jornal de letras re-design

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32 ANOS DO JL DECLARAÇÕES DE AMOR Á LÍNGUA PORTUGUESA NIKIAS SKAPINAKIS A RESTRO NO MUSEU BERARDO PAGINA 26 GONçALO TOCHA CORVO, O FILME DA ILHA PAGINA 28 J.J GOMES CANOTILHO ESCREVE SOBRE JÜRGEN HABERNAS PAGINA 36 E 37 Ano XXXI - Número 1082 - De 21 de março a 1 de abril de 2012 Portugal(Cont.) €2,80 - Quinzenário Diretor José Carlos de Vasconcelos JOãO LOBO ANTUNES ESCREVE SOBRE O IRMãO ANTóNIO O percurso comum, o cancro do escritor e como ele transformou em Sobôlos rios que vão. PAG 16 A 18 Jornal deLetras, Artes e Ideias

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Jornal de Letras

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32ANOS DO JL DECLARAçÕES DE AMOR Á LÍNGUA PORTUGUESA

Nikias skapiNakis a restro No Museu berardo paGiNa 26

GoNçaLo toCHa CorVo, o FiLMe da iLHapaGiNa 28

J.J GoMes CaNotiLHo esCreVe sobre JÜrGeN HaberNaspaGiNa 36 e 37

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Festa da Francofonia.Exposições, cinema, musica, conferencias e encontros gastronómicos são algumas das atividades que compõem a Festa da Francofonia que decorre em oito cidades portu-guesas- Lisboa, Porto, Caldas da Rainha, Coimbra, Espinho, Guimarães, Setúbal e Vila Nova de Gaia- até 24 de mar-ço. Hoje, quarta-feira 21, pelas 18 horas, no auditório do Insti-tut Français du Portugal, em Lisboa, François de Closets, escritor e jornalista, autor de mais uma vintena de ensaios sobre a sociedade contem-porânea francesa é o arador da conferência l´orthographe, une passion française. Lá force (in)tranquile dês annés 80: questions posées à lá culture fraçaise é outra das conferen-cias desta festa, a 22, a partir das 9 e 30, na Faculdade de Letras do Porto. Na música destaque para o concerto de 23, às 18, no Palácio da Foz, em Lisboa, do violinista Krasi-mir Dzhambazov.D

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Em 2012, a Direção-Geral das Artes (DGArtes), não vai abrir os concursos para os apoios pon-tuais e anuais às artes, anun-ciou semana passada Samuel Rego, diretor do organismo. Noutra frente o mesmo respon-sável fez saber que, no próximo mês de abril, inaugura um novo concurso para a atribuição de apoios financeiros a projetos artísticos que se desenvolvam no estrangeiro, considerando que, “no atual contexto, a existência de dispositivos de internacionalização dirigidos ás artes é crucial para o fomento do empreendedorismo e para o alargamento de mercados no setor artístico”. Com uma dotação financeira de 600 mil de euros, a linha de apoio destina-se a um máximo de 100 candidaturas de entre as áreas artísticas tuteladas pela DGAr-tes, entre as quais a arquitetura, artes visuais, dança, design, fotografia, musica e teatro.D

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Eduardo Prado Coelho será homenageado a 29 de Março - data do seu aniversário - na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. A partir das 14:30 (e até as 19horas) serão lidos textos da sua autoria. Haverá uma seleção disponível para os participantes - organizada por Maria Manuel Viana e Margarida Lages - mas cada um poderá ler qualquer texto que trouxer. Nascido em Lisboa, em 1944, filho do prof. catedrático Jacinto do Prado Coelho, Eduardo licenciou-se em Filologia Românica, na Faculdade de Letras, da Uni-versidade de Lisboa. Deixou uma vasta bibliografia univer-sitária e ensaística - também em inúmeros jornais - desta-cando-se um longo estudo de teoria literária.

O poeta, ensaísta e crítico literário João Rui de Sousa, 83 anos, foi distinguido com o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores/Caixa Geral de Depósitos. O galardão, no valor de 25 mil euros, é atribuído de dois em dois anos, e já foi entregue a autores como José Saramago, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny ou Vítor Aguiar e Silva.Nascido em 1928, em Lisboa, João Rui de Sousa formou-se em Agronomia e em Ciências Histórico Filosóficas. Estreou-se na escrita na revista Cassi-opeia, da qual foi um dos fundadores. Circulação (1960), A Hipérbole da Cidade (1960), Corpo Ter-restre (1972), O Fogo Repartido (1983), Enquanto a Noite, a folhagem (1991) são alguns dos seus liv-ros de poemas. Mais recentemente, em 2008, edi-tou Quarteto para as próximas chuvas. Fez crítica literária no JL, integrando o ‘quarteto’ composto por Fernando Guimarães, Manuel Frias Martins e Ernesto Mello e Castro. No ensaio publicou, entre outros, Fernando Pessoa empregado de escritório e António Ramos Rosa ou o Diálogo com o universo. Editou ainda Antologia e Poesias Completas, de Adolfo Casais Monteiro.

O que significa este prémio? Como o sentiu? Fiquei muito surpreendido e “embatucado”, até por causa dos nomes dos meus antecessores. É um incentivo, uma palavra de ânimo para alguém que não tem por hábito andar nas par-angonas. Julgo que é um reconhecimento de um trabalho de mais de meio século, tanto na poesia como na crítica literária e no ensaio. O prémio é também para aqueles que, sossegada e silen-ciosamente, me têm apoiado e incentivado ao longo dos anos. Partilho-o com eles. Deve-se muito aos outros.

É poeta, ensaísta, crítico e investigador.Para si, ao longo dos anos, qual destes papéis tem sido o principal?Sem desprimor para as outras artes, julgo que é o papel de poeta. A poesia é mais espontânea, a mais criativa das artes. Embora considere que há muita criatividade na crítica e no ensaio. O prof. Jacinto Prado Coelho dizia isto muitas vezes. Mas creio que a poesia, postas as coisas nos pratos da balança, é a que pesa mais no meu percurso.

Mas pesa sem pesar...Sim. Dá-me liberdade. Num ensaio há um condi-cionalismo. Fala-se sobre qualquer coisa, ao passo que na poesia fala-se sobre nós próprios, sobre o que vem à cabeça, à alma.

Está a trabalhar num novo livro? Tenho um livro de poemas em preparação, mas não está fechado. Ainda estou hesitante quanto ao título. Será algo sobre Lisboa a que chamarei Um roteiro sentimental ou Uma cartografia sentimen-tal. Trata-se da Lisboa que eu tenho vivido e que me tem tocado aqui ou ali. É Aquele que está mais próximo de ser editado. JL Francisca Cunha Rêgo

2 DESTAQUE

BREVE ENCONTRO

Atelier utopiA, de Miguel pAlMA, no porto

VAI ACON TECER

João Rui de SouSaVida de poeSia pRemiada

Atelier utopia, de Miguel Palma, no Porto. Um conjunto de trabalhos pre-paratórios de diversas obras de Miguel Palma, numa exposição que é uma espécie de prolongamento do seu próprio atelier. Chama-se justamente Ate-lier Utopia, inaugura-se a 25 de Março, na Galeria da Fundação EDP, no Porto, e tem curadoria de Bruno Leitão. Permite desvendar, nas suas várias fases e em diferentes peças, o próprio processo criativo do artista, nascido em 1964 e que começou a expor nos anos 80. Tem realizado numerosas exposições no país e no estrangeiro, entre as quais a recente Linha de Montagem, no Cen-tro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian. Patente até 1 de Julho.

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Os desempregados vão entrar gratuitamente em museus e monumentos, e beneficiar de descontos nos teatros nacionais e na Cinemateca Portuguesa. É uma medida da Secretaria de Estado da Cultura que entra em vigor a partir de dia 27. Para beneficiar dos descontos basta a apresentação de um comprova-tivo de inscrição no Instituto de Emprego e Formação Profission-al ou qualquer outro documento emitido pela Segurança Social. Na Cinemateca Portuguesa, o bilhete fica a 1,35euros, no Teatro D.Maria II, a 6 euros. No São João o desconto é de 50%, e nos espectáculos da Companhia Nacional de Bailado e do São Carlos é de 25%.

Portugal no Brasil: pontes para o presente é o título do 6º colóquio internacional que o Polo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras (PPRLB), vinculado ao Centro de Estudos do Real Gabinete Português de Leitura, promove de 9 a 13 de Abril, no Rio de Janeiro, para assinalar o Ano de Portugal no Brasil.No próximo JL daremos o devi-do destaque a esta iniciativa que conta com a participação de investigadores e professores universitários de ambos os países. A comissão organiza-dora é constituída pelos profs. doutores Gilda Santos, Luciana Salles, Mônica Genelhu Fagun-des e Roberto Loureiro.

Linguas e culturas latinas: dos riscos da incompreensão ao desafio da intecompreensão é o tema do 6º Festlatino, Festival Internacional de Culturas, Lín-guas e Literaturas Neolatinas, quese realiza em Recife, no Brasil. A 29 de Março, a partir das 9, na Residência André de Gouveia da Cité Interna-cional Universitária de Paris, decorre um dos seus seminários preparatórios. Esta iniciativa conta com organização de Ana Paixão e José Manuel Esteves, da Universidade de Paris e Saulo Neiva, da Universidade de Clermont. O Festlatino tem como objectivo principal contribuir para o reforço das ligações entre culturas latinas.Fe

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3 EDITORIAL

Só em datas ou números ´redondos` temos assinalado de forma es-pecial os aniversários do JL. Quando completamos um ano de ex-istência, embora deforma discreta, naturalmente o fizemos. E depois só na centésima edição, íamos no 4º ano de vida (entretando, face ao êxito do jornal (passáramos de quinzenário a semanário), dedi-camos uma capa à “efeméride”. Uma capa com o 100 ocupando-a toda, do mesmo grande pintor e desenhador, João Abel Manta, que fizera as cinco primeiras capas com números e nas nossa páginas deixara uma extraordinária série de retratos e ilustrações, que já são são parte do património artístico português dessa época. A partir daí, o nº 200 teve só uma chamada, e apenas nos nº s 500 e 1000 (e no 1001, prolongamento o anterior, mas dedicado aos escritores e artis-tas mais novos, que sempre estiveram também no centro da nossa atenção) voltamos aos destaques de capa e às edições com matérias especiais. Como aconteceu nos 20 e 25 anos, quando aqui deixaram a sua opinião e o seu testemunho sobre o JL grandes figuras do mun-do lusófono, incluindo alguns Presidentes da Republica.A que vem esta ´conversa`, se não fazemos agora nada de com-parável? Não fazemos, mas assinalamos a entrada no nosso 32º. ano de publicação ininterrupta sem nenhuma falha, ao longo de 1082 edições, com um “tema” que nos é particularmente caro: a Língua

Portuguesa. A Lingua Portu-guesa, que como ali se sub-linha, é fundamento e uma das principais razões de ser, se não a principal, do JL, que por ela, pela sua dignificação, valori-zação, expansão e divulgação, desde o início se tem batido em ´todas as frentes`. Batido pela

língua portuguesa, por tudo o que significa em si mesma, como nos-so e mais belo património, ontem, hoje e sempre; e como elo mais forte da nossa ligação com os países de idioma comum, instrumento mais poderoso da lusofonia, a devem defender, ensinar, promover, com destaque para o seu Instituto internacional (IILP). IILP sobre o qual inúmeras vezes aqui escrevi, pugnando, sem qualquer êxito, nestas colunas e fora delas, para que fosse feito o necessário para que cumprisse pelo menos uma parte dos fins com que foi criado, o que continua a não acontecer.SE AGORA ASSINALAMOS, mesmo de forma discreta, este an-iversário, é também porque julgamos impor-se fazê-lo na situação de crise tão gravre que vivemos, com reconhecida intensidade também nos media. Assim, impõem-se dizer que continua este JL que há muito tempo tanto considera uma espécie de “milagre”. “Milagre”, digo eu, só possível graças a compreensão e ao apoio de todos que, a vários níveis, sabem o que significa para o nosso pais, a nossa cultura e a nossa língua (e apesar do descaso de outros que tinham obrigação de o saber…), np âmbito de uma empresa como a Impresa e com o esforço dos que o fazem, a começar pelos nosso colaboradores. E muito haveria a acrescentar. Sublinho apenas crer que esta edição constitui uma boa amostra de que o JL continua a ser e a represen-tar como único órgão de comunicação social português e de língua portuguesa com a sua qualidade, a sua periodicidade, as suas car-acterísticas, os seus combates. Pela nossa parte continuaremos as-sim, a existir e resistir, como “jornal de letras e ideias” livre e inde-pendente, português e lusófono, na fidelidade incessante renovada e rejuvenescida, aos seus valores, princípios e objetivos de sempre.

“continuAreMos A existir e resistir coMo Jl, livre e in-dependente, portu-guês e lusófono”

Atelier utopiA, de Miguel pAlMA, no porto

VAI ACON TECER

JoSÉ CaRLoS de VaSCoNCeLoS

/ 21 de março a 1 de abril de 2012 . jornaldeletras.pt

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4DESTAQUE

Livraria Camões, no rio,reabre Com a aLmedina

AA Almedina vai reabrir, no Rio de Janeiro, a Livraria Camões, encerrada em janeiro pela imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), adianta ao JL, em primeira mão, José Miguel Marques Mendes, CEO daquele grupo editorial. “Vamos fazer todos os esforços para não deixar morrer esse projeto histórico”, afirma o respon-sável. Durante os próximos cinco anos, medi-ante um contrato de arrendamento, a Almedina vai explorar a livraria, mantendo a aposta forte na literatura, o que fez de Camões nos últi-mos 40 anos, um dos pilares da promoção da literatura e da cultura portugueses no Brasil. É o final feliz de uma noticia que, em janeiro do ano passado, suscitou vários protestos, assim que a INCM anunciou o seu encerramento. “Esta livraria é ponto de referência funda-mental, umbigo dos estudantes de Literatura Portuguesa no meu pais, desde um tempo em que nenhuma obra portuguesa era editada no Brasil e ela nos supria do que preciso fosse”, argumentava na altura, Maria Lúcia dal Ferra, profª titular da Un. Federal de Sergipe, num dos abaixo-assinados que então circularam, incluindo em Portugal, por iniciativa de Maria Teresa Horta, Manuel Alegre e Manuel Mendes. Foi ao ler estas noticias que os administradores da Almedina, um dos mais dinâmicos novbos grupos editoriais portugueses, o maior na área do Direito, mas também com forte ligações ao ensaio e as Ciências Sociais nomeadamente através da chancela edições 70, decidiram avançar. O próprio José Miguel Marques Mendes contactou a imprensa Nacional Casa da Moeda, chegando a um acordo nas últimas semanas. Agora, serão feitas obras de mel-horia para uma abertura nos próximos meses.

“Não estão previstas grandes intervenções mas queremos aproximar a livraria à imagem que temos em Portugal”, explica o administrador. Em Portugal, as Livrarias Almedina têm a marca dos arquitetos Francisco e Manuel Aires Mateus, cujos projetos para o grupo já foram premiados. No Rio de Janeiro, no entanto, o espaço, na Rua Bitencourt Silva, no centro do Rio, é menos versátil pois tem apenas 70 m2 e um mezanino logo à entrada. “Mas será sem-pre um espaço bonito”, grande José Miguel Marques Mendes. A reabertura da Livraria Camões surge na sequência de internaciona-lização do grupo Almedina e da inversão da sua estratégia fora do pais. Não é uma aposta nova. Não é uma aposta nova. No Rio de Janeiro, o grupo chegou a ter um showroom, entretanto encerrado, só com livros seus e mantem ainda um site dirigido aos leitores brasileiros (www.almedina.com.br). Mas até agora, assegura o administrador, ainda não havia uma “estratégia arrojada e global”. “Até há bem pouco tempo a Almedina era apenas exportadora e distribuidora. Agora vamos apos-tar na edição e na venda de livros em todo o espaço da Lusofonia”. À semelhança do Rio de Janeiro será criada mais uma livraria no Brasil, em São Paulo – estão a ser estudadas três pos-sibilidades – e até ao final de 2012, outras em angola e Moçambique. Neste três países vão avançar também equipas para a edição de livros na área do Direito, seguindo o modelo usado em Portugal: texto de lei, por um lado, e legislação comentada e anotada, por outro. “Sempre com a colaboração de autores locais” assegura José Miguel Marques Mendes. Entre os títulos já previstos destaca-se a Constituição Brasileira, comentada e anotada por especialis-tas, sob A direção do prof. José Joaquim Gomes Canotilho. Sem revelar os montantes envolvi-dos, o CEO da Almedina garante que se trata de um investimento significativo que requererá “muito músculo, suor e motivação”. É o que tem pedido aos seus colaboradores dizendo-lhe que se trata de “uma nova era dos Descobrimentos”. Sem megalomanias, apenas procurando criar, em parceria, “boas obras”.

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5 LETRAS / TesTemunho, ensAIo

O irmãO prOf. de medicina, neurOlOgista, cientista e também ensaísta, prémiOpessOa, evOca O percursO cOmum cOm O irmãO escritOr, a grave dOença deste e cOmO ele transfOrmOu essa experiência "num admirável, e mal disfarçadO relatO autOpatOgráficO" num dOs seus livrOs mais famOsOs.

António Lobo AntunessôboLos Rios Que Vão

Até terminarem o curso, os dois irmãos, separados por pouco menos de dois anos de idade, partilharam o mesmo quarto, acanhado e austero. Nas paredes apenas a fotografia a preto e branco de Charlie Parker, o saxofonista maldito. Em vértices que se opunham em diagonal, um divã estreito. Cada um tinha uma estante / secretária onde habitavam duas bibliotecas incipientes que eles quase não partilha-vam. Havia mesmo uma certa rivalidade hostil. O conteúdo distinguiu-os desde muito cedo. Num lado, alinhava-se ciência nas fórmulas simples das nar-rativas de Rómulo de Carvalho e da colecção Que Sais-Je- um prenúncio da sua devoção a Montaigne?-, além de ro-mances, filosofia e alguma po-esia. No outro, vivia sobretudo

Apoesia que ia sendo arquivada numa memória prodigiosa.Aliás ambos a musculavam na procura da "vasta e infinita profundidade" de que falava Santo Agostinho.Quer o temperamento, quer a expressão de outras facul-dades como a vontade ou a inteligência, por exemplo, os distinguiam. Um estava marcado pelo ferro imperioso de um certo sentido do dever e estudava muito; o outro estudava pouco, mas escre-via páginas e páginas que acabavam invariavelmente cesto dos papéis.Ambos frequentavam medicina. Um cresceu médico com o gosto pela escrita; o outro tornou-se escritor e aproveitou a medicina para alimentar a sua ficção. Tornou-se assim um “ladrão”, como dizia de si próprio o

grande médico poeta William Carlos Williams, porque “ouvia as palavras, frases conhecia pesas e lugares - e usava tudo isto nos seus escritos”.O médico nunca se aventuro na ficção, embora guardasse um manancial infinito de histórias. Mas não era capaz de atravessar aquela fronteira sem guarda, para além da qual o mundo singular da clínica revela a sua intimidade mais secreta. Contentou-se assim toda a vida, a beber as emoções contidas nas narrativas que ia ouvindo, bem ciente do facto de que a doença nos conta muitas vezes os seus segredos “in a casual whisper”, na palavra de um sábio cirurgião inglês. Concluído o curso, partiram: o mais novo para Nova Iorque, o mais velho para Angola.

