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    169REVISTADECINCIASSOCIAIS, FORTALEZA, v. 43, n. 2, jul/dez, 2012, p. 169 - 178

    A ETNOGRAFIA UM MTODO, NO UMA MERAFERRAMENTA DE PESQUISA...

    QUE SE PODE USAR DE QUALQUER MANEIRA.

    Nesta edio da Revista de Cincias Sociaisapre-

    sentamos Entrevista feita com Jos Guilherme Cantor

    Magnani, Professor itular do Departamento de

    Antropologia e do Programa de Ps-graduao em

    Antropologia Social da Universidade de So Paulo

    (USP).

    Uma das principais referncias em Antropologia

    Urbana no Brasil, Magnani autor de Festa no pe-

    dao: cultura e lazer na cidade de So Paulo (Editora

    Brasiliense, 1984) e De perto e de dentro: notas para

    uma etnograa urbana (Revista Brasileira de Cincias

    Sociais, 2002), dentre outros trabalhos. organizador

    das coletneas Na metrpole: textos de Antropologia

    Urbana(Magnani et alliEdusp/FAPESP, 1996) eJovens

    na metrpole: etnograas de circuitos de lazer, encontro

    e sociabilidade(Magnani et alli, Editora erceiro Nome,

    2007). Na USP, Magnani coordenador do Ncleo de

    Antropologia Urbana (NAU/USP) e editor de sua re-

    vista eletrnica, Ponto.Urbe. ambm organizador do

    evento Graduao em Campo que rene, anualmente

    em So Paulo, jovens etngrafos de todo o pas.

    A entrevista foi realizada porJania Perla Digenes

    Aquino1, no primeiro semestre de 2012, ocasio em

    que, atendendo a um convite do Departamento de

    Cincias Sociais da Universidade Federal do Cear,

    Magnani esteve em Fortaleza, para ministrar Aula

    Inaugural no curso de graduao em Cincias Sociais.

    Jania:professor Magnani, eu gostaria de comear

    abordando a sua formao acadmica, a graduao em

    Cincias Sociais que o senhor cursou na UFPR, o mes-

    trado na FLACSO do Chile e o doutorado na USP.

    Magnani: isso mesmo, eu z graduao em

    Cincias Sociais na Universidade Federal do Paran,

    no nal dos anos 1960. Em razo de militncia no mo-

    vimento estudantil, respondi a um processo na justia

    militar e, condenado pela lei de segurana nacional,

    optei por sair do pas. Ainda assim, consegui terminar

    a graduao e colar grau, e decidi ir para o Chile, para

    onde auam, na poca, os perseguidos pela ditadura

    militar que eram recebidos pelo governo socialista

    de Salvador Allende. Na FLACSO (Faculdade Latino-

    Americana de Cincias Sociais), iniciei meus estudos

    de ps-graduao e, como no havia antropologia, es-

    colhi sociologia, sob a orientao do professor Emilio

    de Ipola que, por sua vez, fora aluno de Louis Althusser.

    Era a poca do boom do estruturalismo no marxismo,

    na literatura, lingustica e na antropologia e assim en-

    trei em contato com uma bibliograa a que no tive

    acesso na graduao. O tema da pesquisa - contos

    orais camponeses - foi sugerido por Emlio, porque

    era um tema tambm ligado conjuntura poltica do

    pas. Como se sabe, na perspectiva de determinados

    enfoques marxistas, os setores camponeses eram ti-

    dos como estruturalmente avessos mudana social;

    ento, ele sugeriu que eu zesse minha pesquisa com

    pequenos proprietrios no sul do Chile, para analisar

    sua ideologia, com base na semntica estrutural de A.

    J. Greimas e anlise de discurso de Michel Pcheux. A

    E N T R E V I S T A

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    170 REVISTADECINCIASSOCIAIS, FORTALEZA, v. 43, n. 2, jul/dez, 2012, p. 169 - 178

    A etnografia um mtodo...

    ideia era justamente identicar os ncleos de ideologia

    constitutivos da viso de mundo e do modo de vida

    desses camponeses e ver at que ponto havia brechas

    para aceitao de mudanas sociais radicais, como as

    propostas pelo socialismo. O resultado da dissertao,

    Os contos orais camponeses como produtos ideol-

    gicos, foi interessante, mas no tenho muita certeza

    sobre os desdobramentos polticos da pesquisa... Em

    decorrncia do golpe militar no Chile, tive que sair

    de l e fui para a Argentina, onde segui na FLACSO,

    agora como pesquisador, desenvolvendo pesquisa so-

    bre meios de comunicao de massa, em contato com

    Eliseo Vern. Continuei, portanto, com o estudo de

    ideologias. A essa altura, j estava mais claro meu in-

    teresse por cultura, cultura popular, anlise de discur-

    so. Enm, essa foi a trajetria de minha formao, da

    graduao at o mestrado. Em seguida, voltei para o

    Brasil e ingressei no Programa de Ps Graduao em

    Cincias Humanas da USP.

    Jania: no doutorado na USP, a professora Ruth

    Cardoso foi a sua orientadora.

