). e na

próxima edição haverá mais

língua e enigma

o coração do enigma para cada povo é o da língua em que a sua leitura do mundo se manifesta como mistério ao mesmo tempo luminoso e obscuro. É na língua e na língua só que somos virtual-mente imortais. Tudo se passa como se não pudéssemos ser sujei-tos dela. Somos falados antes de a falar e falamos para nos falar. Sem começo nem flm. Só no séc. XVIII quando o Ocidente começou a esquecer a língua como “dom de Deus” um ato recapitulativo de um verbo criador do mundo, o mistério dessa revelação com o sujeito criadora, ao mesmo tempo da voz, da consciência dela e do sentido da sua nomeação de toda a realidade, se converteu no enigma dos enigmas. Começou então a nossa marcha do Deserto.

Falamos para povoar o mundo. E ao mesmo tem-po para regressar a essa línguagem antes da lín-guagem, a essa língua divina, a do homem ainda não separado do universo e de si mesmo, sujei-to de múltiplas línguas mas lembradas da única que dizia o Ser sem o mutilar, aquela que fala no silêncio do mar e nos cala. Todas as línguas do mundo desenham nele o bem pouco mitico arquipélago de BabeI. O mistério de cada uma

participa dessa aventura humana sob a forma de um rizoma. Só a História singular de cada uma delas desvela os seus segredos. Não são os mesmos para o Japão, ou Bornéos, isolados milénios dos seus vizinhos, que os do ramo indoeuropeu onde a nossa mergu-lha as suas raízes. Essa raiz sânscrita só para fllólogos terá algum sentido. Para nós, mortais comuns, bastanos o batismo camonia-no, ou da matriz latina so~ a qual se sumiu misteriosamente, ou quase, a nativa herança lusitana. Foi aquela que se derramou no mundo juntamente com o castelhano como as primeiras línguas no mundo do Ocidente. Nem ela nem a dos nossos vizinhos têm os dias contados. Até onde podemos imaginar-lhe futuro, essa lín-gua, hoje de variados tons, é um dos mais insólitos milagres lin-guísticos imagináveis, dada a sua origem tãovmodesta. Este simples estatuto devia poupar-nos todas as glosas apocalípticas acerca da sua perenidade. Como os amores miticos de Pedro e Inês, a língua em que eles couberamarderá até ao fim do mundo.

“essa língua, hoje de variados tons, é um dos mais insólitos milagres lin-guísticos

Eduardo Lourenço, ensaista, escritor, Prémio Camões

só para tiMinha pátria, minha língua Linha pátria, minha míngua Juro-te, se fores minha gramática Eu serei tua sintaxe. É que, em ti, gosto de tudo Dossons,dosecos,dasurdez Até das tuas rimas fáceis Em extáse, em extáse. Certo, nem sempre nos entendemos Desgosto quando dizes [atempadamente E tu enxofras com os meus isso [é suposto. Mas não tem mal Um dia, num presente distante Voare-mos juntos a uma ilha deserta Lá cantarás só para mim E eu, enflm (prometo que sim) Calar-me-ei de vez Só para ti. Seremos não mais uma língua e seu falante Tão só uma palavra (uma palavra [simples) e o seu não menos discreto [amante

Rui Zink, português, ficcionis-ta e ensaísta

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T E M A 10

esta nossa língua geralSou um angolano de origem portuguesa - o que faz de mim quase um brasileiro, e l.!.álongos anos que me acho no papel de passa-geiro em trânsito pelos diferentes territórios onde prospera a nossa língua. Esta deriva, quase sempre feliz, tem contribuído para au-mentar o meu interesse pela vida das palavras. Venho descobrindo algo, que sendo óbvio, ainda tantos (sobretudo em Portugal) insis-tem em não ver: a força desta nossa língua, a sua vitalidade, resulta do facto de ter sido desde sempre uma construção conjunta, uma extraordinária aventura comum, unindo primeiro povos romani-zados e populações árabes, provenientes da colonização africana da península ibérica, e depois, na sequência da expansão portuguesa, mais e mais africanos, indígenas brasileiros, indianos e malaios. Com a passagem dos séculos uma vigorosa torrente de vocábulos africanos, brasileiros e orientais, foi-se somando ao património original. Palavras que se perderam em Portugal, enraizaram-se nos crioulos de Cabo Verde e da Guiné- Bissau, ou no português serta-nejo do Brasil. Quanto mais me apaixono pela nossa língua, e mais me aproximo dela, melhor a vejo, inteira, na sua diversidade. A língua segue sendo uma só, embora rio de muitas águas, a cada dia mais largo e mais profundo. Nunca como hoje houve tanta circu-lação de pessoas, de ideias, de palavras, no espaço da nossa língua. Nunca estivemos tão próximos quanto agora. São portugueses que emigram para Angola ou para o Brasil. Brasileiros que, tendo vivi-do longos anos em Portugal, regressam a casa. Brasileiros, por ou-tro lado, a fixarem-se em Angola. Todo este trânsito vem democra-tizando ainda mais a língua comum. Não existe hoje um centro de poder. Portugal recebe tanto quanto dá. Jovens portugueses falam como angolanos. Angolanos apropriam-se de termos brasileiros. Muitas vezes não se trata sequer de importação’ mas de regressos. O que eu amo, pois, é este idioma democrático, plurinacíonal, que a todos pertence e a todos igualmente se entrega e enriquece. Esta nossa Língua Geral.

José Eduardo Agualusa, an-golano, ficcionista, cronista e editor

a beleza do mundo, na forma de palavras

Esta língua faz-me. Está em meu corpo como o sangue. Sou o que ela quis que eu fosse, desde que, na primeira meninice, descobri que um gato é um gato, e não um chat, e um cão é um cão, e não a dog. Foi por meio dela que me abri para a beleza do mundo, pois o que via, ouvia e sentia tinha e tem a forma de palavras. Nunca so-nhei em outro idioma e, se me comovo com Dante e Shakespeare, é diferente a emoção com que leio Camões. Neste escuto uma voz que, sendo dele, é minha. Sinto que lhe imito a alegria, a tristeza, a indignação e o espanto. É com a saudade de seus versos que nos entendemos todos os que falamos esta língua que guarda o sabor da aventura de camponeses que se tornaram marinheiros.

Alberto da Costa e Silva, brasi-leiro, poeta, ensaísta e historia-dor. Foi presidente da Academia Brasileira de Letras

continuo apaixonado

Saúdem-se Paio Soares e Pero Meogo, dos prímórdíos, Reverên-cia - por todos - ao enorme Luís Vazo Recorde-se o bom António Ferreira. Vivam os grandes escritores que ergueram uma língua de cultura. Posto isto, a tristeza de ver o português destruído pelos tratos que lhe dão no ensino e nas televisões. Outros resultam des-tes. O capitalismo quer consumidores. O cidadão não está no pro-jeto. Desvalorizam a literatura, escondem a história, suprimem a etimologia, minimizam o vocabulário. Orientam o ensino para os anúncios. Puro charlatanismo. Rasuram o teatro, as letras, o cinema, a ópera, a pintura. “Serviço público”? Lastimosa fraude do écran. Caso de prisão efetiva. Em Portugal já não existe massa crítica capaz de recuperar. A esperança é o Brasil. Removida a jagunçada ban-queira e latifundiária o Brasil cresce culturalmente. O desvio Ohio-jamaicano que, antes, poluiu a Wikipédia e produziu aberrações . colonizadas como “mídía”, “mause”, “checar”, etc., pode ser su-perado. O Brasil criou autores dum português (do Brasil) lídimo, como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Em Parati ouvi falar um português perfeito, com o uso corretissimo da mesóclise. Estes saberão mostrar-se à altura da bela e rica lín-gua universal que herdaram da Europa. Quanto mais afastados da pobreza, mais gente culta haverá, capaz de ascender à índole da língua. Para estes, o acordo ortográfico será apenas um pormenor (feio pormenor). Enquanto o português de Portugal soçobra, nesta valsa rnacambúzia que é a nossa sina.

João Ubaldo Ribeiro, brasilei-ro, ficcionista e cronista, Pré-mio Camões

valsa macambúzia

Saúdem-se Paio Soares e Pero Meogo, dos prímórdíos, Reverên-cia - por todos - ao enorme Luís Vazo Recorde-se o bom António Ferreira. Vivam os grandes escritores que ergueram uma língua de cultura. Posto isto, a tristeza de ver o português destruído pe-los tratos que lhe dão no ensino e nas televisões. Outros resultam destes. O capitalismo quer consumidores. O cidadão não está no projeto. Desvalorizam a literatura, escondem a história, suprimem a etimologia, minimizam o vocabulário. Orientam o ensino para os anúncios. Puro charlatanismo. Rasuram o teatro, as letras, o ci-nema, a ópera, a pintura. “Serviço público”? Lastimosa fraude do écran. Caso de prisão efetiva. Em Portugal já não existe massa críti-ca capaz de recuperar. A esperança é o Brasil. Removida a jagunçada banqueira e latifundiária o Brasil cresce culturalmente. O desvio Ohiojamaicano que, antes, poluiu a Wikipédia e produziu aberra-ções . colonizadas como “mídía”, “mause”, “checar”, etc., podeser superado. O Brasil criou autores dum português (do Brasil) lídimo, como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Em Parati ouvi falar um português perfeito, com o uso corretissimo da mesóclise. Estes saberão mostrar-se à altura da bela e rica lín-gua universal que herdaram da Europa. Quanto mais afastados da pobreza, mais gente culta haverá, capaz de ascender à índole da língua. Para estes, o acordo ortográfico será apenas um pormenor (feio pormenor). Enquanto o português de Portugal soçobra, nesta valsa rnacambúzia que é a nossa sina.

Mário de Carvalho, português, ficcionista e dramaturgo

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preservar a diferença

Num recente abaixo-assinado contra o fim das humanidades na escola francesa, alguns dos melhores intelectuais desse país per-guntavam se a França se teria tornado suicidária. Por aquilo a que hoje assistimos em Portugal, a situação não será muito diversa. Nas universidades, a moda é a dos cursos em inglês talvez para inglês ver; nas grandes livrarias, o panorama é o de best-sellers dispostos como detergentes numa prateleira de supermercado; e

se ainda se ouve falar do país num sentido mais positivo do que as notas das agências de rating, isso deve-se a pessoas - cineastas, músicos, escri-tores, arquitetos, etc. que se distinguem no plano internacional; e acrescentaria a esta lista algumas empresas como a Renova (cujo papel nos da crise representa com a imaginação que falta a quem nos governa, e não digo isto com ironia mas para elogiar essa empresa). Numa altura em que nun-

ca houve tanta gente tão bem preparada, em particular das novas gerações, há um total desaproveitamento das suas capacidades. Se o futuro não é negro, é porque o povo tem a consciência histórica de que já passámos por coisas piores, e sempre sobrevivemos. E isso devese quase em exclusivo à língua portuguesa: foi ela que preservou a nossa diferença em relação ao resto da Península, im-pedindo uma absorção que pareceria natural por parte de Castela; e é através de quem a cultivou e cultiva - em Portugal mas também no Brasil e, agora, nos novos países de língua oficial portuguesa - que passamos por entre os pingos de uma crise de consequências ainda imprevisíveis sem perdermos alguma crença na nossa con-tinuidade, ao contrário da Europa que parece já não acreditar em nada que valha a pena.

Nuno Júdice, português, poeta e ensaísta

é através de quem cultivou e cultiva a língua que passamos por entre os pingos da crise

a minha língua portuguesa

Não me veio do berço nem do ventre materno. Eu e minha mãe herdámo-la de uma nau capitaina que aportou em pleno século XVI, carregada de povoadores que el- rei mandara a desembravecer as longes terras que se alcandoravam sobre o oceano ocidental. De-pois a minha língua portuguesa subiu comigo pelo tempo acima, ano após ano e de terra em terra, até ser a “casa do ser que lá não mora”, como no verso de Vitorino Nemésío. O verbo “povoar” foi por isso um dos mais belos: aprendi a conjugá-lo antes dos outros (ou então era daí que derivaram todos os verbos para mim, não sei). Vede como nele vibram as cordas sonoras dos primeiros passos sobre a pele da ilha! Chegaram, escolheram um ponto da cota mais afeiçoado ao desembarque, entraram terra dentro e, su-bindo ao dorso de uma falésía não muito elevada (da qual se podia vigiar o horizonte contra as ameaças do corso e da pirataria), aí montaram casas, abrigos, defesas contra a cruel rudeza dos ventos marítimos. Se bem que áspera sobre a erva, a língua dos nautas não deixou de me parecer graciosa, feminina. Mesmo naqueles sons aguçados, ossudos, ou nos ditongos medievais, ou nas suas sílabas

João de Melo, português, é fic-cionista e ensaísta

pátriaDe todas as vezes que me pedem para falar da língua portuguesa a minha primeira reação é de recusa, dado que já fiz uma centena de declarações sobre o assunto e tenho medo de me repetir ou de me contradizer. Tenho afeto pela língua com que muitos escritores por quem tenho respeito e admiração se expressam’ apesar de não ser a minha língua materna. Quando comecei a escrever as pri-meiras palavras, fi-lo em língua portuguesa. Lembro- me do pão quente com manteiga com que o filho do padeiro me pagava pelas redações que lhe escrevia. Não, não era sopa. Lamento mas em Tímor ninguém comia a sopa. Não .constava na ementa do nativo. Lembro-me do rosto da colega de turma quando recebeu a minha primeira carta de amor e ficou com a face vermelha. Tive então consciência da utilidade ímpar das palavras. Falar da língua portu-guesa é também falar daqueles que um dia autilizaram nas mon-tanhas de Timor para expressarem os seus sentimentos por todo o drama que estavam vivendo. Creio que sabiam o peso exato de cada palavra e do seu alcance. Alguns verteram lágrimas amargas ao escreverem as mesmas palavras que teriam extraido de um poema de um escritor que estudaram no Liceu. Outros morreram sem ter visto o verdadeiro alcance das suas palavras. No imaginário timo-rense, repartido por várias línguas nacionais, Pátria diz-se Pátria. O grande contributo da língua portuguesa para a consciência de um povo, cujas tradições se alicerçam em mitos e crenças. Hoje tudo isso está subvertido pelos interesses instalados em Timor. Os mitos já não são o que eram o e as crenças valem o que valem. Excetoo barlake” que o povo tem de pagar. A um preço tão alto, que só Deus sabe ... oIL ‘Sarlake - Contrato matrimonial segundo os usos e costumes tradicionais, em que a família do noivo se compromete a pagar o dote à família da noiva.

rochosas como os esporões e os calhaus do basalto. Era (e é ainda) a nossa língua de quatrocentos e quinhentos: a de Fernão Lopes e Gil Vicente! De cada vez que aportavam naus vindas de Lisboa ou do Oriente, iam à foz da rib iras “fazer aguada” (outra bela palavra portuguesa!) deixavam ao povoadores memória de outras que ainda ali não existiam. Muitas coisas (aves, árvores, frutos, especiarias) não possuíam nome: havia que apontar o dedo para as nomear - ou tão-só para exigir a sua existência. A vida (minha, nossa) tem luz própria por causa dela - essa estrela de uma língua portuguesa que hoje ilumina a noite europeia, africana, asiática e brasileira. Contemplo-a nos sons, no corpo, na música das pala-vras. São as minhas ágeis, redondasv. Que se dobram, multiplicam, aceitam gramáticas de outros povo e das suas línguas. E delas nas-cem frases, versos, ortografias, artes poéticas da prosa e da poesia. “Transformase o amador na coisa amada”, Luís de Camões. “O que em mim sente está pensando”, Fernando Pessoa. Trago em mim, no coração, palavras eleitas por aquilo que me sugerem: “melan-colia” é talvez de todas a mais bela. E sempre que sinto o apelo da distância e os passos perdidos das viagens que não flz, ocorrem-me essas palavras prévias que dão voz e rumo e caminho aos lugares do meu mundo desconhecido: mãe, sal, firmamento, montanha, música, amor, mulher...

Luís Cardoso, timorense, fic-cionista

Barlake - Contrato matrimonial segundo os usos e costumes tradicionais, em que a famí-lia do noivo se compromete a pagar o dote à família da noiva.

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a música secretaNão acredito em grande poesia ou literatura que não tenha o senti-do, o dom da língua. Para mim o poema é algo que está dentro da língua. Há uma música secreta da língua. E é com essa música que posso cantar de amor como em nenhuma outra língua do mundo.

Sou um homem do extremoOcidental da Europa, cresci a ouvir o marulhar do Atlântico, onde nasceram os ritmos e os decassºilabos

de Camões Creio que toda a nossa língua está marcada por esse ritmo. Nas suas harmonias e nas suas dissonâncias, nas suas vogais azuis e ver-des e nas suas consoantes sibilantes. Tem a cor do mar e o assobio do vento Oeste. Amo essa cor, esse assobio, esse murmúrio. E o cheiro a alga e sal. E o sol e o sul que estão dentro das sílabas. Há na minha língua uma aspiração universalista e, ao mesmo tempo, uma nostalgia da errância e um sentimento de exílio em relação à pátria física e à circunstância histórica concreta. Há na

minha língua uma página chamada Atlântico, onde há sempre uma viagem que não acaba até outros mares e outros poemas.

O meu amor começa na músicasecreta da da minha língua , porque a minha língua fez a minha

pátria e porque pátria e língua portuguesa são sempre o outro lado da viagem, da errância e de outras pátrias.

Oxalá o JL possa continuar esta viagem de amor e circum navegação.

Manuel Alegreportuguês, poeta e ficcionista

há na minha língua uma página chamada atlântico, onde há sempre uma viagem que não acaba até outros mares e outros poemas

fazer parte do que souComo prenda de aniversário pelos seus 32 anos, o JL quer apenas

uma coisa: uma declaração de amor à lingua portuguesa! Ainda que insólita, seria uma prenda relativamente fácil de se dar se uma decla-ração de amor não implicasse o uso de “eu amo- te” , pedregulho entre todos o mais difícil de deixar o recôndito do coração e sair pelas ruas cantando, razão por que os cabo-verdianos sempre preferiram

substitui -lo por expressões mais neutras, “Um creb tcheu!” , “Mi é dôd na bô” ...

No entanto, esse presente é tanto menos custoso quanto é certo o JL sequer identifica a grafia em que gostaria de ver esse amor confessado, parece ser-lhe indiferente um antes ou um depois do último acor-do ortográfico. A mim parece-me bem! Assim em pleno período festivo, não seria de bom tom terçar armas sobre os méritos e deméritos de uma ou ou-

tra forma de escrever a língua portuguesa, tanto Camões como António Vieira certamente se declarariam horrorizados se regressassem agora e vissem no que tem vindo a ser transformada a língua que tanto ama-ram e tão bem cultuaram.

Ou não, bem podia acontecer que qualquer deles aceitasse a evolução que se tem verificado ao longo dos séculos com a sua língua, afinal das contas o próprio conceito de díalétíca ensina que nada é perene, e ainda bem ( leio hoje um texto D. Dinis ou de Fernão Lopes e dou graças por essa língua ter deixado - as formas arcaicas e crescido até onde se encontra hoje, e donde terá de partir

sou cabo-verdiano, também faço re-sistência ao uso do verbo “amar”

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é a língua que me escreve

Sempre senti que, em português, não sou eu que penso ou escrevo. É a língua que me pensa, é a língua que me escreve. Se isso é amor, não sei. Nas outras línguas que também uso, os pensamentos vêm antes das palavras. Na língua em que sou, as palavras leva-me para além do que poderia ter pensado. Sim, deve ser amor.

Aprendi em África esta língua em que me tornei escritor, na mais remota Alta Zambézia, onde havia um velho muito velho que me contava hi. tortas num português de vogais abertas por ou-tra língua que teria sido a sua, repetindo cada frase sempre com as mesmas palavras, dizendo as vozes dos bichos, das plantas, do fogo, do vento, dos rios, conjurando os movimentos e as formas do universo com as suas grandes mãos da 01’ ela Irra, acocorad s ambos no jeito africano de ontar e de ouvir histórias. Sem que eu então o soubesse, estava a ensinar-me a língua da poesia. Como poderia depois haver qualquer outra?

No entanto, depois, agora, vivo há mais anos em terras onde não falam a minha língua do que vivi naquelas onde aprendi a ser quem sou em várias partes de África, de Portugal, do Brasil. É bom? É mau? Não sei. Poderia talvez ter escolhido ser escritor nesta outra língua estranha que me rodeia como se eu fosse uma ilha num mar alheio. Mas sei que não tenho escolha. E não tenho escolha por também ter aprendido com o bardo africano da minha infância que a língua portuguesa é tão una e tão diversa como o universo que ele invocava com as vozes das suas mãos do tamanho da terra.