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6 LETRAS / TesTemunho, ensAIo

Um, foi aprender um ofício; o outro, foi aprender a guerra. Ambas as experiências deixaram marca indelével e moldaram decisivamente os sus des-tinos de cirurgião do cérebro e de caçador das vidas alheias. Este tornou-se famoso na selva da escrita, acumulando prémios e honras. o outro ganhou algum reconhecimento dos pares e um público modesto que apreciava aquilo que escre-via sob a forma de ensaio, o modelo de reflexão em que tentativamente, escoava a sua forma de pensar. É provável que cada um não lesse muito do que o outro escrevia, amador e profissional tão diversos no estilo e no conteúdo, mas havia entre eles um respeito quase solene pelo mister de cada um, pois reconheciam a seriedade do compro-misso que tinham assumido. Formavam pois um binómio complexo, razoavelmente equilibrado, mas mantinham ao longo dos anos uma distância quase cerimoniosa, que parecia diluir um afecto cuja profundidade era difícil demedir. Até que um dia… Até que um dia foi diagnosticado ao irmão escritor um cancro no intestino, e um clarão súbito iluminou com esplendorosa nitidez a intimidade de uma relação que ambos, no fundo, talvez desconhecessem. O médico foi imediatamente chamado, porque naquela família de seis irmãos todos reconheciam a sua autoridade nestas ma-térias, sustentada talvez por uma sageza precoce, além do sangue-frio e racionalidade operativa com que olhava de frente o inimigo. A impassibilidade daquele cancro, naquele irmão, deixoulhe, no entanto, o coração suspenso. A notícia soara-lhe como o repicar de um enorme sino na nave de uma catedral vazia. E logo sentiu aquele espasmo interior que ele tão bem conhe-cia e sempre lhe encolhia as vísceras nas ocasiões sérias. De imediato vestiu o seu trajo de “sobre-homem” que exsudava confiança na ciência, que enxotava as estatísticas fúnebres e que garantia que a eternidade estava, apesar de tudo garanti-da. Dois anos depois, António Lobo Antunes (ALA) transformou a sua experiência num admirável, e mal disfarçado relato autopatográfico - para usar a nomenclatura certa-, cujo título foi buscar a Camões, Sôbolos rios que vão. O livro chegou-me em 13 de Outubro de 2010, com uma dedicatória simples: “Para o meu João”. Logo ao fim das primeiras páginas me surgiu uma invencível von-tade de sobre ele escrever, e o incluir, como (ines-perada) preferência pessoal, neste cânone singu-lar que concede aos seus autores uma absoluta liberdade de escolha. Poderei explicar a minha por duas razões simples: em primeiro lugar, por considerar esta narrativa uma obra prima desta variação particular do género biográfico; em se-gundo lugar, porque há muito percebi que só devo escrever sobre o que me apetece, embora esta não seja condição e, muito menos, garantia, de quali-dade intelectual ou estética. Será demasiado sim-plista classificar esta narrativa como uma história “médica”, como as que escreveu Chekhov, por exemplo, que, segundo dizia, ilustravam o “estofo vulgar da humanidade”. Ou, então, como as úl-timas novelas de Philip Roth, a mais recente das quais, Nemesis, fui lendo em paralelo com estes “Sôbolos rios”, e que combina uma fira descri´ão clínica e epidemiológica de uma doença terrível - a poliomielite -, com a desesperada tentativa dos sus heróis de encontrarem uma explicação para a incompreensível crueldade de um deus com uma alma sem ouvidos nem olhos. O livre de ALA está, quanto a mim, talvez mais próximo de Ravelstein de Saul Bellow, aliás duplamente biográfico,

curtas: “Porque me atraiçoaram voçês?”; “Não foi por mal senhora”; “Tira os sapatos da poltrona”; “Há quatro anos não me visitas a campa”; “ Es-tás óptimo”; “Quando cresceres comrpeendes”, cada uma absolutamente certeira. Algumas têm o registro de uma metafísica ditraída: “Porque motivo não morres?”.Outras são desabafos impacientes-”Alcancei a veia e perdia-a”. E no meio desta prosa, vamos tropeçan-do em metaforas e imagens de uma lu-minosa veracidade:-”Minha mãe antes dos pulos algemados no terço”; “E ficaram ambos ciercun-flezos de melancolia”; “O granito que segregava lagartitxas” essa lagartitxa a “aprender a ser pe-dra numa falha do muro”; “ninhos de cegonha pingavam chaminés abaixo”. O que é contado neste livro, tão contidamente biográfico - “An-toninho” e “Antunes” assim se chama o herói - é a história da estadia do autor no hospital onde foi operado a um cancro do intestino entre 21 de Março e 4 de Abril 2007. Cada dia é uma estação de uma via sacra cujo final o autor não revela. Para mim, reconheci nele muito que me era fa-miliar, porque nele encontrei fragmentosde vida que eu já conhecia antres do livro ser es-crito - personagens, cenários, situações retiradas do património familiar, da memória coletiva pri-vada. Por isso, escrever sobre este livro é quase uma traição, a revelação do segredo de um truque de magia.E, no entanto, senti-me confortável com esta in-timidade ficcional, que anulava, pelo argumento de uma cumplicidade de muitas décadas, a re-speitável distância entre o autor e o leitor. Mas para vencer a curiosidade irresistível de con-hecer como ALA vivera a experiência aterradora da doença, e para tnetender melhor, era preciso cristalizar em forma escrita muitas impressões desta viagem “sôbolos rios”. Por outro lado, o meu interesse derivava ainda do facto do escritor - que acontece ser meu irmão - estar a falar domeu ofício, cujas múltiplas faces são mais justa-mente apreciadas por quem olha para nós, porque não se inventou ainda o espelhjo que nos devolve tal imagem.Esta é a memória episódica de uma doença tal como esta se desenrolou no quotidiano de um internamento hospitalar. As referências explíci-tas à razão deste e à natureza da doença que o determinou encontram-se dispersas e quase submersas na narrativa, mas emergem, como golfinhos, com uma periocidade sem regra, como que para recordar o que constitui o cerne do sofri-mento do autor, muitas vezes inscrito num mundo onírico ou mesmo alucinatório. O contraste entre a autoridade imperial do médico, sempre identi-ficado como o “homem do pingo no sapato”, e a vulnerabilidade absoluta do doente marca toda a narrativa. Ao herói resta o refúgio regressivo nas memórias de uma infância vivida no cenário que ALA constrói a partir de recordações das férias em Setembro numa vila de Beira Alta, nessa casa cujo castanheiro grande lhe dava o nome, e num tempo em que ainda ninguém morrera e éramos todos felizea, para recorrer ao verso pessoano.

porque é a história combinada das doenças de Allan Bloom e do autor, ou até do De Profundis de José Cardoso Pires, mas, em relação a este, o livro de ALA tem uma outra complexidade e opulência literárias.Devo dizer que a leitura inocente, a pura e dessin-teressada imerão na escrita, não é possível quan-do está condicionada pelo propósito de escrever sobre o que se lê. Não é que o não faça sempre com um lápis na mão, timbre do “verdadeiro” intelectual, que segue há séculos o conselho de Erasmus no seu “De Copia” de 1512. Mas, nestas corcunstàncias, esta é uma leitura a dois tempos, pois, à primeira apreensão do sentido do discurso, segue-se um segundo movimento, uma nova leit-ura, da qual emerge um outro juício, mais analíti-co, a confirmação da impressão inicial de que o livro contém algo de precioso, como se - e perdoe-se a infeliz metáfora-, na primeira se debatesse o brilho de um pequeno diamante, e na segunda se libertasse este da ganga que o prende.Muito se fala da dificuldade da leitura das obras de ALA. Percebese proquê. A sua escrita exige o foco de uma concentração absoluta pela com-plexidade da sua estrutura narrativa, que possui uma tal energia interna, que nos precipita numa leitura vertiginosa.Mas esta vertigem tem de ser controlada, sem o que o sentido do que se lê nos escapa irremedia-velmente. Ou seja, esta leitura obriga ao recurso equilibrado às mais sofisticadas facultades dos espïrito, e admito que a corte eneorme de devo-tosd so livros de ALA tenha aprendido um modo próprio de o ler. No meu caso a leitura era inter-rompida ao fim de dois capítualos, pois deixava exausta as redes neuronais devotadas a tal fun-ção e exigia o repouso sinapses esgotadas.Para o leitor desprevenido, parte da dificultade deve-se ao facto de esta narrativa se aproximar do modelo que se tem chamado de “stream of con-sciousness”, que, neste caso, não se confina ao que sucede num dia, como no Ulysses ou em Mrs Dalloway, mas em dez, dez dias que se sucedem num fluxo tenebroso.A leitura é ainda exigente pelo menos por dois outros motivos. Em primeiro lugar, pela necessi-dade de não largas o fio do tempo narrativo, pois este obriga op olhos da inteligência a mirarem si-multaneamente uma dízia de écrans que revelam cenas diferentes que ocorrem em tempos distintos em caótica diacronia. O que é evidente, mesmo para este não especialista, é o domínio assombro-so da técnica, a caàcidade de mantener a coerên-cia da narrativa sempre tão tensa quanto a corda de um violino. Uma analogia musical que me pareceu apropriada à medida que ia ava avan-çando seria talvez a “Sagração da Primavera”. Em segundo lugar pela abundância das perso-nagens. Algumas surgem inesperadamente, com a impertinência de um “Jack-in-the-box”; outras são figurantes ocasionais e silenciosos que vão aparecendo de forma recorrente, outros ainda atores secundários numa comédia dramática se é permitido o oxímoro. Herói só narrador.Em contraste com a complexidade da estrutura da obra, a escrita é de uma extraordinária sim-plicidade. Ala tem em relação ao diálogo, o que Mozart tinha em relação à música - um ouvídio ab-soluto. O discurso é um “stacatto” de frases muito

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7 E é na árvore, naquele castanheiro tão fértil, que ele encontra uma metáfora adequada ao can-cro que o aflige: o ouriço que vai "aumentando em silêncio", porque como disse um outro escri-tor, Harold Pinter, as células cancerosas "have forgoten how to die I and so extend their killing life", renovando-se implacavelmente como os ouriços do castanheiro.Era nessa casa que conviviamos com um avô que morreu, mais novo do que nós somos agora de um mesmo cancro, que ele recorda a ler na varanda o "jornal com o seu apare- lho de sur-do" e de quem herdámos, como nossa mãe, esse traço genético. O ritual da morte nessa terra da Beira Alta era bem diferente da liturgia urbana, a que as agências funerárias da Benfica da nos-sa infância garantiam uma lúgubre solenidade - Benfica é dona de um vasto cemitério, onde se encontra o jazigo familiar. A morte que o autor descreve era a dos anjinhos vestidos de branco levados à sepultura em caixão aberto forrado de setim, acompanhados de "outras crianças vestidas de serafun de guarda ao caixão", com "asas mal coladas nas costas".As personagens que habitam a narrativa são, nat-uralmente, os fantasmas dessa infância: Vírgílío, homem da lavoura de uma senhora dulcíssima que ele provavelmente amava em silêncio, e que conduzia uma carroça puxada por uma burra, a "Carriça", que nos parecia enorme, o senhor Vigário, a Dona Irene que, dizia-se, tocava uma harpa que nunca ouvimos, o senhor Casirniro da loja que vendia tudo e, no alto da escada de uma casa quase senhorial, D. Lucrécía, , pergun-ta: "O que se passa com o miúdo?" E a resposta é de uma franqueza crua, de uma frígida neutrali-dade clínica: passa-se que há "células podres do intestino a invadirem - no destruindo os pulmões, os rins, o fígado", uma traição monstruosa de uma parte do corpo, subitamente tornado inimigo: "ele a encher-se e esvaziar -se num ritmo penoso, cada célula uma boquinha aflita, cada nervo um arrepio brando". E o "médico do pingo no sapato" mostrava ao dono do hotel onde, em miúdo, apan-hava as bolas de ténis com que o pai jogava com uma enigmática inglesa loura" o "ouriço da doen-ça" . E dizia: "Não sei se consigo desprendê-lo do ramo", salpicando o discurso de sentenças curtas, num presságio ominoso: - "Não gosto desta vérte-bra". Afinal era necessário esperar" o resultado da peça/ e que curioso chamar peça à doença" . Mesmo assim, a esperança não ~e submete pois essa criança: "tinha a certeza de não morrer nem se tornar num retrato que um suspiro emoldura".O nevoeiro do despertar da anestesia é magis-tralmente descrito: "Formas que iam, vinham e tornavam a ir, se sobrepunham e afastavam, rodavam lentamente ou elevavam -se e caiam depressa ( ... ) Tentava dar nome às formas e não

achava os nomes ( ... ) Não tinha corpo, era uma forma entre os restantes formas". E no acordar a voz da mãe:' "Começa a dar por nós". Ainda incapaz de falar, contudo, "o começo da língua e um tubo a atravessar os dentes". ( ... ) Se ap-enas falando, embora não desse pelas frases, tinha a certeza de ser". Só mais adiante, quando começa a erguer-se de uma amnésia movediça, ele recorda a anestesista, "invisível no excesso de brancura. / Feche o pulso com força / e fechou o pulso intimidado a pensar / Socorro".A vulnerabilidade é absoluta, como se o eu au-tónomo, o eu social o tivessem abandonado, desis-tido dele próprio: "Puseram-lhe fraldas e não estra-nhava as fraldas, limpavam-no com um pano e as suas intimidadas a balouçarem inúteis". E ainda: "Sentia a urina na algália não lhe pertencendo, atravessava-o apenas como as recordações e as ideias o atravessavam apenas, o passado re-moto, o presente alheio, o futuro inexistente". O esvaziamento de si era aterrador: "via caras e não conhecia ninguém, falava-Ihe e não escutava, ocupavam-se dele e não era dele que se ocupa-vam" . Deixara de ser "pessoa sem dar conta, era um peixe numa água mais espessa que a água, a que outros chamavam ar e ele chamava ar ig-ualmente antes da dor que não chegava a dor". Já antes notara que logo após o acordar "embora a incisão principiasse a maçá-lo", aquilo não era dor ainda: era a "vizinhança da dor".De olhos já abertos vai registando o que se passa: "Se uma campainha tocava traziam um biombo e atrás do biombo agitações, murmúri-os, as lâmpadas pestanejavam sinais". Uma "empregada de hotel corrigiu- lhe os pingos do soro e as narinas observadas do travesseiro gi-gantescas". E ainda notando: "Morreu alguém no hospital, ele ou outro porque mais vozes no corredor, mais passos e a porta fechada num com licença apressado" .Ele era o destinatário de frases curtas, sem uma pitada de afeto (mes-mo que simula- do]: " Vamos meter um antibióti-co no soro", "Não se entende esta febre", "Uma picadinha", "Hoje em dia temos mais recursos". O tempo é agora sentido de outro modo: "Os reló-gios marcam as horas uma a uma mas os dias sucedem-se aos pulos, vão de sábado a quinta e de segunda a sexta, semeado de intervalos que a lembrança perdeu".À medida que os dias correm parecia ganhar uma outra lucidez, mas o refúgio na infância é ainda o mais seguro. Os comboios que via pas-sar da varanda da casa, recordam -lhe a carta que escrevera a Deus no Natal pedindo-lhe um comboio elétrico. Mas Deus delega na avó a re-sposta seca: " - Ele acha muito caro". Descobre "como o mundo se modifica ao darmos-lhe aten-ção", um mundo de flores, frutos, insetos, pássa-ros e gatos. Agora parece- lhe que tudo isto fora

imaginado: "inventei esta doença que por seu turno se inventa conforme inventa o hospital, os médicos e a fantasia do morrer".Já quase no final chega uma ex-mulher: "Ainda que não acredites, e é evidente que não acred-ites, não nos vemos há anos, sou o que deixava a toalha obliqua no toalheiro e tu endireitavas irritada comigo / - Nem isto sabes fazer?". Ela senta-se na ponta do colchão esperando que ele não lhe tocasse; "e não toquei a fim de não ser expulso por um cotovelo maçado / - Não se pode dormir?" Está assim reduzido à condição de viúvo que antes descrevera assim: "o viúvo que se esquece das coisas, o tubo da graxa sem rolha ( ... ) só metade da cama desfeita e na out-ra metade um vazio a que se habituara como ao avental no gancho".Deixei para o fim aquilo sobre o qual é mais difícil falar - a súplica insistente que a persona-gem dirige aos pais. A mãe é um ser discreto, mas é ela que surge no fim da história. Como eu sempre escrevi, a doença, quando vence a morte, é como um regresso após uma viagem, uma odisseia atribulada, a excursão de "uma vida cheia de passados e não sabia qual deles o verdadeiro". Na sua viagem chega a um porto tranquilo, agora "sentado no chão à medida que a mãe enjeitava a máquina de costura e a enrolar-se nas penas para a ouvir cantar. O pano caíra: "A enfermeira já desligara o écran, tirara a agulha do soro, fechara o oxigénio" . Já o vestiram de outro modo e a avó comentara: ''Assim compostinho até pareces um homem". A mãe fizera -lhe a risca no cabelo, mas era o mesmo menino que nascera com "três quilos e duzentas numa toalha de linho", "três quilos e duzentas de secreções e pregas e um cordão roxo no umbigo". Mas já nascido ainda dese-java que a "mãe o lambesse como I fazem as ovelhas". Mais enigmática é a personagem do pai, a quem o liga uma cumplicidade que nasce de uma história "louche" com uma empregada doméstica: "- Sabes o quê paizinho? / nunca o tratava por / - Paizinho / e todavia existiram oca-siões em que no interior de si / - Paizinho / e ele aborrecido com o / - Paizinho".Esta é uma admirável, pungente e angustiante descrição da orfandade da doença, orfandade para a qual muitas curas têm sido propostas, mas todas com pouco préstimo, por- que esta é uma solidão que a voz ou a presença dos outros, mesmo quando desejadas, só fugazmente alivi-am. O enigma do título só no final é decifráveis, e a sua escolha não poderia ser mais justa pois, como escreve Camões em certo passo, "Bem são rios estas águas, / Com que banho este papel; / Bem parece ser cruel! Variedade de mágoas/ e confusão de Babel". JL JOãO LObO ANtuNES

AnTónIo (à ESQ) E João Lobo AnTUnES 'Um DIA foI-LhE DIAgnoSTI-CADo Um CAnCRo, E Um CLARão SúbITo ILUmInoU Com ESPLEnDo-RoSA nITIDEz A InTImIDADE DE UmA RELAção QUE AmboS, no fUnDo, TALVEz DESConhECESSEm

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‘Declarações De amor’ à línguaPortuguesa

8 TEmA

A LínguA PortuguesA é e semPre foi fun-dAmento e PeLo menos umA dAs Princi-PAis rAzões de ser do JL (Ler comentário, nA P. 3). Assim, quAndo chegAmos Aos 32 Anos, AssinALámo-Los com outrAs tAn-tAs curtAs “decLArAções de Amor” ou “cArtAs de Amor” à nossA LínguA.foi isso que Pedimos A criAdores de todo o vAsto esPAço do idiomA comum, emborA AcentuAndo que PoderiAm es-crever sobre eLA de quALquer outro modo ou ânguLo - como é o cAso dA crónicA de José Luís Peixoto (P. 43). e nA PróximA edição hAverá mAis.

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9 Mário CláudioA CristAlinA MúsiCAdAs esferAs

CARtA À LÍNGuA PORtuGuESA, ROFEtI-ZANDO AMOR EtERNO, E EXPRIMINDO uM VOtO DE SILÊNCIO.

Meu amor,Todos os dias te encontro, e todos os dias te perco. Já na luz da meninice, quando em min-ha inconsciência trocava as sílabas da tua voz, me habituavas ao êxtase, afagando-me e traindome, e propondo-me os mistérios que te habitam. Como acontece com os que muito se amam, e que por causa disso sofrem a tirania dos códigos, e a arbitrariedade das reformas, a nossa história tem sido alegre e triste', e ora ar-rebatada, ora paciente.Sobrevivemos entretanto por estratégias dificíli-mas, e que nos condenam à perpétua inquietação.Se te persigo em excesso, empenhando- me na procura com demasiada energia, afastas-te de mim num elegante volteio, tocado pela sombra do desprezo. E logo me sobressalto na tua ausên-cia, e me lanço na busca do que te conforma, a aragem ciciante, a agitar as silvas onde as amo-ras despontam, a áspera nasalação, gritada por Clitemnestra no ato de apunhalar o seu homem.Acostumei - me ao calor da tua presença, e tão inseparável de mim te tornaste que te con-fundem comigo, e me tomam por aquilo que tu mesma és sibila deste cabo da Europa, a ir-radiar oráculos pelas sete partidas do mundo. Muitas vezes te calei no coração, receoso de que o ímpeto do desejo te erodisse sem remédio, e confesso que não raro abusei da tua entrega, arrastando-te por sonoros labirintos, ou por perigosas acrobacias, e cobrindote de adereços que apenas me perdoavas pela juventude do afeto que me entontecia, Com o tempo porém ensinaste-me o segredo do respeito, e consenti em tua discreta e solene integridade.Jamais me negaste o gosto de te poupar às sevícias que por aí, e impunemente, te humilham, colocando-te diante de espelhos que te deformam, e magoan-do-te no que de mais íntimo possuis, a fim de que, muito para além da carne, o puro espírito se revele, Percebi em suma por que motivo não existe em toda a Terra engenho bastante para te traduzir, harmónica como voas em tua funda essência, incompatível com truques e arranjinhos, e adversa aos circunlóquios com que te iludem a verdade. À medida que envelheço, e me sinto igual a ti, há paisagens do teu corpo de que me vou es-quecendo, lembrando me todavia, e como que por milagre, de muitas que supunha não guard-ar na memória. Todos os dias te encontro, e todos os dias te perco. Não será isto indício de que um no outro nos en-gastámos, e de que morreremos no abraço que ninguém ou sará desmanchar? Quero dizer-te assim que, viajando ambos, tu e eu, pela cris-talina música das esferas, ao silêncio da eterni-dade é que nos destinamos, e à glória efémera do tal verbo em que tudo principia. Beijo-te os pés, meu amor. JL MáRIO CLáuDIO

“tãoinsepAráveldeMiM te tornAste que teconfundeM coMigo, eMe toMAM por Aquiloque tu MesMA és, sibiladeste cAbo dA europA”

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José Eduardo agualusa

EStA NOSSA LÍNGuA GERAL

Sou um angolano de origem portuguesa - o que faz de mim quase um brasileiro, e l.!.álongos anos que me acho no papel de passageiro em trânsito pelos diferentes territórios onde pros-pera a nossa língua. Esta deriva, quase sempre feliz, tem contribuído para aumentar o meu in-teresse pela vida das palavras.Venho descobrindo algo, que sendo óbvio, ainda tantos (sobretudo em Portugal) insistem em não ver: a força desta nossa língua, a sua vitalidade, resulta do facto de ter sido desde sempre uma construção conjunta, uma extraordinária aventu-ra comum, unindo primeiro povos romanizados e populações árabes, provenientes da colonização africana da península ibérica, e depois, na se-quência da expansão portuguesa, mais e mais af-ricanos, indígenas brasileiros, indianos e malaios. Com a passagem dos séculos uma vigorosa tor-rente de vocábulos africanos, brasileiros e orien-tais, foi-se somando ao património original. Pala-vras que se perderam em Portugal, enraizaram-se nos crioulos de Cabo Verde e da Guiné- Bissau, ou no português sertanejo do Brasil.Quanto mais me apaixono pela nossa língua, e mais me aproximo dela, melhor a vejo, inteira, na sua diversidade. A língua segue sendo uma só, embora rio de muitas águas, a cada dia mais largo e mais profundo.Nunca como hoje houve tanta circulação de pes-soas, de ideias, de palavras, no espaço da nossa língua. Nunca estivemos tão próximos quanto agora. São portugueses que emigram para An-gola ou para o Brasil. Brasileiros que, tendo vivi-dolongos anos em Portugal, regressam a casa. Brasileiros, por outro lado, a fixarem-se em An-gola. Todo este trânsito vem democratizando ainda mais a língua comum.Não existe hoje um centro de poder. Portugal re-cebe tanto quanto dá. Jovens portugueses falam como angolanos. Angolanos apropriamse de termos brasileiros. Muitas vezes não se trata se-quer de importação’ mas de regressos.O que eu amo, pois, é este idioma democráti-co, plurinacíonal, que a todos pertence e a to-dos igualmente se entrega e enriquece. Esta nossa Língua Geral. JL

João Ubaldo RibeiRoCONtINuO APAIXONADO ...