    Magnani: sim, mas tambm procurei o Museu

    Nacional e a Universidade de Braslia, onde conversei

    com alguns professores. Mas terminei me acertando

    melhor na USP com Ruth Cardoso, que conhecia o

    ambiente intelectual do Chile onde me formei. Meu

    crescente interesse por cultura popular combinou bem

    com o que a Ruth estava trabalhando na poca, que

    eram os movimentos sociais urbanos na periferia. E eu

    escolhi um tema de cultura popular agora no contex-

    to urbano pouco estudado na cidade de So Paulo,

    que foi o circo-teatro.

    Jania:e sua tese, Festa no Pedao, se tornou um

    dos livros mais importantes da Antropologia urbana

    feita no Brasil.

    Magnani:bem, nem tanto assim... Mas que o re-

    corte era original, isso era, porque na poca, escolher

    um tema como esse, considerado irrelevante, era pou-

    co usual. Havia pessoas preocupadas com a poltica, o

    trabalho, os moradores de periferia e eu estudando uma

    forma de entretenimento popular, de lazer e, ainda por

    cima, circo-teatro ... No entanto, entre as disciplinas que

    frequentei, estava a da professora Marlyse Meyer, que

    era da Letras, sobre a formao do romance folhetim.

    Ento comecei a perceber que essa forma de dramatur-

    gia popular tinha razes no melodrama do sculo XIX,

    na Commedia dell Arte do sculo XVI e era uma forma

    atravs da qual as chamadas classes populares elabora-

    vam, no palco, aspectos e valores ligados a seu modo de

    vida: da o interesse do tema para a antropologia porqueia alm do mero entretenimento. Havia uma novidade

    a, era uma espcie de via de acesso para o entendimen-

    to do modo de vida dos moradores da periferia de So

    Paulo.

    Jania: em alguma medida, parece haver aproxi-

    maes entre o circo-teatro e os contos camponeses,

    seu tema no mestrado.

    Magnani:na verdade, no se afastava muito por-

    que o circo teatro uma forma de manifestao cultu-ral tradicional que circula no s em pequenas cidades

    do interior do Brasil, mas tambm pelas periferias dos

    grandes centros urbanos, como o caso de So Paulo.

    Ademais, servi-me de ferramentas da semntica estru-

    tural e da anlise de discurso em ambos os casos.

    Jania: eu lembro que o senhor mencionou em

    uma ocasio, pode ter sido em uma aula, que a Alba

    Zaluar teria sido sua colega no doutorado; esse dado

    interessante, anal Festa no pedao e A mquina e a

    revolta, dois livros referenciais nos estudos de antropo-

    logia urbana no pas, remetem a uma mesma turma de

    doutorado.

    Magnani: sim, fomos contemporneos, Alba foi

    orientanda da Eunice Durham e eu de Ruth Cardoso;

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    Jos Guilherme Cantor Magnani

    eu trabalhava com a periferia de So Paulo e ela com

    uma populao da periferia do Rio de Janeiro, na

    Cidade de Deus. Mas o foco de cada um foi diferen-

    te: ela se interessou pela questo da violncia e eu me

    centrei na questo do lazer, na forma como as pessoas

    utilizam o tempo livre. Foi uma questo de escolha, na

    antropologia a biograa de cada um e o percurso aca-

    dmico que vo desenhando as opes.

    Jania: depois de concludo o doutorado, o senhor

    comeou a lecionar na USP?

    Magnani:defendi o doutorado na Universidade

    de So Paulo no ano de 1982. Mas, um ano antes, fui

    convidado para dar aulas na UNICAMP, onde perma-

    neci por dois anos. Depois, a professora Eunice Durham

    me convidou para ir para a USP; fui entrevistado pe-

    los integrantes do Departamento de Antropologia ,

    na poca no havia ainda concurso, como z depois

    e assim, comecei a lecionar no Departamento de

    Antropologia da FFLCH da USP em 1983.

    Jania: observando sua produo, duas vertentes

    de discusses so proeminentes; uma delas a ques-

    to da antropologia urbana, a outra envolve as dis-

    cusses sobre o fazer etnogrco. Como que esses

    temas foram ganhando importncia na sua trajetria

    acadmica?

    Magnani: nos dois primeiros anos, dei aulas

    apenas na graduao; em seguida, fui credenciado

    para a ps-graduao e passei a ter orientandos que

    comearam a escolher temas sobre a questo urbana.

    Encaramos a cidade de So Paulo como um grande

    laboratrio de prticas culturais, sociabilidade, trocas

    simblicas. Era um desao que, claro, no dava para

    ser enfrentado de forma individual. Assim comecei a

    orientar projetos, inicialmente de mestrado, enquan-

    to desenvolvia minhas prprias pesquisas com nan-

    ciamento do CNPq; meus alunos comearam a fazer

    pesquisas de mestrado, iniciao cientca e, depois,

    doutorado com bolsas do CNPQ, CAPES e FAPESP.

    Meu primeiro projeto, com bolsa Produtividade em

    Pesquisa (1989/1991), tinha como ttulo Os pedaos

    da cidade e, entre outros objetivos, propunha-se a

    fazer uma espcie de experincia metodolgica com

    a categoria pedao que eu tinha trabalhado na pe-

    riferia. A pergunta era: existiam pedaos no centro?