Helder Mecedo, português, ficcionista, ensaista e poe-ta, prof. no King’s College de Londres

o amor tenaz

Acaso lhe confessei meu amor pela lingua que me ungiu desde o berço? A lingua morena que é minha fortuna e me faz rainha? Com a qual escrevo livros, teço desatinos, enfrento enigmas, ganho pouso e graça, o modelo narrativo para a escriba que sou? E que transcreve os impropério humanos, os ais dos navegantes, a inten-sidade apaixonada dos amantes prestes a se perderem para sempre?

Nélida Pinon, brasileira, fic-cionista, prémios Príncipe das Astúrias e Juan Rulfo.Foi presidente da Academia Brasileira de Letras

‘por ti eu troco a noite pelo dia’

Por ti eu troco a noite pelo dia,Como é o natural de uma paixão.Do fado e dos poetas que seria,E dos amantes, sem a[escuridão?

E salta-me no peito o coraçãoSe certa voz murmura[e pronunciaPalavras já tão ditas mas que sãoPedaços de um segredo que[arrepia.

De Gregos descendente, de[LatinosCom pouca corrupção dileta[herdeira,‘Menina e moça, ó flor de verdes[pinos

Além da Taprobana[transportadaE sempre renascida e sempre[inteira,Eis a dito a língua, minha[amada,

Hélia Correia portuguesa,ficcionista e poeta

Germano Almeida,cabo-verdiano, ficcionista

para novos desenvolvimentos, desse modo comprazendo aos que virão a aprender a amá -la e a usá -Ia.

Sou cabo-verdiano, também faço resistência ao uso do verbo “amar”, e certamente que não será ainda desta vez que a norma doméstica será violada. Mas sequer preciso, o meu pais tem a lín-gua portuguesa como oficial e a cabo-verdíana como materna, eu cresci alimentado por ambas sem nunca diferenciar qual das duas era mais suculenta pois que as usava indiferentemente, e por isso ambas fazem partem do que sou, razão por que não quero viver sem nenhuma delas, sei que perder urna me amputaria em metade.

Ela, contudo, é susceptível, ressente-se quando lhe sofreiam o uso desmedido dos vocábulos. Julga que seria como prendê--la com cordas às camas secas de um quarto de hotel com luz néon. Assim, sigo-lhe os ditames, deixo que ecoe em meu coração. Afmal, ela me estruturou o pensamento, cedeu-me o vizinho, os acordes de Mozart, facilitou que eu inquirisse sobre o significado de ser parte da poética da existência, da epopeia do cotidiano.

Esta lingua, que é prólogo e epílogo, faz meu corpo existir. Com ela viajo pelo mar do destino. Já pelas manhãs, ela em pessoa abre as cortinas da representação cênica do mundo e assopra - me a fma aragem do mistério. Como resposta, ativo à realidade, faço cintilar o seu timbre sensível, circunscrevome ao picadeiro humano.

Sua sombra, porém, desapiedada, priva-me às vezes das cartas de amor resguardadas entre os lençóis que recendem ajasmim. Castiga-me com o fracasso. Mas consolo-me sabendo que enquan-to o verbo projetar sua luz incisiva sobre o inventário da arte, eu não me exilarei do mundo.

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Até terminarem o curso, os dois irmãos, separados por pouco menos de dois anos de idade, partilharam o mesmo quarto, acanhado e austero. Nas paredes ape-nas a fotografia a preto e branco de Charlie Parker, o saxofonista maldito. Em vértices que se opunham em diagonal, um divã estreito. Cada um tinha uma estante / secretária onde habitavam duas bibliotecas incipien-tes que eles quase não partilhavam. Havia mesmo uma certa rivalidade hostil. O conteúdo distinguiu-os desde

muito cedo. Num lado, alinhava-se ciência nas fórmulas simples das narrativas de Rómulo de Carvalho e da colecção Que Sais-Je- um prenúncio da sua devoção a Montaigne?-, além de romances, filosofia e alguma poesia. No outro, vivia sobretudo poesia que ia sendo arquivada numa memória prodigiosa. Aliás ambos a mus-culavam na procura da “vasta e infinita profundidade” de que falava Santo Agostinho.

Quer o temperamento, quer a expressão de outras faculdades como a vontade ou a inteligência, por exemplo, os distinguiam. Um estava marcado pelo ferro imperioso de um certo sentido do dever e estudava muito; o outro estudava pouco, mas escrevia pá-ginas e páginas que acabavam invariavelmente cesto dos papéis.

Ambos frequentavam medicina. Um cresceu médico com o gos-to pela escrita; o outro tornou-se escritor e aproveitou a medicina para alimentar a sua ficção. Tornou-se assim um “ladrão”, como dizia de si próprio o grande médico poeta William Carlos Willia-ms, porque “ouvia as palavras, frases conhecia pesas e lugares - e usava tudo isto nos seus escritos”.

O médico nunca se aventuro na ficção, embora guardasse um

o irmão prof. de medicina, neurologista, cientista e também ensaísta, prémio pessoa, evoca o percurso comum com o irmão escritor, a grave doença deste e como ele transformou essa experiência “num admi-rável, e mal disfarçado relato autopatográfico” num dos seus livros mais famosos

manancial infinito de histórias. Mas não era capaz de atravessar aquela fronteira sem guarda, para além da qual o mundo singular da clínica revela a sua intimidade mais secreta. Contentou-se as-sim toda a vida, a beber as emoções contidas nas narrativas que ia ouvindo, bem ciente do facto de que a doença nos conta muitas vezes os seus segredos “in a casual whisper”, na palavra de um sábio cirurgião inglês.

Concluído o curso, partiram: o mais novo para Nova Iorque, o mais velho para Angola. Um, foi aprender um ofício; o outro, foi aprender a guerra. Ambas as experiências deixaram marca inde-lével e moldaram decisivamente os seus destinos de cirurgião do cérebro e de caçador das vidas alheias. Este tornou-se famoso na selva da escrita, acumulando prémios e honras. o outro ganhou algum reconhecimento dos pares e um público modesto que apreciava aquilo que escrevia sob a forma de ensaio, o modelo de reflexão em que tentativamente, escoava a sua forma de pensar. É provável que cada um não lesse muito do que o outro escrevia, amador e profissional tão diversos no estilo e no conteúdo, mas havia entre eles um respeito quase solene pelo mister de cada um, pois reconheciam a seriedade do compromisso que tinham assumido. Formavam pois um binómio complexo, razoavelmente equilibrado, mas mantinham ao longo dos anos uma distância quase cerimoniosa, que parecia diluir um afecto cuja profundi-dade era difícil de medir. Até que um dia…

Até que um dia foi diagnosticado ao irmão escritor um cancro no intestino, e um clarão súbito iluminou com esplendorosa ni-tidez a intimidade de uma relação que ambos, no fundo, talvez desconhecessem. O médico foi imediatamente chamado, porque

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sôbolos rios que vão

história “médica”, como as que escreveu Chekhov, por exemplo, que, segundo dizia, ilustravam o “e stofo vulgar da humanidade”. Ou, então, como as últimas novelas de Philip Roth, a mais recen-te das quais, Nemesis, fui lendo em paralelo com estes “Sôbolos rios”, e que combina uma fira descri´ão clínica e epidemiológica de uma doença terrível - a poliomielite -, com a desesperada ten-tativa dos sus heróis de encontrarem uma explicação para a incom-preensível crueldade de um deus com uma alma sem ouvidos nem olhos. O livre de ALA está, quanto a mim, talvez mais próximo de Ravelstein de Saul Bellow, aliás duplamente biográfico, porque é a história combinada das doenças de Allan Bloom e do autor, ou até do De Profundis de José Cardoso Pires, mas, em relação a este, o livro de ALA tem uma outra complexidade e opulência literárias.

Devo dizer que a leitura inocente, a pura e dessinteressada ime-rão na escrita, não é possível quando está condicionada pelo pro-pósito de escrever sobre o que se lê. Não é que o não faça sempre com um lápis na mão, timbre do “verdadeiro” intelectual, que se-gue há séculos o conselho de Erasmus no seu “De Copia” de 1512. Mas, nestas corcunstàncias, esta é uma leitura a dois tempos, pois, à primeira apreensão do sentido do discurso, segue-se um segun-do movimento, uma nova leitura, da qual emerge um outro juício, mais analítico, a confirmação da impressão inicial de que o livro contém algo de precioso, como se - e perdoe-se a infeliz metáfo-ra-, na primeira se debatesse o brilho de um pequeno diamante, e na segunda se libertasse este da ganga que o prende.

Muito se fala da dificuldade da leitura das obras de ALA. Perce-bese porquê. A sua escrita exige o foco de uma concentração abso-luta pela complexidade da sua estrutura narrativa, que possui uma tal energia interna, que nos precipita numa leitura vertiginosa. Mas esta vertigem tem de ser controlada, sem o que o sentido do que se lê nos escapa irremediavelmente. Ou seja, esta leitura obriga ao recurso equilibrado às mais sofisticadas facultades dos espïrito, e admito que a corte eneorme de devotosd so livros de ALA tenha aprendido um modo próprio de o ler. No meu caso a leitura era interrompida ao fim de dois capítualos, pois deixava exausta as redes neuronais devotadas a tal função e exigia o repouso sinapses esgotadas.

Para o leitor desprevenido, parte da dificultade deve-se ao facto de esta narrativa se aproximar do modelo que se tem chamado de “stream of consciousness”, que, neste caso, não se confina ao que sucede num dia, como no Ulysses ou em Mrs Dalloway, mas em dez, dez dias que se sucedem num fluxo tenebroso.A leitura é ainda exigente pelo menos por dois outros motivos. Em primeiro lugar, pela necessidade de não largas o fio do tempo nar-rativo, pois este obriga op olhos da inteligência a mirarem simul-taneamente uma dízia de écrans que revelam cenas diferentes que ocorrem em tempos distintos em caótica diacronia. O que é evi-dente, mesmo para este não especialista, é o domínio assombroso da técnica, a caàcidade de manter a coerência da narrativa sempre

ANTÓNIO LOBO

um cresceu médico com o gosto pela escrita; o outro tornou-se escritor e aproveitou a me-dicina para alimentar a sua ficção

naquela família de seis irmãos todos reconheciam a sua autoridade nestas matérias, sustentada talvez por uma sageza precoce, além do sangue-frio e racionalidade operativa com que olhava de frente o inimigo. A impassibilidade daquele cancro, naquele irmão, dei-xou-lhe, no entanto, o coração suspenso. A notícia soara-lhe como o repicar de um enorme sino na nave de uma catedral vazia. E logo sentiu aquele espasmo interior que ele tão bem conhecia e sempre lhe encolhia as vísceras nas ocasiões sérias. De imediato vestiu o seu trajo de “sobrehomem” que exsudava confiança na ciência, que enxotava as estatísticas fúnebres e que garantia que a eternida-de estava, apesar de tudo garantida.

Dois anos depois, António Lobo Antunes (ALA) transformou a sua experiência num admirável, e mal disfarçado relato autopatográfi-co - para usar a nomenclatura certa-, cujo título foi buscar a Ca-mões, Sôbolos rios que vão.

O livro chegou-me em 13 de Outubro de 2010, com uma de-dicatória simples: “Para o meu João”. Logo ao fim das primeiras páginas me surgiu uma invencível vontade de sobre ele escrever, e o incluir, como (inesperada) preferência pessoal, neste cânone singular que concede aos seus autores uma absoluta liberdade de escolha. Poderei explicar a minha por duas razões simples: em pri-meiro lugar, por considerar esta narrativa uma obra prima desta variação particular do género biográfico; em segundo lugar, por-que há muito percebi que só devo escrever sobre o que me apetece, embora esta não seja condição e, muito menos, garantia, de quali-dade intelectual ou estética.

Será demasiado simplista classificar esta narrativa como uma

ANTUNES

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tão tensa quanto a corda de um violino. Uma analogia musical que me pareceu apropriada à medida que ia ava avançando seria talvez a “Sagração da Primavera”. Em segundo lugar pela abundância das personagens. Algumas surgem inesperadamente, com a imperti-nência de um “Jack-in-the-box”; outras são figurantes ocasionais e silenciosos que vão aparecendo de forma recorrente, outros ainda atores secundários numa comédia dramática se é permitido o oxí-moro. Herói só narrador.

Em contraste com a complexidade da estrutura da obra, a es-crita é de uma extraordinária simplicidade. Ala tem em relação ao diálogo, o que Mozart tinha em relação à música - um ouvídio absoluto. O discurso é um “stacatto” de frases muito curtas: “Por-que me atraiçoaram voçês?”; “Não foi por mal senhora”; “Tira os sapatos da poltrona”; “Há quatro anos não me visitas a cam-pa”; “ Estás óptimo”; “Quando cresceres comrpeendes”, cada uma absolutamente certeira. Algumas têm o registro de uma metafísi-ca ditraída: “Porque motivo não morres?”. Outras são desabafos impacientes-”Alcancei a veia e perdia-a”. E no meio desta prosa, vamos tropeçan-do em metaforas e imagens de uma luminosa veracidade:-”Minha mãe antes dos pulos algemados no terço”; “E ficaram ambos ciercunflezos de melancolia”; “O granito que se-gregava lagartitxas” essa lagartitxa a “aprender a ser pedra numa falha do muro”; “ninhos de cegonha pingavam chaminés abaixo”.

O que é contado neste livro, tão contidamente biográfico - “An-toninho” e “Antunes” assim se chama o herói - é a história da estadia do autor no hospital onde foi operado a um cancro do intestino entre 21 de Março e 4 de Abril 2007. Cada dia é uma estação de uma via sacra cujo final o autor não revela. Para mim, reconheci nele muito que me era familiar, porque nele encontrei fragmentos de vida que eu já conhecia antres do livro ser escri-to - personagens, cenários, situações retiradas do património fa-miliar, da memória coletiva privada. Por isso, escrever sobre este livro é quase uma traição, a revelação do segredo de um truque de magia. E, no entanto, senti-me confortável com esta intimidade ficcional, que anulava, pelo argumento de uma cumplicidade de muitas décadas, a respeitável distância entre o autor e o leitor. Mas para vencer a curiosidade irresistível de conhecer como ALA vivera a experiência aterradora da doença, e para tnetender melhor, era preciso cristalizar em forma escrita muitas impressões desta via-gem “sôbolos rios”. Por outro lado, o meu interesse derivava ainda

do facto do escritor - que acontece ser meu irmão - estar a falar do meu ofício, cujas múltiplas faces são mais justamente apreciadas por quem olha para nós, porque não se inventou ainda o espelho que nos devolve tal imagem.

Esta é a memória episódica de uma doença tal como esta se desenrolou no quotidiano de um internamento hospitalar. As re-ferências explícitas à razão deste e à natureza da doença que o de-terminou encontram-se dispersas e quase submersas na narrativa, mas emergem, como golfinhos, com uma periocidade sem regra, como que para recordar o que constitui o cerne do sofrimento do autor, muitas vezes inscrito num mundo onírico ou mesmo alucinatório. O contraste entre a autoridade imperial do médico, sempre identificado como o “homem do pingo no sapato”, e a vulnerabilidade absoluta do doente marca toda a narrativa. Ao he-rói resta o refúgio regressivo nas memórias de uma infância vivida no cenário que ALA constrói a partir de recordações das férias em Setembro numa vila de Beira Alta, nessa casa cujo castanheiro gran-de lhe dava o nome, e num tempo em que ainda ninguém morrera e éramos todos felizes, para recorrer ao verso pessoano. E é na ár-vore, naquele castanheiro tão fértil, que ele encontra uma metáfora adequada ao cancro que o aflige: o ouriço que vai “aumentando em silêncio”, porque como disse um outro escritor, Harold Pinter, as células cancerosas “have forgoten how to die I and so extend their killing life”, renovando-se implacavelmente como os ouriços do castanheiro.

Era nessa casa que conviviamos com um avô que morreu, mais novo do que nós somos agora de um mesmo cancro, que ele re-corda a ler na varanda o “jornal com o seu apare- lho de surdo” e de quem herdámos, como nossa mãe, esse traço genético. O ritual da morte nessa terra da Beira Alta era bem diferente da liturgia urbana, a que as agências funerárias da Benfica da nossa infância garantiam uma lúgubre solenidade - Benfica é dona de um vasto cemitério, onde se encontra o jazigo familiar. A morte que o autor descreve era a dos anjinhos vestidos de branco levados à sepultu-ra em caixão aberto forrado de setim, acompanhados de “outras crianças vestidas de serafun de guarda ao caixão”, com “asas mal coladas nas costas”.

As personagens que habitam a narrativa são, naturalmente, os fantasmas dessa infância: Vírgílío, homem da lavoura de uma se-nhora dulcíssima que ele provavelmente amava em silêncio, e que conduzia uma carroça puxada por uma burra, a “Carriça”, que nos parecia enorme, o senhor Vigário, a Dona Irene que, dizia-se, toca-va uma harpa que nunca ouvimos, o senhor Casirniro da loja que vendia tudo e, no alto da escada de uma casa quase senhorial, D. Lucrécía, , pergunta: “O que se passa com o miúdo?” E a resposta é de uma franqueza crua, de uma frígida neutralidade clínica: passa--se que há “células podres do intestino a invadirem - no destruin-do os pulmões, os rins, o fígado”, uma traição monstruosa de uma parte do corpo, subitamente tornado inimigo: “ele a encher-se e esvaziar -se num ritmo penoso, cada célula uma boquinha aflita, cada nervo um arrepio brando”. E o “médico do pingo no sapato” mostrava ao dono do hotel onde, em miúdo, apanhava as bolas de ténis com que o pai jogava com uma enigmática inglesa loura” o “ouriço da doença” . E dizia: “Não sei se consigo desprendê-lo do

era nessa casa que conviviamos com um avô que morreu, mais novo do que nós somos agora de um mesmo cancro

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ramo”, salpicando o discurso de sentenças curtas, num presságio ominoso: - “Não gosto desta vértebra”. Afinal era necessário es-perar” o resultado da peça/ e que curioso chamar peça à doença” . Mesmo assim, a esperança não ~e submete pois essa criança: “tinha a certeza de não morrer nem se tornar num retrato que um suspiro emoldura”.

O nevoeiro do despertar da anestesia é magistralmente descri-to: “Formas que iam, vinham e tornavam a ir, se sobrepunham e afastavam, rodavam lentamente ou elevavam -se e caiam depressa ( ... ) Tentava dar nome às formas e não achava os nomes ( ... ) Não tinha corpo, era uma forma entre os restantes formas”. E no acordar a voz da mãe:’ “Começa a dar por nós”. Ainda incapaz de falar, contudo, “o começo da língua e um tubo a atravessar os dentes”. ( ... ) Se apenas falando, embora não desse pelas frases, tinha a certeza de ser”. Só mais adiante, quando começa a erguer--se de uma amnésia movediça, ele recorda a anestesista, “invisível no excesso de brancura. / Feche o pulso com força / e fechou o pulso intimidado a pensar / Socorro”.

A vulnerabilidade é absoluta, como se o eu autónomo, o eu so-cial o tivessem abandonado, desistido dele próprio: “Puseram-lhe fraldas e não estranhava as fraldas, limpavam-no com um pano e as suas intimidadas a balouçarem inúteis”. E ainda: “Sentia a uri-na na algália não lhe pertencendo, atravessava-o apenas como as recordações e as ideias o atravessavam apenas, o passado remo-to, o presente alheio, o futuro inexistente”. O esvaziamento de si era aterrador: “via caras e não conhecia ninguém, falava-Ihe e não escutava, ocupavam-se dele e não era dele que se ocupavam” . Deixara de ser “pessoa sem dar conta, era um peixe numa água mais espessa que a água, a que outros chamavam ar e ele chamava ar igualmente antes da dor que não chegava a dor”. Já antes notara que logo após o acordar “embora a incisão principiasse a maçá--lo”, aquilo não era dor ainda: era a “vizinhança da dor”.

De olhos já abertos vai registando o que se passa: “Se uma cam-painha tocava traziam um biombo e atrás do biombo agitações, murmúrios, as lâmpadas pestanejavam sinais”. Uma “empregada de hotel corrigiu- lhe os pingos do soro e as narinas observadas do travesseiro gigantescas”. E ainda notando: “Morreu alguém no hospital, ele ou outro porque mais vozes no corredor, mais passos e a porta fechada num com licença apressado” .Ele era o destinatá-rio de frases curtas, sem uma pitada de afeto (mesmo que simula- do]: “ Vamos meter um antibiótico no soro”, “Não se entende esta febre”, “Uma picadinha”, “Hoje em dia temos mais recursos”. O tempo é agora sentido de outro modo: “Os relógios marcam as horas uma a uma mas os dias sucedem-se aos pulos, vão de sábado a quinta e de segunda a sexta, semeado de intervalos que a lem-brança perdeu”.