Querida Língua Portuguesa, como se ainda não soubesses e precisasse dizer-te: continuo apaix-onado por ti desde a primeira hora em que te ouvi. Cada dia mais apaixonado, na verdade. Penso em ti o tempo todo, agradeço aos céus tua convivência, que a cada dia me acrescenta. Não ignoro que tens muitos valorosos e melhores amantes, mas não me causam ciúme, porque sei que é da tua natureza provocar o amor de todos nós, todos nós te pertencemos e cada um tem contigo uma experiência única. E isso não impede que sempre queira de ti casamento in-dissolúvel, bem querer eterno, enlevo sem fim.. Prometo intransigente fidelidade, completa leal-dade - e de ti não peço nada e peço tudo, peço que continues linda e face ira como sempre foste e que nunca deixes desvalidas as nossas almas amorosas, pois que, se não vivemos sem ti e sem ti não saberíamos nem quem somos, tu também não vives sem a nossa devoção.Do orgulhosamente teu, desde sempre João Ubaldo Ribeiro, brasileiro,jiccionista e cronista, Prémio Camões

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Eduardo LourEnço

João Ubaldo RibeiRo

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LÍNGuA E ENIGMA

O coração do enigma para cada povo é o da língua em que a sua leitura do mundo se mani-festa como mistério ao mesmo tempo luminoso e obscuro. É na língua e na língua só que somos virtualmente imortais.Tudo se passa como se não pudéssemos ser sujeitos dela. Somos falados antes de a falar e falamos para nos falar. Sem começo nem flm. Só no séc. XVIII quando o Ocidente começou a esquecer a língua como "dom de Deus" um ato recapitulativo de um verbo criador do mundo, o mistério dessa revelação com o sujeito criadora, ao mesmo tempo da voz, da consciência dela e do sentido da sua nomeação de toda a realidade, se converteu no enigma dos enigmas. Começou então a nossa marcha do Deserto.Falamos para povoar o mundo. E ao mesmo tem-po para regressar a essa línguagem antes da lín-guagem, a essa língua divina, a do homem ainda não separado do universo e de si mesmo, sujeito de múltiplas línguas mas lembradas da única que dizia o Ser sem o mutilar, aquela que fala no silên-cio do mar e nos cala.Todas as línguas do mundo desenham nele o bem pouco mitico arquipélago de BabeI. O mistério de cada uma participa dessa aventura humana sob a forma de um rizoma.Só a História singular de cada uma delas des-vela os seus segredos. Não são os mesmos para o Japão, ou Bornéos, isolados milénios dos seus viz-inhos, que os do ramo indoeuropeu onde a nossa mergulha as suas raízes. Essa raiz sânscrita só para fllólogos terá algum sentido.Para nós, mortais comuns, bastanos o batismo camoniano, ou da matriz latina so~ a qual se sumiu misteriosamente, ou quase, a nativa herança lusitana. Foi aquela que se derramou no mundo juntamente com o castelhano como as primeiras línguas no mundo do Oci-dente. Nem ela nem a dos nossos vizinhos têm os dias contados. Até onde podemos imaginar-lhe futuro, essa língua, hoje de variados tons, é um dos mais insólitos milagres linguísticos imag-ináveis, dada a sua origem tão modesta. Este simples estatuto devia poupar-nos todas as glo-sas apocalípticas acerca da sua perenidade.Como os amores miticos de Pedro e Inês, a lín-gua em que eles couberam arderá até ao fim do mundo. JL Eduardo Lourenço, ensaista, escritor, Prémio Camões

"essA línguA, hoJe devAriAdos tons, é uM dosMAis insólitos Milagreslinguísticos”

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Luís Cardoso

NuNoJúdice

PátRIA

De todas as vezes que me pedem para falar da língua portuguesa a minha primeira reação é de recusa, dado que já fiz uma centena de declara-ções sobre o assunto e tenho medo de me repetir ou de me contradizer. Tenho afeto pela língua com que muitos escritores por quem tenho res-peito e admiração se expressam' apesar de não ser a minha língua materna. Quando comecei a escrever as primeiras palavras, fi-lo em lín-gua portuguesa. Lembro- me do pão quente com manteiga comque o filho do padeiro me pagava pelas redações que lhe escrevia.Não, não era sopa. Lamento mas em Tímor ninguém comia a sopa. Não constava na ementa do nativo.Lembro-me do rosto da colega de turma quando recebeu a minha primeira carta de amor e ficou com a face vermelha. TIve então consciência da utilidade ímpar das palavras.Falar da língua portuguesa é também falar daqueles que um dia a utilizaram nas montan-has de Timor para expressarem os seus sentimen-tos por todo o drama que estavam vivendo.Creio que sabiam o peso exato de cada palavra e do seu alcance. Alguns verteram lágrimas amargas ao escreverem as mesmas palavras que teriam extraido de um poema de um escritor que estu-daram no Liceu. Outros morreram sem ter visto o verdadeiro alcancedas suas palavras. No imag-inário timorense, repartido por várias línguas na-cionais, Pátria diz-se Pátria. O grande contributo da língua portuguesa para a consciência de um povo, cujas tradições se alicerçam em mitos e crenças. Hoje tudo isso está subvertido pelos in-teresses instalados em Timor. Os mitos já não são o que eram o e as crenças valem o que valem. Excetoo barlake” que o povo tem de pagar. A um preço tão alto, que só Deus sabe ... JL ‘Sarlake - Contrato matrimonial segundo os usos e cos-tumes tradicionais, em que a família do noivo se compromete a pagar o dote à família da noiva.LUís CARDoso, TiMoREnsE,JiCCionisTA

PERSERVAR A DIFERENçA

Num recente abaixo-assinado contra o fim das humanidades na escola francesa, alguns dos melhores intelectuais desse país perguntavam se a França se teria tornado suicidária.Por aqui-lo a que hoje assistimos em Portugal, a situação não será muito diversa. Nas universidades, a moda é a dos cursos em inglês talvez para inglês ver; nas grandes livrarias, o panorama é o de best-sellers dispostos como de-tergentes numa prateleira de supermercado; e se ainda se ouve falar do país num sentido mais positivo do que as notas das agências de rating, isso deve-se a pessoas - cineastas, músi-cos, escritores, arquitetos, etc. que se distinguem no plano internacional; e acrescentaria a esta lista algumas empresas como a Renova (cujo papel nos da crise representa com a imagina-ção que falta a quem nos governa, e não digo isto com ironia mas para elogiar essa empresa). Numa altura em que nunca houve tanta gente tão bem preparada, em particular das novas gerações, há um total desaproveitamento das suas capacidades. Se o futuro não é negro, é porque o povo tem a consciência histórica de que já passámos por coisas piores, e sempre so-brevivemos. E isso devese quase em exclusivo à língua portuguesa: foi ela que preservou a nos-sa diferença em relação ao resto da Península, impedindo uma absorção que pareceria natu-ral por parte de Castela; e é através de quem a cultivou e cultiva - em Portugal mas também no Brasil e, agora, nos novos países de língua oficial portuguesa - que passamos por entre os pingos de uma crise de consequências ainda imprevisíveis sem perdermos alguma crença na nossa continuidade, ao contrário da Europa que parece já não acreditar em nada que valha a pena. JL nUno JúDiCE, PoRTUGUês, PoETA E EnsAísTA

“é AtrAvés de queMcultivou e cultivAA línguA que pAssAMospor entre os pingos”

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13 Mário de CarvalhoVALSA MACAMbúZIA

Saúdem-se Paio Soares e Pero Meogo, dos prímórdíos, Reverência - por todos - ao enorme Luís Vazo Recorde-se o bom António Ferreira. Vivam os grandes escritores que ergueram uma língua de cultura.Posto isto, a tristeza de ver o português destruí-do pelos tratos que lhe dão no ensino e nas televisões. Outros resultam destes.O capitalismo quer consumidores. O cidadão não está no projeto.Desvalorizam a literatura, escondem a história, suprimem a etimologia, minimizam o vocabu-lário. Orientam o ensino para os anúncios. Puro charlatanismo.Rasuram o teatro, as letras, o cinema, a ópera, a pintura. "Serviço público"? Lastimosa fraude do écran. Caso de prisão efetiva. Em Portugal já não existe massa crítica capaz de recuperar.A esperança é o Brasil.Removida a jagunçada banqueira e lati-fundiária o Brasil cresce culturalmente. O desvio Ohiojamaicano que, antes, poluiu a Wikipédia e produziu aberrações . colonizadas como "mídía", "mause", "checar", etc., pode ser superado. O Bra-sil criou autores dum português (do Brasil) lídimo, como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Gra-ciliano Ramos. Em Parati ouvi falar um português perfeito, com o uso corretissimo da mesóclise.Estes saberão mostrar-se à altura da bela e rica língua universal que herdaram da Europa.Quanto mais afastados da pobreza, mais gente cul-ta haverá, capaz de ascender à índole da língua.Para estes, o acordo ortográfico será apenas um pormenor (feio pormenor).Enquanto o português de Portugal soçobra, nes-ta valsa rnacambúzia que é a nossa sina. JL MáRio DE CARvALho, PoRTUGUês, JiC-CionisTA E DRAMATURGo

Luís Cardoso

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João de Melo

A MINhA LÍNGuA PORtuGuESA

Não me veio do berço nem do ventre materno.Eu e minha mãe herdámo-la de uma nau capitaina que aportou em pleno século XVI, carregada de povoadores que el- rei mandara a desembravec-er as longes terras que se alcandoravam sobre o oceano ocidental. Depois a minha língua portu-guesa subiu comigo pelo tempo acima, ano após ano e de terra em terra, até ser a "casa do ser que lá não mora", como no verso de Vitorino Nemésío. O verbo "povoar" foi por isso um dos mais belos: aprendi a conjugá-lo antes dos outros (ou então era daí que derivaram todos os verbos para mim, não sei). Vede como nele vibram as cordas sono-ras dos primeiros passos sobre a pele da ilha.Chegaram, escolheram um ponto da cota mais afeiçoado ao desembarque, entraram terra den-tro e, subindo ao dorso de uma falésía não muito elevada (da qual se podia vigiar o horizonte con-tra as ameaças do corso e da pirataria), aí mon-taram casas, abrigos, defesas contra a cruel ru-deza dos ventos marítimos. Se bem que áspera sobre a erva, a língua dos nautas não deixou de me parecer graciosa, feminina.Mesmo naqueles sons aguçados, ossudos, ou nos ditongos medi-evais, ou nas suas sílabas rochosas como os es-porões e os calhaus do basalto. Era (e é ainda) a nossa língua de quatrocentos e quinhentos: a de Fernão Lopes e Gil Vicente!De cada vez que aportavam naus vindas de Lis-boa ou do Oriente, iam à foz da rib iras "fazer aguada" (outra bela palavra portuguesa!) deixa-vam ao povoadores memória de outras que ain-da ali não existiam. Muitas coisas (aves, árvores, frutos, especiarias) não possuíam nome: havia que apontar o dedo para as nomear - ou tão-só para exigir a sua existência.A vida (minha, nossa) tem luz própria por causa dela - essa estrela de uma língua portuguesa que hoje ilumina a noite europeia, africana, asiática e brasileira.Contemplo-a nos sons, no corpo, na música das palavras. São as minhas ágeis, redondas, can-tadas, elididas, verdadeiras, únicas, amadas palavras portuguesas. Que se dobram, multipli-cam, aceitam gramáticas de outros povo e das suas línguas. E delas nascem frases, versos, or-tografias, artes poéticas da prosa e da poesia. "Transformase o amador na coisa amada", Luís de Camões. "O que em mim sente está pensan-do", Fernando Pessoa.Trago em mim, no coração, palavras eleitas por aquilo que me sugerem: "melancolia" é talvez de todas a mais bela. E sempre que sinto o apelo da distância e os passos perdidos das viagens que não flz, ocorrem-me essas palavras prévias que dão voz e rumo e caminho aos lugares do meu mundo desconhecido: mãe, sal, firmamen-to, montanha, música, amor, mulher...João DE MELo, PoRTUGUês,

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Hélia Correia

POR tI Eu tROCO A NOItE PELO DIA,Como é o natural de uma paixão.Do fado e dos poetas que seria,E dos amantes, sem a[escuridão?

E salta-me no peito o coraçãoSe certa voz murmura[e pronunciaPalavras já tão ditas mas que sãoPedaços de um segredo que[arrepia.De Gregos descendente, de[LatinosCom pouca corrupção dileta[herdeira,'Menina e moça, ó flor de verdes[pinosAlém da Taprobana[transportadaE sempre renascida e sempre[inteira,Eis a dito a língua, minha[amada, JLhéLiA CoRREiA PoRTUGUEsA, FiC-CionisTA E PoETA

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Alberto dA CostA e silvAA bELEZA DO MuNDO,

NA FORMA DAS PALAVRAS

Esta língua faz-me. Está em meu corpo como o sangue. Sou o que ela quis que eu fosse, desde que, na primeira meninice, descobri que um gato é um gato, e não un chat, e um cão é um cão, e não a dog.Foi por meio dela que me abri para a beleza do mundo, pois o que via, ouvia e sentia tinha e tem a forma de palavras.Nunca sonhei em outro idioma e, se me comovo com Dante e Shakespeare, é diferente a emoção com que leio Camões. Neste escuto uma voz que, sendo dele, é minha. Sinto que lhe imito a alegria, a tristeza, a indignação e o espanto.É com a saudade de seus versos que nos en-tendemos todos os que falamos esta língua que guarda o sabor da aventura de camponeses que se tornaram marinheiros. JL ALBERTo DA CosTA E siLvA, BRAsiLEiRo, PoETA, EnsAísTA E hisToRiADoR. Foi PREsiDEnTE DA ACA-DEMiA BRAsiLEiRA DE LETRAs

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RuiZinkSó PARA tI

Minha pátria, minha línguaLinha pátria, minha mínguaJuro-te, se fores minha gramáticaEu serei tua sintaxe.É que, em ti, gosto de tudoDossons,dosecos,dasurdezAté das tuas rimas fáceisEm extáse, em extáse.Certo, nem sempre nos entendemosDesgosto quando dize [atempadamenteE tu enxofras com os meus isso [é suposto.Mas não tem malUm dia, num presente distanteVoaremos juntos a uma ilha desertaLá cantarás só para mimE eu, enflm (prometo que sim)Calar-me-ei de vezSó para ti.Seremos não mais uma línguae seu falanteTão só uma palavra (uma palavra[simples]e o seu não menos discreto [amante

Hélia Correia

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Helder MacedoÉ A LÍNGuA quE ME ESCREVE

Sempre senti que, em português, não sou eu que penso ou escrevo. É a língua que me pensa, é a língua que me escreve. Se isso é amor, não sei. Nas outras línguas que também uso, os pensamentos vêm antes das palavras. Na língua em que sou, as palavras levam-me para além do que poderia ter pensado. Sim, deve ser amor. Aprendi em África esta língua em que me tor-nei escritor, na mais remota Alta Zambézia, onde havia um velho muito velho que me contava histórias num português de vogais abertas por outra língua que teria sido a sua, repetindo cada frase sempre com as mesmas palavras, dizendo as vozes dos bichos, das plantas, do fogo, do vento, dos rios, conjurando os movimentos e as formas do universo com as suas grandes mãos da cor da ter-ra, acocorados ambos no jeito africano de contar e de ouvir histórias. Sem que eu então o soubesse, estava a ensinar-me a língua da poesia. Como poderia depois haver qualquer outra?No entanto, depois, agora, vivo há mais anos em terras onde não falam a minha língua do que vivi naquelas onde aprendi a ser quem sou em várias partes de África, de Portugal, do Brasil. É bom? É mau? Não sei. Poderia talvez ter escolhido ser escri-tor nesta outra língua estranha que me rodeia como se eu fosse uma ilha num mar alheio. Mas sei que não tenho escolha. E não tenho escolha por tam-bém ter aprendido com o bardo africano da minha infância que a língua portuguesa é tão una e tão diversa como o universo que ele invocava com as vozes das suas mãos do tamanho da terra. JLhELDER MECEDo, PoRTUGUês, FiCCionisTA, EnsAisTA E PoETA, PRoF. no KinG’s CoLLEGE DE LonDREs

Manuel alegreA MúSICA SECREtA

Não acredito em grande poesia ou literatura que não tenha o sentido, o dom da língua. Para mim o poema é algo que está dentro da língua. Há uma música secreta da língua. E é com essa música que posso cantar de amor como em nen-huma outra língua do mundo.Sou um homem do extremo Ocidental da Europa, cresci a ouvir o marulhar do Atlântico, onde na-sceram os ritmos e os decassíla-bos de Camões. Creio que toda a nossa língua está marcada por esse ritmo. Nas suas harmo-nias e nas suas dissonâncias, nas suas vogais azuis e verdes e nas suas consoantes sibilantes. Tem a cor do mar e o assobio do vento Oeste. Amo essa cor, esse assobio, esse murmúrio. E o cheiro a alga e sal. E o sol e o sul que estão dentro das sílabas. Há na minha língua uma aspiração universalista e, ao mesmo tempo, uma nostalgia da errância e um sentimento de exílio em relação à pátria física e à circunstância histórica concreta. Há na minha língua uma página chamada Atlân-tico, onde há sempre uma viagem que não acaba até outros mares e outros poemas.O meu amor começa na música secreta da da minha língua , porque a minha língua fez a min-ha pátria e porque pátria e língua portuguesa são sempre o outro lado da viagem, da errância e de outras pátrias.Oxalá o JL possa continuar esta viagem de amor e circum navegação. JL

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“há nA MinhA línguA uMA páginA chAMAdA Atlântico, onde há seMpre uMA viAgeM que não AcAbA Até outros MAres e outros poeMAs”

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Nélida PiñoN

O AMOR tENAZ

Acaso lhe confessei meu amor pela lingua que me ungiu desde o berço? A lingua morena que é minha fortuna e me faz rainha? Com a qual escrevo livros, teço desatinos, enfrento enigmas, ganho pouso e graça, o modelo narrativo para a escriba que sou? E que transcreve os impropério humanos, os ais dos navegantes, a intensidade apaixonada dos amantes prestes a se perderem para sempre? Ela, contudo, é susceptível, ressente-se quando lhe sofreiam o uso desmedido dos vocábulos. Julga que seria como prendê-la com cordas às camas secas de um quarto de hotel com luz néon. Assim, sigo-lhe os ditames, deixo que ecoe em meu coração. Afinal, ela me estruturou o pensamento, cedeu-me o vizinho, os acordes de Mozart, facilitou que eu in-quirisse sobre o significado de ser parte da poética da existência, da epopeia do cotidiano. Esta lingua, que é prólogo e epílogo, faz meu corpo existir. Com ela viajo pelo mar do destino. Já pelas manhãs, ela em pessoa abre as cortinas da representação cênica do mundo e assopra-me a aragem do mistério. Como resposta, ativo à realidade, faço cintilar o seu timbre sensível, circunscrevo-me ao picadeiro humano.Sua sombra, porém, desapiedada, priva-me às vezes das cartas de amor resguardadas entre os lençóis que recendem a jasmim. Castiga-me com o fracasso. Mas consolo-me sabendo que enquan-to o verbo projetar sua luz incisiva sobre o inven-tário da arte, eu não me exilarei do mundo. JLnéLiDA Pinon, BRAsiLEiRA, FiCCionisTA, PRé-Mios PRínCiPE DAs AsTúRiAs ELUAn RULFo.Foi PREsiDEnTE DA ACADEMiA BRAsiLEiRA DE LETRAs.