    Na periferia o contexto era o bairro e a vizinhana;

    ser que esta categoria seria adequada para entender

    a dinmica urbana fora da periferia? Era um desao

    metodolgico e terico; ento eu e meus alunos, j no

    Ncleo de Antropologia Urbana (NAU/USP), come-

    amos a fazer incurses pela cidade para testar a cate-goria e nos demos conta que o pedao descrevia uma

    forma especca de sociabilidade e que a dinmica da

    cidade ia muito alm disso. Desta forma, a partir do

    prprio campo, mas em novos contextos, que sur-

    giram as demais categorias da familia: o trajeto, o

    circuito, a mancha, o prtico. Elas foram desenvol-

    vidas ao longo das etnograas, no campo da antropo-

    logia urbana, pois se a cidade me dava as questes, era

    preciso desenvolver ferramentas de anlise que dessemconta desses temas na cidade da So Paulo.

    Jania: ento suas pesquisas caminham a partir de

    experimentos com etnograas, em que algumas cate-

    gorias nativas vo se tornando categorias analticas;

    elas surgem em um certo contexto etnogrco, a o se-

    nhor vai experimentando em outro trabalho de campo

    e observando o seu rendimento. Algumas destas cate-

    gorias como pedao, circuito e mancha tm sido

    experimentadas por pesquisadores e estudantes nos

    mais diferentes contextos etnogrcos. Como o senhor

    pde ver na conferncia de ontem, seus textos fazem

    muito sucesso entre nossos alunos...

    Magnani:quei muito surpreso e bastante con-

    tente ao me deparar, ao trmino da palestra que eu

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    A etnografia um mtodo...

    dei aqui em Fortaleza, na aula inaugural do curso de

    Cincias Sociais em 2012, com a quantidade de per-

    guntas que os alunos zeram, justamente sobre a uti-

    lizao dessas categorias. Isso mostra que no apenas

    elas so utilizadas, mas continuamente testadas. No

    formam um conjunto fechado a ser aplicado de forma

    mecnica. Os alunos experimentam de uma maneira

    e se no d certo, a eles adaptam, ampliam, escolhem.

    Porque essas categorias podem ser utilizadas algumas

    vezes juntas, outra vezes separadamente ora o peda-

    o, ou o circuito, ou ainda o trajeto e o prtico e assim

    por diante. Vai depender da natureza do objeto da pes-

    quisa. Na verdade foram forjadas coletivamente; um

    trabalho do Ncleo de Antropologia Urbana ao longo

    de pesquisas feitas com alunos de graduao e ps-

    -graduao. Como categorias, elas so instrumentos de

    trabalho, esto sujeitas a modicaes e gosto quando

    vem um aluno e diz: professor, eu tive que fazer uma

    modicao. timo, porque signica que a teoria est

    viva, no est fossilizada, ela est sujeita aos estmulos

    que vm do campo.

    Jania: agora, pergunto sobre o Ncleo de

    Antropologia Urbana que o senhor coordena na USP;

    seria possvel contar como foi o surgimento do NAU e

    como ele funciona?

    Magnani:o Ncleo de Antropologia Urbana sur-

    giu de uma forma meio espontnea, quando eu come-

    cei a ter alunos de ps-graduao e tambm alguns de

    graduao, na iniciao cientca. Dei-me conta de

    que na universidade a forma de orientao na ps-gra-

    duao muito solitria, uma relao entre o orienta-

    dor e o orientando; o aluno pode debater com colegas,

    mas basicamente uma situao bastante isolada; ao

    propor uma rotina de intercambio mais sistemtico

    para discutir os projetos e o andamento das pesquisas,

    percebi que um espao mais institucionalizado de tro-

    ca seria muito produtivo. Ento, o ncleo surgiu com

    a necessidade de fazer uma espcie de orientao co-

    letiva. Claro que eu os atendia individualmente, mas

    percebi que, havendo temas em comum, ento alguma

    bibliograa podia ser lida por todos. Cada aluno lia o

    projeto do outro, era a leitura de um colega - s vezes,

    at mais exigente que a do orientador. Eu nunca quis

    formalizar o ncleo: o nome NAU evoca, metaforica-

    mente, a dinmica de uma embarcao que s vezes

    est em alto mar, e s vezes est no porto, sendo abaste-

    cido, reparado.... Quando os alunos esto em determi-

    nada fase da tese ou dissertao, eles desaparecem... e

    como no havia nenhuma necessidade burocrtica de

    funcionar, de tempos em tempos o NAU reua para o

    porto e cava ancorado. Mas quando surgia um est-

    mulo novo, era o sinal para fazer-se ao mar...

    Jania: e a revista Ponto Urbe, do NAU? Como

    que ela surge?

    Magnani: a revista surge em um momento em

    que o Ncleo se consolida. Neste ano, 2012, o Ncleo

    de Antropologia Urbana acaba de ser reconhecido pela

    Congregao da FFLCH como laboratrio, o que lhe

    permite um pouco mais de recursos, visibilidade e tal.