À medida que os dias correm parecia ganhar uma outra lucidez, mas o refúgio na infância é ainda o mais seguro. Os comboios que via passar da varanda da casa, recordam -lhe a carta que escrevera a Deus no Natal pedindo-lhe um comboio elétrico. Mas Deus delega na avó a resposta seca: “ - Ele acha muito caro”. Descobre “como o mundo se modifica ao darmos-lhe atenção”, um mundo de flores, frutos, insetos, pássaros e gatos. Agora parece- lhe que tudo isto fora imaginado: “inventei esta doença que por seu turno se inventa

conforme inventa o hospital, os médicos e a fantasia do morrer”.Já quase no final chega uma ex-mulher: “Ainda que não acredi-

tes, e é evidente que não acredites, não nos vemos há anos, sou o que deixava a toalha obliqua no toalheiro e tu endireitavas irritada comigo / - Nem isto sabes fazer?”. Ela senta-se na ponta do col-chão esperando que ele não lhe tocasse; “e não toquei a fim de não ser expulso por um cotovelo maçado / - Não se pode dormir?” Está assim reduzido à condição de viúvo que antes descrevera as-sim: “o viúvo que se esquece das coisas, o tubo da graxa sem rolha ( ... ) só metade da cama desfeita e na outra metade um vazio a que se habituara como ao avental no gancho”.

Deixei para o fim aquilo sobre o qual é mais difícil falar - a sú-plica insistente que a personagem dirige aos pais. A mãe é um ser discreto, mas é ela que surge no fim da história. Como eu sempre escrevi, a doença, quando vence a morte, é como um regresso após uma viagem, uma odisseia atribulada, a excursão de “uma vida cheia de passados e não sabia qual deles o verdadeiro”. Na sua viagem chega a um porto tranquilo, agora “sentado no chão à me-dida que a mãe enjeitava a máquina de costura e a enrolar-se nas penas para a ouvir cantar. O pano caíra: “A enfermeira já desligara o écran, tirara a agulha do soro, fechara o oxigénio” . Já o vesti-ram de outro modo e a avó comentara: ‘’Assim compostinho até pareces um homem”. A mãe fizera -lhe a risca no cabelo, mas era o mesmo menino que nascera com “três quilos e duzentas numa toalha de linho”, “três quilos e duzentas de secreções e pregas e um cordão roxo no umbigo”. Mas já nascido ainda desejava que a “mãe o lambesse como I fazem as ovelhas”. Mais enigmática é a personagem do pai, a quem o liga uma cumplicidade que nasce de uma história “louche” com uma empregada doméstica: “- Sabes o quê paizinho? / nunca o tratava por / - Paizinho / e todavia existiram ocasiões em que no interior de si / - Paizinho / e ele aborrecido com o / - Paizinho”.

Esta é uma admirável, pungente e angustiante descrição da or-fandade da doença, orfandade para a qual muitas curas têm sido propostas, mas todas com pouco préstimo, por- que esta é uma solidão que a voz ou a presença dos outros, mesmo quando de-sejadas, só fugazmente aliviam. O enigma do título só no final é decifráveis, e a sua escolha não poderia ser mais justa pois, como escreve Camões em certo passo, “Bem são rios estas águas, / Com que banho este papel; / Bem parece ser cruel! Variedade de mágo-as/ e confusão de Babel”.

João Lobo Antunes

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L E T R A S 18

“Diabólica e requintada, a poesia de Golgona Anghel é uma ma-quina implacável de irrisao” (Antonio Guerreiro); “Especie de en-ciclopedismo para pós-apocalipticos, o saber disponibilizado nos poemas não é afronta, nem pompa – é vestígio.” (Hugo P. Santos); “[Este livro]é um dos mais interessantes de entre aqueles que fo-ram publicados nos últimos tempos em Portugal e um dos melho-res escritos por uma jovem poeta” (David Teles Pereira). A receção foi entusiasta, como se vê. Vim Porque me Pagavam, agora em re-edição, confirma a voz de Golgona Anghel como uma das mais ambiciosas da novíssima vaga de poetas recentemente surgidos.

Dir-se-ia que a profusão de livros de poesia publicados e de poetas revelados nos últimos três a cinco anos é sinal de uma nova agitação de águas, um pouco como o que há dez anos sucedeu, quando entre uma poesia “sem qualidades” e uma outra lingua-gem, de aposta mais imagética e, por isso, menos descritiva e colo-quial, se estabeleceu uma, nem sempre foi a poesia, em si mesma, que ficou ganhando com o debate. Golgona Anghel assume, em todo o caso, não querer pertencer exatamente a filiação alguma, por muito que certos recursos não estejam longe do que veio a ser mais comum: conceber o poema como narrativa de episódios ba-nais e de circunstância. Não raro; encontraremos as mesmas ima-gens e atmosferas decadentes e uma anulação do trabalho retórico que à poesia exigia… Anghel, em todo o caso, podendo descre-ver esse mundo pós-apocalíptico de que fala Hugo P. Santos, nem por isso sacrifica à mera descrição ou à enunciação autobiográfica aquilo que mais lhe importa, a saber: rir de tudo, como se, mesmo sem ser evidente, falasse com a tradição vinda de Cesariny ou de O’Neill, de Adília Lopes ou mesmo de Tiago Gomes. É, pois, uma poesia culta que se quer apresentar ao leitor como despretensiosa e sardónica para com a erudição literária. Sobra, pois, a visão de uma cultura de capitadas, entregue ao cepticismo que mina as re-lações, a vida e toldade uma negritude o riso e o sorriso do sujeito destes poemas. Detestar o Doutor Fausto é, tao-só, fazer de conta, teatralizar um “não quero saber” que vai bem com o “engraçadis-mo” vigente neste tempo alarve e de riso fácil. No limite, quer-se,

poesia sem literatura?

aqui, ser contemporâneo do humor (ultima arma da indigência) à portuguesa, aquele que se vê nas inteligentes sessões de stand up comedy. O título, alias, é todo esse programa.

De facto, falando-se de Trakl, de Cioran, do jovem Werther, e quando tudo poderia indiciar um discurso catastrofista e decetivo, artificialmente de adesão aos suicidados da história, eis que a voz da enunciação corta com essa ambiência culturalista no texto e declara: “ O mais difícil foi, no entanto,/ desaparecer para depois surgir/ com estas luvas anti-bacterianas/ e os comprimidos bac-terianas/ e os comprimidos anti-stress.” (p.75). Nem o corvo, já emblema literário escapa à irrisão de Golgona. Esmagado contra a porta da casa, é a própria Literatura que se esmaga. E por isso, em Vim Porque me Pagavam - e para alguém que veio de fora esta titulo esclarece muito. O elenco da visão é, não raro, enumerativo, convidando a ler-se nesta poesia mais do que está escrito. Pode-se fazer a lista das figuras que aqui desfilam: das empregadas brasilei-ras aos “sonhos transatlânticos” e ver-se-á, enfim, a preocupação maior desta poética – ser a voz deste “tempo detergente”. Lite-ralmente Golgona consegue comunicar com o leitor uma visão da realidade que, por alegoria, metaforiza o que se observa: “ A depressão começa a andar na moda/ Fiz diabetes, cortei as veias duas vezes,/ fugi de casa, gastei uma mulher em cada livro,/ perdi a paciência, o rumo da historia,/[…]/(tinham entretanto inventa-do a televisão)/ no minúsculo/ buraco negro/ duma bala” (p68). O certo é que, vendo a realidade cinzenta dos dias, acaba-se por edificar uma mascara que está na posse de um saber (repete-se o verso “porque eu sei que”) o qual é, na verdade, conferido pela Literatura. Paradoxo: entre dizer-se que se faz poesia porque sim, e assumir, sem pejo, que ela é feita porque há vários modos de se pagar a quem a faz, Golgona acabo por deixar o leitor perante os estilhaços deste livro. Ultima questão, pois: Há criatividade nos textos de Golgona Anghel, é certo. Mas lembremos, para o futuro dos seus livros, o que um dia escreveu M.S. Lourenço, em Os De-graus do Parnaso: “[…] A situação que atualmente se vive é a da abolição da diferença entre o literato e o analfabeto secundário, negociando ambos um consenso de mediocridade, o qual produz uma legitimação reciproca e sem conflitos. […]. E, assim, o escri-tor legitima a plebe audiovisual, não fazendo exigências retoricas ou prosódicas ao seu público, enquanto este por sua vez legítima o escritor não fazendo exigências, nem de forma, nem de estilo.” (pp.68-69). Esperemos para ver.

GOLGONA

golgona consegue comunicar uma visão da realidade que, por alegoria, metaforiza o que se observa

ANGHEL

António Carlos Cortez

Golgona

VIM PORQUE ME PAGAVAM

Mariposa Azual; 86pp; 12,11euros

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L E T R A S19

Publicado na coleção Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas, este livro corresponde à tese de doutoramento que Carlos Nogueira apresentou em 2008 à Faculdade de Letras do Porto. Nasce pois no âmbito académico, sem contudo deixar de ser atrativo junto de um público mais alargado. Para isso, contribui largamente a clareza e fluidez discursiva do autor, mas também o facto de se ocupar da sátira; um género que se enraíza na mundivi-dência portuguesa de todas as épocas, mas sobretudo em períodos de crise, quando o sentimento intimo de desordem dá lugar à ca-tarse, pela denuncia dos vícios, defeitos e injustiças sociais.

O livro, que ganha assim em atualidade, sobressai alia no nosso panorama editorial, pelo folego da síntese que empreende em tor-no do objeto de estudo: a tradução da “sátira na poesia portuguesa, mas também o pensamento, o sentimento e o discurso satíricos em geral” (p.19).

Fundamentalmente, a estratégia adotada pelo autor assenta numa estrutura tripartida: o primeiro capitula onde procura com-bater alguns vazios e dogmatismos teóricos (p.21-88), um estudo diacrónico da nossa poesia satírica (apreendida sincronicamente no quadro teórico que marcou os vários períodos ou movimentos literários – p.89-561) e por fim uma análise critica, “simultane-amente comparatista e disjuntiva”, de três autores representativos da maturidade satírica portuguesa: Nicolau Tolentino, Guerra Jun-queiro e Alexandre O’Neill (p.563-736).

Na primeira parte do estudo, o investigador começa por des-fazer o equívoco (muitas vezes enraizado no senso-comum) que opõe lirismo a sátira, como se esta realização fosse incompatível com a sublimidade do discurso lírico.

O que o autor nos demostra é que a poesia satírica – contra-riando qualquer hierarquia dos géneros ou preconceito de estilo – não representa mais do que um modo derivativo, plenamente integrado no modo lírico (p.168), cuja visão complementa, par-tilhando alias muitas das formas, técnicas e mecanismos retóricos (p.56-87).

Á semelhança do que outros estudiosos observaram para o qua-dro específico da lírica galego-portuguesa, Nogueira defende que os textos satíricos, na sua generalidade, tem de ser vistos como exercícios integrados no mesmo código formal e ideológico que, ao longo dos seculos, presidiu também ao registo amoroso ou ele-gíaco. Isto mesmo se encontra largamente examinado na segunda parte do trabalho, onde o autor acompanha a evolução da poesia satírica portuguesa, desde a época medieval ate á literatura con-temporânea. Ao longo de 400 páginas, percorre a diacronia, focan-do sobretudo os poetas canónicos, mas também outras vozes im-portantes para a compreensão da sátira, como os poetas populares, os célebres cantores de intervenção ou a mais genuína oralidade anonima do cancioneiro tradicional.

Na impossibilidade de contemplar todos os nomes que fize-ram a história da nossa sátira (ate pela inacessibilidade material de muitas obras, que nunca chegaram a vir a lume), a estratégia de

a sátira portuguesa

Carlos Nogueira passa, antes de mais, por evitar a “mera inventa-riação e encadeamento de poetas” (p.739). Inversamente, procura articular visões de síntese com a individualidade das obras selecio-nada, confrontando, a cada momento, a prática poética dos autores com teorização que simultaneamente foram empreendendo, por vezes até de forma contraditória.

O resultado é uma história crítica da nossa poesia satírica, cen-trada na “reflexão, teórica e prática” (p.739), que permite, desde logo, reconhecer duas grandes linhas estruturais: uma mais bené-vola e contida ao nível dos meios expressivos; a outra mais contun-dente, pelo usa da imprecação e das obscenidade (p.420).

Os três poetas exemplares, que aparecem destacados no último capitulo, ilustram justamente essas tendências.

Nicolau Tolentino de Almeida, cuja teorização entronca no pro-desse ac delectare horacianos, representa o olhar simultaneamen-te lúdico e morigerador de quem deambula pela cidade (p.740), atentando nos pormenores, para edificar a caricatura irónica que faz desta sátira uma autêntica representação visual da condição hu-mana portuguesa em finais do séc. XVIII (p.614).

Guerra Junqueiro, cujo conceito de sátira sugere a contun-dente execução corpórea sobre um objeto (p.621), representa a máxima seriedade de uma poesia agónica e panfletária (p.647), fundamente comprometida no jogo político-social da altura. A imprecação da poesia, apaziguada por instantes de recolhimento elegíaco, é um cruzamento de varias tonalidades irónicas e sar-cásticas (p.685), cuidadosamente geridas ao nível retórico, para provocar efeitos junto das massas.

Finalmente, Alexandre O’Neill representa um conceito de sátira ambíguo, conjugando a indignação subversiva com o inevitável trago da decepção magoada (p.702). O ímpeto demolidor da sua sátira irrompe diabolicamente num calão sexualmente ofensivo (p. 700), que a todo o momento procura subverter os pretensiosis-mos da cultura totalitária (onde a linguagem poética se insere).

Do geral ao particular, Carlos Nogueira disponibiliza assim, nes-te livro, uma leitura estruturada a vários níveis, que alia a seriedade dos trabalhos académicos ao incomparável gozo que só os textos satíricos proporcionam, na actual conjuntura de crise. Também por isso, a sua leitura é incontornável.

CARLOSNOGUEIRA

Carlos Nogueira

A SÁTIRA NA POESIA PORTUGUESA E A POESIA

SATIRICA DE NICOLAU TOLENTINO, GUERRA JIN-

QUEIRO E ALEXANDRE O’NEILL.

Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ci-

ência e a Tecnologia, 828pp, 45 euros.

A autora integra no Centro de Investigaçao Transdiciplinar Cultura, Espaço e Memória da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Elsa Pereira

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O Teu Rosto Será o Último, Prémio Leya 2011, primeira obra de João Ricardo Pedro, um romance de aparente leitura simples, fluida, suave, é sustentado, no entanto, por uma estrutura de grande complexidade. Ainda que labiríntica, a estrutura estética que suporta a totalidade do romance emerge, primeiro, através de um estilo harmónico, cruzan-do e fundindo inúmeros espaços, tempos e personagens, umas permanentes, outras avulsas e, segundo, por via de uma rede solta de inúmeras e diversificadíssimas acções e

situações. Seja pelo primeiro, seja pelo segundo elemento da com-posição, é um romance que exige uma atentíssima leitura que, por-ventura, só numa posterior releitura conquistará o leitor. Já munido de um certo grau de conhecimento das linhas estruturantes do ro-mance, o leitor usufruirá, então, de um verdadeiro prazer estético.

Os capítulos curtos e os parágrafos soltos parecem resultar de uma voluntária contenção nar-rativa, que subtilmente deixa de suspeitar o sentido da men-te deste um rasto de significa-ção que, colado e cruzado aos restantes, vai gradualmente compondo na consciência do leitor a estrutura e o sentido do romance. Intermedeia diálogo e narração em períodos brevíssimos, compondo blocos de textos que, em jeito de puzzle, se vão organizando na mente do leitor, forçando-o a reconstruir a cronologia e a ordem estrutural.

Estilisticamente, O Teu Rosto Será o Último balança entre a frase curta, condensada, de timbre, lírico, de evidente inspiração visual ou cinematográfica, exprimindo sinteticamente a preparação ou o resultado da acção, e uma detalhada descrição da realidade ex-terior (ex.: pp. 132-33, processo estilístico repetido ai longo do

romance), leitmotiv do nouveau romance francês da década de 60, reproduzida em Portugal por Artur Portela Filho e Alfredo Marga-rido. Neste sentido surgem, entre períodos narrativos, descrições pormenorizadas da ida ao supermercado, da entrada no prédio da habitação até à abertura da porta do apartamento de Queluz…

Mais sugerindo que descrevendo, existe indubitavelmente uma mestria no exercício da ligação harmónica e umbilical entre o pla-no na história contemporânea portuguesa de Salazar a Cavaco Silva, e o plano da ficção. Neste sentido, não existe apenas o lançamento de pontes entre ambos os planos, como se a História se consti-tuísse como horizonte de fundo da ficção, e esta se evidenciasse como destaque daquele, como aconteceu na maioria dos romances portugueses. Diferentemente, João Ricardo Pedro consegue de tal modo entrelaçar e fundir a História real com as personagens que ambas se tornam indistinguíveis no corpo do texto. Ao contrário

da maioria dos roman-cistas portu-gueses vivos, incapazes de dominar nar-rativamente

as diversas dimensões do tempo, o autor não começa nenhum ca-pítulo nem nenhum

parágrafo com o tão parasitário quanto esteticamente horrível “entretanto” (ou, nos clássicos como Pinheiro Chagas e Mendes Leal, “entrementes”).Abordando a história contemporânea portuguesa desde a década de 1950 até à actualidade, o narrador faz o leitor entrar nela pela mão da família Mendes: Augusto e Laura; pais, António e Paula; filho e neto, Duarte. São assim três gerações que, entre uma aldeia

pela sua qualidade, honra o mais avultado galardão literário português, e o seu autor veio para ficar

TRAGÉDIAos dias de prosa - miguel real

LÍRICA

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João Pedro Ricardo

O TEU ROSTO SERÁ O ÚLTIMO

Ed. Leya; 207 pp; 13,30 euros

não nomeada (com nome de “mamífero”) na serra da Gardunha e Queluz, às portas de Lisboa, reflectem, para além da idiossincra-sia individual, banhada de lirismo, a tragédia existencial de terem vivido em Portugal. A tragédia é expressa no dramatismo consubs-tancial às constantes mortes escritas no romance: o avô materno morre torturado pela PIDE; o avô paterno morre entrevado, após um ataque de coração quando assistia, no Fundão, à passagem da Volta a Portugal em bicicleta; a mãe, Paula, morre com um cancro na mama, o pai, António, sofrendo de stress de guerra, suicida--se após a morte da mãe, com o conhecimento e consentimento do filho, Duarte; Celestino, o protegido do dr. Augusto Mendes, suicida-se ou é morto (não se sabe); a morte sinistra do Índio, menino pobre da aldeia; o próprio Duarte, em criança, motivado por uma pulsão biológica, mata um animal, que depões na cama dos pais, mutila formigas e despe-se à frente da menina Luísa, com quem, no final do romance, porventura casará (não se sabe); o dr. Augusto Mendes isola-se nos contrafortes da serra da Gardunha, abandonando definitivamente o Porto (não se sabe a causa). Ou seja, o elemento trágico dissemina-se pela totalidade da narrativa, sempre envolto numa escrita lírica, e Duarte, “o maior beethovia-no do seu tempo” (p.76), abandona o piano após três desmaios quando tocava Bach, considerando que a música (a arte) lhe am-putava ou sugava a vida, como a mulher austríaca, falecida em Buenos Aires, no hotel Policarpo, amputara a perna direita para se identificar com a mulher amputada do quarto de Bruegel patente no museu de Viena.

Tragédia expressa liricamente, O Teu Rosto Será o Último (que rosto?, o de Duarte?, o de Luísa?), pela sua qualidade, honra o mais avultado galardão literário português, e o seu autor veio para ficar, de certeza.

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Com o seu último romance, A sul. O Sombreir, Pepetela convida os leitroes a (re)visitar os primeiros tempos da ocupação colonial portuguesa dos territórios de Angola, altura em que a coroa portuguesa pertencia ao rei Fi-lipe de Espanha, Viviam-se momentos particularmente conturbados com o país subjugado por outro mas que mantinha o seu desejo de dominação de terras e povos de além-mar. É, pois, a história da conquista do território que se tornará a futura cidade de Benguela que o au-

tor nos traz, abrindo-se de forma desconcertante e promissora de grandes aventuras contades em tom irónico e expedito: “Manuel Cerveira Pereira, o conquistador de Benguela, é um filho de puta”.

Ao longo de perto de pquarto centenas de páginas, Pepetela constrói uma narrativa através de um jogo complexo e interessan-tíssimo de fragmentos de histórias individuais e da História oficial que se entrelaçam e se sobrepõem de forma surpreendente.