GeRmano almeidaFAZER PARtE DO quE SOu

Como prenda de aniversário pelos seus 32 anos, o JL quer apenas uma coisa: uma declaração de amor à lingua portuguesa! Ainda que insólita, se-ria uma prenda relativamente fácil de se dar se uma declaração de amor não implicasse o uso de "eu amo- te" , pedregulho entre todos o mais difícil de deixar o recôndito do coração e sair pelas ruas cantando, razão por que os cabo-verdianos sem-pre preferiram substitui -lo por expressões mais neutras, "Um creb tcheu!" , "Mi é dôd na bô" ...No entanto, esse presente é tanto menos custoso quanto é certo o JL sequer identifica a grafia em que gostaria de ver esse amor confessado, parece ser-lhe indiferente um antes ou um depois do úl-timo acordo ortográfico. A mim parece-me bem! Assim em pleno período festivo, não seria de bom tom terçar armas sobre os méritos e deméritos de uma ou outra forma de escrever a língua portu-guesa, tanto Camões como António Vieira certa-mente se declarariam horrorizados se regressas-sem agora e vissem no que tem vindo a ser transformada a língua que tanto amaram e tão bem cultuaram.Ou não, bem podia acontecer que qualquer deles aceitasse a evolução que se tem verificado ao longo dos séculos com a sua língua, afinal das contas o próprio conceito de díalétíca ensina que nada é perene, e ainda bem (leio hoje um texto D. Dinis ou de Fernão Lopes e dou graças por essa língua ter deixado - as formas arcaicas e crescido até onde se encon-tra hoje, e donde terá de partir para novos desen-volvimentos, desse modo comprazendo aos que virão a aprender a amá -la e a usá-Ia. Sou cabo-verdiano, também faço resistência ao uso do verbo “amar”, e certamente que não será ainda desta vez que a norma doméstica será vio-lada. Mas sequer preciso, o meu pais tem a lín-gua portuguesa como oficial e a cabo-verdíana como materna, eu cresci alimentado por ambas sem nunca diferenciar qual das duas era mais suculenta pois que as usava indiferentemente, e por isso ambas fazem partem do que sou, razão por que não quero viver sem nenhuma delas, sei que perder urna me amputaria em metade. JL

"sou cAbo-verdiAno, tAMbéM fAço re-sistênciA Ao uso do verbo "AMAr"

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GolGona anGhelPoesia sem literatura?

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18 LETRAS / LIVROS

“Diabolica e requintada, a poesia de Golgona Anghel é uma maquina implacável de irrisao” (Antonio Guerreiro); “Especie de enciclopedismo para pós-apocalipticos, o saber disponibilizado nos poemas não é afronta, nem pompa – é vestígio.” (Hugo P. Santos); “[Este livro]é um dos mais interessantes de entre aqueles que foram publicados nos últimos tempos em Portu-gal e um dos melhores escritos por uma jovem poeta” (David Teles Pereira). A receção foi entusiasta, como se vê. Vim Porque me Pagavam, agora em reedição, confirma a voz de Golgona Anghel como uma das mais ambiciosas da novíssima vaga de poetas recentemente surgidos. Dir-se-ia que a profusão de livros de poesia publicados e de poetas revelados nos últimos três a cinco anos é sinal de uma nova agitação de águas, um pouco como o que há dez anos sucedeu, quando entre uma poesia “sem qualidades” e uma outra linguagem, de aposta mais imagética e, por isso, menos descritiva e coloquial, se estabeleceu uma, nem sempre foi a poesia, em si mesma, que ficou ganhando com o debate. Golgona Anghel assume, em todo o caso, não querer per-tencer exatamente a filiação alguma, por muito que certos recursos não estejam longe do que veio a ser mais comum: conceber o poema como nar-rativa de episódios banais e de circunstância. Não raro; encontraremos as mesmas imagens e atmosferas deca-dentes e uma anulação do trabalho retórico que à poesia exigia… Anghel, em todo o caso, podendo descrever esse mundo pós-apocalíptico de que fala Hugo P. Santos, nem por isso sacrifica à mera descrição ou à enunciação autobiográfica aquilo que

mais lhe importa, a saber: rir de tudo, como se, mesmo sem ser evidente, falasse com a tradição vinda de Cesariny ou de O’Neill, de Adília Lopes ou mesmo de Tiago Gomes. É, pois, uma poesia culta que se quer apresentar ao leitor como despretensiosa e sardónica para com a er-udição literária. Sobra, pois, a visão de uma cultura de capi-tadas, entregue ao cepticismo que mina as relações, a vida e toldade uma negritude o riso e o sorriso do sujeito destes poemas. Detestar o Doutor Fausto é, tao-só, fazer de con-ta, teatralizar um “não quero saber” que vai bem com o “engraçadismo” vigente neste tempo alarve e de riso fácil. No limite, quer-se, aqui, ser contemporâneo do humor (ultima arma da indigência) à portuguesa, aquele que se vê nas inteligentes sessões de stand up comedy. O título, alias, é todo esse programa.De facto, falando-se de Trakl, de Cioran, do jovem Werther, e quando tudo poderia indi-ciar um discurso catastrofista e decetivo, artificialmente de adesão aos suicidados da história, eis que a voz da enunciação corta com essa ambiência culturalista no texto e declara: “ O mais difícil foi, no entanto,/ desapare-cer para depois surgir/ com estas luvas anti-bacterianas/ e os comprimidos bacte-rianas/ e os comprimidos anti-stress.” (p.75). Nem o corvo, já emblema literário escapa à irrisão de Golgona. Esmagado contra a porta da casa, é a própria Literatura que se esmaga. E por isso, em Vim Porque me Pagavam - e para alguém que veio de fora esta titulo esclarece muito. O elenco da visão é, não raro, enumerativo, convidando a ler-se nesta poesia mais do que está escrito. Pode-se fazer a lista das figuras que aqui

desfilam: das empregadas brasileiras aos “sonhos trans-atlânticos” e ver-se-á, enfim, a preocupação maior desta poé-tica – ser a voz deste “tempo detergente”. Literalmente Golgona consegue comunicar com o leitor uma visão da realidade que, por alegoria, metaforiza o que se observa: “ A depressão começa a andar na moda/ Fiz diabetes, cortei as veias duas vezes,/ fugi de casa, gastei uma mulher em cada livro,/ perdi a paciên-cia, o rumo da historia,/[…]/(tinham entretanto inventado a televisão)/ no minúsculo/ buraco negro/ duma bala” (p68). O certo é que, vendo a realidade cinzenta dos dias, acaba-se por edificar uma mascara que está na posse de um saber (repete-se o verso “porque eu sei que”) o qual é, na verdade, conferido pela Literatura. Paradoxo: entre dizer-se que se faz poesia porque sim, e assumir, sem pejo, que ela é feita porque há vários modos de se pagar a quem a faz, Golgona acabo por deixar o leitor perante os estilhaços deste livro. Ultima questão, pois: Há criatividade nos textos de Golgona Anghel, é certo. Mas lembremos, para o futuro dos seus livros, o que um dia escreveu M.S. Lourenço, em Os Degraus do Parnaso: “[…] A situação que atualmente se vive é a da abolição da diferença entre o literato e o analfabeto se-cundário, negociando ambos um consenso de mediocri-dade, o qual produz uma legitimação reciproca e sem conflitos. […]. E, assim, o escri-tor legitima a plebe audiovi-sual, não fazendo exigências retoricas ou prosódicas ao seu público, enquanto este por sua vez legítima o escritor não fazendo exigências, nem de forma, nem de estilo.” (pp.68-69). Esperemos para ver. JL ANtóNIO CARLOS CORtEZ

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GolGona anGhelPoesia sem literatura?

Carlos Nogueiraa sátira portuguesa

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Publicado na coleção Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas, este livro corresponde à tese de douto-ramento que Carlos Nogueira apresentou em 2008 à Facul-dade de Letras do Porto. Nasce pois no âmbito académico, sem contudo deixar de ser atrativo junto de um público mais alargado. Para isso, contribui largamente a clareza e fluidez discursiva do autor, mas também o facto de se ocupar da sátira; um género que se enraíza na mundi-vidência portuguesa de todas as épocas, mas sobretudo em períodos de crise, quando o sentimento intimo de desor-dem dá lugar à catarse, pela denuncia dos vícios, defeitos e injustiças sociais.O livro, que ganha assim em atualidade, sobressai alia no nosso panorama editorial, pelo folego da síntese que em-preende em torno do objeto de estudo: a tradução da “sátira na poesia portuguesa, mas também o pensamento, o sen-timento e o discurso satíricos em geral” (p.19).Fundamentalmente, a estratégia adotada pelo au-tor assenta numa estrutura

tripartida: o primeiro capitula onde procura combater alguns vazios e dogmatismos teóricos (p.21-88), um estudo diacrónico da nossa poesia satírica (apreendida sincronicamente no quadro teórico que marcou os vários períodos ou movi-mentos literários – p.89-561) e por fim uma análise critica, “simultaneamente comparatis-ta e disjuntiva”, de três autores representativos da maturidade satírica portuguesa: Nicolau Tolentino, Guerra Junqueiro e Alexandre O’Neill (p.563-736).Na primeira parte do estudo, o investigador começa por des-fazer o equívoco (muitas vezes enraizado no senso-comum) que opõe lirismo a sátira, como se esta realização fosse incompatível com a sublimi-dade do discurso lírico.O que o autor nos demostra é que a poesia satírica – con-trariando qualquer hierarquia dos géneros ou preconceito de estilo – não representa mais do que um modo derivativo, plenamente integrado no modo lírico (p.168), cuja visão complementa, partilhando alias muitas das formas, técnicas e mecanismos retóricos (p.56-87).Á semelhança do que outros estudiosos observaram para o quadro específico da lírica galego-portuguesa, Nogueira defende que os textos satíri-

cos, na sua generalidade, tem de ser vistos como exercícios integrados no mesmo código formal e ideológico que, ao longo dos seculos, presidiu também ao registo amoroso ou elegíaco. Isto mesmo se en-contra largamente examinado na segunda parte do trabalho, onde o autor acompanha a evolução da poesia satírica portuguesa, desde a época medieval ate á literatura con-temporânea. Ao longo de 400 páginas, percorre a diacronia, focando sobretudo os poetas canónicos, mas também out-ras vozes importantes para a compreensão da sátira, como os poetas populares, os céle-bres cantores de intervenção ou a mais genuína oralidade anonima do cancioneiro tradicional.Na impossibilidade de contemplar todos os nomes que fizeram a história da nossa sátira (ate pela inaces-sibilidade material de muitas obras, que nunca chegaram a vir a lume), a estratégia de Carlos Nogueira passa, antes de mais, por evitar a “mera inventariação e encadea-mento de poetas” (p.739). In-versamente, procura articular visões de síntese com a indi-vidualidade das obras selecio-nada, confrontando, a cada momento, a prática poética dos autores com teorização que simultaneamente foram empreendendo, por vezes até de forma contraditória.O resultado é uma história crítica da nossa poesia satírica, centrada na “reflexão, teórica e prática” (p.739), que permite, desde logo, recon-hecer duas grandes linhas estruturais: uma mais benévola e contida ao nível dos meios ex-pressivos; a outra mais contun-dente, pelo usa da imprecação e das obscenidade (p.420).Os três poetas exemplares,

que aparecem destacados no último capitulo, ilustram justa-mente essas tendências.Nicolau Tolentino de Almeida, cuja teorização entronca no prodesse ac delectare horacia-nos, representa o olhar simul-taneamente lúdico e morig-erador de quem deambula pela cidade (p.740), atentando nos pormenores, para edificar a caricatura irónica que faz desta sátira uma autêntica rep-resentação visual da condição humana portuguesa em finais do séc. XVIII (p.614).Guerra Junqueiro, cujo con-ceito de sátira sugere a contun-dente execução corpórea sobre um objeto (p.621), representa a máxima seriedade de uma poesia agónica e panfletária (p.647), fundamente compro-metida no jogo político-social da altura. A imprecação da poesia, apaziguada por instantes de recolhimento elegíaco, é um cruzamento de varias tonalidades irónicas e sarcásticas (p.685), cuida-dosamente geridas ao nível retórico, para provocar efeitos junto das massas.Finalmente, Alexandre O’Neil representa um conceito de sátira ambíguo, conjugando a indignação subversiva com o inevitável trago da deceção magoada (p. 702). O ímpeto demolidor da sua sátira irrom-pe diabolicamente num calão sexualmente ofensivo (p.700), que a todo o momento procura subverter os pretensiosismos da cultura totalitária (onde a linguagem poética se insere).Do geral ao particular, Carlos Nogueira disponibiliza as-sim, neste livro, uma leitura estruturada a vários níveis, que alia a seriedade dos trabalhos académicos ao incomparável gozo que só os textos satíricos proporcionam, na atual conjuntura de crise. Também por isso, a sua leitura é incontornável. JL ANtóNIO CARLOS CORtEZ

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20 LETRAS / LIVROS

DIAS DE PROSATRAgéDIA LíRIcA

O Teu Rosto Será o Último, Prémio Leya 2011, primeira obra de João Ricardo Pedro, um romance de aparente leitura simples, fluida, suave, é sus-tentado, no entanto, por uma estrutura de grande complexi-dade. Ainda que labiríntica, a estrutura estética que suporta a totalidade do romance emerge, primeiro, através de um estilo harmónico, cruzando e fundindo inúmeros espaços, tempos e personagens, umas permanentes, outras avulsas e, segundo, por via de uma rede solta de inúmeras e diversifi-cadíssimas acções e situações. Seja pelo primeiro, seja pelo segundo elemento da com-posição, é um romance que exige uma atentíssima leitura que, porventura, só numa pos-terior releitura conquistará o leitor. Já munido de um certo grau de conhecimento das lin-has estruturantes do romance, o leitor usufruirá, então, de um verdadeiro prazer estético.Os capítulos curtos e os parágrafos soltos parecem resultar de uma voluntária contenção narrativa, que subtilmente deixa de suspeitar o sentido da mente deste um rasto de significação que, colado e cruzado aos restantes, vai gradualmente compondo na consciência do leitor a es-trutura e o sentido do romance.

Intermedeia diálogo e narração em períodos brevíssimos, compondo blocos de textos que, em jeito de puzzle, se vão organizando na mente do leitor, forçando-o a reconstruir a cronologia e a ordem estrutural.Estilisticamente, O Teu Rosto Será o Último balança entre a frase curta, condensada, de timbre, lírico, de evidente inspi-ração visual ou cinematográ-fica, exprimindo sinteticamente a preparação ou o resultado da acção, e uma detalhada descrição da realidade exte-rior (ex.: pp. 132-33, processo estilístico repetido ai longo do romance), leitmotiv do nouveau romance francês da década de 60, reproduzida em Portugal por Artur Portela Filho e Al-fredo Margarido. Neste sentido surgem, entre períodos narrati-vos, descrições pormenorizadas da ida ao supermercado, da entrada no prédio da habitação até à abertura da porta do apartamento de Queluz…Mais sugerindo que descreven-do, existe indubitavelmente uma mestria no exercício da ligação harmónica e umbilical entre o plano na história con-temporânea portuguesa de Salazar a Cavaco Silva, e o plano da ficção. Neste sentido, não existe apenas o lança-mento de pontes entre ambos os planos, como se a História se constituísse como horizonte de fundo da ficção, e esta se evidenciasse como destaque daquele, como aconteceu na

maioria dos romances portu-gueses. Diferentemente, João Ricardo Pedro consegue de tal modo entrelaçar e fundir a História real com as persona-gens que ambas se tornam in-distinguíveis no corpo do texto. Ao contrário da maioria dos romancistas portugueses vivos, incapazes de dominar narrati-vamente as diversas dimensões do tempo, o autor não começa nenhum capítulo nem nenhum parágrafo com o tão parasitário quanto esteticamente horrível “entretanto” (ou, nos clássicos como Pinheiro Chagas e Men-des Leal, “entrementes”).Abordando a história contem-porânea portuguesa desde a década de 1950 até à actu-alidade, o narrador faz o leitor entrar nela pela mão da família Mendes: Augusto e Laura; pais, António e Paula; filho e neto, Duarte. São assim três gerações que, entre uma aldeia não nomeada (com nome de “mamífero”) na serra da Gar-dunha e Queluz, às portas de Lisboa, reflectem, para além da idiossincrasia individual, banhada de lirismo, a tragédia existencial de terem vivido em Portugal. A tragédia é expressa no dramatismo consubstancial às constantes mortes escritas no romance: o avô materno morre torturado pela PIDE; o avô paterno morre entrevado, após um ataque de coração quando assistia, no Fundão, à pas-sagem da Volta a Portugal em bicicleta; a mãe, Paula, morre com um cancro na mama, o

pai, António, sofrendo de stress de guerra, suicida-se após a morte da mãe, com o conheci-mento e consentimento do filho, Duarte; Celestino, o protegido do dr. Augusto Mendes, suicida-se ou é morto (não se sabe); a morte sinistra do Índio, menino pobre da aldeia; o próprio Duarte, em criança, motivado por uma pulsão biológica, mata um animal, que depões na cama dos pais, mutila formigas e despe-se à frente da menina Luísa, com quem, no final do romance, porventura casará (não se sabe); o dr. Augusto Mendes isola-se nos contra-fortes da serra da Gardunha, abandonando definitivamente o Porto (não se sabe a causa). Ou seja, o elemento trágico dissemina-se pela totalidade da narrativa, sempre envolto numa escrita lírica, e Duarte, “o maior beethoviano do seu tempo” (p.76), abandona o piano após três desmaios quando tocava Bach, consid-erando que a música (a arte) lhe amputava ou sugava a vida, como a mulher austríaca, falecida em Buenos Aires, no hotel Policarpo, amputara a perna direita para se identificar com a mulher amputada do quarto de Bruegel patente no museu de Viena.Tragédia expressa liricamente, O Teu Rosto Será o Último (que rosto?, o de Duarte?, o de Luísa?), pela sua quali-dade, honra o mais avultado galardão literário português, e o seu autor veio para ficar, de certeza. JL MIGuEL REAL

OJoão RICARDo PEDRo. Um ESTILo hARmónICo

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21 PePetelaDe luanDa a Benguela,em Busca Do somBreiro

Com o seu último romance, a sul. O Sombreiro, Pepetela convida os leitroes a (re)visitar os primeiros tempos da ocupação colonial portuguesa dos territórios de Angola, altura em que a coroa por-tuguesa pertencia ao rei Filipe de Espanha, viviam-se momentos particularmente conturbados com o país subjugado por outro mas que mantinha o seu desejo de dominação de terras e povos de além-mar. É, pois, a história da conquista do território que se tor-nará a futura cidade de Benguela que o autor nos traz, abrindo-se de forma desconcertante e promissora de grandes aventuras con-tades em tom irónico e expedito: “Manuel Cerveira Pereira, o con-quistador de Benguela, é um filho de puta”.Ao longo de perto de quarto centenas de páginas, Pepetela con-strói uma narrativa através de um jogo complexo e interessantíssi-mo de fragmentos de histórias individuais e da História oficial que se entrelaçam e se sobrepõem de forma surpreendente.O entrecho arquiteta-se segundo dois níveis temporais, aos quais correspondem narradores com poder e conhecimento diversos. A História surge como uma forma concreta, como o resultado de ex-periências vividas por personagens que, alternadamente, vão to-mando a palavra para contarem a sua perpetiva dos acontecimen-tos e de quem neles participou.. Estes retratos de memórias individuais (de, entre outros, Manuel Cerveira Pereira, o padre Simão de Oliveira, a bela Margarida, Carlos Rocha) são balizados por comentários de um narrador que, por não pertencer ao tempo da história, tem um conhecimento total não só dos acontecimentos e dos seus intervenientes mas também do desfecho e das consequências dos atos praticados nas primeiras décadas do século XVII.Vários indícios assim como comentários desta curiosa personagem, tais como “era realmente um grupo multicultural, como se diz hoje” ou “a sua morte anunci-ava o fim da colónia de Benguela independente de Luanda. Mas isso nem Mulende, nem Carlos, nem Kandalu, nem os mudombe oua as jagas podiam perceber”, ou ainda “tornou-se [a igreja de Jesus] na sé da cidade já depois de 2000”, permitem-nos situá-lo na contemporaneidade. Esta circunstância proporciona-lhe o dis-tanciamento críticio e fundamentado que utiliza em abundância no realto da conquista de Benguela.Neste livro, o autor regressa a um diàlogo peculiar com a História que tinha encetado em 1997, com a publicação de A Gloriosa Família - O tempo dos flamengos (GF). Como várias vezes se tem afirmado, a obra de Pepetela funda-se numa incessante (re)visita-ção da História de Angola: dos seus mitos, das suas personagens, dos acontecimentos que marcaram o percurso da construção da nação. No entanto, nesse incontestável continuum temático exis-tia, até à publicação deste novo romance, um exceção (utlizando este termo no sentido etimológico: de um fenómeno limitado e PE

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restrito) no tratamento diegético e construção efabulativa desse tem, que era de GF, cuja a singularidade resulta da intrincada e sábia mescla entre documentos historiográficos e a efabulação literária. Recorde-se que em GF se narram os sete anos ( de 1642 a 1648) de ocupação holandesa de de Luanda já pesponta na narração, havendo referências fugazes às intenções de conquista dos holandeses das terras ocupadas pelos portugueses, nomea-damente no relator do governador.Em ASS, o questionamento da História faz-se pelo viés de um aturado diálogo com os ducumentos historiográficos por de-trás do qual se adivinha um intensa pesquisa documental, aliás confirmada explicitamente em nota autoral de posfácio e de modo mais subtil ao longo dos relatos. Num jogo, a que Pepetela já habituara os seus leitores, somos confrontados com referências a factos apresentados e comentados pelo narrador que subrepticiamente nos vai dizendo do seu trabalho de pes-quisa. Por isso, referindo-se as fontes consultadas, adverte-nos que “os registos não mencionam” as informações necessárias para tornar o seu relato mais completo, ou ainda que não pôde encontrar “referências explícitas nas crónicas”. O diálogo com o leitor leva ainda o narrador a especular sobre as nossas atitudes perante a leitura, adivinhando as nossas ex-pectáveis curiosidades ou desconfianças. Assim, de modo irónico e desconcertante previnenos, em texto diferenciado da mancha gráfica e destacado por parênteses retos, para salvaguardar qualquer distração nossa: “[Aviso desinteressado aos leitores: inútil procurar os nomes num mapa, pois nem eles estão bem es-critos, vindos todos de tradição orla e corrompidos pela péssima audição dos portugueses para as nossas línguas, nem fazem parte da paisagem há muito tempo.]”. O jogo com o leitor, na procura da sua cumplicidade, estende-se ainda à construção discursiva. Ao jeito da estrutura paralelística da lírica trovadoresca, os incipit dos capítulos retomam a expressão que encerra o capítulo imedi-atamente anterior, criando um efeito de prolongamento textual e de esbatimento da convencional interrupção do parágrafo , por via da repetição vocabular. surpreendendo o leitor com insólitasa reutilizações de palavras ou de conceito.ASS constitui-se como um misto de epopeia, de relato de viagem e de romance de aventuras, que nos oferece uma imagem das lutas que marcaram aquele período da ocupação colonial de Angola, vista segundo várias perspectivas, tantas quanto os nar-radores que tomam a palavra. Desse alargado conjunto, desta-cam-se duas vozes que pertencem a duas personagens em torno das quais se constrói a intriga: Manuel Cerveira Pereira e Carlos Rocha, e que involuntariamente trlham percursos paralelos. Uma indesejável coincidência liga a indesejável coincidência liga a existência de Carlos Rocha, um alegado descendente de Diogo Cão, à do governador, que os leva a percorrerem os mesmo caminhos, a contatarem com os mesmos indivíduos, a buscarem igual destino. Os seus relatos constituem-se como testemunho de um fazer humano no tempo, intensificado pelo registo na primei-ra pessoa dos narradores, que assumem, desta forma, o papel de testemunhas presenciais daquilo que viram, ouviram ou con-struíram e que agora contam.A busca do passado é assim empreendida pelo viésda experiência individual complementada pela apropriação diegética do docu-mento historográfico. A narrativa nasce de um jogo de espelhos, onde cada uma das perspetivas(a pessoal e a oficial) se reflete na outra que a deforma e enriquece, permitindo uma visão plural sobre os indivíduos e os acontencimentos que marcaram as primeiras dé-cadas do colonialismo seiscentista em Angola.