    Ao longo desse tempo l se vo mais de duas dcadas

    , foi possvel investir em algumas linhas de pesqui-

    sa que agora esto mais consolidadas. Por exemplo, os

    alunos que trabalham com a cultura e a lngua de si-

    nais (libras) ampliaram o leque de interesses, incluindo

    outras modalidades alm da surdez, como cegueira e

    autismo: o GESD, ou Grupo de Estudos da Surdez

    e da Deciencia. Membros de outra equipe que tra-

    balhava mais com a questo da cidade, comearam a

    se interessar pela chamada cultura de periferia que

    inclui grupos de rap, hip-hop, saraus literrios, sam-

    ba de raiz, etc. e forma um grande circuito na peri-

    feria de So Paulo. Um outro grupo de alunos, todos

    nisseis, comeou a estudar o movimento da volta dos

    dekasseguis, ao Brasil e logo ampliaram o objetivo,

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    Jos Guilherme Cantor Magnani

    inserindo o estudo na questo mais geral dos proces-

    sos migratrios contemporneos. O GERM Grupo

    de Estudos da Religio na Metrpole congrega tam-

    bm estudantes orientados por outros professores do

    Departamento. Por ltimo, temos o GEU, voltado para

    pesquisa com populaes indgenas em contextos ur-

    banos na Amaznia. um campo novo e resolvemos

    dar esse nome Grupo de Etnologia Urbana para

    frisar a novidade e o desao, pois estamos entrando

    numa seara nova e alheia... Em contato com etnlo-

    gos que estudam populaes amerndias nessa regio

    e tambm com gegrafos da Universidade Federal do

    Amazonas, procuramos estabelecer uma interlocuoda Antropologia Urbana, feita no contexto das gran-

    des metrpoles do Sudeste, com a realidade dos n-

    dios urbanos em cidades de outras escalas, na regio

    amaznica. Cabe ainda mencionar dois outros grupos

    do NAU, em fase de consolidao: o CyberNau, vol-

    tado para as novas tecnologias digitais, tanto como

    ferramentas de pesquisa como objeto de estudo e o

    NauConscincia, sobre uso de substancias psicoati-

    vas em processos teraputicos, no campo das religi-

    es ayahuasqueiras. Mesmo antes de termos todos

    esses grupos em atividade, percebemos a necessidade

    de um veculo mais institucionalizado de discusso e

    difuso, mas no restrito s pesquisas do NAU, e sim

    aberto para acolher trabalhos de outros pesquisadores

    de Antropologia Urbana. Ento, a revista Ponto Urbe

    surge com essa dupla nalidade: de ser um veculo de

    exteriorizao das nossas pesquisas em dilogo com

    pesquisadores de outras instituies. Sua periodicida-

    de semestral e j est em sua dcima primeira edio.

    Jania:j que o senhor mencionou a pesquisa da

    etnologia urbana, eu gostaria que falasse mais sobre

    essa passagem, na sua trajetria, de uma antropologia

    na cidade (que o senhor acentua que diferente de

    uma antropologia da cidade), para esta etnologia na

    cidade?

    Magnani: esse neologismo, Etnologia Urbana,

    como j armei, designa um campo novo de reexo

    e todos os desaos que acarreta. udo comeou com

    um convite que me foi feito pela professora Marta

    Amoroso, que da rea de etnologia indgena do nos-

    so Departamento e estava fechando um convenio da

    CAPES, o Procad, que permite um intercambio en-

    tre um programa de ps-graduao j consolidado

    e um outro em formao, no caso, o PPGAS da USP

    com o PPGAS da UFAM Universidade Federal do

    Amazonas. O projeto tinha como ttulo Paisagens

    amerndias: habilidades, mobilidade e socialidade nos

    rios e cidades da Amaznia e a participao do NAU

    era no sentido de trabalhar com os chamados ndios

    urbanos. Se a gente tomar, por exemplo, os dados do

    ltimo censo do IBGE, a presena da populao ind-

    gena em cidades signicativa: de um total de 896.900

    pessoas, 315.180, ou seja, 36,2%, vivem em cidades.

    Essa realidade no levada em sua devida conta ou en-

    to encarada do ponto de vista da excluso, ou seja,

    reduz os ndios a moradores de periferia, com todos os

    esteretipos: insero precria no mercado de traba-

    lho, localizao em reas de risco, desprovidas de equi-

    pamentos e servios urbanos, etc. Ento, resolvi fazer

    outras perguntas: o que cidade, a partir da cosmolo-

    gia dos vrios povos que a esto instalados? Que mo-

    dicaes sua presena acarreta na prpria dinmica

    urbana? Com quem estabelecem vnculos e alianas?

    Quais so seus trajetos na paisagem da cidade e que

    instituies acionam, para manter um modo de vida

    diferenciado? Ou seja, trata-se de encarar a presena

    dos ndios na cidade do ponto de vista da sua agncia,

    da sua forma de vida, de suas cosmologias. Eles dizem

    e fazem algo diferente; no so apenas migrantes que

    se dirigem cidade para poder arranjar algum tipo

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    A etnografia um mtodo...

    de recurso e sobreviver a duras penas: sua presena

    transforma a cidade. Esse era o desao e comeamos

    a trabalhar em Manaus, porque na capital a presena

    indgena signicativa, mas inclumos outras cidades

    da calha do Amazonas como Parintins e Barreirinha,

    onde predominam os Sater-Maw.

