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Razão & Sensibilidade: Experiência em Redação Jornalística Autor: Gerson Dudus Resumo Este trabalho tem o objetivo de compartilhar uma experiência pedagógica em Redação Jornalística. Propõe o estudo de outras narrativas jornalísticas que não o lead/pirâmide invertida, mormente as que produzem uma hibridização entre literatura e jornalismo. O novo jornalismo, o jornalismo literário, o jornalismo narrativo, o gonzo jornalismo, com suas correspondentes reportagens-conto, reportagens-ensaio, perfis e entrevistas em profundidade são os modelos. Esta experiência está sendo aplicada do quinto ao oitavo semestre nas turmas de jornalismo da Faculdade de Filosofia de Campos, no Centro Universitário Fluminense, em Campos dos Goytacazes, desde 2003. Palavras-chave Atividades pedagógicas – linguagens jornalísticas – literatura e jornalismo A Gênese A comunicação tem passado a representar o cerne das discussões no mundo contemporâneo. Com essa guinada, o próprio ensino em Comunicação teve que se adequar às mudanças advindas pelas novas tecnologias da comunicação, pelas questões políticas e sociais que as mega-corporações de comunicação levantam, etc. Como nos diz Michel Serres, filósofo francês que pensa a comunicação profundamente, "(...)a concepção, a construção, a produção dos contatos, das relações, dos transportes, da comunicação em geral evoluem tão rápido que constróem incessantemente, em tempo real, um novo mundo"(Luzes 2003) Esse novo mundo se engendrando afeta o currículo da Comunicação Social, que está sempre em transformação. No caso do

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Page 1: Razão & Sensibilidade

Razão & Sensibilidade: Experiência em Redação Jornalística Autor: Gerson Dudus

Resumo

Este trabalho tem o objetivo de compartilhar uma experiência pedagógica em Redação

Jornalística. Propõe o estudo de outras narrativas jornalísticas que não o lead/pirâmide

invertida, mormente as que produzem uma hibridização entre literatura e jornalismo. O novo

jornalismo, o jornalismo literário, o jornalismo narrativo, o gonzo jornalismo, com suas

correspondentes reportagens-conto, reportagens-ensaio, perfis e entrevistas em profundidade

são os modelos. Esta experiência está sendo aplicada do quinto ao oitavo semestre nas turmas

de jornalismo da Faculdade de Filosofia de Campos, no Centro Universitário Fluminense, em

Campos dos Goytacazes, desde 2003.

Palavras-chaveAtividades pedagógicas – linguagens jornalísticas – literatura e jornalismo

A Gênese

A comunicação tem passado a representar o cerne das discussões no mundo

contemporâneo. Com essa guinada, o próprio ensino em Comunicação teve que se adequar às

mudanças advindas pelas novas tecnologias da comunicação, pelas questões políticas e sociais

que as mega-corporações de comunicação levantam, etc. Como nos diz Michel Serres, filósofo

francês que pensa a comunicação profundamente, "(...)a concepção, a construção, a produção

dos contatos, das relações, dos transportes, da comunicação em geral evoluem tão rápido que

constróem incessantemente, em tempo real, um novo mundo"(Luzes 2003)

Esse novo mundo se engendrando afeta o currículo da Comunicação Social, que está

sempre em transformação. No caso do curso na Faculdade de Filosofia de Campos(Fafic), pela

alteração do curso anual para semestral, e também por mudanças no Projeto

Pedagógico.Assim, em 2003, começo a ministrar a matéria Redação Jornalística separada de

Língua Portuguesa – matéria à qual até então esteve vinculada, com professores de formação

em Letras ministrando-a. Agora, seu estudo estaria voltado especificamente para as questões

do jornalismo. A matéria toma todos os semestres ‘profissionalizantes’, do quinto ao oitavo.

Mas vou me ater às experiências com os três primeiros semestres. Logo que assumo a cadeira,

percebo que outra matéria, Técnicas de Reportagem, tem muitos pontos de contato com

Redação Jornalística. Em conversas com o professor de Técnicas de Reportagem, também

Coordenador do Curso de Jornalismo, proponho me concentrar nas outras possibilidades

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narrativas do jornalismo, já que na matéria citada o teor está respaldado no modelo de

jornalismo que se encontra na mídia. Ele concorda. Assim começo.