22 LETRAS / LIVROS

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23 ARTES / CINEMA

Rui MoRRisono atoR de FeRnando Lopes

Rui Morrison é o ator de Fernendo Lopes desde O Delfim. De alguma forma serve-lhe de es-pelho, sobretudo nos últimos filmes, em que experiências pessoais do realizador tomaram conta das personagens.À volta de uma chávena de café, o protagonista de Em Câmara Lenta conversou com o JL sobre a per-sonagem, o cinema e a poesia de Fernando Lopes.

tem sido o ator de Fernando Lopes assim como o Leonardo DiCaprio do Scorsese. Os papéis que tem interpretado têm muito do realizador lá dentro?Não é exatamente um alter-ego. Mas estes dois últimos filmes do Fernando têm uma componen-te pessoal muito forte. São temas diretamente ligados a situações da vida dele. N’Os Sorrisos do Destino parte de uma experiência pessoal. E este Em Câmara Lenta tem que ver com o seu universo, as suas preocupações e o seu olhar so-bre a vida e sobre a morte.

há um sentido de despedida?Espero que não.

tem uma ideia poética, de nadar até ao fim do mundo.Não tem nada a ver com Os Sorrisos do Destino, que era um filme mais naturalista. Este tem uma componente poética maior, a própria linguagem utilizada não é coloquial. Portanto, é um filme que ganha outra dimensão para além do realismo.

quase todas as personagens bebem uísque.Isso é uma marca pessoal que Fernando Lopes põe nos filmes. Eu bebo uísque nos seus filmes desde O Delfim.

RUI moRRISon “bEbo UíSQUE noS fILmES DE fERnAnDo LoPES DESDE o DELfIm”

há uma grande proximidade entre os dois?Desde o primeiro filme que fiz com ele criou-se uma cumplicidade única. Quase que não é pre-ciso conversar. Compreendo-o muito bem. Conheço bem o seu cinema. A certa altura, quan-do ele faz o plano, eu sei logo o que ele pretende. Os próprios temas dos filmes são muito fáceis de entender, de entrar neles.Há uma grande compreensão de parte a parte. Não houve grandes conversas para descobrir a personagem. Foi tudo muito fácil. Ele também me conhece muito bem, sabe o que eu posso dar.

Esta personagem não é simpática, apesar de, a determinada altura, sentirmos alguma compaixão.Ele próprio acaba por se deitar na cama que fez, neste caso, no mar. É um indivíduo egoísta, inde-pendentemente do trauma principal forte que o marca. Além da culpabilidade, a perda do irmão leva-o a não se entregar. Não é um egoísmo puro, é um medo de voltar a perder. Não se entrega nem à mulher, nem à amante. Apesar de gostar dela, não abdica de uma certa distância, de um local de conforto, revelando até alguma covardia.

O filme tem poesia de forma explícita, con-cretamente através de citações do Alexandre O’Neill.Claramente. Há ali uma influência óbvia. O filme poderia ser dedicado ao Alexandre O’Neill. A minha personagem é um admirador do O’Neill, tal como o Fernando. O poeta também é uma referência para a personagem no que concerne à sua relação com as mulheres. É assim que ele se justifica.

Neste caso o filme partiu de um livro, adapta-do pelo Rui Cardoso Martins. O guião estámuito distante do original?Não li o livro. Há alguns casos em que é impor-tante ler o livro. Aqui, segundo o Rui Cardoso Martins me disse, é uma adaptação bastante livre. Há uma distanciação e, por isso, não me ia inter-essar muito o livro.Há outros casos em que ler o livro é importante, como O Delfim, claro, ou A Morte de Carlos Gardel, adaptado pela Solveig Nordlund. O livro é um livro e um filme é um filme.

É um filme cheio de fantasmas.Sim, aquelas pessoas andam todas à deriva. É como um navio que anda à deriva, com os fantas-mas na borda. Aliás, a Ma Vie é a única persona-gem positiva, que vai para a frente. Todos os outros são autodestrutivos.

Como é que é trabalhar com o Fernando Lopes?Ele dá uma liberdade que muitos realizadores não dão. Espera que os atores tragam coisas. Acontece várias vezes eu dizer-lhe: “Pensei em fazer isto as-sim”. Se ele não gosta da ideia diz logo que não funciona; caso contrário, deixa experimentar. Isso é muito estimulante para o ator. Sentimo-nos mais integrados no projeto. JL MANuEL hALPERN

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24 LETRAS / ESTANTE

A pAlAbrA e A imAgem

Na mesma magnífic a coleção (dos CTT) de livros / álbuns a que nos referimos na Estante (das Ideias) na nossa edição de 22 de fevereiro, descrevendo as suas características esenciáis – acaba de sair um novo volume, A Palabra e a Imagem, de Paulo Mendes Pinto (PMP). Tema que tem a ver, como sempre, com o lançamento de novos selos, incluídos na parte inicial da obra, em que se estudam ou versam 50 sepisódios bíblicos através de outras tantas obras de arte portugue-sas – desde, no Antigo Testamento, “A criação dos animais” (retábulo de Grão Vasco na Sé de Lamego) até, no Novo Testa-mento, a “Ascensão de Cristo” (óleo atribuído a frei Carlos, no Museu Nacional de Arte Antiga). O texto abrindo com citações bíblicas, diz ou explica o que significa cada um desses episódios. Num curto prefacio, o o teólogo padre Joaquim Carrei-ra das Neves escreve: “O presente livro é um ato de coragem onde se conjuga a estética da pin-

tura com a hermenêutica da palabra (…) É este telejornal da Palabra feita imagem que PMP nos entrega para passarmos da lectura significante à lectura significada. Esta lectura vem de longe, das catacumbas de Roma e de todas as catacum-bas das nossas ‘cavernas’ platónicas cristos em demanda da luz da palabra feita mistério e feita imagem. O colorido poliédrico da imagem rompe com a teología apofática para regressar ao ‘não falar’ e ‘não dizer’ da imagem. O ícone é sempre um ‘mais’ colado à Palabra como a fotografia do amado ou amada na presenta da sua ausência.”Esta coleção dos CTT vai em 150 títulos editados e a uma das obras ‘recenseadas’ no penúltimo JL, A tradição do pão em Portugal, de Mouette Barboff, foi agora atribuído o prémio de melhor livro do mundo sobre pão, do Gourmand Worl Cookook.João

Eduardo FErrEira“Claro que todas as palabras são ocas. O que

pode valer é o eco que dentro delas provo-camos”. É o trabalho sobre a própia escrita, entre aforismos e poesia, o que mais cativa na mais recente obra de João Eduardo Ferreira, publicado na Apenas Livros. Azul 25 Linhas tem a forma de um diário, como é explicitado pelo autor no prólogo: um pequeño bloco azul oferecido por um amigo no Natal que que quis preencher. Mas não se encontra aquí uma escrita espontânea diarística, do género conta corrente. Há um trabalho sobre a forma, que aproxima o livro da poesia ou de algum outro género indefinido.

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Luís RainhaAngiogénese, Derrelicção, Eletroplasma, Iatrofobia, Mnemosfera, Pirofania, Sizígia. São mesmo palabras difíceis as que dão título a estes contos. Mas é n asua decifração, através da história que se conta, que está a base deste jogo de letras. Nascido em 1962, Luís Rainha tem formação em engenharia e sociologia, sendo hoje diretor creativo da agência de publicidade Laranja Mecânica. Nestas três atividades talvez se encontre o segredo destes contos: histórias do cuotidiano envoltas em modos de contar muito diversos. De resto, a atenção à forma é um dos traços que mais se distingue neste livro, já que ao lado de histórias ‘normais’ outras assumen a forma de alíneas, de bibliografia comentada e de banda desenhada (com desenhos de João Fazenda). Distinguido com uma menção honrosa no VIII Prémio Nacional de Conto Manuel Fonseca, 18 de Palavras Difíceis é o quarto livro de Luís Rainha, depois de Noites de Lisboa, Últimas Palavras e O Último Segredo de Fátima.

Patrícia Melo”Um ano antes, eu era gerente de telemarket-

ing Numa central en São Paulo, responsable pela venda de aparelhos de ginástica, desses que você dobra, coloca em Baixo da cama e não usa nunca mais”. Assim era, de facto, a vida do narrador do novo livro de Patrícia Melo, que em Portugal passou a ser editada pela Quetzal. Agora, este homem de meia-idade encontra-se no meio do Pantanal, perto da fronteira com a Bolívia. Está em fuga, longe dos olhares, já que fora implicado, em São Paulo, no assassínio de uma mulher. E se a sua já estava condenada, pior ficou quando viu, Numa tarde de domingo, um avião cair. Uma nova fuga estava prestes a iniciar-se. Como em Matador, Mundo Perdido, Inferno ou Jonas, o Copromanta, o estilo de Patrícia Melo é recon-hecível desde a primeira linha. Um narrador na primeira pessoa, uma ação contínua e um suspense em crescendo. Ingredientes explo-rados ao limite em Ladrão de Cadáveres, que não deixa de se referir à violência que assola os confins do território brasileiro.

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RobeRto bolañoQuando publicou o seu primeiro romance aos

40 anos, Roberto Bolaño estava seguramente longe de imaginar o sucesso que os seus livros alcançariam, sobretodo despois da sua morte e da descoberta do monumental 2666. Instalando o fenómeno à escala mundial, regressam agora às mãos dos lectores essas obras iniciais, como este A Pista de Gelo, justamente a sua estreia. Aquí, não será exagerado dizer, encontramos todos os elementos que suportaram a fama in-ternacional de Bolaño. Uma fértil imaginação, um enredo intricado, uma especial atençao à violência e a noção de que nunca saberemos realmente o que aconteceu. Que o digam os três narradores deste romance, instados a ex-plicar um crime que não cometeram mas que, na verdade, podiam ter evitado, cada um à sua maneira. Sob este pretexto, o escritor chileno, que se fixou nos anos 70 em Espanha, onde morreu em 2003, toca nos temas de corrupção na política, o amor, o desenraizamento, a am-izade e os sonhos perdidos.

Eudora WElty”Aquilo que faço quando escrevo sobre uma

qualquer personagem é tentar entrar na mente, no coração e na pele de um ser humano que não sou eu. Quer se trate de um homem ou de uma mulher, velho ou novo, com pele negraou branca, o principal desafio é o salto em si. O ato da imaginação de um escritor sobrepõese a tudo”. Eis a arte poética de Eudora Welty, que passou a vida inteira a captar a essência do sul dos Estados Unidos da América, os seus habitantes e ilusões. A par de uma variada obra como contista, a escritora, que nasceu em 1909 e morreu em 2001, é também autora de cinco romances, o último dos quais agora publicado pelo Relógio d`Água. Passados muitos anos desde o dia que abandonou da cidade onde cresceu, Laurel Mckelva regressa a casa devido à morte do seu pai. Será também um retorno ao passado, que recordará para chegar a novas conclusões.

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É daqueles que leu a trilogia Millenium e soube-lhe a pouco? Então este livro é para si. Não, não se trata de uma continuação, nem dos famosos inéditos que o escritor sueco terá deix-ado no seu computador. É antes um trabalho de investigação que cruza jornalismo e crítica literária, entrevistas e depoimentos, de forma a levantar um pouco o véu de um dosmaiores fenómenos editorais da última década. Dividido em quatro partes, a primeira trata de um homem que conquistou o mundo, a biografia, os amigos, as influências, os temas. A segunda, centra-se na Suécia, pano de fundo dos seus policias e de tantos outros autoresque aproveitavam a onde de Stieg Larsson. A terceira tenta dar um retrato íntimo do escritor.Por último, a quarta reúne um conjunto de textos sobre a trilogia Millenium.

Stieg LarSSon

Quatro thrillers

Depois de Intervenção, a editora Europa – América prossegue a publicação das Obras de Robin Cook, o escritor e oftalmologista norte-americano reconhecido como o fundador do ‘thriller médico’. Cura (368 pp, 19,75 euros) é o 30.º livro do autor dos bestsellers Intenção Criminosa ou O Corpo Estranho, e conta a história de Laurie Montgomery, uma médica legista de Nova Iorque que, após um longo período de ausência, regressa ás suas funções para enfrentar um caso complexo, que envolve crime organizado e duas empresas recém-cria-das de biotecnologia. Com o selo da Clube do Autor, sai tambén um novo título de outro dos escritores mais populares da actual literatura de suspense: O Jogo da Verdade (436 pp,18,95 euros), de David Baldacci. Um propietário de uma empresa de armamento (Nicholas creel) e um ‘gestor da perceção ‘ (Dick Pender) unem-se para encenar e facer circular o vídeo de um homem a ser torturado, com o objetivo de criar uma guerra à escala mundial. Mas o ‘jogo’encontra um adversário inesperado,

Shaw, o herói sem Nome própio que também protagoniza o seu A Conspiração do Silêncio. “Serras de gesso zumbiam, água corrente tamborilava e o pó de osso pairada no ar como Farina. Três mesas ocupadas. Vinham mais corpos a caminho. Era terça-feira, 1 de Janeiro, dia de Ano Novo”. Assim começa o 16.º livro da saga policial de Patricia Cornwell protago-nizada pela médica forense Kay Scarpetta. E poderia continuar: “Ano Novo, Vida Nova”. Pois neste tomo (Scarpetta, 404 pp, 19,90 euros) que acaba de ser lançado pela Presença, Scarpetta deixa o Estado de Carolina do Sul para aceitar um novo desafio em Nova Iorque: examinar um homen que se encontra ferido e detido na ala psiquiátrica do Hospital de Bellevue. Ainda dentro do thriller policial, chega à Dom Quixote Dias de Expiação (496 pp, 18,900 euros), o segundo romance de Michael Gregorio, pseudónimo da dupla Daniela De Gregorio e Michael G. Jacob, casados desde 1980. Mais um caso a cargo do intrigante magistrado prus-siano Hanno Stiffeniis, Discípulo de Immanuel Kant, inventado no romance de estreia Crítica da Razão Criminosa. JL

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De Bolso

Em comum têm apenas o formato. Três novos livros de bolso, três escritas incrivelmente difer-entes. Em O Bom Inverno, João Tordo apresenta-nos uma reflexão sobre os dias de um aspirante a escritor viciado em episódios (e nas maleitas) da serie Dr. House. Há uma viagem que o leva a um encontro de escritores que lhe vai mudar a vida. nem ele sabe muito bem porquê mas o inverno - muito para lá da estação do ano - vai chegar. Também é uma aspirante escritora, a personagem principal do romance de Muraka-mi. Sumire escreve sem parar. Sobre tudo, so-bre nada. Frases atrás de frases. Pensamentos, imagens, que se perdem sem um rumo definido. Permanentemente insatisfeita, à procura da sua voz literária, descura o seu único amigo, sobretu-do a partir do momento em que se conhece Miu, uma mulher sofisticada (e casada) por quem se

apaixona. Um triângulo invulgar onde se revela toda a mestria de um dos mais interessantes es-critores japoneses da actualidade. Não chegou a ser reconhecido em vida pela sua magnífica trilogia Millenium. O escritor sueco Stieg Larson morreu antes de ver o sucesso alcançado pelo seu trabalho - previa escrever dez volumes. Nes-ta terceira parte, a protagonista Lisbeth Saland-er recupera nos hospital dos ferimentos de que foi vítima por parte do pai e do meio-irmão. As-sassinos e violados sempre funcionaram à mar-gem da lei com o apoio de alguns elementos da SAPO, a polícia de segurança sueca. Mas tudo isso vai mudar e Lisbeth - com ajuda de Mikael Blomkvist, Dragan Armanskij, Anita Gannini, entre muitos outros - vai finalmente alcançar a sua liberdade.

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CarlosademarUm poliCial soCiológiCo

Criou algumas personagens femininas muito fortes como Ângela…Ou Alzira, uma mulher com 70 e tal anos, que se vê na contingên-cia de tomar conta das crianças com 4, 5 anos, porque os filhos e netos foram presos por tráfico de droga. A pouca estabilidade que existe num bairro como aquele é sem dúvida criada pelas mulheres. Prestolhes uma homenagem. O objectivo do livro é também fazer com que os leitores quando ouvirem falar de factos ocorridos nestes bairros, quando notícias sobre eles lhes entrarem pela casa dentro, possam perceber melhor o porquê das coisas.

Partiu justamente de um desses factos, a morte de um polícia baleado na Cova da Moura, em 2005. Porquê?Pareceu-me que era uma história que merecia ser contada. Até porque, embora a nossa sociedade felizmente não seja particular-mente violenta, os episódios que são contados ocorreram numa altura em que se atingiu um patamar de violência pouco comum. Claro que as coisas não se passaram rigorosamente assim. Acres-centa-se a ficção a todas aquelas histórias, muitas que eu próprio vivi no terreno. Procuro guiar-me por aquela velha máxima: nunca permitir que a verdade estrague uma boa história.

E não precisou de fazer uma pesquisa sobre o local…Não, não. Nem precisei de lá ir para saber exactamente o nome das ruas. Tenho todos os cruzamentos bem presentes. Foram muitos anos a trabalhar nos homicídios.

Deixou por completo o trabalho operacional?Já não tenho físico… Estou a dar aulas há seis anos. Mas confesso que tenho algumas saudades, apesar de ser uma vida muito desgastaste, não só física, mas psicologicamente, para quem leva as coisas a sério, como é o meu caso. Porque não conseguimos passar ao lado das situ-ações de miséria, com que nos deparamos. A frase de Jorge Reis, que uso na abertura do livro, reflecte bem essa circunstância.

Isso reflecte-se também nos seus "polícias" no seu inspector barata.Sim, são humanistas. Tento combater o estereotipo do polícia du-rão das séries televisivas e de algum cinema negro. O normal são os meus polícias, esses duros são demasiado ficcio-nais. JL MARIA LEONOR NuNES

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Carlos Ademar "Procuro guiar-me pela máxima: nunca permitir que a verdade estrague uma boa história"É um empolgante policial que as primeiras páginas prometem, mas como a vida, os romances também dão muitas voltas, e a narrativa acaba por deslindar não apenas o mistério de um crime, mas as razões e enquadramentos sociais e históricos, vivências e dinâmicas suburbanas de um bairro da periferia de Lisboa, daqueles chamados problemáticos, a Cova da Moura. E o bairro é mesmo o protagonista de O Bairro, o sexto livro de Carlos Ademar, 51 anos, que se estreou com A Casa da Rua Direita, em 2005, tendo posteriormente publicado O Homem da Carbonária ou Memórias de um Assassino Romântico. Inspector da Polícia Judiciária, operacional da secção de homicídios, anos a fio - actualmente dá aulas na Escola de Polícia Judiciária - , o escritor nem precisou de fazer uma aturada investigação no local, porque conhece o terreno como as palmas das suas mãos. A partir da morte a tiro de um polícia na Cova da Moura, em 2005, um facto verídico, que fez primeiras páginas dos jornais da época, Ademar dá-nos a realidade "pura e dura" de um lugar que transcende a ficção. Porque no seu romance só a realidade é mesmo dura. Os seus polí-cias, o seu inspector Barata, são puramente humanos.

há no seu romance uma preocupação com o enquadramento social e histórico, a par da intriga policial. Porquê?Está tudo ligado. Sirvo-me das histórias policiais para falar de out-ras coisas. E fazendo essa contextualização, enriquece-se a própria história que se conta, assim como quem lê o livro. É importante ir sempre à génese, neste caso, perceber porque aqueles aconteci-mentos ocorreram ali e não noutro sítio qualquer. E, naturalmente, que as personagens que se vão descobrindo no livro tem a ver com um passado, com as componentes culturais e familiares, com o grupo social em que se desenvolvem.