    Jania: todos os anos o senhor tem se empenhado

    na organizao do Graduao em Campo. O ttu-

    lo deste evento assinala a sua preocupao em iniciar

    os alunos no trabalho de campo, j na graduao. Por

    que?

    Magnani: esta , sem dvida, uma postura que te-

    nho adotado h algum tempo, a de valorizar o trabalho

    de campo na graduao. Normalmente os institutos de

    fomento valorizam a ps-graduao, e o trabalho aca-

    dmico contabilizado pela produo, participao

    em eventos, pelo nmero de teses e dissertaes orien-

    tadas, etc. E o trabalho com a graduao no valo-

    rizado. Nossos alunos muitas vezes cam sem espao

    para discusses que vo alm da formao bsica. Se

    voc pensar, por exemplo, nos encontros da ABA, da

    ANPOCS, dicilmente um aluno de graduao tem

    espao para expor o seu trabalho; no mximo, eles

    conseguem cinco minutos para apresentar um pster.

    Penso que esses menino(a)s precisam dispor de um es-

    pao para discutir seriamente os seus CCs, os seus

    relatrios nais de pesquisa e tal. Mas com dignida-

    de, para sentirem que no so convidados incmodos

    no evento. Ento, comecei a organizar o Graduao

    em Campo que j tem dez anos de funcionamento.

    Primeiro, abri para os alunos de uma disciplina que

    dou no Curso de Cincias Sociais, chamada Pesquisa

    de campo em Antropologia. Havia trabalhos de con-

    cluso muito criativos e o risco era terminarem na ga-

    veta do professor, sem nenhuma visibilidade. Ento,

    tive a ideia de organizar um frum para que os alu-

    nos pudessem expor os trabalhos, discutir, ouvir

    comentrios sobre suas pesquisas e tal. E hoje recebe-

    mos alunos do Brasil inteiro. H tambm o cuidado de

    estabelecer uma ponte com a ps-graduao, porque

    quem comenta os trabalhos so mestrandos e douto-

    randos do PPGAS, e os alunos de graduao se sentem

    valorizados porque um ps-graduando leu e comenta

    seu trabalho. So quatro dias de trabalho; a abertura

    feita por um antroplogo de renome, e graticante

    observar a presena de estudantes vindos de todas as

    partes do Brasil, para muitos dos quais uma oportu-

    nidade de conhecer a USP e a prpria cidade de So

    Paulo.

    Jania:retomando o tema da sua produo, gosta-

    ria que o senhor falasse sobre sua tese de livre docente,

    Da periferia ao centro: trajetrias de pesquisas em an-

    tropologia urbana em So Paulo, que uma espcie de

    antropologia da antropologia, no ?

    Magnani: um pouco isso. Como voc sabe, as

    teses de livre docncia tm dois formatos: elas podem

    ser apresentadas com base numa pesquisa indita ou

    ento pode ser uma espcie de releitura de trabalhos

    feitos pelo pesquisador ao longo de sua carreira. Eu

    z uma coisa intermediria, tentei construir uma re-

    exo sobre o surgimento da antropologia urbana na

    Universidade de So Paulo a partir da contribuio

    da minha orientadora Ruth Cardoso, da professora

    Eunice Durham e da professora Gioconda Mussolini.

    So trs pesquisadoras e professoras cujo trabalho foi

    decisivo na constituio da antropologia urbana, den-

    tro do debate entre a Escola Livre de Sociologia Poltica,

    tributria da Escola de Chicago e a ento Faculdade de

    Filosoa Cincias e Letras (que recebeu a misso fran-

    cesa, com Claude Lvi-Strauss, Roger Bastide, e ou-

    tros), onde comearam as cincias sociais na USP. Era

    um ambiente intelectual muito estimulante e num pri-

    meiro momento, eu historio essa formao, mostrando

    a originalidade da proposta de Ruth Cardoso e Eunice

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    175REVISTADECINCIASSOCIAIS, FORTALEZA, v. 43, n. 2, jul/dez, 2012, p. 169 - 178

    Jos Guilherme Cantor Magnani

    Durham, e a abertura que deram a seus alunos, entre

    os quais me incluo. Foi toda uma gerao de orientan-

    dos que consolidou uma reexo sobre a antropolo-

    gia urbana no s em So Paulo, mas no Brasil, pois

    elas formaram muitos alunos que hoje esto em vrias

    universidades. Essa foi a primeira parte da tese; em

    seguida mostro como, a partir da minha prpria pes-

    quisa, a partir do lazer, abri o campo para os trabalhos

    dos meus alunos. A segunda parte da tese (que agora

    virou livro, Da periferia ao Centro: trajetrias de pes-

    quisa em Antropologia Urbana, publicado pela editora

    erceiro Nome) faz um apanhado de trs pesquisas:

    uma sobre religies contemporneas na cidade de So

    Paulo, outra sobre os surdos e nalmente sobre jovens;

    trs temas desenvolvidos no Ncleo de Antropologia

    Urbana. Por m, fao uma reexo metodolgica so-

    bre o fazer etnogrco. A tese, ento, contempla a his-

    tria, a pesquisa e termina com metodologia.