O entrecho arquiteta-se segundo dois níveis temporais, aos quais correspondem narradores com poder e conhecimento diver-sos. A História surge como uma forma concreta, como o resultado de experiências vividas por personagens que, alternadamente, vão tomando a palavra para contarem a sua perpetiva dos aconteci-mentos e de quem neles participou.. Estes retratos de memórias individuais (de, entre outros, Manuel Cerveira Pereira, o padre Si-mão de Oliveira, a bela Margarida, Carlos Rocha) são balizados por comentários de um narrador que, por não pertencer ao tempo da história, tem um conhecimento total não só dos acontecimentos e dos seus intervenientes mas também do desfecho e das conse-quências dos atos praticados nas primeiras décadas do século XVII.

Vários indícios assim como comentários desta curiosa persona-gem, tais como “era realmente um grupo multicultural, como se diz hoje” ou “a sua morte anunciava o fim da colónia de Bengue-la independente de Luanda. Mas isso nem Mulende, nem Carlos,

de luanda a benguela em

nem Kandalu, nem os mudombe oua as jagas podiam perceber”, ou ainda “tornou-se [a igreja de Jesus] na sé da cidade já depois de 2000”, permitem-nos situá-lo na contemporaneidade. Esta circuns-tância proporciona-lhe o distanciamento críticio e fundamentado que utiliza em abundância no realto da conquista de Benguela.

Neste livro, o autor regressa a um diàlogo peculiar com a Histó-ria que tinha encetado em 1997, com a publicação de A Gloriosa Família - O tempo dos flamengos (GF). Como várias vezes se tem afirmado, a obra de Pepetela funda-se numa incessante (re)visita-ção da História de Angola: dos seus mitos, das suas personagens, dos acontecimentos que marcaram o percurso da construção da nação. No entanto, nesse incontestável continuum temático existia, até à publicação deste novo romance, um exceção (utlizando este termo no sentido etimológico: de um fenómeno limitado e res-trito) no tratamento diegético e construção efabulativa desse tem, que era de GF, cuja a singularidade resulta da intrincada e sábia mescla entre documentos historiográficos e a efabulação literária. Recorde-se que em GF se narram os sete anos ( de 1642 a 1648) de ocupação holandesa de Luanda. Abre-se a narrativa com a cita-ção de um excerto de um texto fundamental da historiografia de Angola, da autoria de António Oliveira Cadornega: História Geral das Guerras Angolanas, que apresenta um cidadão de Luanda, Bal-tazar Van Dum, que se torna, pela mão de Pepetela, no protagonista do romance. Para além deste texto basilar da historiografia angola-na, outras epígrafes de outros tantos documentos historiográficos (devidamente indentificados através de referências bibiliográficas completas) abrem os vários capítulos, reforçando e aprofundando o diálogo entre a literatura e a História.

Essa singularidade de construção diegética na produção romanes-ca do escritor é agora contrariada com a publicação de A Sul. O Som-breiro (ASS), que se constitui como um feliz e admirável regresso à meteficção historiográfica (tal como a definiu a Linda Hutcheon),

PEPETELAbusca do sombreiro

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ASS constitui-se como um misto de epopeia, de relato de viagem e de romance de aventuras, que nos oferece uma imagem das lutas que marcaram aquele período da ocupação colonial de Angola, vista segundo várias perspectivas, tantas quanto os narradores que tomam a palavra. Desse alargado conjunto, destacam-se duas vozes que pertencem a duas personagens em torno das quais se constrói a intriga: Manuel Cerveira Pereira e Carlos Rocha, e que involun-tariamente trlham percursos paralelos. Uma indesejável coinci-dência liga a indesejável coincidência liga a existência de Carlos Rocha, um alegado descendente de Diogo Cão, à do governador, que os leva a percorrerem os mesmo caminhos, a contatarem com os mesmos indivíduos, a buscarem igual destino. Os seus relatos constituem-se como testemunho de um fazer humano no tempo, intensificado pelo registo na primeira pessoa dos narradores, que assumem, desta forma, o papel de testemunhas presenciais daquilo que viram, ouviram ou construíram e que agora contam.

A busca do passado é assim empreendida pelo viésda experiên-cia individual complementada pela apropriação diegética do do-cumento historográfico. A narrativa nasce de um jogo de espelhos, onde cada uma das perspetivas(a pessoal e a oficial) se reflete na outra que a deforma e enriquece, permitindo uma visão plural sobre os indivíduos e os acontencimentos que marcaram as pri-meiras décadas do colonialismo seiscentista em Angola.

a obra de pepetela funda-se numa incessante (re)visitação da história de angola

ao tempo que antecede aquele narrado em GF(Manuel Cerveira Pe-reira chega a Luanda com o cargo de capitão-mor nos primeiros anos do século XVII e morre em 1626, cerca de década e meia antes da dominação holandesa). Com efeito, a ameaça da ocupação holan-desa de Luanda já pesponta na narração, havendo referências fugazes às intenções de conquista dos holandeses das terras ocupadas pelos portugueses, nomeadamente no relator do governador.

Em ASS, o questionamento da História faz-se pelo viés de um aturado diálogo com os ducumentos historiográficos por detrás do qual se adivinha um intensa pesquisa documental, aliás confir-mada explicitamente

em nota autoral de posfácio e de modo mais subtil ao longo dos relatos. Num jogo, a que Pepetela já habituara os seus leitores, so-mos confrontados com referências a factos apresentados e comen-tados pelo narrador que subrepticiamente nos vai dizendo do seu trabalho de pesquisa. Por isso, referindo-se as fontes consultadas, adverte-nos que “os registos não mencionam” as informações ne-cessárias para tornar o seu relato mais completo, ou ainda que não pôde encontrar “referências explícitas nas crónicas”.

O diálogo com o leitor leva ainda o narrador a especular sobre as nossas atitudes perante a leitura, adivinhando as nossas expec-táveis curiosidades ou desconfianças. Assim, de modo irónico e desconcertante previnenos, em texto diferenciado da mancha grá-fica e destacado por parênteses retos, para salvaguardar qualquer distração nossa: “[Aviso desinteressado aos leitores: inútil procurar os nomes num mapa, pois nem eles estão bem escritos, vindos todos de tradição orla e corrompidos pela péssima audição dos portugueses para as nossas línguas, nem fazem parte da paisagem há muito tempo.]”. O jogo com o leitor, na procura da sua cum-plicidade, estende-se ainda à construção discursiva. Ao jeito da es-trutura paralelística da lírica trovadoresca, os incipit dos capítulos retomam a expressão que encerra o capítulo imediatamente ante-rior, criando um efeito de prolongamento textual e de esbatimento da convencional interrupção do parágrafo , por via da repetição vocabular. surpreendendo o leitor com insólitasa reutilizações de palavras ou de conceito.

Pepetela

A SUL.

O SOMBREIRO

D.Quixote; 360 pp.; 15 euros

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a palavra e a imagem

Na mesma magnífica coleção (dos CTT) de livros / álbuns a que nos referimos na Estante (das Ideias) na nossa edição de 22 de fe-vereiro, descreyendo as suas características esenciáis – acaba de sair um novo volumen, A Palabra e a Imagem, de Paulo Mendes Pinto (PMP). Tema que tem a ver, como sempre, com o lançamento de novos selos, incluídos na parte inicial da obra, em que se estudam ou versam 50 sepisódios bíblicos através de outras tantas obras de arte portuguesas – desde, no Antigo Testamento, “A criação dos animais” (retábulo de Grão Vasco na Sé de Lamego) até, no Novo Testamento, a “Ascensão de Cristo” (óleo atribuído a frei Carlos, no Museu Nacional de Arte Antiga). O texto abrindo com citações bíblicas, diz ou explica o que significa cada um desses episódios. Num curto prefacio, o o teólogo padre Joaquim Carreira das Neves escreve:

“O presente livro é um ato de coragem onde se conjuga a estéti-ca da pintura com a hermenêutica da palabra (…) É este telejornal da Palabra feita imagem que PMP nos entrega para passarmos da lectura significante à lectura significada. Esta lectura vem de lon-ge, das catacumbas de Roma e de todas as catacumbas das nossas ‘cavernas’ platónicas cristos em demanda da luz da palabra feita mistério e feita imagem. O colorido poliédrico da imagem rompe com a teología apofática para regressar ao ‘não falar’ e ‘não dizer’ da imagem. O ícone é sempre um ‘mais’ colado à Palabra como a fotografia do amado ou amada na presenta da sua ausência.”

Esta coleção dos CTT vai em 150 títulos editados e a uma das obras ‘recenseadas’ no penúltimo JL, A tradição do pão em Portu-gal, de Mouette Barboff, foi agora atribuído o prémio de melhor livro do mundo sobre pão, do Gourmand Worl Cookook.

Paulo Mendes PintoA PALAVRA E A IMAGEMEd. Clube do Colecionador dos Correios, 176pp.

ficção

joão eduardo ferreira

“Claro que todas as palabras são ocas. O que pode valer é o eco que dentro delas provocamos”. É o trabalho sobre a própia escrita, entre aforismos e poesia, o que mais cativa na mais recente obra de João Eduardo Ferreira, publicado na Apenas Livros. Azul 25 Li-nhas tem a forma de um diário, como é explicitado pelo autor no prólogo: um pequeño bloco azul oferecido por um amigo no Na-tal que que quis preencher. Mas não se encontra aquí uma escrita espontânea diarística, do género conta corrente. Há um trabalho sobre a forma, que aproxima o livro da poesia ou de algum outro género indefinido.

luís rainhaAngiogénese, Derrelicção, Eletroplasma, Iatrofobia, Mnemosfera, Pirofania, Sizígia. São mesmo palabras difíceis as que dão título a estes contos. Mas é n asua decifração, através da história que se conta, que está a base deste jogo de letras. Nascido em 1962, Luís Rainha tem formação em engenharia e sociologia, sendo hoje dire-tor creativo da agência de publicidade Laranja Mecânica. Nestas três atividades talvez se encontre o segredo destes contos: histórias do cuotidiano envoltas em modos de contar muito diversos. De resto, a atenção à forma é um dos traços que mais se distingue neste livro, já que ao lado de histórias ‘normais’ outras assumen a forma de alíneas, de bibliografia comentada e de banda desenhada (com

desenhos de João Fazenda). Distinguido com uma menção honrosa no VIII Prémio Nacional de Conto Manuel Fonseca, 18 de Palavras Difíceis é o quarto livro de Luís Rainha, depois de Noites de Lisboa, Últimas Palavras e O Último Segredo de Fátima.

Luís Rainha18 PALAVRAS DIFÍCEISTinta-da-China; 192 pp.; 16,20 euros

João Eduardo FerreiraAZUL 25 LINHASApenas Livros; 76 pp.;4,90 euros

patrícia melo”Um ano antes, eu era gerente de telemarketing Numa central en São Paulo, responsable pela venda de aparelhos de ginástica, desses que você dobra, coloca em Baixo da cama e não usa nunca mais”. Assim era, de facto, a vida do narrador do novo livro de Patrícia Melo, que em Portugal passou a ser editada pela Quetzal. Agora, este homem de meia-idade encontra-se no meio do Pantanal, perto da fronteira com a Bolívia. Está em fuga, longe dos olhares, já que fora implicado, em São Paulo, no assassínio de uma mulher. E se a sua já estava condenada, pior ficou quando viu, Numa tarde de domingo, um avião cair. Uma nova fuga estava prestes a iniciar-se. Como em Matador, Mundo Perdido, Inferno ou Jonas, o Copro-

manta, o estilo de Patrícia Melo é reconhecível desde a primei-ra linha. Um narrador na primeira pessoa, uma ação contínua e um suspense em crescendo. Ingredientes explorados ao limite em Ladrão de Cadáveres, que não deixa de se referir à violência que assola os confins do território brasileiro.

Patrícia MeloLADRÃO DE CADÁVERESQuetzal, 208 pp, 15,50 euros

roberto bolaño

Quando publicou o seu primeiro romance aos 40 anos, Rober-to Bolaño estava seguramente longe de imaginar o sucesso que os seus livros alcançariam, sobretodo despois da sua morte e da descoberta do monumental 2666. Instalando o fenómeno à escala mundial, regressam agora às mãos dos lectores essas obras iniciais, como este A Pista de Gelo, justamente a sua estreia. Aquí, não será exagerado dizer, encontramos todos os elementos que suportaram a fama internacional de Bolaño. Uma fértil imaginação, um enre-do intricado, uma especial atençao à violência e a noção de que nunca saberemos realmente o que aconteceu. Que o digam os três narradores deste romance, instados a explicar um crime que não cometeram mas que, na verdade, podiam ter evitado, cada um à sua maneira. Sob este pretexto, o escritor chileno, que se fixou nos anos 70 em Espanha, onde morreu em 2003, toca nos temas de corrupção na política, o amor, o desenraizamento, a amizade e os sonhos perdidos.

Roberto BolañoA PISTA DE GELOTradução de Cristina Rodri-guez e Artur Guerra, Quetzal, 200 pp, 16,50 euros

eudora welty”Aquilo que faço quando escrevo sobre uma qualquer personagem é tentar entrar na mente, no coração e na pele de um ser humano que não sou eu. Quer se trate de um homem ou de uma mulher, velho ou novo, com pele negra ou branca, o principal desafio é o salto em si. O ato da imaginação de um escritor sobrepõese a tudo”. Eis a arte poética de Eudora Welty, que passou a vida inteira

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a captar a essência do sul dos Estados Unidos da América, os seus habitantes e ilusões. A par de uma variada obra como contista, a escritora, que nasceu em 1909 e morreu em 2001, é também au-tora de cinco romances, o último dos quais agora publicado pelo Relógio d`Água. Passados muitos anos desde o dia que abandonou da cidade onde cresceu, Laurel Mckelva regressa a casa devido à morte do seu pai. Será também um retorno ao passado, que recor-dará para chegar a novas conclusões.

Eudora WeltyA FILHA DO OPTIMISTATradução de Margarida Pe-riquito, Relógio d`Água, 144 pp, 12,50 euros

quatro thrillersDepois de Intervenção, a editora Europa – América prossegue a publicação das Obras de Robin Cook, o escritor e oftalmologista norte-americano reconhecido como o fundador do ‘thriller médi-co’. Cura (368 pp, 19,75 euros) é o 30.º livro do autor dos best-sellers Intenção Criminosa ou O Corpo Estranho, e conta a história de Laurie Montgomery, uma médica legista de Nova Iorque que, após um longo período de ausência, regressa ás suas funções para enfrentar um caso complexo, que envolve crime organizado e duas empresas recém-criadas de biotecnologia. Com o selo da Clube do Autor, sai tambén um novo título de outro dos escritores mais populares da actual literatura de suspense: O Jogo da Verdade (436 pp,18,95 euros), de David Baldacci. Um propietário de uma em-presa de armamento (Nicholas creel) e um ‘gestor da perceção ‘ (Dick Pender) unem-se para encenar e facer circular o vídeo de um homem a ser torturado, com o objetivo de criar uma guerra à escala mundial. Mas o ‘jogo’encontra um adversário inesperado, Shaw, o herói sem Nome própio que também protagoniza o seu A Conspiração do Silêncio. “Serras de gesso zumbiam, água corrente tamborilava e o pó de osso pairada no ar como Farina. Três me-sas ocupadas. Vinham mais corpos a caminho. Era terça-feira, 1 de Janeiro, dia de Ano Novo”. Assim começa o 16.º livro da saga po-licial de Patricia Cornwell protagonizada pela médica forense Kay Scarpetta. E poderia continuar: “Ano Novo, Vida Nova”. Pois neste tomo (Scarpetta, 404 pp, 19,90 euros) que acaba de ser lançado pela Presença, Scarpetta deixa o Estado de Carolina do Sul para aceitar um novo desafio em Nova Iorque: examinar um homen que se encontra ferido e detido na ala psiquiátrica do Hospital de Belle-vue. Ainda dentro do thriller policial, chega à Dom Quixote Dias de Expiação (496 pp, 18,900 euros), o segundo romance de Michael Gregorio, pseudónimo da dupla Daniela De Gregorio e Michael G. Jacob, casados desde 1980. Mais um caso a cargo do intrigante ma-gistrado prussiano Hanno Stiffeniis, Discípulo de Immanuel Kant, inventado no romance de estreia Crítica da Razão Criminosa.

João TordoO BOM INVERNOBIS Leya, 302 pp, 7,50 euros

Haruki MurakamiSPUTNIK, MEU AMORBIS Leya, 272 pp, 7,50 euros

Stieg LarssonA RAINHA DO PALÁCIO DAS CORRENTES DE ARBIS Leya, 732 pp, 9,95 euros

stieg larssonÉ daqueles que leu a trilogia Millenium e soube-lhe a pouco? En-tão este livro é para si. Não, não se trata de uma continuação, nem dos famosos inéditos que o escritor sueco terá deixado no seu computador. É antes um trabalho de investigação que cruza jor-nalismo e crítica literária, entrevistas e depoimentos, de forma a levantar um pouco o véu de um dos maiores fenómenos editorais da última década. Dividido em quatro partes, a primeira trata de um homem que conquistou o mundo, a biografia, os amigos, as influências, os temas. A segunda, centra-se na Suécia, pano de fun-do dos seus policias e de tantos outros autores que aproveitavam a onde de Stieg Larsson. A terceira tenta dar um retrato íntimo do escritor. Por último, a quarta reúne um conjunto de textos sobre a trilogia Millenium.

Dan Burstein, Arne de Keuzer e John-Henri HolmbergOS SEGREDOS DA RAPARIGA TATUADATradução de Maria Manuel Cardoso da Silva, ASA, 320 pp, 18,90 euros

de bolsoEm comum têm apenas o formato. Três novos livros de bolso, três escritas incrivelmente diferentes. Em O Bom Inverno, João Tordo apresenta-nos uma reflexão sobre os dias de um aspirante a escri-tor viciado em episódios (e nas maleitas) da serie Dr. House. Há uma viagem que o leva a um encontro de escritores que lhe vai mudar a vida. nem ele sabe muito bem porquê mas o inverno -

muito para lá da estação do ano - vai chegar. Também é uma aspi-rante escritora, a personagem principal do romance de Murakami. Sumire escreve sem parar. Sobre tudo, sobre nada. Frases atrás de frases. Pensamentos, imagens, que se perdem sem um rumo defi-nido. Permanentemente insatisfeita, à procura da sua voz literária, descura o seu único amigo, sobretudo a partir do momento em que se conhece Miu, uma mulher sofisticada (e casada) por quem se apaixona. Um triângulo invulgar onde se revela toda a mestria de um dos mais interessantes escritores japoneses da actualidade. Não chegou a ser reconhecido em vida pela sua magnífica trilogia Millenium. O escritor sueco Stieg Larson morreu antes de ver o sucesso alcançado pelo seu trabalho - previa escrever dez volumes. Nesta terceira parte, a protagonista Lisbeth Salander recupera nos hospital dos ferimentos de que foi vítima por parte do pai e do meio-irmão. Assassinos e violados sempre funcionaram à margem da lei com o apoio de alguns elementos da SAPO, a polícia de se-gurança sueca. Mas tudo isso vai mudar e Lisbeth - com ajuda de Mikael Blomkvist, Dragan Armanskij, Anita Gannini, entre muitos outros - vai finalmente alcançar a sua liberdade.

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É um empolgante policial que as primeiras páginas prome-tem, mas como a vida, os romances também dão mui-tas voltas, e a narrativa acaba por deslindar não apenas o mistério de um crime, mas as razões e enquadramentos sociais e históricos, vivências e dinâmicas suburbanas de um bairro da periferia de Lisboa, daqueles chamados problemáticos, a Cova da Moura. E o bairro é mesmo o protagonista de O Bairro, o sexto livro de Carlos Ademar, 51 anos, que se estreou com A Casa da Rua Direita, em

2005, tendo posteriormente publicado O Homem da Carbonária ou Memórias de um Assassino Romântico.

Inspector da Polícia Judiciária, operacional da secção de homicí-dios, anos a fio - actualmente dá aulas na Escola de Polícia Judiciária - , o escritor nem precisou de fazer uma aturada investigação no local, porque conhece o terreno como as palmas das suas mãos. A partir da morte a tiro de um polícia na Cova da Moura, em 2005, um facto verídico, que fez primeiras páginas dos jornais da época, Ademar dá-nos a realidade “pura e dura” de um lugar que transcen-de a ficção. Porque no seu romance só a realidade é mesmo dura. Os seus polícias, o seu inspector Barata, são puramente humanos.

um policial sociológico

CARLOS ADEMARJL: Há no seu romance uma preocupação com o enquadramento social e históri-co, a par da intriga policial. Porquê?

Carlos Ademar: Está tudo ligado. Sirvo-me das histórias policiais para falar de outras coisas. E fazendo essa contextualização, enri-quece-se a própria história que se conta, assim como quem lê o livro. É importante ir sempre à génese, neste caso, perceber porque aqueles acontecimentos ocorreram ali e não noutro sítio qualquer. E, naturalmente, que as personagens que se vão descobrindo no livro tem a ver com um passado, com as componentes culturais e familiares, com o grupo social em que se desenvolvem.