O bairro é o protagonista do livro?O desafio foi esse. Interessava-me falar das suas dinâmicas, da própria arquitectura, da forma como cresceu. As populações são migrantes, desenraizadas, naturalmente sem estabilidade, sem muito a perder. E por tudo isso, estão mais disponíveis para arriscar. Não têm lastro, nem âncoras. A ideia foi dar conta do quotidiano de um bairro com essas características, da forma como as pessoas nele interagem, da criação dos galgues, com os seus líderes, da rivalidade entre eles, dos guetos, dos medos e da forma como tudo isso interfere na vida dos residentes.

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duAs centenAs e meiA de obrAs em sete nú-cLeos temáticos que Percorrem 60 Anos de PinturA: nikiAs skAPinAkis, Presente e PAssAdo de referênciA dA Arte PortuguesA do sécuLo xx. inAugurA-se A 28, no museu coLeção berArdo, no centro cuLturAL de beLém. Ante-ciPAmos A introdução que nikiAs skAPinAkis escreveu PArA o cAtáLogo e AvAnçAmos As LinhAs de forçA dA mostrA, comissAriAdA Por rAqueL henriques dA siLvA.

Promete surpreender pela sua amplitude tempo-ral, já que abarca seis décadas de percurso, e as-sinala os 80 anos de Nikias Skapinakis, nascido em 1931, que continua a pintar, com o rigor e método de sempre. Mas também pela intensa diversidade e coerência de uma obra única.É, de resto, em si mais um “trabalho plástico” do pintor, que gosta de refletir sobre a sua pintura, equacionando ciclios, séries temáticas, aproxi-mações ou pausas, numa circum-navegação sistemática, mas não cronológica. E nessa me-dida, talvez se possa ver Nikias Skapinakis, pre-sente e passado 2012-1950, que se inaugura a 28, no Museu Berardo, como uma ‘meta-criação’. De alguma maneira, como diz ao JL a comissária, Raquel Henriques da Silva, Nikias Skapinakis é o “principal historiador” do seu próprio trabalho. E a exposição reflete essa particularidade, sen-do construida de acordo como seu entendimen-to. Assim, apesar das necessárias conversas preparatórias e dos ajustes, a curadora remete para o pintor a autoria da mostra, planeada por Jean François Chougnet e continuada por Pedro Lapa, atual diretor do museu.Seguramente, é a mais vasta mostra antológica que o artista já realizou. “Notável”, segundo a comissária: “Gosta de rever, com regularidade, aquilo que ele próprio fez”, explica. “Por isso, a exposição tem muito a ver com a lógica do seu tra-balho. Mas foi a primeira vez que aceitou o repto de uma antológica com esta dimensão”.

RevisitaR o pResente no passado

São 260 pinturas e desenhos, de 84 colecionadores privados e 25 instituições, que permitem redesco-brir o universo do pintor ao correr do tempo. As obras estão organizadas em sete nícleos, que de resto correspondem a séries ou fases, sempre em aberto: O Ponto Metafisico. 2012-1954; A Pin-tura Mirabolante. 2010-1994; Monocromatismo e Recuperação da cor. 2000-1989; Parafiguração e Paisagens do Vale dos Reis. 1987-1966; Pessoas, Ninfas, Bichos, Manequins e Frutos. 2002-1960; Ex-pressionismo Presencista. 1965-1950; e um nucleo de desenho. 2009-1958, que abrange, ainda, a lito-grafia e a ilustração.Raquel Henriques da Silva salienta a peculiari-dade da “baralhação da cronologia”, que não é, de resto, alheia ao modo de trabalho de Skapi-nakis. “A ideia de não começar pelo inicio da carreira, nos anos 50, foi uma das suas primeiras intenções. E é, para mim, um dos aspectos mais importantes da exposição”. O discurso expositivo fez-se, desse modo, do presente para o passado, num flashback, com alguns “curto-circuitos pelo meio”. “Não é um percurso a andar para trás. É uma brincadeira com o tempo, que num homem de 80 anos não deixa de ser interessante. E mostra uma certa consciência de que algumas coisas sempre o preocuparam tanto no inicio, no meio, como na atual fase da sua carreira”, esclarece.Em seu entender, Presente e passado, é uma exposição que “prova o percurso de grande entrega” de Nikias Skapinakis: “Olhando esta

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mostra, é evidente sobretudo a coerência do seu percurso. Há uma concentração absoluta nas questões da pintura. E ele nunca quis seroutra coisa se não pintor».A «experimentação» é, por outro lado, um dos eixos do trabalho de Nikias, como faz notar ainda Raquel Henriques da Silva: «Nasce fundamental-mente dos temas. Embora as questóes técnicas sejam muito importantes na sua obra, julgo que o essencial é que ele encontra sempre as técni-cas certas para os temas que quer tratar. Daí a importância dos ciclos e dos titulos, tal como O lir-ismo expressionista ou A pintura mirabolante».A poesia, a literatura, tal como a filosofia são, nessa medida fulcrais no desenvolvimento dotrabalhode Nikias Skapinakis que, como recor-da a comissária, quando começou a pintar, nos aos 50 toma desde logo partido pela arte figura-tiva, quando dominava o abstrato. »Esse enten-dimento de que a arte não deve pôr de parte as articulações com a realidade, com as coisas e as matérias é uma questão fundamental», sublinha ainda. Por isso, mesmo quando usa a abstração é de um ponto de vista de composição, sempre como uma discursividade anexa. Ele mantém-se fiel à ideia que a pintura não é autónoma do sistema cultural e que nele se articula com a filosofia ou a literura».Outro traço vincado do seu percurso, que agora é possivel seguir em Presente e passado, cujo catálogo bilingue terá dois ensaios de Raquel

Henriques da Silva e Bernardo Pinto de Almei-da, além de textos de Fernado Azevedo ou Vas-co Graça Moura, pretende-se com a fidelidade ao próprio país. A comissária lembra que o pin-tor, atitudes políticas, sem ser um ativista, que no tempo da ditadura olevaram mesmo à prisão. «É um homem de uma geração, em que as posições políticas eram muito marcantes e tinham consequências. Mas Nikias nunca quis emigrar, ao contrário de outros artistas da sua geração. È um homem muito culto e viajado, mas nunca sentiu necessi-dade de deixar este país, que de resto trata com uma ironia sarcástica no seu Portugal. Tendo essa distância e sendo um analista social ex-traordinário, mantém essa espécie de aliança, sem fatalismo ou dramatismo. »Aliás, ele é um apaixonado por Lisboa, pela sua luz». Isso é visìvel desde logo no seu atlier, há muito com morada no Pátio Mardel, como sublinha ainda a curadora, adiantando que nesse mesmo fidelís-simo atelier continua a pintar várias séries ao mesmo tempo, nomeadamente, «Os Quartos», numa «revisitação» da literatura, da pintura, das personalidades que o marcaram, tal como noutras telas, faz permanentemente «revisita-ções» das suas séries passadas. E é o passado e o presente do pintor que podemos revistar até Junho, no Museu Berardo. JL MARIA LEONOR NuNES

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gonçALo tochA viAJou Ate à uLtimA PontA dA euroPA no oceAno AtLAntico, Até á iLhA mAis remotA do nosso mundo, Até Aos 400 Portugueses mAis distAntes deste PortugAL e descobriu-nos A todos nós. é A terrA, não é A LuA, documentArio sobre A iLhA no corvo, re-cebeu umA mensAo honrosA em LocArno e o Premio internAcionAL do docLisboA. estreiA-se nA sALA, no Proximo diA 29.

32 ARTES / ENTREVISTA

Gonçalo tocha o corvo somos nos

“Cada filme que faço é uma revoluçao na minha vida”, diz gonçalo tocha. A cada filme se entrega como a um projeto de vida, sempre num tom intimo e pessoal. A viagem é o viajante. Em Balou, obra de estreia que venceu o Indie Lisboa, partiu em busca dos Açores da sua mãe e deixou.se levar por um barco entre as ilhas. Em É na Terra, não é na Lua, vai ao último lugar no arquipelago que lhe corre no sangue. E deixou-se deslumbrar pela ilha e por aquela sociedade. São três horas de filme retiradas de quase 200 filmadas, que mostram de tudo um pouco, desde a vida noturna no barda da vila ao insólito periodo da campanha eleitoral. Gonçalo Tocha, 33 anos, com apenas dois filmes, tornou-se um dos documentaristas de maior relevo nacional.Divide a sua atividade artistica entre o cinema e a musica. Formou os Lupanar (a banda de Ana Bacalhau antes dos Deolinda) e os projetos Tocha Pestana e Gonçalo Gonçalves, que brevemente conhecerão novas edições discográficas.

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E os corvinos sentem a ânsia de sair dali?É caso a caso. Quando fiz o filme procurei o contrário. A minha pergunta era: por que é que esta ilha pode ser o centro do mundo? Porque para quem é dali o Corvo é sempre a sua terra, por mais longe que esteja. O que queria saber é o que faz disto o umbigo. Eu fui adotado pela população e sempre que saí do Corvo senti-me perdido, o mundo parecia-me demasiado grande. E isso é qualquer coisa que os corvinos têm de especial: o seu mundo é demasiado pequeno e abstrato.

um centro do mundo que também está fora do mundo. É quase a lua?As condiçoes geográficas são inacreditaveis. É um grande mer-gulho, um pedaço de terra no meio do oceano, exposto a todos os ventos e correntes. Esse impacto é inesquecivel no proprio corpo, ouve-se sempre o mar brutalmente, numa paisagem a pique, toda a ilha é vertical. Mas em termos de sociedade a vida humana repete-se. Os hábitos repetem-se. Apesar da distância, aquilo é o Corvo, Açores, Portugal, Europa. Está ali marcado, e é uma socie-dade ocidental e europeia.

há partes especialmente caricatas, como o período da cam-panha eleitoral, em que a ilha para.Filmei as eleiçoes todas e o ato eleitoral propriamente dito, os vence-dores... mas não tinha tempo para mostrar, seria outro filme. Aquilo mexe com toda a gente. É uma das coisas do Corvo que é unica, em mais nenhum lado há uma campanha daquele tipo, porque muitos poucos votos dão muito poder.

Os corvinos são os açorianos mais esquecidos ou, pelo con-trário, dado o seu afastamento, acabam por ser protegidos?Já não são assim tão esquecidos. Antes sim. Por issos é que era uma sociedade muito digna e valente. Não podiam contar com ninguem. E os barcos apareciam só de seis em seis meses. Nem sequer havia dinheiro. A única coisa que vinha de fora era o açucar. Isso cria uma sociedade muito brava. Portugal é a periferia da Europa, os Açores são a periferia de Portugal, e todas as ilhas têm a sua periferia. To-das menos o Corvo. O Corvo é a periferia das Flores.

E foi esse “fim do mundo” que te atraiu?Quis fazer o filme no limite. Em que não soubesse quando aca-bava, fosse uma aventura na rodagem, autónoma e solitária. Eu fui para o Corvo em 2007, depois de mostrar o Balou em São Miguel. Fui à boleia de barcos à vela e passei pelas ilhas todas até lá chegar. Ninguém me conhecia quando cheguei ao Corvo. E fiz tudo a partir do nada, não quis fazer repérage. A ideia era recriar a energia dos exploradores que vão a um sítio que não conhecem e deixam-se embranhar e maravilhar por tudo o que acontece. Se o filme tem alguma virtuda é mostrar a energia da rodagem, abrir o livro de bordo.

tal como tinhas feito com balau...Sim, há recorrências na maneira de contar. Quando comecei a montar o filme, experimentei fazer de outra forma, mas para o filme ser honesto com ele próprio teve de sequir este roteiro. Mas é como nos livros de viagem: são maravilhosos porque acompanhamos o processo todo da viagem do narrador e não só as consequências.

E agora? Já estas a preparar outra coisa?Ainda não, estou dedicado à distribuição e queria intercalar com os meus projectos musicais. Este filme acompanha quatro anos da minha vida. Joguei tudo quanto tinha. Pensei: “Isto ou me mata ou me dá uma segunda vida”. Acabei por tê-la, mas estive prestes a queimar tudo. Fazer o filme foi uma revolução na minha vida. Ago-ra não sei o que se segue, mas sei que vai ser nos Açores.

Mas onde se poderá ir alén da Ilha do Corvo?Não sei, talvez ao fundo do mar. JL MANuEL hALPERN

No teu filme anterior, balaou, passava-se em grande parte dentro de um barco ao largo dos Açores. O que achaste mais isolado, o barco ou a Ilha do Corvo?Gonçalo Tocha: Obviamente o barco é muito mais isolado. Mas fiquei com a ideia, até pela sua forma redonda, de que o Corvo é um barco parado no mar. As pessoas é que se mexem, a ilha fica sempre parada.

Logo no inicio do filme propões-te a um exercicio exaustivo, a filmar cada rosto, a captar a totalidade do Corvo sem que nada te escape. Mas, obviamente, há coisas que não estão no filme... Ou estarão lá todos os rostos?Acho que nós fizemos mesmo tudo o que queriámos. A exaustão está lá, não podia era entrar tudo no filme, porque só tem três horas. Mas existe o arquivo, que foi quase de 200 horas. O único pressupos-to que eu tinha era aquela oportunidade de fazer um filme sobre tudo. Só ali podiamos ter essa pretensão. Há uma única vila, não há terras vizinhas, o mundo em síntese.

Aliás, não era um eremita que seja a viver fora da Vila do Corvo.Houve um austriaco que o conseguiu durante alguns anos e de-pois foi-se embora. Teoricamente, nem sequer é permitido, porque é obrigado a viver sem saneamento basico, sem água nem luz, uma experiência radical.O Corvo é um caso exemplar para um estudo sociológico, um meio pequeno, mas não comparavel com uma aldeia isolada em Trás-os-Montes.Nos anos 60 e 70 escreveram-se alguns livros sobre isso, mas versa-vam essencialmente sobre o antigo comunitarismo do Corvo, sem que fosse feita uma análise exaustiva aos modos de vida. As múlti-plas visões do que acontece lá dentro é que nunca se esgotaram no filme. Há sempre mais. É uma ilha em completa mutação.. Está tudo a acontecer. À partida imaginamos que nada se passa lá, mas é pre-cisamente o contrário: tudo se passa, mas a uma escala pequena. Um pequeno nada é um grande acontecimento. E o Corvo sempre esteve aberto a muitas rotas. Antes do barco a motor todas as rotas passavam por lá. Por isso foi constante o aparecimento de navega-dores, piratas, de outras culturas. Os corvinos estavam de olhos vi-rados para a América. Não era de todo uma sociedade fechada. Era fechada na sobrevivência, na autossuficiência, mas não no acon-tecimento do que se passava á volta.

Notaste isso hoje em dia?Hoje é uma sociedade diferente, que está a sofrer uma mudança radical. Podemos imaginar que toda a evolução que Portugal sofreu em 80 anos, o Corvo está a sofrer em 20. Tudo ao mesmo tempo.Isso vai criar roturas e contrastes, que o filme também tem. Joga com esses contrastes entre o moderno e o antigo, o rural e o ur-bano, o modo de vida das avós e das novas gerações. Está ali em choque: tudo ao molhe e fé em Deus.

Sentiste dificuldade em entrar naquela sociedade? São muito-desconfiados?É uma sociedade que se autoprotege. Eu sabia, à partida, que essa desconfiança iria existir. Então decidi assumir tudo claramente desde início. E é por isso que chego ao Corvo logo com a câmara de filmar. Tinha de assumir, “eu sou o gajo da câmara”. E isso permitiu-me estar sempre a filmar.Avisei logo: “Isto está sempre ligado.”

A população é muito envelhecida?Nem or isso, foram criados empregos na área dos serviçoes e popu-lação mais nova ficou...

Deu-te uma sensação de claustrófobia?Não, porque esta tudo a acontecer, uma surpresa atrás de outra, tudo era novidade, um deslumbramento. Nunca senti que não havia mais nada para fazer.

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Dia MunDial Do TeaTroo palco é queM Mais orDenaPôr “em cena” o debate sobre o papel da cultura, do património e da criação artística enquanto bens públicos. Eis o programa de festas de cinco companhias do Porto – Visões Úteis, Teatro do Bol-hão, Boas Raparigas, teatro do Ferro e FITEI (Fes-tival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) – para assinalar o Dia Mundial do Teatro, que se comemora na próxima terça-feira, 27 de março. Assim, na véspera, a 26, cada estrtura irá reunir-se com círculo do Porto a fim de manifestar as suas preocupações no que toca ao teatro. “O ob-jectivo é que no Dia Mundial do Teatro os deputa-dos à Assembleia da República iniciem a sessão legislativa conhecendo a realidade do setor”, ex-plica ao JL, Carlos Costa, diretor da Visões Úteis. “Não se pode fazer discursos sobre a importân-cia da cultura e, sistematicamente, no momento de decidir, não afetar recursos. Se é considerada um bem público, tem não só no contexto nacional, mas também na relação com a União Europeia. Este ano, mais do que iniciativas, é importante conversar seriamente sobre tudo isto.”E, um pouco por todos o país, não faltarão opor-tunidades para refletir sobre o estado da arte e procurar novos caminhos. Também na cidade, Invicta, o Teatro Nacional São João (TNSJ) pro-move o fórum de discussão “Os Teatros do Porto em 2012” (a 27, às 16, no Teatro Carlos Alberto), dirigido a toda a comunidade teatral do distrito. “Deparamo-nos, essencialmente, com dois gran-dea problemas. Por um lado, os cortes orçamen-tais, e, por outro, a ausência de uma consciencia real dos meios logísticos, humanos e técnicos de que o cidadão dispõe”, revela, ao JL, o ator e en-cenador Nuno M. Cardoso, que participará da mesa-redonda. Daí que o intuito da iniciativa seja criar uma forma de entendimento e cooper-ção entre vários agentes locais, de modo a “po-tenciar” os recursos existentes. Destas e de outras questões se fala, ainda, no Teatro de Portalegre (à 27, às 18, na Igreja do Convento de Santa Clara) ou na sede do grupo teatral Lendias d´Encantar,

em Beja (a 25, às 14 e 30, no eespaço Os Infantes)Mas também haverá, de norte a sul do país, es-petaculos de entrada livre, ensaios abertos ao público, estreias, leituras e visitas guiadas. Em Lisboa, a Cornucópia convida o público a assis-tir, no Dia Mundial do Teatro, ao ensaio da peça Fingido e Verdadeiro ou o martírio de S. Gens, ator, que se estreia a 29 (ver caixa). Com entrada gratuita, podem ver-se ainda em Lisboa, A Morte de Danton e João Torto, no Nacional D Maria II, O Rapaz da Última Fila, no Teatro Politécnica, O Fantasma de Chico Morto, n´A Barraca: Dança de Roda, no Teatro Municipal de Almada; em Coimbra, Shakespeare pela Barbas, n´O Teatrão; em Évora, Falar Verdade a Mentir; no Cendrev – teatro Garcia de Resende; ou no Porto, Alma, no TNSJ, e Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela, no Mosteiro São Bento da Vitória.Já no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, a festa no teatro estende-se por quatro dias. A 26, os atores Matim Pedroso, Flávia Gusmão e Nelson Guerreiro organizam uma maratona de leitura de Os Pilares da Sociedade, de Henrik Ibsen (das 21h à meia-noie). A 27, a enfeméride é celebrada com a pela infantil Jôjô, O Reincidente, de Joseph Danan, uma produção do teatro rainha com encenação de Fer-nanda Mora Ramos e Paulo Calatré (às 10 e 30 e a 28, e às 15 e 30) seguindo-se mais tarde uma sessão de leitura da obra prima de Cervantes, Dom Quix-ote (das 21 à meia-note). A terminar à 29, o livro Criatividade e Instituições: novos desafios às vidas dos artistas e profissionais da cultura, de Borges e Pedro Costa, da mote ao debate que renirá, entre outros, Cláudia Galhós, Pedro Penim (às 18 e 30). Também na baixa lisboeta, o Teatro Maizum trás o Teatro-Estúdio Mário Viegas numa leitura dra-matizada de Histórias Mínimas, de Javier Tomeo, dirigida por Silvina Pereira e com interpretaçôes

desta última. Júlio Mratín Isabel Ferreira e Augusto Portela (às 18 e 30). E, noutro canto da capital, junto ao castelo São Jorge, o Teatro junta-se ao Circo no Chapitó, com performances e um espetáculo protagonizado elos alunos de Interpretação e Ani-mação Circenses, Figurinos e Adereços, sob a co-ordenação da atriz Rita Ribeiro (a partir das 19).E como sendo hábito, no Dia Mundial da art do pal-co o Teatro da garagem viaja até Bragança, desta vez para a iniciativa “O Teatro antes do Teatro”, uma visita guiada pelo Teatro Municipal através de jogos e improvisações dirigidas por Maria João Vicente (às 20 e 30), e para estrear O Mundo em que Vivemos, de Carlos J. Pessoa (a 30 e 31, às 21 e 30). A Sul sobe também pela primeira vez ao palco Paris, Praia do Hawai (a 24 e 25, às 21 e 30, no teatro Mu-nicipal de Faro), um esetáculo de Teatro das Figu-ras que perscurta um Algarve desconhecido, “que se esconde atrás dos turistas, dos estrangeiros, dos sonhos escaldantes, das noites longas, da cultura do corpo e do sol assassino”. JL CAROLINA FREItAS

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Luís MigueL Cintra ator, profissão de fé

Percebemos, logo pelo título, que esta peça levanta a questão da verdade ou mentira do teatro. Foi isso que o interessou? Luís Miguel Cintra: Também. Este texto recorre àquele sistema sempre muito divertido do teatro dentro do teatro, problematizan-do a questão da verdade do ator. A ação passa-se no século III e conta a história do mártir S.Gens, um ator que ao representar a pedido do imperador Diocleciano, a figura de um cristão, se con-verte, e em consequencia disso é condenado à morte.Esta semel-hança entre o ator e o crente é muito interessante, porque um ator tem que crer, realmente, naquilo que está a fazer. Mas não se trata de fazer filosofia. Esta peça, que assenta numa esconstrução do texto de Lope de Vega, é sobretudo uma “brincadeira”, um jogo irónico sobre a verdade e mentira, a vida e a ficção, sobre o tra-balho do ator.