    Jania:a discusso sobre o fazer etnogrco um

    tema recorrente nos seus textos; eu gostaria que o se-

    nhor falasse sobre o que motiva ou inspira essa reexo.

    Magnani:comecei por notar o uso, muito redu-

    cionista, que se faz da etnograa, em outras reas. No

    ltimo artigo que escrevi para a revista Horizontes

    Antropolgicos, cito na introduo um trechinho que

    hilrio. Prossionais de pesquisa de mercado e de

    marketing dizem que fazem etnograa para detectar a

    pauta de consumo da classe C e D. Uma pessoa desse

    ramo concedeu entrevista para o jornal Folha de So

    Paulo e na entrevista para o jornalista, soltou a seguinte

    denio de etnograa: Etnograa uma espcie de

    estgio na favela. para rir (ou chorar), no ? pre-

    ciso ressaltar que a etnograa um mtodo, no uma

    mera ferramenta de pesquisa, pronta, que se pode usar

    de qualquer maneira. Como mtodo, foi forjada pela

    antropologia ao longo da sua formao e no pode ser

    utilizada, sem mais, ignorando os diferentes contextos

    tericos que lhe do fundamento. Se no, ela passa de

    mtodo a ferramenta, sendo empregada de maneira

    trivial, rasa. Isso no quer dizer que outras reas no

    possam utilizar e se apropriar do nosso mtodo de tra-

    balho, mas com o devido cuidado; do contrrio, perde

    consistncia. A expresso observao participante,

    ento, virou lugar comum; qualquer ida a campo vira

    observao participante. Os prossionais de outras re-

    as precisam entender que para produzir uma etnogra-

    a, preciso antes conhecer as boas etnograas que

    j foram feitas. Nesse artigo que escrevi na Horizontes

    Antropolgicosdistingo entre a prtica etnogrca

    e a experincia etnogrca. A prtica etnogrca a

    parte que os alunos menos gostam, porque implica fa-

    zer o projeto, consultar a bibliograa, ir a campo mes-

    mo quando no ocorre nada de interessante, seguir o

    cronograma. No entanto, a parte que, de certa manei-

    ra, permite que haja uma pesquisa ao longo do tempo.

    Seguindo direitinho o roteiro e estando equipado com

    essa perspectiva, possvel ento que ocorra o outro

    lado, que o considerado mais interessante, o insight, a

    experincia etnogrca, o encontro com o outro. Mas

    no d para separar um do outro, achar que a parte da

    prtica etnogrca o lado burocrtico e pensar que

    vai se ter insight, logo de cara, assim, por alguma ins-

    pirao. Ento, acho que a etnograa o resultado des-

    se dilogo entre as duas atitudes, uma que a prtica

    cotidiana, exige empenho e dedicao ao campo, e a

    outra, para a qual preciso estar atento para no deixar

    passar aquele momento meio mgico que a sacada.

    Jania: o caderno de campo parece ser uma ferra-

    menta importante nesse processo. Em um artigo na

    Ponto Urbe o senhor observa que os antroplogos

    mobilizam esta logstica de diferentes modos: alguns

    utilizam cadernetinhas, outros preferem o note-book...

    Mas que o importante seria o processo subjacente ao

    uso do caderno, de elaborao ou sistematizao em

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    A etnografia um mtodo...

    torno da experincia de contato com a alteridade...

    Magnani: o velho e bom caderno de campo,

    nosso instrumento, que cabe no bolso; claro que hoje

    temos gravador como este que voc est usando, h o

    recurso de lmar, de gravar entrevistas com celular,

    bem discreto, mas nada substitui aquela conversa ou

    observao que se prolongam, so interrompidas, so

    retomadas. Como arma Geertz, preciso combinar

    o estar l e o escrever aqui; o momento da obser-

    vao exige a transcrio. uma prtica que eu fao

    rotineiramente e recomendo aos alunos: vo a campo,

    observem tudo, anotem, treinem o olhar e o ouvido;

    de volta casa e, com base nas observaes mesmo

    fragmentrias do caderno de campo, passem tudo a

    limpo. D-se uma ordem a essas observaes; ainda

    uma ordenao cronolgica, no preciso nenhuma

    grande interpretao terica... Assim, distingo relato

    de campo e notas do caderno de campo. Esse processo

    permite uma primeira ordenao, uma narrativa dos

    dados de campo; e, da leitura do corpus mais alentado

    destes relatos, que vo aparecer os famosos insights,

    comeam a surgir as linhas de interpretao, de ree-

    xo, e o trabalho de campo ca prazeroso. Como se

    sabe, no se vai a campo com uma teoria j pronta, sem

    estar disposto a ser afetado, como hoje se diz. E este

    ser afetado tambm aparece no caderno, depois no

    relato e, ainda, na monograa nal.

    Jania: em relao a parcerias acadmicas, neste

    momento, quais so as principais parcerias e trocas in-

    terinstitucionais que o senhor mantm?