O bairro é o protagonista do livro?

O desafio foi esse. Interessava-me falar das suas dinâmicas, da pró-pria arquitectura, da forma como cresceu. As populações são mi-grantes, desenraizadas, naturalmente sem estabilidade, sem muito a perder. E por tudo isso, estão mais disponíveis para arriscar. Não têm lastro, nem âncoras. A ideia foi dar conta do quotidiano de um bairro com essas características, da forma como as pessoas nele interagem, da criação dos galgues, com os seus líderes, da rivali-dade entre eles, dos guetos, dos medos e da forma como tudo isso interfere na vida dos residentes.

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Carlos Ademar

O BAIRRO

Oficina do livro, 346 pp, 14,90

euros

Criou algumas personagens femininas muito fortes como Ângela…

Ou Alzira, uma mulher com 70 e tal anos, que se vê na contingên-cia de tomar conta das crianças com 4, 5 anos, porque os filhos e netos foram presos por tráfico de droga. A pouca estabilidade que existe num bairro como aquele é sem dúvida criada pelas mulhe-res. Prestolhes uma homenagem. O objectivo do livro é também fazer com que os leitores quando ouvirem falar de factos ocorridos nestes bairros, quando notícias sobre eles lhes entrarem pela casa dentro, possam perceber melhor o porquê das coisas.

Partiu justamente de um desses factos, a morte de um polícia baleado na Cova daMoura, em 2005. Porquê?

Pareceu-me que era uma história que merecia ser contada. Até por-que, embora a nossa sociedade felizmente não seja particularmen-te violenta, os episódios que são contados ocorreram numa altura em que se atingiu um patamar de violência pouco comum. Claro que as coisas não se passaram rigorosamente assim. Acrescenta-se a ficção a todas aquelas histórias, muitas que eu próprio vivi no ter-reno. Procuro guiar-me por aquela velha máxima: nunca permitir que a verdade estrague uma boa história.

E não precisou de fazer uma pesquisa sobre o local…

Não, não. Nem precisei de lá ir para saber exactamente o nome das ruas. Tenho todos os cruzamentos bem presentes. Foram muitos anos a trabalhar nos homicídios.

Deixou por completo o trabalho operacional?

Já não tenho físico… Estou a dar aulas há seis anos. Mas confes-so que tenho algumas saudades, apesar de ser uma vida muito desgastaste, não só física, mas psicologicamente, para quem leva as coisas a sério, como é o meu caso. Porque não conseguimos passar ao lado das situações de miséria, com que nos deparamos. A frase de Jorge Reis, que uso na abertura do livro, reflecte bem essa circunstância.

Isso reflecte-se também nos seus “polícias” no seu inspector Barata.

Sim, são humanistas. Tento combater o estereotipo do polícia du-rão das séries televisivas e de algum cinema negro. O normal são os meus polícias, esses duros são demasiado ficcionais.

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RUIMORRISON

o ator de fernando lopes

Rui Morrison é o ator de Fernendo Lopes desde O Delfim. De alguma forma serve-lhe de espelho, sobretudo nos úl-timos filmes, em que experiências pessoais do realizador tomaram conta das personagens. À volta de uma chávena de café, o protagonista de Em Câmara Lenta conversou com o JL sobre a personagem, o cinema e a poesia de Fernando Lopes.

Tem sido o ator de Fernando Lopes assim como o Leonardo DiCaprio do Scorse-se. Os papéis que tem interpretado têm muito do realizador lá dentro?

Não é exatamente um alter-ego. Mas estes dois últimos filmes do Fernando têm uma componente pessoal muito forte. São temas di-retamente ligados a situações da vida dele. N’Os Sorrisos do Desti-no parte de uma experiência pessoal. E este Em Câmara Lenta tem que ver com o seu universo, as suas preocupações e o seu olhar sobre a vida e sobre a morte.

Há um sentido de despedida?

Espero que não.

Tem uma ideia poética, de nadar até ao fim do mundo.

Não é exatamente um alter-ego. Mas estes dois últimos filmes do Fernando têm uma componente pessoal muito forte. São temas di-retamente ligados a situações da vida dele. N’Os Sorrisos do Desti-no parte de uma experiência pessoal. E este Em Câmara Lenta tem que ver com o seu universo, as suas preocupações e o seu olhar sobre a vida e sobre a morte.

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Quase todas as personagens bebem uísque.

Isso é uma marca pessoal que Fernando Lopes põe nos filmes. Eu bebo uísque nos seus filmes desde O Delfim.

Há uma grande proximidade entre os dois?

Desde o primeiro filme que fiz com ele criou-se uma cumplicida-de única. Quase que não é preciso conversar. Compreendo-o muito bem. Conheço bem o seu cinema. A certa altura, quando ele faz o plano, eu sei logo o que ele pretende. Os próprios temas dos fil-mes são muito fáceis de entender, de entrar neles. Há uma grande compreensão de parte a parte. Não houve grandes conversas para descobrir a personagem. Foi tudo muito fácil. Ele também me co-nhece muito bem, sabe o que eu posso dar.

Esta personagem não é simpática, apesar de, a determinada altura, sentirmos al-guma compaixão.

Ele próprio acaba por se deitar na cama que fez, neste caso, no mar. É um indivíduo egoísta, independentemente do trauma principal forte que o marca. Além da culpabilidade, a perda do irmão leva-o a não se entregar. Não é um egoísmo puro, é um medo de voltar a perder. Não se entrega nem à mulher, nem à amante. Apesar de gostar dela, não abdica de uma certa distância, de um local de conforto, revelando até alguma covardia.

O filme tem poesia de forma explícita, concretamente através de citações doAlexandre O’Neill.

Claramente. Há ali uma influência óbvia. O filme poderia ser dedi-cado ao Alexandre O’Neill. A minha personagem é um admirador do O’Neill, tal como o Fernando. O poeta também é uma refe-rência para a personagem no que concerne à sua relação com as mulheres. É assim que ele se justifica.

Neste caso o filme partiu de um livro, adaptado pelo Rui Cardoso Martins. O guião está muito distante do original?

Não li o livro. Há alguns casos em que é importante ler o livro. Aqui, segundo o Rui Cardoso Martins me disse, é uma adaptação bastante livre. Há uma distanciação e, por isso, não me ia interessar muito o livro. Há outros casos em que ler o livro é importante, como O Delfim, claro, ou A Morte de Carlos Gardel, adaptado pela Solveig Nordlund. O livro é um livro e um filme é um filme.

É um filme cheio de fantasmas.

Sim, aquelas pessoas andam todas à deriva. É como um navio que anda à deriva, com os fantasmas na borda. Aliás, a Ma Vie é a única personagem positiva, que vai para a frente. Todos os outros são autodestrutivos.

Como é que é trabalhar com o Fernando Lopes?

Ele dá uma liberdade que muitos realizadores não dão. Espera que os atores tragam coisas. Acontece várias vezes eu dizer-lhe: “Pensei em fazer isto assim”. Se ele não gosta da ideia diz logo que não funciona; caso contrário, deixa experimentar. Isso é muito estimu-lante para o ator. Sentimo-nos mais integrados no projeto.

Manuel Halpern

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Promete surpreender pela sua amplitude temporal, já que abarca seis décadas de percurso, e assinala os 80 anos de Nikias Skapinakis, nascido em 1931, que continua a pintar, com o rigor e método de sempre. Mas também pela intensa diversidade e coerência de uma obra única.É, de resto, em si mais um “trabalho plástico” do pintor, que gosta de refletir sobre a sua pintura, equacionando ciclios, séries temáticas, aproximações ou pausas, numa circum-navegação sistemática, mas não cronológica. E

nessa medida, talvez se possa ver Nikias Skapinakis, presente e passado 2012-1950, que se inaugura a 28, no Museu Berardo, como uma ‘meta-criação’. De alguma maneira, como diz ao JL a comissária, Raquel Henriques da Silva, Nikias Skapinakis é o “principal historiador” do seu próprio trabalho. E a exposição re-flete essa particularidade, sendo construida de acordo como seu entendimento. Assim, apesar das necessárias conversas prepara-tórias e dos ajustes, a curadora remete para o pintor a autoria da mostra, planeada por Jean François Chougnet e continuada por Pedro Lapa, atual diretor do museu.Seguramente, é a mais vasta mostra antológica que o artista já rea-lizou. “Notável”, segundo a comissária: “Gosta de rever, com regu-laridade, aquilo que ele próprio fez”, explica. “Por isso, a exposição tem muito a ver com a lógica do seu trabalho. Mas foi a primeira vez que aceitou o repto de uma antológica com esta dimensão”.São 260 pinturas e desenhos, de 84 colecionadores privados e 25 instituições, que permitem redescobrir o universo do pintor ao

duas centenas e meia de obras em sete núcleos temáticos que percorrem 60 anos de pintura: nikias skapinakis, presente e passado de referência da arte portuguesa do século xx. inaugura-se a 28, no museu coleção berardo, no centro cultural de belém. antecipamos a introdução que nikias skapinakis escreveu para o catálogo e avançamos as linhas de força da mostra, comissariada por raquel henriques da silva

correr do tempo. As obras estão organizadas em sete nícleos, que de resto correspondem a séries ou fases, sempre em aberto: O Pon-to Metafisico. 2012-1954; A Pintura Mirabolante. 2010-1994; Mo-nocromatismo e Recuperação da cor. 2000-1989; Parafiguração e Paisagens do Vale dos Reis. 1987-1966; Pessoas, Ninfas, Bichos, Manequins e Frutos. 2002-1960; Expressionismo Presencista. 1965-1950; e um nucleo de desenho. 2009-1958, que abrange, ainda, a litografia e a ilustração.Raquel Henriques da Silva salienta a peculiaridade da “baralhação da cronologia”, que não é, de resto, alheia ao modo de trabalho de Skapinakis. “A ideia de não começar pelo inicio da carreira, nos anos 50, foi uma das suas primeiras intenções. E é, para mim, um dos aspectos mais importantes da exposição”. O discurso expositi-vo fez-se, desse modo, do presente para o passado, num flashback, com alguns “curto-circuitos pelo meio”. “Não é um percurso a andar para trás. É uma brincadeira com o tempo, que num ho-mem de 80 anos não deixa de ser interessante. E mostra uma certa consciência de que algumas coisas sempre o preocuparam tanto no inicio, no meio, como na atual fase da sua carreira”, esclarece.Em seu entender, Presente e passado, é uma exposição que “prova o percurso de grande entrega” de Nikias Skapinakis: “Olhando esta mostra, é evidente sobretudo a coerência do seu percurso. Há uma concentração absoluta nas questões da pintura. E ele nunca quis ser outra coisa se não pintor».A «experimentação» é, por outro lado, um dos eixos do trabalho de Nikias, como faz notar ainda Raquel Henriques da Silva: «Nasce

NIKIASSKAPINAKIS

revisitar o presente no passado

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fundamentalmente dos temas. Embora as questóes técnicas sejam muito importantes na sua obra, julgo que o essencial é que ele encontra sempre as técnicas certas para os temas que quer tratar. Daí a importância dos ciclos e dos titulos, tal como O lirismo ex-pressionista ou A pintura mirabolante».A poesia, a literatura, tal como a filosofia são, nessa medida fulcrais no desenvolvimento do trabalhode Nikias Skapinakis que, como recorda a comissária, quando começou a pintar, nos aos 50 toma desde logo partido pela arte figurativa, quando dominava o abs-trato. »Esse entendimento de que a arte não deve pôr de parte as articulações com a realidade, com as coisas e as matérias é uma questão fundamental», sublinha ainda. Por isso, mesmo quando usa a abstração é de um ponto de vista de composição, sempre como uma discursividade anexa. Ele mantém-se fiel à ideia que a pintura não é autónoma do sistema cultural e que nele se articula com a filosofia ou a literura».Outro traço vincado do seu percurso, que agora é possivel seguir em Presente e passado, cujo catálogo bilingue terá dois ensaios de Raquel Henriques da Silva e Bernardo Pinto de Almeida, além

de textos de Fernado Azevedo ou Vasco Graça Moura, pretende--se com a fidelidade ao próprio país. A comissária lembra que o pintor, atitudes políticas, sem ser um ativista, que no tempo da di-tadura o levaram mesmo à prisão. «É um homem de uma geração, em que as posições eram muito marcantes e tinham consequên-cias. Mas Nikias nunca quis emigrar, ao contrário de outros artistas da sua geração. È um homem muito culto e viajado, mas nunca sentiu necessidade de deixar este país, que de resto trata com uma ironia sarcástica no seu Portugal. Tendo essa distância e sendo um analista social extraordinário, mantém essa espécie de aliança, sem fatalismo ou dramatismo. »Aliás, ele é um apaixonado por Lisboa, pela sua luz». Isso é visìvel desde logo no seu atelier, com a mora-da no Pátio Mardel, como sublinha ainda a curadora, adiantando que nesse mesmo fidelíssimo atelier continua a pintar várias séries ao mesmo tempo, nomeadamente, «Os Quartos», numa «revisita-ção» da literatura, da pintura, das personalidades que o marcaram, tal como noutras telas, faz permanentemente «revisitações» das suas séries passadas. E é o passado e o presente do pintor que po-demos revistar até Junho, no Museu Berardo.

A DÚVIDAMETAFÍSICA

“Todos os homens por natureza desejam saber. Sinal dis-so é o amor aos sentidos. Estes, com efeito, são amados por si mesmos, à margem da sua utilidade e mais que todos o da vista. Com efeito, não só para agir mas também quan-do não vamos actuar, preferimos a vista – digamo-lo – a todos os demais. A causa é que este é, dos sentidos, aquele que mais no faz conhecer e mostra múltiplas diferenças”

Aristóteles, Metafísica, Livro I, Capitulo I 1

A responsabilidade do plano desta exposição sabe-me inteiramen-te. Não pretendi, aliás, apresentar uma retrospetiva – já que enten-do que é o tempo que se encarrega do historial dos acontecimen-tos. Pretendi, antes, delinear uma escolha de obras, em função de conjuntos que pudessem resumir e tornar compreensivel o meu trabalho de pintor.Pela primeira vez, sem interrupções, uma exposiçao abrange a mi-nha intervenção, que parte, propositadamente, do presente para o passado. Fui, de resto, objeto de outras antologias significativas: no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em 1985 (Pin-tura, 1950-1985), no Museu do Chiado em 1996 (Para o estudo da melancolia. Retrospetiva de retratos, 1955-1974), e no Museu de Arte Contemporânea de Serralves em 2000 (Prospectiva, 1966-2000).Os parâmetros museológicos e as minhas próprias intenções limi-taram, porém, o âmbito temporal dessas apresentações. A exposi-ção no Museu Coleção Berardo constitui, portanto, o mais vasto

depoimento que realizei sobre o meu trabalho.Com o passar dos anos, foram-me atribuidas algumas classificações genéricas – expressionista, neorrealista, pop, pós-modernist, clás-sico, metafísico… Com exceção da asserção neorrealista, que era despropositada, todas as outras designações respeitam, efetivamen-te, a aspetos mais ou menos prolongados do meu trabalho. Todavis, e embora reconheça a sua eficácia didática, penso que nenhuma delas abarca o sentido geral da minha pintura, na medida em que ficam de fora dessas classificações aspetos que julgo significativos e que sobram do que é arrumado do ponto de vista crítico.Os meus começos não tiveram nada em comum com o movimento neorrealista; bem pelo contrário, como esta exposição demostra. Nos anos de 1950, a minha ligação foi essencialmente à primeira Escola de Paris, e nela avulta a figura tutelar de Chagall. Seguiram--se-lhe, naturalmente, muitas outras, contemporâneas e muitas ve-zes pertencentes ao passado, como no caso da perene recordação do Greco de Toledo. Essas múltiplas influências educaram o meu olhar e guiaram a minha mão, permitindo-me a afirmação de uma expressão pictórica que entendo própria.

A pintura italiana do Quatrocento teve muita importância para o meu trabalho, todavia os grandes pintores italianos do século XX, como De Chirico e Morandi, que sempre admirei, nunca constitui-ram uma fonte de inspiração (é para Zurbaran que olho e também para Chardin). O sentido metafísico, que, juntamente com o pendor expressionista e lírico, atravessa prolongadamente o meu trabalho, tem, do meu ponto de vista, uma tripla origem:- Os frescos “clássicos” e “modernos” da Vila dos Mistérios, em Pompeia, e Carpaccio, a quem dedico em 1961 uma homenagem, porque justamente, venho a encontrar nele o sentido de ausência das figuras que habitavam o meu paisagismo de então;- A poesia, designadamente de Cesário e dos “presencistas”;- A pressão claustrofóbica e entediante do ambiente português das décadas de 1950 e 60. O meu silêncio permaneceu sempre ligado ao real quo-tidiano. Mas, naturalmente, o tempo aperta e simplifica o en-tendimento das coisas. De qualquer modo, porém, acredito que a minha “linha metafisica” se liga essencialmente a uma conceção individualizada da pintura como um processo de conhecimen-to, literalmente, para além das aparências físicas, que os sentidos transmitem. Esse processo define a história da pintura desde o seu remoto passado até ao presente. Porque é especifico, não pode ser repartido por outros campos estéticos sem que essa qualidade es-sencial de indagação tenda a alterar-se ou a perder-se em favor de outras (embora igualmente válidas) expressões. Trata-se de pro-curar a essência das coisas; mas, talvez, as coisas não tenham real-mente essência nenhuma e a sua busca seja inútil.É uma dúvida de natureza metafísica que procuro resolver conti-nuando a pintar.

nikias skapinakis

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É um dos raros nomes portugueses que figuram em livros de história de música publicados no estrangeiro. A sua estada em em Itália, onde compôs mais de 20 óperas, abriu-lhe as portas para a fama internacional. Marcos Portugal, o mais célebre compositor luso de sempre, nasceu há 250anos. A efeméride é evocada com um conjunto de iniciativas ao longo do ano em vários países e, no próprio dia do seu nascimento (24 de Março) e na véspera, com um coló-quio internacional e a produção de uma das suas óperas,

O Basculho de Chaminé, ambos no Teatro Nacional de São Carlos. Os muitos trabalhos que, nos últimos anos, investigadores e intér-pretes têm realizado sobre a obra do compositor entroncam num programa desenvolvido no seio do Centro de Estudos de Sociolo-gia e Estética Musical (CESEM) da Universidade Nova de Lisboa, o Projeto Mracos Portugal – um empreendimento hercúleo, co-ordenado com militante empenho pelo musicólogo inglês David Cranmer, há muito radicado entre nós.

MARCOS PORTUGALum compositor do mundo

250 ANOSJL: Como definiria a obra de Marcos Portugal (MP), na generalidade?

David Cranmer: A primeira coisa a dizer é que a obra de MP é mais diversificada do que geralmente de imagina. Se as suas óperas ita-lianas são as que lhe granjearam fama internacinonal no seu tem-po, em Portugal, onde nasceu, e no Brazil, onde veio a falecer, a sua música religiosa foi extremamente importante. Não nos devemos esquecer de que MP recebeu a sua formação no Real Seminário Patriarcal e que, exceto nos anos passados em Itália, compôs mú-sica religiosa ao longo da sua vida. Além disso, teve uma produção importante em mais duas áreas: a música ocasional profana – por exemplo, obras compostas sobretudo para celebrar aniversários re-ais e outros momentos de importância política – e a música peda-gógica, composta no Brasil para as aulas de música das Suas Altezas Reais, filhos de D. João VI e D. Carlota Joaquina.

Qual a sua importância no contexto da música portuguesa e europeia?

Na minha opinião, a importância de qualquer compositor é abso-luta e não relativa. Ou vale a pena ouvir a sua música ou náo vale. Não é porque é «melhor» ou «menos bom» do que outro compo-sitor. MP é um entre vários compositores do seu tempo que com-punham bem, foram valorizados enquanto vivos e depois esque-cidos, simplesmente porque era assim que as coisas funcionavam. Eles substituíram outros compsitores e por sua vez também foram substituídos. A importância da sua música agora baseia-se exata-mente no que levou o público do seu tempo a apreciá-la: melodias atraentes, efeitos tímbricos apurados (através de um uso por vezes «diferente» dos recursos orquestrais), um instinto dramático agu-do, evidente especialmente nos números concertados e finais das óperas, uma riqueza de som nos ensembles, quer na música dra-mática, quer nas obras religiosas. São estas caraterísticas que cos-tumam ser louvadas pelos comentadores do seu tempo, em vários países europeus, e são características que mantêm a sua validade.

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MARCOS PORTUGALum compositor do mundo

250 ANOSQue acções o Projecto Marcos Portugal tem permitido desenvolver?

Ele já passou por várias fases mas tem em comum três áreas de foco: 1ª, edições críticas de algumas das suas obras princupais, 2ª, a elaboração de um catálogo temático das suas obras, e 3ª, estudos sobre o compositor, a sua obra e a sua disseminação, Neste mo-mento o projeto tem o nome precisamente «marcos Portugal: a obra e a sua disseminação».