O Conceito

Razão e Sensibilidade é o primeiro romance publicado de Jane Austen, escritora

celebrizada pela precisão de detalhes e pela ironia com que descreve a vida provinciana na

Inglaterra, foi escrito em 1797. Contrapõe as emoções exageradas de Marianne à prudência de

Elinor, num mundo regido pelo dinheiro. A versão para o cinema, assinada pela atriz Emma

Thompson(Elinor), com Kate Winslet(Marianne) e dirigido por Ang Lee, recebeu Oscar de

melhor roteiro adaptado(1995). Elinor e Marianne – a racionalidade e a emoção, tão

tensionadas nas vidas das duas irmãs do romance, podem caminhar juntas.

O título deste trabalho quer demonstrar a possibilidade do jornalismo contemporâneo

poder se tornar melhor, aliando ao seu tradicional modelo fundamentado na notícia e sua

fôrma (lead e pirâmide invertida) outras formas narrativas que também são jornalismo (novo

jornalismo, gonzo jornalismo, jornalismo narrativo).Este é o desafio para uma outra narrativa

jornalística que respeite o acontecimento, a complexidade do humano e do mundo,

informando com profundidade.

Batismo de fogo

O primeiro semestre desta experiência em Redação Jornalística apresenta aos alunos

do quinto período a ementa e a proposta da mudança conceitual da matéria. Eles se sentem

desafiados e ameaçados ao mesmo tempo. Não conhecem aquilo que a matéria propõe, só

tinham tomado contato com o lead, como no jornalismo impresso convencional.

Começo por mostrar as diversas escritas jornalísticas presentes no jornalismo diário:

informativa, interpretativa, opinativa, investigativa. A amostragem vai à fonte das outras

narrativas jornalísticas – como o novo jornalismo, o jornalismo literário ou jornalismo

narrativo, o gonzo jornalismo. O primeiro exercício é a leitura do Caderno da Comunicação da

Prefeitura do Rio, totalmente dedicado ao New Journalism. Eles lêem pequenos excertso dos

grandes nomes com John Hersey, Truman Capote, Tom Wolfe, e os nossos Euclides da Cunha,

Ivan Ângelo, Gianni Carta. Também tomam contato com as discussões e propostas teóricas de

pesquisadores como Cremilda Medina, Edvaldo Pereira Lima, Dimas Kunsch.

Proporciono uma pequena história crítica do padrão de jornalismo pautado pelo lead e pela

pirâmide invertida. Falo do jornalismo literário, remetendo a Euclides da Cunha, João do Rio e

Lima Barreto, no nosso caso, as raízes do estilo. Depois, falo da história do lead e da pirâmide

invertida, enfocando suas razões mercadológicas, políticas, tecnológicas. E sua lógica

particular, que descende de uma certa tradição científica, o racionalismo cartesiano.

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Nas aulas seguintes, passo a considerar as mudanças de cosmovisão que a realidade

em que estamos vivendo está atravessando. Falo da mudança de paradigma científico,que

muda o mundo e os modos de pensá-lo . É que o paradigma clássico tinha como trindade o

primado da ciência, da experiência e da razão. Ele defendia a idéia do homem como

dominador do planeta, já que a ciência – sua filha – resolveria todos os principais problemas

humanos. Ele era determinista – com Newton, o mundo passa a ser visto como uma grande

máquina regida por leis fixas e invariáveis, bastando conhecê-las para manipulá-las. Esse

aspecto mecanicista das ciências físicas passa para as humanas, donde os behaviorismos e

outras correntes criadas para conduzir a homem e sociedade.

Então acontece a física moderna, que vira de ponta-cabeça este modelo mecanicista

da natureza. A teoria da relatividade, mexendo com nossa visão de tempo e também de

espaço; a física quântica , encontrando no mundo subatômico coisas difíceis de aceitar como o

comportamento dual da matéria – ora partícula, ora onda, que mexe com nosso conceito de

identidade. Outra coisa: descobre-se que o observador está incluído, faz parte do que descreve

e em certo sentido, a observação só acontece nessa conexão entre observador e objeto . Vai

pelo ralo a neutralidade do observador. Descrição objetiva também. Incerteza passa a ser uma

palavra científica, impensável para a ciência do século XVIII.