    Magnani:atualmente, coordeno um G de antro-

    pologia urbana na ABA, Etnograas Urbanas: frontei-

    ras e diversidades. No plano internacional, fao parte

    de uma rede Brasil-Portugal, que congrega interessa-

    dos na questo urbana. Esta rede se prope a conec-

    tar pases lusfonos; iniciamos com Brasil e Portugal

    e estamos ampliando agora para pases africanos de

    lngua portuguesa. Essa parceria conta com o professor

    Carlos Fortuna, de Coimbra, e na USP participamos

    eu, Heitor Frgoli, Fraya Frhese; de Alagoas, Rogrio

    Proena da UFAL, e aqui em Fortaleza, a professora

    Irlys Barreira, alm de outros pesquisadores de vrias

    outras instituies. Formamos um grupo que se en-

    contra de tempos em tempos para poder discutir pes-

    quisas sobre a cidade e os resultados foram publicados

    em duas coletneas. Outro tipo de trabalho conjunto,

    que considero como parceria, com meus ex-alunos

    que foram aprovados em concursos em vrias univer-

    sidades. Silvana Nascimento est na Paraba, atual

    coordenadora da ps-graduao, no campus da UFPB

    do Rio into. Antnio Maurcio est em Belm, Luiz

    Henrique de oledo em So Carlos, Cima Bevilqua

    em Curitiba, Elizete Schwade em Natal. Eles fazem

    parte do NAU ampliado: zeram suas prprias es-

    colhas, construindo parcerias, mas a gente procura

    manter o esprito do Ncleo, compartilhando reexes

    e atividades.

    Jania: na opinio do senhor, quais so as dis-

    cusses mais fascinantes do debate antropolgico

    contemporneo?

    Magnani:dentro de meu campo, que antropo-

    logia urbana, penso que h uma contribuio com a

    qual podemos dialogar num contexto mais amplo. Nas

    pesquisas de etnologia indgena, essa contribuio j

    reconhecida, mas acho que est na hora de a antropolo-

    gia urbana tambm participar dos dilogos internacio-

    nais, porque h especicidades decorrentes de nossos

    recortes empricos e escolhas terico-metodolgicas.

    Retomo nossa incurso s cidades mdias e pequenas

    da Amaznia. uma tentativa de sair dos recortes di-

    tados pela escala das grandes metrpoles, como faze-

    mos habitualmente em cidades do Sudeste e capitais do

    Nordeste. Essas cidades, nas calhas dos rios amazni-

    cos, tm uma dinmica prpria, e esto a exigir novos

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    Jos Guilherme Cantor Magnani

    investimentos, experimentos e pesquisas. Acabamos

    de publicar um livro na coleo Antropologia Hoje,

    da Editora erceiro Nome; um texto de Michel Agier

    em que ele trabalha com acampamentos e grupos de

    refugiados. Esses movimentos de populao so vistos

    como ameaa, mas o fato que esto chegando s cida-

    des, integram a rede urbana. No d mais para pensar a

    cidade isolada; preciso encarar sistemas de cidades e

    a agncia de novos atores sociais que entram em conta-

    to no apenas com o contexto urbano em suas circuns-

    cries geogrcas, mas com a urbanidade atravs da

    internet, dos meios de comunicao. As redes, virtual

    e presencial, se comunicam; da a atualidade da cate-

    goria de circuito ao permitir identicar trajetos que

    transcendem o espao fsico.

    Jania:ontem, quando proferia a aula inaugural do

    nosso curso aqui na UFC, o senhor ressaltava esse mo-

    vimento interessante que est ocorrendo nas cincias

    sociais da Europa, que a apropriao de reexes e

    categorias de anlise da Escola de Chicago, mencio-

    nando que esta apropriao est relacionada a simila-

    ridades entre o atual panorama urbano na Europa e a

    cidade de Chicago na primeira metade do sculo XX.

    O senhor poderia falar mais sobre este movimento?

    Magnani: chama mesmo a ateno o fato de a

    Escola de Chicago, que tirando Erving Goffman e

    as leituras de Foot-White em Sociedade de Esquina-

    esteve de quarentena depois dos anos sessenta, volte a

    inspirar estudos de questes urbanas na Europa. Esse

    retorno tem a ver com a intensicao dos processos

    migratrios, com a visibilidade de jovens oriundos de

    famlias das ex-colnias, agora cidados com plenos

    direitos. Eles so franceses, por exemplo, mas exibem

    um ethos diferente, uma religio diferente, uma cor di-

    ferente e at roupas diferentes. Como pensar essa situ-

    ao, que evoca a de Chicago nos anos 1920? Formam

    guetos, renem-se em sociedades de esquina? Este

    revival termina por valorizar o que a antropologia bra-

    sileira tem produzido, pois muitos fenmenos urbanos

    que so novidade na Europa, aqui so conhecidos de

    longa data: conhecemos a Escola de Chicago desde

    os anos 1930; j elaboramos categorias para analisar

    esses problemas. A rede Brasil-Portugal, mencionada

    anteriormente, uma tentativa de encontrar similari-

    dades entre o que pesquisamos no Brasil e na Europa,

    e tambm de comparar a forma como conduzimos as

    pesquisas, c e l. Neste caso, tratamos mais das experi-

    ncias ligadas a Portugal e Espanha, mas vejo possibili-

    dades de ampliar em muitas vias esses dilogos.