Entre as edições críticas realizadas até agora destacam-se 3 ópe-ras: La Zaira, editada por Bárbara Villalobos e executada em versão de concerto pela Fundação Gulbenkian, La pazza giornata o sia il matrimonio di Figaro, editada por um conjunto de investigadores sob a minha orientação e encenada em Inglaterra pela Bampton Classical Opera em 2010, e O basculho de chaminé, editado por Gabriel Cipriano e Rui Magno Pinto, também sob a minha orienta-ção, a apresentar este mês no Salão Nobre do São Carlos. Na música sacra, a edição da Missa Grande, realizada por António Jorge Mar-ques, permitiu já várias execuções e a gravação em CD pelo Coro de Câmara de Lisboa. Este mês vai ser cantada independentemente em Portugal, Espanha e Inglaterra. No que diz respeito ao catálogo temático, a parte da música religiosa já foi terminada, de forma excecional, na tese de doutoramento de António Jorge Marques. Sairá em livro ainda este mês, pela Biblioteca Nacional de Portugal (BPN), em colaboração com o CESEM pénis. Quanto ás investiga-ções sobre a obra do compositor, saiu em 2010 o livro Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo, textos surgidos do colóquio ho-mónimo realizado em 2006. A 23 e 24 deste mês, em celebração dos 250 anos, vai decorrer um colóquio internacional no Foyer do São Carlos, com comunicações de 14 oradores dedicadas inteira-mente à obra de MP.

E que objetivos há por concretizar?

Este ano ainda há alguns. Em primeiro lugar, uma maior divul-gação da obra de MP. Várias edições importantes estão previstas, nomeadamente as 2 óperas L’oro non compra amore e La morte di Semiramide, pelo menos um volume extenso de música composta ou arranjada pelo compositor para as aulas de música de Suas Alte-zas Reais. Produções de 3 óperas estão confirmadas para mais tarde este ano: Figaro outra vez em Inglaterra (Buxton Opera Festival), O basculho de chaminé em Curitiba, Brasil, e L’oro non compra amore no Rio de Janeiro, em versão de concerto. Aguardamos ain-da decisões relativas a outras propostas para o segundo semestre. Até ao final do ano sairá um livro, constítuido por uma biografia de cerca de 100 páginas e mais 20 ensaios sobre vários aspetos da sua obra. Estamos a colaborar com a BNP na montagem de uma exposição prevista para os últimos meses do ano.Já iniciámos trabalho no catálogo temático de música profana, que levará provavelmente ainda cerca de 4 ou 5 anos para terminar. O meu objetivo pessoal é que depois de 2012, a música de MP chega a encontrar um lugar mais permanente no reportório, gra-ças à existência de boas edições modernas e o apoio científico dos catálogos temáticos e livros de estudos sobre o compositor e a sua produção. Acredito que vai acontecer porque já recebi contactos com vista a encenar óperas em 2013 e o grande esforço que o projeto está a fazer este ano terá, com certeze, um ímpacto positivo neste sentido.

marcos portugal usava melodias atraentes, efeitos tímbricos apurados e um instinto dram-ático agudo

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Cada filme que faço é uma revoluçao na minha vida”, diz gonçalo tocha. A cada filme se entrega como a um projeto de vida, sempre num tom intimo e pessoal. A viagem é o viajante. Em Balou, obra de estreia que ven-ceu o Indie Lisboa, partiu em busca dos Açores da sua mãe e deixou.se levar por um barco entre as ilhas. Em É na Terra, não é na Lua, vai ao último lugar no arquipe-lago que lhe corre no sangue. E deixou-se deslumbrar pela ilha e por aquela sociedade. São três horas de fil-

me retiradas de quase 200 filmadas, que mostram de tudo um pouco, desde a vida noturna no barda da vila ao insólito periodo da campanha eleitoral. Gonçalo Tocha, 33 anos, com apenas dois filmes, tornou-se um dos documentaristas de maior relevo na-cional. Divide a sua atividade artistica entre o cinema e a musica. Formou os Lupanar (a banda de Ana Bacalhau antes dos Deolinda) e os projetos Tocha Pestana e Gonçalo Gonçalves, que brevemente conhecerão novas edições discográficas.

gonçalo tocha viajou ate à ultima ponta da europa no oceano atlantico, até á ilha mais remota do nosso mundo, até aos 400 portugueses mais distantes deste portugal e descobriu-nos a todos nós. é a terra, não é a lua, documentario

sobre a ilha no corvo, recebeu uma mensao honrosa em locarno e o premio internacional do doclisboa. estreia-se na sala, no proximo dia 29

JL: No teu filme anterior, Balaou, passava-se em grande parte dentro de um barco ao largo dos Açores. O que achaste mais isolado, o barco ou a Ilha do Corvo?

Gonçalo Tocha: Obviamente o barco é muito mais isolado. Mas fiquei com a ideia, até pela sua forma redonda, de que o Corvo é um barco parado no mar. As pessoas é que se mexem, a ilha fica sempre parada.

Logo no inicio do filme propões-te a um exercicio exaustivo, a filmar cada rosto, a captar a totalidade do Corvo sem que nada te escape. Mas, obviamente, há coi-sas que não estão no filme... Ou estarão lá todos os rostos?

Acho que nós fizemos mesmo tudo o que queriámos. A exaustão está lá, não podia era entrar tudo no filme, porque só tem três horas. Mas existe o arquivo, que foi quase de 200 horas. O único pressuposto que eu tinha era aquela oportunidade de fazer um filme sobre tudo. Só ali podiamos ter essa pretensão. Há uma única vila, não há terras vizinhas, o mundo em síntese.

Aliás, não era um eremita que seja a viver fora da Vila do Corvo.

Houve um austriaco que o conseguiu durante alguns anos e depois foi-se embora. Teoricamente, nem sequer é permitido, porque é obrigado a viver sem saneamento basico, sem água nem luz, uma experiência radical.

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GONÇALOo corvo somos nós

TOCHAO Corvo é um caso exemplar para um estudo sociológico, um meio pequeno, mas não comparavel com uma aldeia isolada em Trás-os-Montes.

antigo comunitarismo do Corvo, sem que fosse feita uma análise exaustiva aos modos de vida. As múltiplas visões do que acontece lá dentro é que nunca se esgotaram no filme. Há sempre mais. É uma ilha em completa mutação.. Está tudo a acontecer. À partida imaginamos que nada se passa lá, mas é precisamente o contrá-rio: tudo se passa, mas a uma escala pequena. Um pequeno nada é um grande acontecimento. E o Corvo sempre esteve aberto a muitas rotas. Antes do barco a motor todas as rotas passavam por lá. Por isso foi constante o aparecimento de navegadores, piratas, de outras culturas. Os corvinos estavam de olhos virados para a América. Não era de todo uma sociedade fechada. Era fechada na sobrevivência, na autossuficiência, mas não no acontecimento do que se passava á volta.

Notaste isso hoje em dia?

Hoje é uma sociedade diferente, que está a sofrer uma mudança radical. Podemos imaginar que toda a evolução que Portugal sofreu em 80 anos, o Corvo está a sofrer em 20. Tudo ao mesmo tempo. Isso vai criar roturas e contrastes, que o filme também tem. Joga com esses contrastes entre o moderno e o antigo, o rural e o ur-bano, o modo de vida das avós e das novas gerações. Está ali em choque: tudo ao molhe e fé em Deus.

Sentiste dificuldade em entrar naquela sociedade? São muito desconfiados?

É uma sociedade que se autoprotege. Eu sabia, à partida, que essa desconfiança iria existir. Então decidi assumir tudo claramente des-de início. E é por isso que chego ao Corvo logo com a câmara de filmar. Tinha de assumir, “eu sou o gajo da câmara”. E isso permi-tiu-me estar sempre a filmar. Avisei logo: “Isto está sempre ligado.”

A população é muito envelhecida?

Nem por isso, foram criados empregos na área dos serviços e po-pulação mais nova ficou...

Deu-te uma sensação de claustrófobia?

Não, porque esta tudo a acontecer, uma surpresa atrás de outra, tudo era novidade, um deslumbramento. Nunca senti que não ha-via mais nada para fazer.

E os corvinos sentem a ânsia de sair dali?

É caso a caso. Quando fiz o filme procurei o contrário. A minha pergunta era: por que é que esta ilha pode ser o centro do mundo? Porque para quem é dali o Corvo é sempre a sua terra, por mais longe que esteja. O que queria saber é o que faz disto o umbigo. Eu fui adotado pela população e sempre que saí do Corvo senti-me perdido, o mundo parecia-me demasiado grande. E isso é qualquer coisa que os corvinos têm de especial: o seu mundo é demasiado pequeno e abstrato.

Um centro do mundo que também está fora do mundo. É quase a lua?

As condiçoes geográficas são inacreditaveis. É um grande mergu-lho, um pedaço de terra no meio do oceano, exposto a todos os ventos e correntes. Esse impacto é inesquecivel no proprio cor-po, ouve-se sempre o mar brutalmente, numa paisagem a pique, toda a ilha é vertical. Mas em termos de sociedade a vida humana repete-se. Os hábitos repetem-se. Apesar da distância, aquilo é o Corvo, Açores, Portugal, Europa. Está ali marcado, e é uma socie-dade ocidental e europeia.

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Há partes especialmente caricatas, como o período da campanha eleitoral, em que a ilha para.

Filmei as eleiçoes todas e o ato eleitoral propriamente dito, os vencedores... mas não tinha tempo para mostrar, seria outro filme. Aquilo mexe com toda a gente. É uma das coisas do Corvo que é unica, em mais nenhum lado há uma campanha daquele tipo, porque muitos poucos votos dão muito poder.

Os corvinos são os açorianos mais esquecidos ou, pelo contrário, dado o seu afas-tamento, acabam por ser protegidos?

Já não são assim tão esquecidos. Antes sim. Por issos é que era uma sociedade muito digna e valente. Não podiam contar com nin-guem. E os barcos apareciam só de seis em seis meses. Nem sequer havia dinheiro. A única coisa que vinha de fora era o açucar. Isso cria uma sociedade muito brava. Portugal é a periferia da Europa, os Açores são a periferia de Portugal, e todas as ilhas têm a sua periferia. Todas menos o Corvo. O Corvo é a periferia das Flores.

E foi esse “fim do mundo” que te atraiu?

Quis fazer o filme no limite. Em que não soubesse quando acabava, fosse uma aventura na rodagem, autónoma e solitária. Eu fui para o Corvo em 2007, depois de mostrar o Balou em São Miguel. Fui à boleia de barcos à vela e passei pelas ilhas todas até lá chegar. Nin-guém me conhecia quando cheguei ao Corvo. E fiz tudo a partir do nada, não quis fazer repérage. A ideia era recriar a energia dos exploradores que vão a um sítio que não conhecem e deixam-se embranhar e maravilhar por tudo o que acontece. Se o filme tem alguma virtuda é mostrar a energia da rodagem, abrir o livro de bordo.

Tal como tinhas feito com Balau...

Sim, há recorrências na maneira de contar. Quando comecei a montar o filme, experimentei fazer de outra forma, mas para o filme ser honesto com ele próprio teve de sequir este roteiro. Mas é como nos livros de viagem: são maravilhosos porque acompa-nhamos o processo todo da viagem do narrador e não só as con-sequências.

E agora? Já estas a preparar outra coisa?

Ainda não, estou dedicado à distribuição e queria intercalar com os meus projectos musicais. Este filme acompanha quatro anos da minha vida. Joguei tudo quanto tinha. Pensei: “Isto ou me mata ou me dá uma segunda vida”. Acabei por tê-la, mas estive prestes a queimar tudo. Fazer o filme foi uma revolução na minha vida. Agora não sei o que se segue, mas sei que vai ser nos Açores.

Mas onde se poderá ir além da Ilha do Corvo?

Não sei, talvez ao fundo do mar.

sempre que saí do corvo senti-me per-dido, o mundo parecia-me demasiado grande

Manuel Halpern

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COME LE CIL IEGIEComo as cerejas é o tema da presença de Portugal na Feira do Livro Infantil de Bolonha 2012. Portugal é o País Convidado de Honra, justo prémio para a notoriedade internacional dos textos e imagens da literatura infanto-juvenil portuguesa. Como as cerejas é o mote da representação nacional e para este precioso catálogo, edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, onde se revela a excelência dos 25 ilustradores portugueses contemporâneos selecionados para a exposição em Bolonha. As ilustrações são como as conversas e as cerejas: apetece-nos sempre mais.

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D IA MUNDIALo palco é quem mais ordena

DO TEATROP

ôr “em cena” o debate sobre o papel da cultura, do patri-mónio e da criação artística enquanto bens públicos. Eis o programa de festas de cinco companhias do Porto – Visões Úteis, Teatro do Bolhão, Boas Raparigas, teatro do Ferro e FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibéri-ca) – para assinalar o Dia Mundial do Teatro, que se co-memora na próxima terça-feira, 27 de março. Assim, na véspera, a 26, cada estrtura irá reunir-se com círculo do

Porto a fim de manifestar as suas preocupações no que toca ao teatro. “O objectivo é que no Dia Mundial do Teatro os deputados à Assembleia da República iniciem a sessão legislativa conhecendo a realidade do setor”, explica ao JL, Carlos Costa, diretor da Visões Úteis. “Não se pode fazer discursos sobre a importância da cultura e, sistematicamente, no momento de decidir, não afetar recursos. Se é considerada um bem público, tem não só no contexto nacional, mas também na relação com a União Europeia. Este ano, mais do que iniciativas, é importante conversar seriamente sobre tudo isto.”

E, um pouco por todos o país, não faltarão oportunidades para refletir sobre o estado da arte e procurar novos caminhos. Também na cidade, Invicta, o Teatro Nacional São João (TNSJ) promove o fórum de discussão “Os Teatros do Porto em 2012” (a 27, às 16, no Teatro Carlos Alberto), dirigido a toda a comunidade teatral do dis-trito. “Deparamo-nos, essencialmente, com dois grandea proble-mas. Por um lado, os cortes orçamentais, e, por outro, a ausência de uma consciencia real dos meios logísticos, humanos e técnicos de que o cidadão dispõe”, revela, ao JL, o ator e encenador Nuno M. Cardoso, que participará da mesa-redonda. Daí que o intuito da iniciativa seja criar uma forma de entendimento e cooperção entre vários agentes locais, de modo a “potenciar” os recursos existentes. Destas e de outras questões se fala, ainda, no Teatro de Portalegre (à 27, às 18, na Igreja do Convento de Santa Clara) ou na sede do grupo teatral Lendias d´Encantar, em Beja (a 25, às 14 e 30, no eespaço Os Infantes)

Mas também haverá, de norte a sul do país, espetaculos de entrada livre, ensaios abertos ao público, estreias, leituras e visitas guiadas. Em Lisboa, a Cornucópia convida o público a assistir, no

Dia Mundial do Teatro, ao ensaio da peça Fingido e Verdadeiro ou o martírio de S. Gens, ator, que se estreia a 29 (ver caixa). Com entrada gratuita, podem ver-se ainda em Lisboa, A Morte de Danton e João Torto, no Nacional D Maria II, O Rapaz da Última Fila, no Teatro Politécnica, O Fantasma de Chico Morto, n´A Barra-ca: Dança de Roda, no Teatro Municipal de Almada; em Coimbra, Shakespeare pela Barbas, n´O Teatrão; em Évora, Falar Verdade a Mentir; no Cendrev – teatro Garcia de Resende; ou no Porto, Alma, no TNSJ, e Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela, no Mos-teiro São Bento da Vitória.

Já no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, a festa no teatro estende-se por quatro dias. A 26, os atores Matim Pedroso, Flávia Gusmão e Nelson Guerreiro organizam uma maratona de leitura de Os Pilares da Sociedade, de Henrik Ibsen (das 21h à meia-noie). A 27, a enfeméride é celebrada com a pela infantil Jôjô, O Reinci-dente, de Joseph Danan, uma produção do teatro rainha com ence-nação de Fernanda Mora Ramos e Paulo Calatré (às 10 e 30 e a 28, e às 15 e 30) seguindo-se mais tarde uma sessão de leitura da obra prima de Cervantes, Dom Quixote (das 21 à meia-note). A termi-nar à 29, o livro Criatividade e Instituições: novos desafios às vidas dos artistas e profissionais da cultura, de Borges e Pedro Costa, da mote ao debate que renirá, entre outros, Cláudia Galhós, Pedro Pe-nim (às 18 e 30). Também na baixa lisboeta, o Teatro Maizum trás o Teatro-Estúdio Mário Viegas numa leitura dramatizada de Histó-rias Mínimas, de Javier Tomeo, dirigida por Silvina Pereira e com interpretaçôes desta última. Júlio Mratín Isabel Ferreira e Augusto Portela (às 18 e 30). E, noutro canto da capital, junto ao castelo São Jorge, o Teatro junta-se ao Circo no Chapitó, com performances e um espetáculo protagonizado pelos alunos de Interpretação e Ani-mação Circenses, Figurinos e Adereços, sob a coordenação da atriz Rita Ribeiro (a partir das 19).

E como sendo hábito, no Dia Mundial da art do palco o Teatro da garagem viaja até Bragança, desta vez para a iniciativa “O Teatro antes do Teatro”, uma visita guiada pelo Teatro Municipal através de jogos e improvisações dirigidas por Maria João Vicente (às 20 e 30), e para estrear O Mundo em que Vivemos, de Carlos J. Pessoa (a 30 e 31, às 21 e 30). A Sul sobe também pela primeira vez ao palco Paris, Praia do Hawai (a 24 e 25, às 21 e 30, no teatro Mu-nicipal de Faro), um esetáculo de Teatro das Figuras que perscurta um Algarve desconhecido, “que se esconde atrás dos turistas, dos estrangeiros, dos sonhos escaldantes, das noites longas, da cultura do corpo e do sol assassino”.

não faltarão oportunidades para refletir sobre o estado da arte e procurar novos caminhos

Carolina Freitas

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LUÍS MIGUEL CINTRAator, profissão de fé

Não é por sugestão da enferméride que a Cornucópia es-treia na semana do Dia Mundial do Teatro, a 29, uma peça sobre o próprio teatro.

Quem tem acompanhado da Companhia drigida por Luís Miguel Cintra e Cristina Reis que este é tema recor-rente: “Mais que de teatro falamos da arte da vida, da coi-sa e da imagem, do pintor e seu modelo”, escreveu o ator e encenador a proprósito do espetáculo Fim de Citação.

Agora, sobe ao palco do teatro do Bairro Alto, em Lisboa, até 29 de abril, Fingido e Verdadeiro ou martírio de S. Gens, ator, a partir de El Fingido Verdadeiro (, de Lope de Vega, com encenação de Luís Miguel Cintra, tradução de Luís Lima Barreto e interpretações destes últimos, Cleia Almeida, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Sofia Marques, entre outros.

Jornal de Letras: Percebemos, logo pelo título, que esta peça levanta a questão da verdade ou mentira do Teatro. Foi isso que o interessou?

Luís Miguel Cintra: Também. Este texto recorre àquele sistema sem-pre muito divertido do teatro dentro do teatro, problematizando a questão da verdade do ator. A ação passa-se no século III e conta a história do mártir S.Gens, um ator que ao representar a pedido do imperador Diocleciano, a figura de um cristão, se converte, e em consequência disso é condenado à morte. Esta semelhança entre o ator e o crente é muito interessante, porque um ator tem que crer, realmente, naquilo que está a fazer. Mas não se trata de fazer filosofia. Esta peça, que assenta numa construção do texto de Lope de Vega, é sobretudo uma “brincadeira”, um jogo irónico sobre a verdade e mentira, a vida e a ficção, sobre o trabalho do ator.

Como se processa essa desconstrução?

Colámos trechos de fontes literáreas a que o autor recorreu, com o anuário da vida dos santos, Flos Sanctorum, e a História Imperial e Cesárea do escritor renascentista Pedro Mexia e também citações de Santo Agostinho, Tertuliano, Louis Jouvet e Jean Genet. Além disso, expomos a situação que a Cornucópia esta a viver – o dinhei-ro do Estado só chega mesmo para manter a companhia, não dá para cenografia, guarda-roupa, mais atores, etc. Por isso, os espec-tadores que têm acompanhado o nosso trabalho vão reconhecer os adereços e vão sentir que estão na sala de espetáculos anteriores . Aliás, a peça começa com uma conferência dirigida o público e eu gostava que acabasse sendo um elogio ao próprio ator.

Esta peça de Lopes de Vega é uma espécie de demostração prática do seu texto teórico Arte Nova de Fazer Comédias. Quais eram as suas ideias-chave?