Como se processa essa desconstrução?Colámos trechos de fontes literáreas a que o autor recorreu, com o anuário da vida dos santos, Flos Sanctorum, e a História Imperial e Cesárea do escritor renascentista Pedro Mexia e também citações de Santo Agostinho, Tertuliano, Louis Jouvet e Jean Genet. Além disso, expomos a situação que a Cornucópia esta a viver – o dinheiro do Estado só chega mesmo para manter a companhia, não dá para cenografia, guarda-roupa, mais atores, etc. Por isso, os especta-dores que têm acompanhado o nosso trabalho vão reconhecer os adereços e vão sentir que estão na sala de espetáculos anteriores.Aliás, a peça começa com uma conferência dirigida o público e eu gostava que acabasse sendo um elogio ao próprio ator.

Esta peça de Lopes de Vega é uma espécie de demostração prática do seu texto teórico Arte Nova de Fazer Comédias. quais eram as suas ideias-chave?Perante as críticas da Academia, que o acusava de desrespeitar os “clássicos”, Lope de Vega escreve esse texto, onde recapitula as car-acterísticas dos modelos antigos para dizer que os quer seguir. Rec-lama a liberdade da métrica, a inclusão de personagens de várias naturezas, etc. E apesar de Lo Fingido Verdadero ser uma peça ti-picamente barroca e construida em verso, não é rígida em termos formais e cria personagens que parecem arrancadas da vida. No fundo,é isso que está em causa no seu texto teorico: uma comédia mais próxima da vida. JL

Não é por sugestão da enferméride que a Cornucópia estreia na sem-ana do Dia Mundial do Teatro, a 29, uma peça sobre o próprio teatro.Quem tem acompanhado da Companhia drigida por Luís Miguel Cintra e Cristina Reis que este é tema recorrente: “Mais que de teatro falamos da arte da vida, da coisa e da imagem, do pintor e seu modelo”, escreveu o ator e encenador a proprósito do espe-táculo Fim de Citação.Agora, sobe ao palco do teatro do Bairro Alto, em Lisboa, até 29 de abril, Fingido e Verdadeiro ou martírio de S. Gens, ator, a partir de El Fingido Verdadeiro (, de Lope de Vega, com encenação de Luís Miguel Cintra, tradução de Luís Lima Barreto e interpretações destes últimos, Cleia Almeida, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Sofia Marques, entre outros.

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Jürgen Habermasa Constituição da europa

36 IDEIAS

ensAio sobre A constituição dA euroPA é A úLtimA obrA de Jürgen hAbermAs, 82 Anos, um dos mAis im-PortAntes PensAdores contemPorâneos, com umA vAstA e fundAmentAL obrA sobre vários temAs, in-cLuindo A teoriA PoLíticA, A socioLogiA, A éticA do discurso e A críticA dA rAzão. mAs tALvez nucA como neste novo e muito recente ensAio, que vAi AgorA sAir em PortugAL com A chAnceLA dAs edições 70 (gruPo ALmedinA), o fiLósofo ALemão trAtou questões tão nA ordem do diA mesmo no imediAto decisivAs, no “seu Longo e brechtiAno im-PuLso de meLhorAr A euroPA e o mundo” - como es-creve num exceLente Prefácio o que é, Por suA vez, não só um eminente constituicionAListA com dos exPoentes dA ciênciA PoLíticA e do PensAmento em PortugAL. e é esse Prefácio que Aqui AnteciPAmos.

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Um ano depois de os médicos o terem proibido de ler e de escrever, Jürgen Habermas retoma o caminho do desassossego. Como efeito, foi a doença que o impediu de vir a Portugal para participar no Centenário da Implantação da República. Mas a inquietação pela Europa - «Europa, Europa», «Ai, Europa» - obriga-o sempre a estar presente arranjando forças por continuar o seu longo e brechtiano impulso de melhorara a Europa e o mundo. Olha para os frag-mentos e as transições que vão enchendo o «vale da morte» da política, sem que seja descortináveis a «espada mágica» ou o «con-tra-feitiço» indispensáveis à magia da razão. A imagem de uma «Europa sem Europa» espicaça as sua inquietações. outro remédio não tem senão o de utilizar os seu «meios para tentar eliminar os bloqueios conceptuais que continuam a existir em relação a uma transnacionalização da democracia, colocando a unificação euro-peia no contexto de longo prazo de uma jurisdição democrática e de uma civilização de poder estatal»

O desassossego é próprio de um «utópico» de longo curso. na entre-vista que concedeu a Thomas Assheuer revela a sua «maior inqui-etação» o desassossego a cavar fundo na sua implantação cidadã traduz-se neste grito de alma: «A minha maior preocupação é a in-justiça social, que brada aos céus, e que consiste no facto de os cus-tos socializados do falhanço do sistema atingirem com maior dureza os grupos sociais mais vulneráveis». A injustiça social, paga-se, não com dólares, libras, ou euros, mas com a «moeda forte da existência quotidiana». Longe de ser uma precipitação transitória de sistema, a injustiça ameaça resvalar para um «destino punitivo» global.Toda esta tragédia humana - este «escândalo político», este «darwin-ismo social», este «programa de submissão desenfreada do mundo da vida aos imperativos do mercado» - é acompanho de um «enfado com a política» ao qual não é alheia a ascensão ao poder de uma «geração desarmada em termos normativos», incapaz de assumir objectivos, causas e esperanças.

3O que fazer neste quadro de «melancolia hopperiana» das longas filas de casas abandonadas? Como ultrapassar a política da «nor-malidade social», tornada «ridícula» pela sua hipocrisia moralista? Como levar a sério a «possibilidade real de um fracasso europeu»? Jürgen Habermas sugere o caminho: pensar a pessoa, pensar a sua dignidade, pensar a dignidade destes, pensara dignidade da pes-soa humana, pensar na dignidade dos povos. No estudo inicial - «O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos huma-nos» - coloca-nos perante esta intriga: «Porque razão é a referência aos direitos humanos no direito muito anterior à referência à digni-dade humana»? A carreira tardia no conceito de dignidade humana no âmbito do direito constitucional e do direito internacional parece sugerir a ideia que de direitos humanos só surge pesadamente carr-egada de dignidade humana no contexto histórico do Holocausto. O «fardo moral do conceito de dignidade», obrigatoriamente presente em qualquer exercício da «razão anamnéstica» leva o autor a tentar compreender a assimetria temporal entre «história dos direitos hu-manos» e o aparecimento do «conceito de dignidade humana» e a defender uma tese particularmente sugestiva.

Consiste esta tese na «defesa da existência, desde o início, de um estreito nexo conceptual» entre os dois conceitos, embora inicial-mente apenas implícito. Se os dois conceitos andaram desligados durante muito tempo, isso não significa a inexistência de uma liga-ção profunda entre direitos humanos e dignidade humana. É esta dignidade «fonte moral» da qual se alimentavam os conteúdos de todos os direitos fundamentais e é radicação dos direitos nesta ponte moral que «explica a força explosiva do ponto de vista político de uma utopia concreta». A «substância normativa» radicada na «ig-ual dignidade humana de cada um» revela toda a potencialidade praxeológica quer quando os tribunais têm que decidir sobre o «cálculo do direito a prestações sociais», como o subsídio de desem-prego ou subsídio de reintegração social, quer quando se descobre, em sede de legislação democrática ou de tratados internacionais, o «nexo lógico» entre várias categorias de direitos. Em termos mais pregnantes: a dignidade humana é a mesma «em todos o lado e para todos», justificando a indivisibilidade dos direitos fundamen-tais. A «força utópica», a «utopia concreta» surge ligada à mensa-gem éticomoral da dignidade: «os direitos fundamentais só podem cumprir politicamente a promessa moral de respeitar a dignidade humana de todas as pessoas se agirem em articulação uns com os os outros de forma igual, em todas as categorias». mas não se trata apenas de uma «promessa moral». Como «Janus», os direitos têm duas faces - uma moral e outra jurídica -, carecendo de institucional-ização e de positivação sob forma de direitos subjectivos.

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O Ensaio sobre a Constituição da Europa que forneceu a inspira-ção do título do livro como sub-epígrafe do trabalho «A crise da União Europeia à luz de uma constituição do direito internacio-nal» permitem a Jürgen Habermas tentar «uma narrativa nova e conveniente», a partir da perspectiva de um constitucionalização do direito internacional, que, associando-se a Kant, aponta para uma futura situação jurídica cosmopolita, muito para além do sta-tus quo. «Não é a primeira vez que o Autor aborda a perspectiva kantiana de um direito civil mundial e a constitucionalização do direito internacional. Com efeito, em trabalhos anteriores, as prob-lemáticas da «paz perpétua», a «chance» da constitucionalização do direito internacional e a viabilidade política num sociedade mundial pluralista haviam merecido importantes abordagens reflexivas. Porquê esta fome «sem entretém» pela Europa e o seu destino? A resposta clara e incisiva é esta: (1) porque o debate ac-tual sobre a Europa se restringiu e continua a restringir «às saída imediatas para a crise bancária, monetária e da dívida, perdendo de vista a dimensão política»; (2) os conceitos políticos incorrectos ocultam a força civilizadora da juridicização democrática – e, por-tanto, também o compromisso associado desde o início ao projecto constitucional europeu. Políticos e economistas colocados perante a única saída possível – «mais Europa» –, insistem nos conhecidos erros da construção da União europeia.«Mais Europa» implica um aprofundamento das competências e não o caminho saturado de um existencialismo político errante que vai desde os compromissos assumidos em cimeiras, ineficazes e não democráticas, até à aceleração da «perda de solidariedade a nível europeu». Mais do que isso: olham para os ditames dos «grandes bancos e agências de notação» e não para o desfalque legitimatório perante as suas próprias populações. E, em vez de se levar a sério um projecto europeu, opta-se por caminhos ínvios. Ensaia-se, sem o dizer, um esquema de «federalismo executivo». Oculta-se a «im-portância história do projecto europeu» por se impopular e complexo, navegando-se aos sabores dos populismos internos. Como sintetiza Habermas, instalou-se um estranho fenómeno de acatalepsia onde se mistura cepticismo, dúvidas não metódicas, incapacidade de compreender. As elites político-económicas sentem-se confortáveis com «incrementalismos», mas teimam em não assumir a força civi-lizadora do direito democrático. Tão-pouco parecem compreender o «regresso da questão democrática», sendo óbvio que os Estados pagam a governação baseada na intergovernabilidade com o de-créscimo dos níveis de legitimação democrática. Por isso - e admit-indo a inevitabilidade de transferência de direitos de soberania do estado para outras instâncias de soberania - torna-se indispensável um «requisito forte» para a justificação da incontornável transnacio-nalização da soberania do povo. Jürgen Habermas desenveolve com mestria argumentativa este «requisito forte» - «o espaço de manobra da autonomia cívica só não fica reduzido se os cidadãos em causa participarem na legislação supranacional, em coo-questões - de direito constitucional, de direito internacional e de direito europeu - quanto a este processo de juridicização. Vê-se que Jürgen Habermas desenvovle com mestria argumentativa este «requisito foret» - «o es-paço de manobra da autonomia cívica só não fica reduzido se os cidadãos em causa participarem na legislação supranacional, em cooperação com os cidadãos dos outros Estados envolvidos, e isto de acordo com um procedimento democrático. Na argumentação hab-ermasiana não dá lugar para esquemas sucedâneos (esquema de Ersatz) da legitimazação democrática. Trata-se de uma justificação deliberativa de reforço da responsabilidade decisória, da imposição de transparência ou de publicidade crítica, da garantia dos princí-pios do Estado de direito. Nada substitui a participação democrática e o procedimento democrático.

A tarefa de estabilização democrática, indispensável a «mais Eu-ropa», exige também um esforço de concetualização do processo de juridicização democrática do poder político na União europeia. Não é este o lugar para acompanharmos as complexas questões - de direito constitucional, de direito internacional e de direito eu-ropeu - quanto a este processo de juridicização. Vê-se que Jürgen Habermas não deixou de convocar a literatura mais representati-va sobre o tema. O fio discursivo capta reflexivamente as invoca-ções do processo de legitimação europeu: a prioridade do direito supranacional dos detentores do monopólio da coação física, a divisão do poder constituinte entre cidadãos da União e povos europeus, a soberania partilhada como critério para os requisi-tos de legitimação das cenas, Interessa, porém, reter a cuidadosa análise do papel dos alunos, dos povos e dos Estados quanto ao «processo de passar textos da governação para além do Estado nacional. O Estado - essa tecnologia razoável que uns teimam em ontologizar e outros tentam colocar nas mercadorias próprias da concorrência global - é recuperado por Habermas em termos delicademente parolos. É sabido que três instâncias «actantes» e acionalistas - cidadãos, povo, Estado - são convocadas de forma muito diversa para explicar concetualmente a esstruturação con-stituinte da União Europeia. Por amor ao Estado, alguns enfatizam o patriotismo nacional e identificam constituição com estado. Outros, navegando no cosmopolitismo sem fronteiras, preferem esquemas de regulação global para além do estado-nacional. A linha argumentativa habermasiana sugere um outro modo de ar-ticulação dos sujeitos constituintes - os cidadãos da União e os po-vos europeus - com os Estados - Membros da União. « Os Estados nacionais - escreve o autor - enquanto Estados de direito, não são apenas atores no longo caminho histórico para a civilização do núcleo de poder do domínio político. Eles também são conquistas permanentes e formas vivas de uma «jsutiça que existe» (Hegel). «Por isso, os cidadãos da União podem ter um interesse legítimo em que o seu Estado nacional continue a desempenhar o papel comprovado de garante do direito e da liberdade, mesmo quan-do assume o papel de Estado-Membro». E não deixa de ser im-portante o papel atribuído aos Estados como neutralizadores de «evoluções reacionárias» pi de «retrocesso social». « Os Estados nacionais são mais do que a mera passagem de textos dignos de preservação, eles garantem um nível de jornalismo e liberdade que os alunos desejam, com toda a razão, ver preservado».

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Uma democracia transnacional não assenta apenas em esque-mas de legitimação democrática. Quaisquer acordos institucionais degradar-se-ão em cascas vazias da política se não se acentuarem as dimensões profundas democrático-igualitárias veiculadoras de solidariedade entre «cidadãos dispostos a responsabilizar-se uns por outros» e a assumir a «disponibilidade para também fazer sacrifí-cios, com base numa reciprocidade de longo prazo». As «elites políti-cas hesitantes» - eis outro dos tópicos assinalados por Habermas~- além de nem sempre pouparem sarcasmos típicos de inferioridades cívico-culturais («os Gregos que vendam as ilhas», «os Portugueses que se juntem ao Brasil»), parecem ficar enredadas nos segredos das várias comitologias europeias. «O fato de a União Eruopeia ter sido, até agora, essecnialmente sustentada e monopolizada por elites políticas, gerou uma assimetria perigosa entre a participação democrática dos povos naquilo que os seus governos «conquistam» para eles no palo de Bruxelas - que consideram muito longínquo - a indiferença, se não mesmo desinteress, dos cidadãos da União no que diz respeito às decisões do seu Parlamento, em Estrasburgo. Todos sabemos: com «indiferença», «desinteresse» e «distância» não se constroem democracias - muito menos transnacionais. O resul-tado é, sim, um buraco negro, vulgarmente designado por «déficite démocrático» da União Europeia. Este «déficite democrático» corre o risco de se converter «num arranjo para o exercício de um domínio pós-democrático e burocrático». A crise do euro pôs a claro o «clube dos ilusionistas» e revelou os pontos fracos do Tratado de Lisboa. Este Tratado não dota a UE de meioas para enfrentar os desafios que se lhe colocam enquanto União Económica e Monetária. O que é pre-ciso não é ultrapassar as barreiras institucionais, mas exigir «uma alteração dradical no comprtamento das elites políticas. Devem estar menos voltadas para «relações públicas» e «incrementalismo dirigido por peritos» e mais preocupadas com a coesão económica e social da Europa. Não há como não acompanhar J. Habermas no seu credo europeu: «é necessária uma coesão política reforçada pela coesão social, para que a diversidade nacional e a riqueza cultural incomparavel do biótopo - velha Europa - possam ser protegidas no seio de uma globalização que avança rapidamente»

Na última parte do Ensaio sobre a Constituição da Europa, Jürgen Habermas regressa ao tema da constitucionalização do direito in-ternacional e aos problemas de legitimação de uma sociedade mundial devidamente conformada. No fundo, tratar-se-ia da con-tinuação da «juridicização democrática», agora no plano global, ou, por outras palavras, que são as do Autor, da «constituição de uma comunidade de cidadãos do mundo». A nível concetual e constru-tivista, procura-se dar operacionalidade à democracia cosmopolita. Como é sabido, a consrução habermasiana é criticada por muitos e acusada de ser uma «fantasmagoria» normativa própria de um espírito utópico. Em rigor, a narrativa habermasiana não parte do nada nem inventa lugares povoados com fantasmas. Desde a Carta das Nações Unidas e do seu núcleo orgazacionali até às decisões do Conselho de Segurança seria (será) possível prosseguir com a civilização do exercício do poder político. Mas, como o próprio Au-tor reconhece, a «ligação dos cidadãos do mundo» e a partilha de «cultura política» implicaria a eleição para um Parlamento mundial autoconformado como locus da inclusividade mas desprovido de mecanismos de imputação de responsabilidade parlamentar na ca-deia de juridicização democrática da política mundial.

O livro termina com um Anexo, onde se inclui uma entrevista cedida ao jornal Die Zei («Depois da Bancarrota»), com artigo publicado neste mesmo jornal («No euro decide-se o destino da União Eu-ropeia») e um terceiro trabalho publicado no jornal Suddeustsche Zeitung («Um pacto para ou contra a Europa»). Qualquer tentativa de sintetizar estes trabalhos correria o risco de tornar escuro aquilo que é claro. Leia-se a voz do profeta «contra o té-dio face a uma exigência política insuficiente».

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Sobre o tédio

38 IDEIAS / CrónICA, LIvros

a próxima década

Tentar prever o futuro, mesmo que seja um futuro não distante, ou seja : A próxima década, não é pequena ousadia. Mas é isso, num livro com tal título - a que se acrescenta : Onde temos estado ... e para onde nos dirigimos - que intenta ou ensaia George Friedman, o norteamericano fundador e líder da Stratfor, uma empresa considerada a nº1 em informação geopolitica global. E é este o do-minio fundamental das suas previsões, que vão de futuras guerras, de vários géneros, ao destino da Europa e da zona euro, da China, das relações in-ternacionais, em particular no Médio Oriente e dos EUA com Israel e o Irão. O livro “ fala da relação entre império ( leia-se : os EUA ), républica e o exer-cicio do poder nos próximos dez anos “, e do modo como “ os EUA se devem comportar no mundo para exercerem o seu poder e preservarem a república ao mesmo tempo “, assume o autor

O tédio enquanto configuração contemporânea é um ensaio que resulta da tese de mestrado do autor, José Baptista, em Ciências da Comunica-ção da Universidade Nova Lisboa. São 17 capítu-los em que analisa a "atualidade do tédio en-quanto fenómeno cultural e forma determinante de se estar no mundo procurando, por um lado, delinear de que forma e através de que media-ções surge a possibilidade da sua precipitação no âmago do sentir e da expriência do sujeito e, por outro, demonstrar o papel contral que ocupa na compreensão da expriência contemporânea".

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portugalidade

o testemunho do “grupo de genebra”

39 Ainda bem que se reúnem em volume as inter-venções no colóquio “Representações da Por-tugalidade“, organizado pela Universidade da Beira Interior, para assinalar o centenário da Républica. O livro tem o titulo do colóquio e saõ seus organizadores André Barata, António Santos Pereira e José Ricardo Carvalheiro. A sinopse de apresentação resume bem do que se trata : “ Dos muitos modos de ver as várias facetas da Por-tugalidade, é possível gerar um encontro entre distintas linguagens, objectos e perspectivas so-bre a identidade portuguesa.Para lá de uma pretensa ou presumível essência, que não tem de resumir o essencial da Portugali-dade, muito menos dispor de contornos precisos.é ambição deste livro apreciar a pluralidade e

Pátria Utópica é um muito interessante livro me-morialístico e testemunhal, sobre o ante e o post 25 de Abril, sobre cinco expriências de exílio politico e o que a ele obrigou, como foi a vida durante esse exilio, o retorno ao país e ( nele ) os primeiros tempos tempos da vida em democracia. Por isso o livro se divide em quatro partes, correspondentes, grosso modo, a essas quatro fases ou tempos de experiência : Em Portugal, abafava-se; À beira do lago Léman; Regressos; Portugal reencontrado. Quando aos cinco testemunhantes, são: António Barreto, Ana Benavente, Eurico Figueiredo, José Medeiros Ferreira e Valentim Alexandre.Os quatro primeiros bem conhecidos, com larga atividade politica, durante muitos anos, sobretudo na área do PS, todos tendo passado pelo Parlamen-to como deputados, Medeiros e Barreto ( que já não é do partido e preside a uma fundação) também ministros, Ana Benavente secretária de Estado, e todos, incluindo Valentim Alexandre, docentes e/ou investigadores universitários e autores de várias obras no seu ramo de especialidade, e não só.