    Jania:nos ltimos anos, aqui no Brasil, ns temos

    lido com entusiasmo alguns autores que no se pode

    considerar componentes de uma escola, mas que apre-

    sentam anidades em relao a preocupaes relacio-

    nadas ao trabalho de campo e s linguagens conceituais

    consagradas nas cincias humanas. Estou falando de

    Roy Wagner, Marilyn Strathern, Bruno Latour, Alfred

    Gell, dentre outros, que por falta de denominaes

    mais precisas, costumam ser associados antropo-

    logia simtrica. Qual a importncia desta bibliograa

    em suas pesquisas atuais?

    Magnani: essa literatura est bem em moda, e

    nem muito nova; cabe lembrar que um dos textos

    atualmente em alta, A inveno da cultura, de Roy

    Wagner, foi publicado em 1974. Em todo caso, estou

    trabalhando com um desses autores. No foi um dos

    que voc citou, im Ingold, cujas preocupaes e

    encaminhamentos analticos tem ajudado a pensar

    a presena indgena na cidade. Ele tem como base a

    sua etnograa com caadores e coletores da Lapnia e

    comeou a ampliar a reexo sobre habilidades, mo-

    dos de estar, maneiras de habitar. Comeamos com o

    livro Te perception of environment, que uma co-

    letnea de artigos; depois Lines... E interessante no-

    tar que Ingold desenvolve anlises muito prximas a

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    A etnografia um mtodo...

    algumas que norteiam nosso trabalho. No caso dos

    Sater Maw em Manaus e cidades vizinhas , no se

    trata simplesmente de uma presena, e justamente em

    bairros perifricos: eles circulam, estabelecem circuitos

    entre as aldeias urbanas e as das erras Indgenas, esta-

    belecem alianas com outros atores sociais, etc. Ento

    isso; esta a forma como incorporamos um desses

    autores de moda. Penso que esta literatura a que voc

    se refere abre boas perspectivas desde que permita

    ampliar os horizontes de nossas pesquisas. O perigo

    uma certa empolgao que se traduz num uso descon-

    textualizado, sem as devidas mediaes. O resultado

    que as discusses inovadoras, que poderiam abrir

    perspectivas no campo, acabam atrapalhando, no vo

    alm do modismo.

    Jania: para nalizar a entrevista, pergunto se h

    alguma atividade intelectual que senhor ou o NAU es-

    teja desenvolvendo que ns no contemplamos ainda e

    que o senhor considera importante ressaltar?

    Magnani:olha, alm do que voc perguntou, cabe

    mencionar que mantemos um site, espcie de portal

    do que a gente faz no Ncleo de Antropologia Urbana.

    Atualmente, estou dando uma assessoria para o Museu

    do Futebol, situado em dependncias do Estdio

    do Pacaembu. As diretoras desse museu, Daniela

    Amaral e Clara Azevedo, so integrantes do Ncleo de

    Antropologia Urbana, e esto conduzindo um extenso

    levantamento de orientao etnogrca sobre futebol

    de vrzea na cidade. A ideia evitar uma prtica mu-

    seolgica convencional e fazer do Museu do Futebol,

    que tem grande apelo de pblico (juntamente com o

    Museu da Lngua Portuguesa um dos mais visita-

    dos), um espao interativo, dotando-o de um banco de

    dados, fazendo dele um centro de referncia histrico

    e de pesquisa. Nessa perspectiva, mais que um lugar

    de guarda de trofus, camisas, cnticos, fotograas,

    etc. um espao onde o futebol visto como locus de

    sociabilidade, uma via de acesso a formas especicas

    da dinmica urbana. Esta assessoria est ligada a ou-

    tro objeto de pesquisa (tema da dissertao de outro

    integrante do NAU, Rodrigo Chiquetto) que um tor-

    neio de futebol amador em Manaus, o Pelado. Dele

    participam indgenas numa chave especial, e o que te-

    mos visto que no se trata de mero entretenimento;

    no apenas uma modalidade de lazer, pois na hora

    de formar os times h toda uma discusso sobre quem

    e quem no ndio, se tal ou qual time tem branco,

    etc. Ou seja, um momento de visibilidade, de con-

    trovrsias, disputas, para alm, das quatro linhas... Na

    verdade, h outras atividades e linhas de pesquisa em

    andamento no NAU, mas j est na hora de concluir e

    gostaria ento de enfatizar que o que realmente mobi-

    liza a perspectiva de estar sempre experimentando. A

    antropologia deve estar atenta s prticas dos atores so-

    ciais, criativos em seus arranjos: ento, o pesquisador

    tem que ser criativo, tambm. Como j dizia Mariza

    Peirano, a antropologia a mais artesanal e a mais pre-

    tensiosa das cincias sociais porque, com seu mtodo

    tradicional, a etnograa, com instrumentos como a

    observao participante, etc. sente-se vontade em te-

    mas to ambiciosos como o sagrado, a poltica, a cos-

    mologia, a organizao social...

    * * *

    Nota

    1 Doutora em Antropologia Social pela USP. Professora doDepartamento de Cincias Sociais e do Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFC.

    Rebecido para publicao em junho / 2012. Aceito em julho / 2012