Perante as críticas da Academia, que o acusava de desrespeitar os “clássicos”, Lope de Vega escreve esse texto, onde recapitula as ca-racterísticas dos modelos antigos para dizer que os quer seguir. Reclama a liberdade da métrica, a inclusão de personagens de vá-rias naturezas, etc. E apesar de Lo Fingido Verdadero ser uma peça tipicamente barroca e construida em verso, não é rígida em termos formais e cria personagens que parecem arrancadas da vida. No fundo,é isso que está em causa no seu texto teorico: uma comédia mais próxima da vida.

é interessante a semelhança entre o ator e o crente: um ator tem que crer, realmente naqui-lo que está a fazer

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1Um ano depois de os médicos o terem proibido de ler e de escrever, Jürgen Habermas retoma o caminho do desas-sossego. Como efeito, foi a doença que o impediu de vir a Portugal para participar no Centenário da Implantação da República. Mas a inquietação pela Europa - «Europa, Europa», «Ai, Europa» - obriga-o sempre a estar presente arranjando forças por continuar o seu longo e brechtiano impulso de melhorara a Europa e o mundo. Olha para os fragmentos e as transições que vão enchendo o «vale da

morte» da política, sem que seja descortináveis a «espada mágica» ou o «contra-feitiço» indispensáveis à magia da razão. A imagem de uma «Europa sem Europa» espicaça as sua inquietações. outro remédio não tem senão o de utilizar os seu «meios para tentar eliminar os bloqueios conceptuais que continuam a existir em re-lação a uma transnacionalização da democracia, colocando a uni-ficação europeia no contexto de longo prazo de uma jurisdição democrática e de uma civilização de poder estatal».

ensaio sobre a constituição da europa é a última obra de jürgen habermas, 82 anos, um dos mais importantes pensadores contemporâneos, com uma vasta e fundamental obra sobre vários temas, incluindo a teoria política, a sociologia, a ética do discurso e a crítica da razão. mas talvez nuca como neste novo e muito recente ensaio, que vai agora sair emportugal com a chancela das edições 70 (grupo almedina), o filósofo alemão tratou questões tão na ordem do dia mesmo no imediato decisivas, no “seu longo e brechtiano impulso de melhorar a europa e o mundo” - como escreve num excelente prefácio o que é, por sua vez, não só um eminente constituicionalista com dos expoentes da ciência política e do pensamento em portugal. e é esse prefácio que aqui antecipamos.

2O desassossego é próprio de um «utópico» de longo cur-so. na entrevista que concedeu a Thomas Assheuer revela a sua «maior inquietação» o desassossego a cavar fundo na sua implantação cidadã traduz-se neste grito de alma: «A minha maior preocupação é a injustiça social, que brada aos céus, e que consiste no facto de os custos socializados do falhanço do sistema atingirem com maior dureza os grupos sociais mais vulneráveis». A injustiça social, paga--se, não com dólares, libras, ou euros, mas com a «moe-

da forte da existência quotidiana». Longe de ser uma precipitação transitória de sistema, a injustiça ameaça resvalar para um «destino punitivo» global. Toda esta tragédia humana - este «escândalo po-lítico», este «darwinismo social», este «programa de submissão desenfreada do mundo da vida aos imperativos do mercado» - é acompanho de um «enfado com a política» ao qual não é alheia a ascensão ao poder de uma «geração desarmada em termos norma-tivos», incapaz de assumir objectivos, causas e esperanças.

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a constituição da europa

JÜRGENHABERMAS

3O que fazer neste quadro de «melancolia hopperiana» das longas filas de casas abandonadas? Como ultrapas-sar a política da «normalidade social», tornada «ridí-cula» pela sua hipocrisia moralista? Como levar a sério a «possibilidade real de um fracasso europeu»? Jürgen Habermas sugere o caminho: pensar a pessoa, pensar a sua dignidade, pensar a dignidade destes, pensara digni-dade da pessoa humana, pensar na dignidade dos povos. No estudo inicial - «O conceito de dignidade humana e

a utopia realista dos direitos humanos» - coloca-nos perante esta intriga: «Por que razão é a referência aos ‘direitos humanos’ no di-reito muito anterior à referência à ‘dignidade humana’»? A carrei-ra tardia no conceito de dignidade humana no âmbito do direito constitucional e do direito internacional parece sugerir a ideia que de direitos humanos só surge pesadamente carregada de dignidade humana no contexto histórico do Holocausto. O «fardo moral do conceito de dignidade», obrigatoriamente presente em qualquer exercício da «razão anamnéstica» leva o autor a tentar compreen-der a assimetria temporal entre «história dos direitos humanos» e o aparecimento do «conceito de dignidade humana» e a defender uma tese particularmente sugestiva. Consiste esta tese na «defe-sa da existência, desde o início, de um estreito nexo conceptual» entre os dois conceitos, embora inicialmente apenas implícito. Se os dois conceitos andaram desligados durante muito tempo, isso não significa a inexistência de uma ligação profunda entre direitos humanos e dignidade humana. É esta dignidade «fonte moral» da qual se alimentavam os conteúdos de todos os direitos fundamen-tais e é radicação dos direitos nesta ponte moral que «explica a força explosiva do ponto de vista político de uma utopia concre-ta». A «substância normativa» radicada na «igual dignidade hu-mana de cada um» revela toda a potencialidade praxeológica quer quando os tribunais têm que decidir sobre o «cálculo do direito a prestações sociais», como o subsídio de desemprego ou subsídio de reintegração social, quer quando se descobre, em sede de legis-lação democrática ou de tratados internacionais, o «nexo lógico» entre várias categorias de direitos. Em termos mais pregnantes: a dignidade humana é a mesma «em todos o lado e para todos», justificando a indivisibilidade dos direitos fundamentais. A «força

4O Ensaio sobre a Constituição da Europa que forneceu a inspiração do título do livro como sub-epígrafe do trabalho «A crise da União Europeia à luz de uma cons-tituição do direito internacional» permitem a Jürgen Habermas tentar «uma narrativa nova e conveniente», a partir da perspectiva de um constitucionalização do direito internacional, que, associando-se a Kant, aponta para uma futura situação jurídica cosmopolita, muito para além do status quo. «Não é a primeira vez que

o Autor aborda a perspectiva kantiana de um direito civil mun-dial e a constitucionalização do direito internacional. Com efeito, em trabalhos anteriores, as problemáticas da «paz perpétua», a «chance» da constitucionalização do direito internacional e a via-bilidade política num sociedade mundial pluralista haviam mere-cido importantes abordagens reflexivas. Porquê esta fome «sem entretém» pela Europa e o seu destino? A resposta clara e incisiva é esta: (1) porque o debate actual sobre a Europa se restringiu e continua a restringir «às saída imediatas para a crise bancária, monetária e da dívida, perdendo de vista a dimensão política»; (2) os conceitos políticos incorrectos ocultam a força civilizadora da juridicização democrática – e, portanto, também o compromis-so associado desde o início ao projecto constitucional europeu. Políticos e economistas colocados perante a única saída possível – «mais Europa» –, insistem nos conhecidos erros da construção da União europeia. «Mais Europa» implica um aprofundamento das competências e não o caminho saturado de um existencialismo

utópica», a «utopia concreta» surge ligada à mensagem éticomoral da dignidade: «os direitos fundamentais só podem cumprir poli-ticamente a promessa moral de respeitar a dignidade humana de todas as pessoas se agirem em articulação uns com os os outros de forma igual, em todas as categorias». mas não se trata apenas de uma «promessa moral». Como «Janus», os direitos têm duas faces - uma moral e outra jurídica -, carecendo de institucionalização e de positivação sob forma de direitos subjectivos.

político errante que vai desde os compromissos assumidos em cimeiras, ineficazes e não democráticas, até à aceleração da «perda de solidariedade a nível europeu». Mais do que isso: olham para os ditames dos «grandes bancos e agências de notação» e não para o desfalque legitimatório perante as suas próprias populações. E, em vez de se levar a sério um projecto europeu, opta-se por ca-minhos ínvios. Ensaia-se, sem o dizer, um esquema de «federa-lismo executivo». Oculta-se a «importância história do projecto europeu» por se impopular e complexo, navegando-se aos sabores dos populismos internos. Como sintetiza Habermas, instalou-se um estranho fenómeno de acatalepsia onde se mistura cepticismo, dúvidas não metódicas, incapacidade de compreender. As elites político-económicas sentem-se confortáveis com «incrementalis-mos», mas teimam em não assumir a força civilizadora do di-reito democrático. Tão-pouco parecem compreender o «regresso da questão democrática», sendo óbvio que os Estados pagam a governação baseada na intergovernabilidade com o decréscimo dos níveis de legitimação democrática. Por isso - e admitindo a inevitabilidade de transferência de direitos de soberania do estado para outras instâncias de soberania - torna-se indispensável um «requisito forte» para a justificação da incontornável tsoberania do povo. Jürgen Habermas desenveolve com mestria argumenta-tiva este «requisito forte» - «o espaço de manobra da autonomia cívica só não fica reduzido se os cidadãos em causa participarem na legislação supranacional, em coo-questões - de direito consti-tucional, de direito internacional e de direito europeu - quanto a este processo de juridicização. Vê-se que Jürgen Habermas de-senvovle com mestria argumentativa este «requisito foret» - «o espaço de manobra da autonomia cívica só não fica reduzido se os cidadãos em causa participarem na legislação supranacional, em cooperação com os cidadãos dos outros Estados envolvidos, e isto de acordo com um procedimento democrático. Na argumentação habermasiana não dá lugar para esquemas sucedâneos (esquema de Ersatz) da legitimazação democrática. Trata-se de uma justi-ficação deliberativa de reforço da responsabilidade decisória, da imposição de transparência ou de publicidade crítica, da garantia dos princípios do Estado de direito. Nada substitui a participação democrática e o procedimento democrático.

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5A tarefa de estabilização democrática, indispensável a «mais Europa», exige também um esforço de concetualização do processo de juridicização democrática do poder político na União europeia. Não é este o lugar para acompanharmos as complexas questões - de direito constitucional, de direito internacional e de direito europeu - quanto a este processo de juridicização. Vê-se que Jürgen Habermas não deixou de convocar a literatura mais representativa sobre o tema. O fio discursivo capta reflexivamente as invocações do processo

de legitimação europeu: a prioridade do direito supranacional dos detentores do monopólio da coação física, a divisão do poder cons-tituinte entre cidadãos da União e povos europeus, a soberania par-tilhada como critério para os requisitos de legitimação das cenas, Interessa, porém, reter a cuidadosa análise do papel dos alunos, dos povos e dos Estados quanto ao «processo de passar textos da go-vernação para além do Estado nacional. O Estado - essa tecnologia razoável que uns teimam em ontologizar e outros tentam colocar nas mercadorias próprias da concorrência global. É sabido que três instâncias «actantes» e acionalistas - cidadãos, povo, Estado - são convocadas de forma muito diversa para explicar concetualmente a esstruturação constituinte da União Europeia. Por amor ao Esta-do, alguns enfatizam o patriotismo nacional o com estado. Outros, navegando no cosmopolitismo sem fronteiras, preferem esquemas de regulação global para além do estado-nacional. A linha argu-mentativa habermasiana sugere um outro modo de articulação dos sujeitos constituintes. « Os Estados nacionais - escreve o autor - en-quanto Estados de direito, não são apenas atores no longo caminho histórico para a civilização do núcleo. Eles também são conquistas permanentes e formas vivas de uma «jsutiça que existe» (Hegel). «Por isso, os cidadãos da União podem ter um interesse legítimo em que o seu Estado nacional continue a desempenhar o papel comprovado de garante do direito e da liberdade, mesmo quando assume o papel de Estado-Membro». E não deixa de ser importante o papel atribuído aos Estados como neutralizadores de «evoluções reacionárias» pi de «retrocesso social». « Os Estados nacionais são mais do que a mera passagem de textos dignos de preservação, eles garantem um nível de jornalismo e liberdade que os alunos dese-jam, com toda a razão, ver preservado».

6Uma democracia transnacional não assenta apenas em es-quemas de legitimação democrática. Quaisquer acordos institucionais degradar-se-ão em cascas vazias da política se não se acentuarem as dimensões profundas democrá-tico-igualitárias veiculadoras de solidariedade entre «ci-dadãos dispostos a responsabilizar-se uns por outros» e a assumir a «disponibilidade para também fazer sacrifícios, com base numa reciprocidade de longo prazo». As «elites políticas hesitantes» - eis outro dos tópicos assinalados

por Habermas~- além de nem sempre pouparem sarcasmos típi-cos de inferioridades cívico-culturais («os Gregos que vendam as ilhas», «os Portugueses que se juntem ao Brasil»), parecem ficar enredadas nos segredos das várias comitologias europeias. «O fato de a União Eruopeia ter sido, até agora, essecnialmente sustentada e monopolizada por elites políticas, gerou uma assimetria perigosa entre a participação democrática dos povos naquilo que os seus governos «conquistam» para eles no palo de Bruxelas - que con-sideram muito longínquo - a indiferença, se não mesmo desinte-ress, dos cidadãos da União no que diz respeito às decisões do seu Parlamento, em Estrasburgo. Todos sabemos: com «indiferença», «desinteresse» e «distância» não se constroem democracias - mui-to menos transnacionais. O resultado é, sim, um buraco negro, vulgarmente designado por «déficite démocrático» da União Eu-ropeia. Este «déficite democrático» corre o risco de se converter «num arranjo para o exercício de um domínio pós-democrático e burocrático». A crise do euro pôs a claro o «clube dos ilusionistas» e revelou os pontos fracos do Tratado de Lisboa. Este Tratado não dota a UE de meioas para enfrentar os desafios que se lhe colocam enquanto União Económica e Monetária. O que é preciso não é ultrapassar as barreiras institucionais, mas exigir «uma alteração dradical no comprtamento das elites políticas. Devem estar menos voltadas para «relações públicas» e «incrementalismo dirigido por peritos» e mais preocupadas com a coesão económica e social da Europa. Não há como não acompanhar J. Habermas no seu credo europeu: «é necessária uma coesão política reforçada pela coesão social, para que a diversidade nacional e a riqueza cultural incom-paravel do biótopo - velha Europa - possam ser protegidas no seio de uma globalização que avança rapidamente».

7 Na última parte do Ensaio sobre a Constituição da Europa, Jürgen Habermas regressa ao tema da constitucionalização do direito internacional e aos problemas de legitimação de uma sociedade mundial devidamente conformada. No fundo, tratar-se-ia da continuação da «juridicização demo-crática», agora no plano global, ou, por outras palavras, que são as do Autor, da «constituição de uma comunidade de cidadãos do mundo». A nível concetual e construtivis-ta, procura-se dar operacionalidade à democracia cosmo-

polita. Como é sabido, a consrução habermasiana é criticada por muitos e acusada de ser uma «fantasmagoria» normativa própria de um espírito utópico. Em rigor, a narrativa habermasiana não parte do nada nem inventa lugares povoados com fantasmas. Desde a Carta das Nações Unidas e do seu núcleo orgazacionali até às decisões do Conselho de Segurança seria (será) possível prosseguir com a civilização do exercício do poder político. Mas, como o pró-prio Autor reconhece, a «ligação dos cidadãos do mundo» e a par-tilha de «cultura política» implicaria a eleição para um Parlamento mundial autoconformado como locus da inclusividade mas des-provido de mecanismos de imputação de responsabilidade parla-mentar na cadeia de juridicização democrática da política mundial.

8O livro termina com um Anexo, onde se inclui uma entrevista cedida ao jornal Die Zei («Depois da Bancar-rota»), com artigo publicado neste mesmo jornal («No euro decide-se o destino da União Europeia») e um ter-ceiro trabalho publicado no jornal Suddeustsche Zeitung («Um pacto para ou contra a Europa»). Qualquer tenta-tiva de sintetizar estes trabalhos correria o risco de tornar escuro aquilo que é claro. Leia-se a voz do profeta «con-tra o tédio face a uma exigência política insuficiente».

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ciência, trabalho e VIRIATO

SOBOMENHOMARQUEScrise do ambiente

A ciência moderna e contemporânea aparece depois de uma declaração aberta de renúncia: ter desistido, no seu mains-tream, do ideal teorético, isto é de um inquérito dos objetos mundanos que se satisfizesse na contemplação cognitiva, desprovida de uma utilidade prática. Na verdade, a reabilita-ção do trabalho, que se encontra já presente, como contras-te, no neoplatonismo de Thomas More ( veja-se a sua Uto-pia de 1516, onde se apresenta a ideia católica e, mais tarde, comunista da reabilitação pelo trabalho manual ), é um

profundo indicador da mudança de atitude, entretanto ocorrida.Se o trabalho é moralmente válido, e não moralmente indigno,

ao contrário do que ocorria nas sociedades esclavagistas da Grécia Antiga, então há uma dimensão redentora naquilo que se poderá realizar pelo trabalho, compreendendo nele, também, a novidade aportada por um trabalho enriquecido e transmutado pelas inova-ções tecnológicas. O Cristianismo, nas suas diferentes correntes,

faz o pleno na exaltação do valor formativo e humanizante do tra-balho manual ( não foi só o protestantismo como rezam algumas lendas, aceites mesmo no universo católico, e a maior prova disso reside no facto de Thomas More ter sido canonizado...). O trabalho já não é a degradação que o ateniense livre nele descobria, ou o anátema lançado por Deus contra a ambição humana, de acordo com livro do Génesis da tradição judaica, que depois foi apropria-da pelas grandes tradições monoteístas.

Esta tendência normaliza-se e generalizase com a Revolução Industrial. O melhor exemplo patente nas reflexões de Benjamin Constant, em 1819. Fazer ciência torna-se, assim, não tanto na ati-vidade que conhece os objetos, mas na atividade que os visa pro-duzir. Viragem da Gnosiologia para a Neo-Ontologia. A essa luz, a crise global do ambiente, se a ela sucumbirmos, antes de mais, um sintoma de fracasso radical desse projeto de recriação do mundo pelo trabalho, aliado à força transformadora da tecnociência.

ECOLOGIA

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a próxima década

Tentar prever o futuro, mesmo que seja um futuro não distante, ou seja : A próxima década, não é pequena ousadia. Mas é isso, num livro com tal título - a que se acrescenta : Onde temos estado ... e para onde nos dirigimos - que intenta ou ensaia George Friedman, o norteamericano fundador e líder da Stratfor, uma empresa consi-derada a nº1 em informação geopolitica global. E é este o dominio fundamental das suas previsões, que vão de futuras guerras, de vários géneros, ao destino da Europa e da zona euro, da China, das relações internacionais, em particular no Médio Oriente e dos EUA com Israel e o Irão. O livro “ fala da relação entre império ( leia--se : os EUA ), républica e o exercicio do poder nos próximos dez anos “, e do modo como “ os EUA se devem comportar no mundo para exercerem o seu poder e preservarem a república ao mesmo tempo “, assume o autor.

George FriedmanA PRÓXIMA DÉCADAD .Quixote, 300pp, 15,90 euros

portugalidadeAinda bem que se reúnem em volume as intervenções no colóquio “ Representações da Portugalidade “, organizado pela Universi-dade da Beira Interior, para assinalar o centenário da Républica. O livro tem o titulo do colóquio e saõ seus organizadores André Barata, António Santos Pereira e José Ricardo Carvalheiro. A sinopse de apresentação resume bem do que se trata : “ Dos muitos mo-dos de ver as várias facetas da Portugalidade, é possível gerar um encontro entre distintas linguagens, objectos e perspectivas sobre a identidade portuguesa. Para lá de uma pretensa ou presumível essência, que não tem de resumir o essencial da Portugalidade, muito menos dispor de contornos precisos é ambição deste li-vro apreciar a pluralidade e eventual singularidade dos elementos de Portugalidade, num diálogo multidisciplinar, cultural e aberto, entre o material e o simbólico, a representação e a produção, o passado e o futuro. Porque a identidade não tem a ver apenas com o que somos e de onde vimos, mas também com o que queremos fazer com aquilo de que dispomos.”Além dos três organizadores os textos são de Silvina Rodrigues

Lopes, Carla Sofia Gomes Xavier, Daniel Ribas, Luís Cunha, José Neves, José Manuel Sobral, Daniel Melo, Luís Henriques, Mariana Pinto dos Santos, Alecandre António da Costa Luís, João de Melo e Mário de Carvalho. Os dois últimos conhecidos escritores, sendo o do autor de A Sala Magenta o mais literário de todo o volume.

André Barata, António Santos Pereira e José RicardoCarvalheiro (org.)portugalidadeCaminho, 280 pp, 15.90 euros

sobre o tédioO tédio enquanto configuração contemporânea é um ensaio que resulta da tese de mestrado do autor, José Baptista, em Ciências da Comunicação da Universidade Nova Lisboa. São 17 capítulos em que analisa a “atualidade do tédio enquanto fenómeno cultural e forma determinante de se estar no mundo procurando, por um lado, delinear de que forma e através de que mediações surge a possibilidade da sua precipitação no âmago do sentir e da expriên-cia do sujeito e, por outro, demonstrar o papel contral que ocupa na compreensão da expriência contemporânea”.