E o que há, além disto, de comum entre eles? O facto de terem estado ligados às lutas associati-vas, de que agora se assinala o cinquentenário, alguns ( Eurico e Medeiros ) com intervenção destacada, terem-se exilado por razões semel-hantes ( em particular para não serem presos, e/ ou para não ir para guerra colonial; ou, no caso de Ana Benavente, aos 18 anos já casada, porque esse era o caso do marido ), haverem pertencido ( ou quase pertencido ...) ao Partido Comunista. E, sobretudo, para efeito deste livro, o seu exilio ter sido na mesma cidade suiça, serem amigos e ha-verem partilhado muita coisa em comum - e por isso o livro tem como subtitulo O Grupo de Gen-ebra revisitado.Mas, para lá dessa partilha, as experiências são diversificadas e os ângulos de abordagem e as escritas também, pelo que o volume resulta de leitura atrativa - além de, e isso é o fundamen-tal, constituir, repete-se, um apreciável testemu-nho sobre o Portugal de antes de depois de 25 de Abril, a vida no exilio eo percurso politico, profissional e em alguns casos pessoal dos cinco autores. Seria curioso e porventura revelador, aliás, avaliar alguns dos seus aspectos - o que, porém, aqui nao cabe.

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eventual singularidade dos elementos de Portu-galidade, num diálogo multidisciplinar, cultural e aberto, entre o material e o simbólico, a represen-tação e a produção, o passado e o futuro. Porque a identidade não tem a ver apenas com o que somos e de onde vimos, mas também com o que queremos fazer com aquilo de que dispomos.”Além dos três organizadores os textos são de Silvi-na Rodrigues Lopes, Carla Sofia Gomes Xavier, Daniel Ribas, Luís Cunha, José Neves, José Manuel Sobral, Daniel Melo, Luís Henriques, Mariana Pin-to dos Santos, Alecandre António da Costa Luís, João de Melo e Mário de Carvalho. Os dois últimos conhecidos escritores, sendo o do autor de A Sala Magenta o mais literário de todos volume.

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A PAIXÃO DAS IDeIAS A fOrçA DA LínguA

40 IDEIAS / CrónICA, LIvros

O génio da língua é a essência espiritual emana-da dos seus vocábulos intraduzíveis que se pode sintetizar numa expressão mais ou menos defini-da >> - Teixeira de Pascoaes disse-o, pensando na saudade, por certo, no desejo sensual e alegre e na lembrança espiritual e dolorida, mas ao lermo-lo, temos de ir mais além. Quando refere o que faz parte do que é próprio, da maior importância, no património imaterial da cultura. Ao depararmos com a magia das palavras na obra de um grande poeta, verificamos que os sentimentos, sendo intra-duzíveis, vão ao encontro de palavras únicas para se exprimirem e se fazerem entender. Por isso So-phia dizia: << Gosto de ouvir o português do Brasil / Onde as palavras recuperam suas substância to-tal / Concretas como frutos nítidas como pássaros / Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas / Sem perder um quinto de vogal / Quando Helena Lanari dizia “ Coqueiro” / O coqueiro ficava muito mais vegetal>>. Aqui está a magia do que se não traduz, mas sente-se.O português é a terceira língua europeia mais falada no mundo graças a difusão operada pelos portugueses das caravelas à unidade linguística do Brasil. É uma língua de várias culturas, que, como língua viva, comporta muitas diferenças, mundo afora, na pronúncia, na sintaxe e no vo-cabulário. Apesar da dispersão significativa, tem conseguido manter uma coesão apreciável, que permite a ligação de um identidade complexa, baseada no diálogo e compreensão. E saliente-se que o fenómeno dos crioulos não constitui uma excepção, mas um modo de enriquecimento, uma vez que prolongam as línguas nacionais dos países de língua oficial portuguesa. Quan-do se fala de lusofonia, importa, antes de mais, referir que, se a língua portuguesa é de origem europeia, a verdade é que ganhou uma riqueza universal. A lusofonia há muito que deixou de ser eurocêntrica, para se tornar multipolar, en-quanto partilha a fecunda de várias culturas e de diversas influências. A língua portuguesa é, assim partilhada por diferentes culturas, que se encontram e se completam na sua profunda di-versidade. Leia-se, por exemplo, Mia Couto e o seu << queixa-andar>> e veja-se como, apesar das muitas diferenças, há pontos forte de união. Encontre-se Pepetela, Germano de Almeida, Craveirinha, José Eduardo Agualusa, António Candido ou Rubem Fonseca. Aí está tudo!

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A”OA coesão essencial da língua portuguesa não pode, pois, fazer esquecer a diversidade interna e externa. Olhando a faixa oeste da Península Ibéri-ca, onde nasceu o galaico-português, encontramos três grupos de dialetos ou falares diferenciados, mas muito próximos - galego, português setentri-onal e português centro-meridional, segundo a formulação de Lindley Cintra. Estamos a falar da distinção entre o falar das classes cultas do eixo Coimbra-Lisboa, que defme a norma dominante da língua. E aqui importa referir que a Universi-dade (desde o século XIII) marcou decisivamente essa norma. Afinal, D. Dinis, ao criar o Reino, li-gou as decisões da língua, do Estudo Geral e da fronteira. A diferenciação dos três grupos referi-dos faz-se pelo sistema das sibilantes. Nos dialetos galegos não há sibilantes sonoras (z) e não há a fricativa palatal sonora (o nosso j), mas a surda (x). Nos dialetos portugueses setentrionais há as sibi-lantes ápíco-alveolares idênticas às do castelhano e ao padrão (surdas - em seis; sonoras - em rosa). Nos falares meridionais apenas aparecem as sibi-lantes predorso-dentaís, que caracterizam a lín-gua padrão - surdas (como em cinco ou caça) e sonoras (como em rosa e fazer). Além das características técnicas, há as especificidades regionais: os bês e os vês - Garrett dizia «nós os do Porto podemos trocar os bês pelos vês, mas nunca a liberdade pela tirania». Galegos e set-entrionais usam dizer binho e abó, enquanto os meridionais pronunciam a consoante vê como lábio-dental. Já o ch é dito no padrão como frica-tiva (chave) e como africada palatal nos diale-tos galegos e nortenhos (tchave). Quanto aos ditongos, à pronúncia meridional (ôro, ferrêro) contrapõe-se a diferenciação galega e setentri-onal (ouro, ferreiro), com uma particularidade no falar de Lisboa (que diz ferreiro]. Lembrem-se os ditongos reforçados na região do Porto e Entre-Douro-e-Mínho (pworto): a alteração dos timbres das vogais na Beira Baixa, Alto Alentejo e Barlavento algarvio (müla, põca) e a queda da última vogal átona (tüd, por tudo). Por outro lado, há diferenças vocabulares assinaláveis: ervilhas no norte e centro, griséus no Algarve; aloquete, a norte de Coimbra, cadeado, a sul; mais palavras de origem árabe a sul; palavras arcaicas a norte - como mugir em vez de orden-har, espiga por maçaroca, anho por cordeiro. São fatores históricos que pesam, mas do que

razões linguísticas. Nas ilhas atlânticas, há um prolongamento dos dialetos centro-meridion-ais. A colonização do século XV partiu dessas regiões, Há exceções em S. Miguel e na Madei-ra. No primeiro caso acentuam-se as tendências na alteração dos timbres das vogais e na queda da última vogal átona, e ao contrário da língua padrão o ditongo ej torna-se e. Na Madeira, o u e o i tónicos tornam-se ditongados, e a con-soante 1 precedida de um i palataliza-se (:veyla, por vila). E se nos atemos apenas ao continente europeu, poderíamos distinguir no Brasil duas zonas linguísticas, a Norte e a Sul, separadas por uma fronteira que se estende da foz do rio Mucuri entre os Estados do Espírito Santo e da Bahia até à cidade de Mato Grosso. Em África, na Ásia e na Oceânia, além do português como língua oficial (com muitas específlcidades vo-cabulares), as variedades crioulas resultam do contacto do sistema da língua portuguesa com os sistemas indígenas. Porventura, podem de-rivar todos os crioulos dos papiares, as línguas francas do português do século XVI, que servi-ram de modo de comunicação entre as popu-lações locais e os navegadores, mercadores e missionários, nas costas de África, Arábia, Pér-sia, Índia, Malásia, Indonésia, China e Japão. Os crioulos são línguas derivadas do português. Baltazar Lopes da Silva, para o crioulo de Cabo Verde, foi por certo o mais fecundo escritor e estudioso do tema. E a diversidade é fantás-tica, os crioulos: de Cabo Verde: de Barlavento (Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Sal e Boavista), de Sotavento (Santiago, Maio, Fogo e Brava); do Golfo da Guiné (S. Tomé, Príncipe e Ano Bom, na Guiné Equatorial); os continentais (Guiné-Bissau e Casamansa); da Ásia (papiar cristan de Malaca, patuá di Macau, Sri - Lanka, Chaul, Korlai, Tellicherry, Cananor e Cochím}; de Java (Tugu). Perante esta panóplia de ex-traordinária riqueza, a que temos de somar os vocábulos portugueses incorporados em diver-sas línguas nacionais (desde o bahasa indoné-sio ao japonês), percebemos que há potenciali-dades por aproveitar, numa economia para as pessoas.JL GuILhERME D’OLIVEIRA MARtINS

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Onésimo Teotónio de Almeida dá-nos conta, ao al-moço, da luta inglória que Annie trava para que Eduardo Lourenço deixe de colecionar pirâmides e pirâmides de recortes de jornal, alegando ter de voltar a eles para os arquivar, o que acaba por nunca acontecer. Conta Onésimo que Annie re-solve a coisa da seguinte maneira: deixa que Edu-ardo saia para Portugal e, de quando em vez, das pirâmides de recortes semeadas pela casa, elim-ina as três ou quatro camadas de baixo de modo a que Eduardo, no seu regresso a Vince, encontre sempre no topo das pirâmides aqueles que a sua memória recente lhe convoca, não dando imedi-atamente pela falta dos mais antigos. “Se calhar foi assim que desapareceram os diários”, ironiza José Carlos de Vasconcelos.A memória de Onésimo é feita deste mosaico de fragmentos, prodigiosamente justapostos, onde coleciona humor e inteleção, Para Onésimo, tudo pode ser crónica, como para William Carlos Wil-liams tudo podia acabar em verso. Onésimo inter-pela agora Luís Ricardo Duarte pelo facto de os participantes mais novos das Correntes “não li-garem nada aos tipos com mais de 40 anos, como eu” , ao preferirem juntar-se numa mesa á parte, quer ao almoço aquer ao jantar. O que não é, de todo, verdade, Esse é somente o pré-texto de que Onésimo necessita para nos arrancar mais um sorriso, com o interminável gesticular de dedos que tem vindo a aperfeiçoar desde 1946: “Uma chatice, eu ter feito agora 41”.É ele roubador de sorrisos a quem as autori-dades da Póvoa sempre entregam a chave da última mesa para que Onésimo feche as Corr-entes com uma eficácia anglo-saxónica: “Gosto sempre de preparar a minha palestra para as Correntes com muita antecedência. Aquilo que vou dizer logo á tarde, por exemplo, é já a pal-estra do ano que vem”.

João Luís Barreto Guimarãesmeter CoNVersa

41 DIÁRIo

PóVOA DE VARZIM, SábADO, 25 DE FEVEREIRO DE 2010

Surpreendo o poeta Jaime Rocha ao estender-lhe uma folha amarelecida arrancada a um bloco de notas, onde alguns meses atrás eu havia pedido a Hélia Correia para repetir por escrito algo que a ouvira dizer na sessão de homenagem a Maria Hel-ena da Rocha Pereira na Feira do Livro do Porto,e que desde então me tem acompanhado como um refrão: “A erudição é uma aprendizagem; a sabedoria é um triunfo”.Jaime fita o papel, entarnecido, estudando a cali-grafia a castanho bordadapela sua namorada, com o exato olhar com que ambos fitaram há al-guns meses atrás , em Inglaterra, o único manu-scrito conhecido de Dante Gabriel Rosseti recu-perado da tumba de Lizzie.Para além de excelente poeta, Jaime Rocha é uma excelente pessoa, O seu rosto transmite uma tal tranquilidade e sabedoria, uma gentileza e gener-osidade que me faz lamentar repetidas vezes ape-nas o reencontrar uma vez por ano nas Correntes d'Escritas, onde sempre partilha histórias singu-lares como a daqeula vez em que um repórter fo-tográfico procurou Hélia, em Janas, para onde o casal foge ao fim de semana, com o intuito de a fo-tografar para uma edição do Expresso, e incomo-dada pelo intenso calor capaz de gerar fotofobia, viu Jaime correr para a sombra e para gáudio do fotógrafo, com a mangueirada de rega estreitada na extrmidade, inventar a chiva com que aspergiu a gabardina que a helenista exibe nas páginas do semanário, num certo dia soalheiro tornado gris.Impaciento-me enquanto Jaime não me devolve o manuscrito que obtive de sua namorada.Tampouco me ofereço para lho oferecer. Desses pode ele pedir lá em casa quantos quiser.

Precisamos de estar mais atentos ao que escrevem os políticos em início de carreira, Os indícios estão lá todos. Gonçalo M. Tavares seurpreende a plate-ia ao recuperar extratos dos escritos de Adolf Hit-ler, onde o putativo ditador lamentava os fastos da sociedade alemã com a saúde dos seus próprios deficientes. A provacação do Gonçalo é demasia-do clara para não ser entendida, e em tempos de austeridade com regras vindas da Europa, só não a entende quem não quiser entender:“Degrau a degrau, o mundo contabilístico vai-nos tirando direitos.” Companheiros de ofício, desde há algum tempo conhecidos, sento.me a lanchar com ele enquanto me autografa três livros da série O bairro que acabo de comprar. E percebo que o incomoda que eu os tenha comprado, que tenha gasto dinheiro com ele, não ter conseguido exemplares para me oferecer, tanto quanto o in-comoda que me tenha levantado para lhe ofer-ecer o sumo com que devolvo humidade, a uma boca onde sobra humildade.

Tanto jovem turco irrompe pisando memória e tradição, que chega a ser desconcertamente que a grandeza do Gonçalo não esteja apenas na obra que entretanto construiu, sequer num olhar profundo onde abunda inteleção, quanto na con-sciência que tem de que faça o que vier a fazer, chegue onde tiver de chegar, jamais deixará de se ver como um “anão aos ombros de gigantes”

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42DIÁRIo

Um dos meomentos altos das Correntes, no que á confraternização gastronómica diz respeito, foi o jantar no Zé das Letras com a minha editora Lúcia Pinho Mleo, as Margaridas Ferra e Vale de Gato, e vários outros amigos. Já no final do jantar, o Bruno e a Marta Serra encheram-se de razões, encetan-do um cotejo de predicados políticos da esquerda e da direita, no que a Valores diz respeito, num gesticular amável mas não menos decidido que se porlongou pelo doce, pela fruta, pelo café, pelo cigarro fumado á entrada, pela calçada, pelo parque, pelas ruas da Póvoa de Varzim.Ao terminar o e-mail que hoje lhe dirigi, resolvi provocar o Bruno Vieira Amaral, perguntando-lhe se ele e a Marta, de regresso a Lisboa, ainda esta-vam a gesticular o assunto. A resposta pronta do Bruno não me fez esperar: “[Aquilo ainda se] pro-longou por mais um pouco, mas a Marta acabou por me convencer de que eu tinha a razão”.

Desde janeiro passado, sempre que atravesso de carro o tabuleiro da ponte da Arrábida, lembro-me do poeta Rui Costa. Nós não éramos amigos mas apenas conhecidos, não nos teremos cruza-do mais do que uma mão cheia de vezes, a mais demorada das quais no encontro com poetas Galegos que o António Costa organizou. Mas re-cordo um rapaz alto, muito ativo, bem-parecido, para quem a poesia não era um passatempo marginal, antes uma razão para viver, um modo de estar nos dias. A circunstância da sua morte, o ter aparecido no rio, levaram-me a escrever um poema que não fui capaz de terminar.Algo que sucedeu hoje numa súbita epifania, ao cruzar de novo a ponte lembrando um para-doxo de Zenão. Que bom seria, Rui, se o Para-doxo do Estádio fosse mesmo verdadeiro: “É im-possível atravessar o estádio; porque antes de se atingir a meta, deve primeiro alcançar-se o ponto intermédio da distância a percorrer; an-tesde atingir esse ponto, deve atingir-se o ponto que está a meio caminho desse ponto; e assim ad infinitum”. Sem nunca tocar águas, Rui, sem nunca chegar ao chão.

LEçA DA PALMEIRADOMINGO, 26 DE FEVEIRO

Distração, num poeta, é deixar acabar a reserva de cargas de tinta permanente da caneta favorita.Imprudência é sair de casa sem um caderninho no bolso. Não porque tenha o hábito de me obrigar a escrever um poema por dia, antes por ser impe-rioso ter um sítio onde escrever, se o acaso aparece com um verso que vale a pena: “Se adormeces a meu peito/ o meu braço adormece primeiro”

VILA NOVA DE GAIASEGuNDA-FEIRA, 27 DE FEVEREIRO

Desde janeiro passado, sempre que atravesso de carro o tabuleiro da ponte da Arrábida, lembro-me do poeta Rui Costa. Nós não éramos amigos mas apenas conhecidos, não nos teremos cruza-do mais do que uma mão cheia de vezes, a mais demorada das quais no encontro com poetas Galegos que o António Costa organizou. Mas recordo um rapaz alto, muito ativo, bem-pareci-do, para quem a poesia não era um passatempo marginal, antes uma razão para viver, um modo de estar nos dias. A circunstância da sua morte, o ter aparecido no rio, levaram-me a escrever um poema que não fui capaz de terminar.Algo que sucedeu hoje numa súbita epifania, ao cruzar de novo a ponte lembrando um para-doxo de Zenão. Que bom seria, Rui, se o Para-doxo do Estádio fosse mesmo verdadeiro: “É im-possível atravessar o estádio; porque antes de se atingir a meta, deve primeiro alcançar-se o ponto intermédio da distância a percorrer; an-tesde atingir esse ponto, deve atingir-se o ponto que está a meio caminho desse ponto; e assim ad infinitum”. Sem nunca tocar águas, Rui, sem nunca chegar ao chão.

Um dos meomentos altos das Correntes, no que á confraternização gastronómica diz respeito, foi o jantar no Zé das Letras com a minha editora Lúcia Pinho Mleo, as Margaridas Ferra e Vale de Gato, e vários outros amigos. Já no final do jantar, o Bruno e a Marta Serra encheram-se de razões, encetan-do um cotejo de predicados políticos da esquerda e da direita, no que a Valores diz respeito, num gesticular amável mas não menos decidido que se porlongou pelo doce, pela fruta, pelo café, pelo cigarro fumado á entrada, pela calçada, pelo parque, pelas ruas da Póvoa de Varzim.Ao terminar o e-mail que hoje lhe dirigi, resolvi pro-vocar o Bruno Vieira Amaral, perguntando-lhe se ele e a Marta, de regresso a Lisboa, ainda estavam a gesticular o assunto. A resposta pronta do Bruno não me fez esperar: “[Aquilo ainda se] prolongou por mais um pouco, mas a Marta acaboupor me convencer de que eu tinha a razão”.

LEçA DA PALMEIRAquINtA-FEIRA, 1 DE MARçO

Desde que o meu pai faleceu, o Jorge Sousa Bra-ga liga-me todas as semanas. É um facto que já o fazia antes de aquele dia me ter acontecido, mas actualmente faz questão de me ligar todas as se-manas. O poeta com quem partilho o Poesia & Lda é, com o meu irmão, um dos meus melhores amigos, um daqueles raros brindes com que a vida nos brinda, o podemos privar com pessoas de ética irrepreensível, como era o Egito Gon-çalves que tanta saudade deixou.A única vez que nos zangamos foi por causa de uma doente comum. Antes tivesse sido a poesia, já que a zanga provavelmente teria durado me-nos tempo. Embora, por outro lado, tivesse sido a poesia, e dificilmente teríamos estado tanto tempo de costas voltadas; não só usamos frequentar a mesma família de poetas, como há mais de duas décadas que ele cuidou de me ensinar não ser po-eta um campeonato, embora persista quem assim pense, antes uma corrida no deserto, e isto já sou eu quem o diz: ninguém sabe onde é a partida, sequer onde fica a chegada, mas muito pior do que isso, o trajecto não está marcado.Foi uma altura em que as palavras se esgotaram entre nós. Até que me enchi do silêncio e pedi ao Manuel António Pina, o favor de mediar o mal-entendido. Ninguém melhor que um poeta podia encher de palavras, o silêncio de poetas mudos.

Breve nota a não esquecer.Convidar o Rui Manuel Amaral para um café no Marquês, e propor-lhe estas palavras: “O nariz de Paul Gaughin seria o sítio ideal para Vincent van Gogh ter dado uma dentada.Mas não aconteceu nada”.

Ah, sinto que poderia escrever este diário para sempre.