José BaptistaO TÉDIO ENQUANTO CON-FIGURAÇÃO CONTEMPO-RÂNEAChiado Editora, 150 pp, 12 euros

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O TESTEMUNHO DO’GRUPO DE GENEVE’

de Geneve fala quase sempre do seu trabalho na área da Psiquiatria, considerando esse tempo “o melhor da (sua) vida”); e em Medei-ros Ferreira é que é mais dominante, ao longo dos anos, a vertente de um pensamento e de objectivos políticos determinados.Era bom haver muitos mais livros como este, que se situa, como nele se assinala, na linha - e como contraponto - de À espera de Godinho (2009), uma conversa entre quatro ex exilados na Bélgi-ca. Um deles, Amadeu Lopes Sabino, acompanhou aliás, o nasci-mento e feitura deste volume, e prefacia-o, terminando por escre-ver:” Exilados, procuraram e encontraram noutras terras e junto de outras gentes a pátria utópica. Regressados, estavam corrompidos pelos licores do comospolitismo, doença que em Portugal costu-mava tratar-se com pomadas domésticas. Os depoimentos aqui re-colhidos demonstram que qualquer doença, crónica, não tem cura definitiva e está sujeita a recaídas.

VáriosPÁTRIA UTÓPICABizâncio, 320pp, 13,50 euros

Pátria Utópica é um muito interessante livro memoria-lístico e testemunhal, sobre o ante e o post 25 de Abril, sobre cinco expriências de exílio politico e o que a ele obrigou, como foi a vida durante esse exilio, o retorno ao país e ( nele ) os primeiros tempos tempos da vida em democracia. Por isso o livro se divide em quatro par-tes, correspondentes, grosso modo, a essas quatro fases ou tempos de experiência : Em Portugal, abafava-se; À beira do lago Léman; Regressos; Portugal reencontra-

do. Quando aos cinco testemunhantes, são: António Barreto, Ana Benavente, Eurico Figueiredo, José Medeiros Ferreira e Valentim Alexandre. Os quatro primeiros bem conhecidos, com larga ativi-dade politica, durante muitos anos, sobretudo na área do PS, todos tendo passado pelo Parlamento como deputados, Medeiros e Bar-reto ( que já não é do partido e preside a uma fundação) também ministros, Ana Benavente secretária de Estado, e todos, incluindo Valentim Alexandre, docentes e/ou investigadores universitários e autores de várias obras no seu ramo de especialidade, e não só.E o que há, além disto, de comum entre eles? O facto de terem estado ligados às lutas associativas, de que agora se assinala o cin-quentenário, alguns ( Eurico e Medeiros ) com intervenção des-tacada, terem-se exilado por razões semelhantes ( em particular para não serem presos, e/ ou para não ir para guerra colonial; ou, no caso de Ana Benavente, aos 18 anos já casada, porque esse era o caso do marido ), haverem pertencido ( ou quase pertencido ...) ao Partido Comunista. E, sobretudo, para efeito deste livro, o seu exilio ter sido na mesma cidade suiça, serem amigos e haverem partilhado muita coisa em comum - e por isso o livro tem como subtitulo O Grupo de Genebra revisitado. Mas, para lá dessa partilha, as experiências são diversificadas e os ângulos de abordagem e as escritas também, pelo que o vo-lume resulta de leitura atrativa - além de, e isso é o fundamental, constituir, repete-se, um apreciável testemunho sobre o Portugal de antes de depois de 25 de Abril, a vida no exilio eo percurso politico, profissional e em alguns casos pessoal dos cinco autores. Seria curioso e porventura revelador, aliás, avaliar alguns dos seus aspectos - o que, porém, aqui nao cabe. Por exemplo, Eurico Fi-gueiredo, o que saiu do país com mais atividade e ‘peso’ políticos,

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A FORÇA

DA L ÍNGUAa paixão das ideias

guilherme d’oliveira martins

O génio da língua é a essência espiritual emanada dos seus vocábulos intraduzíveis que se pode sintetizar numa ex-pressão mais ou menos definida >> - Teixeira de Pascoaes disse-o, pensando na saudade, por certo, no desejo sen-sual e alegre e na lembrança espiritual e dolorida, mas ao lermo-lo, temos de ir mais além. Quando refere o que faz parte do que é próprio, da maior importância, no patri-mónio imaterial da cultura. Ao depararmos com a magia das palavras na obra de um grande poeta, verificamos que

os sentimentos, sendo intraduzíveis, vão ao encontro de palavras únicas para se exprimirem e se fazerem entender. Por isso Sophia dizia: << Gosto de ouvir o português do Brasil / Onde as palavras recuperam suas substância total / Concretas como frutos nítidas como pássaros / Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas / Sem perder um quinto de vogal / Quando Helena Lanari dizia “ Coqueiro” / O coqueiro ficava muito mais vegetal>>. Aqui está a magia do que se não traduz, mas sente-se.

O português é a terceira língua europeia mais falada no mundo graças a difusão operada pelos portugueses das caravelas à unidade linguística do Brasil. É uma língua de várias culturas, que, como língua viva, comporta muitas diferenças, mundo afora, na pronún-cia, na sintaxe e no vocabulário. Apesar da dispersão significativa, tem conseguido manter uma coesão apreciável, que permite a li-

gação de um identidade complexa, baseada no diálogo e compre-ensão. E saliente-se que o fenómeno dos crioulos não constitui uma excepção, mas um modo de enriquecimento, uma vez que prolongam as línguas nacionais dos países de língua oficial portu-guesa. Quando se fala de lusofonia, importa, antes de mais, referir que, se a língua portuguesa é de origem europeia, a verdade é que ganhou uma riqueza universal. A lusofonia há muito que deixou de ser eurocêntrica, para se tornar multipolar, enquanto partilha a fecunda de várias culturas e de diversas influências. A língua portu-guesa é, assim partilhada por diferentes culturas, que se encontram e se completam na sua profunda diversidade. Leia-se, por exemplo, Mia Couto e o seu << queixa-andar>> e veja-se como, apesar das muitas diferenças, há pontos forte de união. Encontre-se Pepetela, Germano de Almeida, Craveirinha, José Eduardo Agualusa, Antó-nio Candido ou Rubem Fonseca. Aí está tudo!

A coesão essencial da língua portuguesa não pode, pois, fazer esquecer a diversidade interna e externa. Olhando a faixa oeste da Península Ibérica, onde nasceu o galaico-português, encontramos três grupos de dialetos ou falares diferenciados, mas muito próxi-mos - galego, português setentrional e português centro-meridio-nal, segundo a formulação de Lindley Cintra. Estamos a falar da distinção entre o falar das classes cultas do eixo Coimbra-Lisboa, que defme a norma dominante da língua. E aqui importa referir

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que a Universidade (desde o século XIII) marcou decisivamente essa norma. Afinal, D. Dinis, ao criar o Reino, ligou as decisões da língua, do Estudo Geral e da fronteira. A diferenciação dos três grupos referidos faz-se pelo sistema das sibilantes. Nos dialetos galegos não há sibilantes sonoras (z) e não há a fricativa palatal sonora (o nosso j), mas a surda (x). Nos dialetos portugueses se-tentrionais há as sibilantes ápíco-alveolares idênticas às do caste-lhano e ao padrão (surdas - em seis; sonoras - em rosa). Nos falares meridionais apenas aparecem as sibilantes predorso-dentaís, que caracterizam a língua padrão - surdas (como em cinco ou caça) e sonoras (como em rosa e fazer). Além das características técnicas, há as especificidades regionais: os bês e os vês - Garrett dizia «nós os do Porto podemos trocar os bês pelos vês, mas nunca a liberda-de pela tirania». Galegos e setentrionais usam dizer binho e abó, enquanto os meridionais pronunciam a consoante vê como lábio--dental. Já o ch é dito no padrão como fricativa (chave) e como africada palatal nos dialetos galegos e nortenhos (tchave). Quanto aos ditongos, à pronúncia meridional (ôro, ferrêro) contrapõe-se a diferenciação galega e setentrional (ouro, ferreiro), com uma particularidade no falar de Lisboa (que diz ferreiro]. Lembrem-se os ditongos reforçados na região do Porto e Entre-Douro-e-Mínho (pworto): a alteração dos timbres das vogais na Beira Baixa, Alto Alentejo e Barlavento algarvio (müla, põca) e a queda da última vogal átona (tüd, por tudo). Por outro lado, há diferenças voca-bulares assinaláveis: ervilhas no norte e centro, griséus no Algar-ve; aloquete, a norte de Coimbra, cadeado, a sul; mais palavras de origem árabe a sul; palavras arcaicas a norte - como mugir em vez de ordenhar, espiga por maçaroca, anho por cordeiro. São fatores históricos que pesam, mas do que razões linguísticas. Nas ilhas atlânticas, há um prolongamento dos dialetos centro-meridionais. A colonização do século XV partiu dessas regiões, Há exceções em S. Miguel e na Madeira. No primeiro caso acentuam-se as tendên-

a coesão essencial da língua portu-guesa não pode, pois, fazer esquecer a diversidade interna e externa

cias na alteração dos timbres das vogais e na queda da última vogal átona, e ao contrário da língua padrão o ditongo ej torna-se e. Na Madeira, o u e o i tónicos tornam-se ditongados, e a consoante 1 precedida de um i palataliza-se (:veyla, por vila). E se nos atemos apenas ao continente europeu, poderíamos distinguir no Brasil duas zonas linguísticas, a Norte e a Sul, separadas por uma frontei-ra que se estende da foz do rio Mucuri entre os Estados do Espírito Santo e da Bahia até à cidade de Mato Grosso. Em África, na Ásia e na Oceânia, além do português como língua oficial (com muitas específlcidades vocabulares), as variedades crioulas resultam do contacto do sistema da língua portuguesa com os sistemas indí-genas. Porventura, podem derivar todos os crioulos dos papiares, as línguas francas do português do século XVI, que serviram de modo de comunicação entre as populações locais e os navegado-res, mercadores e missionários, nas costas de África, Arábia, Pérsia, Índia, Malásia, Indonésia, China e Japão. Os crioulos são línguas derivadas do português. Baltazar Lopes da Silva, para o crioulo de Cabo Verde, foi por certo o mais fecundo escritor e estudioso do tema. E a diversidade é fantástica, os crioulos: de Cabo Verde: de Barlavento (Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Sal e Boavista), de Sotavento (Santiago, Maio, Fogo e Brava); do Golfo da Guiné (S. Tomé, Príncipe e Ano Bom, na Guiné Equatorial); os continen-tais (Guiné-Bissau e Casamansa); da Ásia (papiar cristan de Malaca, patuá di Macau, Sri - Lanka, Chaul, Korlai, Tellicherry, Cananor e Cochím}; de Java (Tugu). Perante esta panóplia de extraordinária riqueza, a que temos de somar os vocábulos portugueses incorpo-rados em diversas línguas nacionais (desde o bahasa indonésio ao japonês), percebemos que há potencialidades por aproveitar, numa economia para as pessoas.

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JOÃO LUÍS

BARRETO GUIMARÃESmeter conversa

diário

póvoa de varzim, sábado, 25 de fevereiro de 2012

Surpreendo o poeta Jaime Rocha ao estender-lhe uma folha ama-relecida arrancada a um bloco de notas, onde alguns meses atrás eu havia pedido a Hélia Correia para repetir por escrito algo que a ouvira dizer na sessão de homenagem a Maria Helena da Ro-cha Pereira na Feira do Livro do Porto, e que desde então me tem acompanhado como um refrão: “A erudição é uma aprendizagem; a sabedoria é um triunfo”.

Jaime fita o papel, entarnecido, estudando a caligrafia a castanho bordada pela sua namorada, com o exato olhar com que ambos fitaram há alguns meses atrás , em Inglaterra, o único manuscrito conhecido de Dante Gabriel Rosseti recuperado da tumba de Lizzie.

Para além de excelente poeta, Jaime Rocha é uma excelente pessoa, O seu rosto transmite uma tal tranquilidade e sabedoria, uma gentileza e generosidade que me faz lamentar repetidas vezes apenas o reencontrar uma vez por ano nas Correntes d’Escritas, onde sempre partilha histórias singulares como a daqeula vez em que um repórter fotográfico procurou Hélia, em Janas, para onde o casal foge ao fim de semana, com o intuito de a fotografar para uma edição do Expresso, e incomodada pelo intenso calor capaz de gerar fotofobia, viu Jaime correr para a sombra e para gáudio do fotógrafo, com a mangueirada de rega estreitada na extrmidade, inventar a chiva com que aspergiu a gabardina que a helenista exi-be nas páginas do semanário, num certo dia soalheiro tornado gris.

Impaciento-me enquanto Jaime não me devolve o manuscrito que obtive de sua namorada.

Tampouco me ofereço para lho oferecer. Desses pode ele pedir lá em casa quantos quiser.

Onésimo Teotónio de Almeida dá-nos conta, ao almoço, da luta inglória que Annie trava para que Eduardo Lourenço deixe de cole-cionar pirâmides e pirâmides de recortes de jornal, alegando ter de

voltar a eles para os arquivar, o que acaba por nunca acontecer. Conta Onésimo que Annie resolve a coisa da seguinte maneira: deixa que Eduardo saia para Portugal e, de quando em vez, das pirâmides de recortes semeadas pela casa, elimina as três ou quatro camadas de baixo de modo a que Eduardo, no seu regresso a Vince, encontre sempre no topo das pirâmides aqueles que a sua

memória recente lhe convoca, não dando imediatamente pela falta dos mais antigos. “Se calhar foi assim que desapareceram os diários”, ironiza José Carlos de Vasconcelos.

A memória de Onésimo é feita deste mosaico de fragmentos, prodigiosamente justapostos, onde coleciona humor e inteleção, Para Onésimo, tudo pode ser crónica, como para William Carlos

Williams tudo podia acabar em verso. Onésimo interpela agora Luís Ricardo Duarte pelo facto de os participantes mais novos das Correntes “não ligarem nada aos tipos com mais de 40 anos, como

eu” , ao preferirem juntar-se numa mesa á parte, quer ao almoço aquer ao jantar. O que não é, de todo, verdade, Esse é somente o pré-texto de que Onésimo necessita para nos arrancar mais um

sorriso, com o interminável gesticular de dedos que tem vindo a aperfeiçoar desde 1946: “Uma chatice, eu ter feito agora 41”.

É ele roubador de sorrisos a quem as autoridades da Póvoa sem-pre entregam a chave da última mesa para que Onésimo feche as Correntes com uma eficácia anglo-saxónica: “Gosto sempre de

preparar a minha palestra para as Correntes com muita ante-cedência. Aquilo que vou dizer logo á tarde, por exemplo, é já a palestra do ano que vem”.

Precisamos de estar mais atentos ao que escrevem os políticos em início de carreira, Os indícios estão lá todos. Gonçalo M. Tavares surpreende a plateia ao recuperar extratos dos escritos de Adolf Hitler, onde o putativo ditador lamentava os fastos da sociedade

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alemã com a saúde dos seus próprios deficientes. A provacação do Gonçalo é demasiado clara para não ser entendida, e em tempos de austeridade com regras vindas da Europa, só não a entende quem não quiser entender: “Degrau a degrau, o mundo contabilístico vai-nos tirando direitos.”

Companheiros de ofício, desde há algum tempo conhecidos, sento.me a lanchar com ele enquanto me autografa três livros da série O bairro que acabo de comprar. E percebo que o incomoda que eu os tenha comprado, que tenha gasto dinheiro com ele, não ter conseguido exemplares para me oferecer, tanto quanto o inco-moda que me tenha levantado para lhe oferecer o sumo com que devolvo humidade, a uma boca onde sobra humildade.

Tanto jovem turco irrompe pisando memória e tradição, que chega a ser desconcertamente que a grandeza do Gonçalo não es-teja apenas na obra que entretanto construiu, sequer num olhar profundo onde abunda inteleção, quanto na consciência que tem de que faça o que vier a fazer, chegue onde tiver de chegar, jamais deixará de se ver como um “anão aos ombros de gigantes”.

leça da palmeira

domingo, 26 de feveiro

Distração, num poeta, é deixar acabar a reserva de cargas de tinta permanente da caneta favorita. Imprudência é sair de casa sem um caderninho no bolso. Não porque tenha o hábito de me obrigar a escrever um poema por dia, antes por ser imperioso ter um sítio onde escrever, se o acaso aparece com um verso que vale a pena: “Se adormeces a meu peito/ o meu braço adormece primeiro”.

vila nova de gaia

segunda-feira, 27 de fevereiro

Desde janeiro passado, sempre que atravesso de carro o tabuleiro da ponte da Arrábida, lembro-me do poeta Rui Costa. Nós não éramos amigos mas apenas conhecidos, não nos teremos cruzado mais do que uma mão cheia de vezes, a mais demorada das quais no encontro com poetas Galegos que o António Costa organizou. Mas recordo um rapaz alto, muito ativo, bem-parecido, para quem a poesia não era um passatempo marginal, antes uma razão para viver, um modo de estar nos dias. A circunstância da sua morte, o ter aparecido no rio, levaram-me a escrever um poema que não fui capaz de terminar.

Algo que sucedeu hoje numa súbita epifania, ao cruzar de novo a ponte lembrando um paradoxo de Zenão. Que bom seria, Rui, se o Paradoxo do Estádio fosse mesmo verdadeiro: “É impossível atra-vessar o estádio; porque antes de se atingir a meta, deve primeiro alcançar-se o ponto intermédioda distância a percorrer; antesde atingir esse ponto, deve atingir-se o ponto que está a meio cami-nho desse ponto; e assim ad infinitum”. Sem nunca tocar águas, Rui, sem nunca chegar ao chão.

Um dos momentos altos das Correntes, no que á confraternização gastronómica diz respeito, foi o jantar no Zé das Letras com a mi-nha editora Lúcia Pinho Mleo, as Margaridas Ferra e Vale de Gato, e

leça da palmeira

quinta-feira, 1 de março

Desde que o meu pai faleceu, o Jorge Sousa Braga liga-me todas as semanas. É um facto que já o fazia antes de aquele dia me ter acontecido, mas actualmente faz questão de me ligar todas as se-manas. O poeta com quem partilho o Poesia & Lda é, com o meu irmão, um dos meus melhores amigos, um daqueles raros brindes com que a vida nos brinda, o podemos privar com pessoas de ética irrepreensível, como era o Egito Gonçalves que tanta saudade deixou.

A única vez que nos zangamos foi por causa de uma doente comum. Antes tivesse sido a poesia, já que a zanga provavelmente teria durado menos tempo. Embora, por outro lado, tivesse sido a poesia, e dificilmente teríamos estado tanto tempo de costas vol-tadas; não só usamos frequentar a mesma família de poetas, como há mais de duas décadas que ele cuidou de me ensinar não ser poeta um campeonato, embora persista quem assim pense, antes uma corrida no deserto, e isto já sou eu quem o diz: ninguém sabe onde é a partida, sequer onde fica a chegada, mas muito pior do que isso, o trajecto não está marcado.

Foi uma altura em que as palavras se esgotaram entre nós. Até que me enchi do silêncio e pedi ao Manuel António Pina, o favor de mediar o mal-entendido. Ninguém melhor que um poeta podia encher de palavras, o silêncio de poetas mudos.

Breve nota a não esquecer.Convidar o Rui Manuel Amaral para um café no Marquês, e pro-

por-lhe estas palavras: “O nariz de Paul Gaughin seria o sítio ideal para Vincent van Gogh ter dado uma dentada.

Mas não aconteceu nada”.

Ah, sinto que poderia escrever este diário para sempre.

joão luís barreto guimarães, 44 anos, cirur-gião plástico mas, como diz, antes de tudo, po-eta. há livros na tribo, luz última ou a parte pelo todo são algumas das suas obras. publi-cou, em janeiro, poesia reunida

vários outros amigos. Já no final do jantar, o Bruno e a Marta Serra encheram-se de razões, encetando um cotejo de predicados polí-ticos da esquerda e da direita, no que a Valores diz respeito, num gesticular amável mas não menos decidido que se porlongou pelo doce, pela fruta, pelo café, pelo cigarro fumado á entrada, pela calçada, pelo parque, pelas ruas da Póvoa de Varzim.

Ao terminar o e-mail que hoje lhe dirigi, resolvi provocar o Bruno Vieira Amaral, perguntando-lhe se ele e a Marta, de regresso a Lisboa, ainda estavam a gesticular o assunto. A resposta pronta doBruno não me fez esperar: “[Aquilo ainda se] prolongou por mais um pouco, mas a Marta acabou por me convencer de que eu tinha a razão”.