As mudanças são muitas: de sujeito e objeto para sujeitos intercondicionantes num

processo de reversibilidade; de causa e efeito para a de intercausalidade, rede de forças

interagindo; de universo sólido a universo poroso como enxame ou redemoinho; de substância

e acidente para a relação complexa; do certo e errado para a coerência, encaixe e sustentação

no todo. Tudo isso e muito mais, deu origem ao pensamento da complexidade, já que o

mundo não se mostrou tão previsível quanto a ciência clássica desejava.

Assim é que, se a base científica mudou, é preciso também que a narrativa jornalística

mude. A visão da ciência do séc XVIII, como detentora da verdade, que a nova ciência nem

considera mais desta forma, precisa ser revista também no jornalismo em sua busca pela

verdade.O método científico, impessoal, imparcial, neutro, que o lead se propôs ser não dá

conta deste (novo) mundo que a ciência contemporânea trouxe à tona:

"O menor vírus da AIDS nos faz passar do sexo ao inconsciente, à África, às culturas de células, ao DNA, a São Francisco, mas os analistas os pensadores, os jornalistas e todos aqueles que tomam decisões irão cortar a fina rede desenhada pelo vírus em pequenos compartimentos específicos, onde encontraremos apenas ciência, apenas economia, apenas representações sociais, apenas generalidades, apenas piedade, apenas sexo."(Jamais Fomos Modernos- Bruno Latour pg. 8)

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Bruno Latour demonstra que cada fato é uma rede que interliga vários estratos do saber e da

vida, não sendo possível compreender a tessitura do mundo sem construir um sentido, e isso

se faz aprofundando o fato com seu quadro contextual, seus antecedentes e consequentes.

Depois disto, vêm as aulas específicas sobre os estilos jornalísticos elencados, com leituras de

textos dos melhores autores de cada modelo. E começo a exigir a produção de textos a partir

das principais características destes outros jornalismos, que contrastam com o padrão

jornalístico em voga na mídia. O primeiro exercício, que se coaduna com a necessidade do

retorno da subjetividade no texto – defendido pelo jornalismo literário, novo jornalismo,

gonzo jornalismo, é a proposta de produzirem um perfil. Mas não um perfil de outra pessoa: o

desafio é produzir um auto-perfil. Explico o que é um perfil, dou textos para leitura de perfis

produzidos por Joel Silveira e Gay Talese, e pela revista Realidade. Reitero que são textos

jornalísticos que quero, com dados e fatos sobre o perfilado. Os textos produzidos são na

média pouco expressivos, mas começam a demonstrar a tentativa de superação do neutro e

insípido que se tornou o jornalismo diário.

O segundo exercício é o dos afetos: falar sobre amor ou morte – narrar um relacionamento

afetivo contemporâneo ou entrevistar alguém que tenha tido uma perda importante. Leio

crônicas de Luis Fernando Veríssimo, um texto do Marcos Faerman sobre a subjetividade do

jornalista, um de Claudio Abramo sobre o que é informação jornalística. Aqui, eles conseguem

se soltar um pouco mais e produzem belos textos.

O terceiro exercício é uma pesquisa sobre o jornalismo gonzo e a produção de um texto nesse

estilo. E, quando voltam com os resultados, ficam absolutamente escandalizados com este tipo

de narrativa jornalística, dificilmente produzem um bom texto gonzo. É que o gonzo é o

paroxismo das propostas do retorno da subjetividade e da derrubada dos mitos da

neutralidade e imparcialidade. Depois da pesquisa, leio com eles um texto do criador do estilo,

Hunter Thompson, e demonstro como ele está fazendo jornalismo, com uma apuração bem

feita e uma edição idem.

O desenvolvimento

O sexto semestre começa com a tarefa de dar mais subsídios práticos para a tarefa da escrita

de um jornalismo de profundidade, da pauta, captação até edição. Utilizo o livro fundamental

de Edvaldo Pereira Lima, Páginas Ampliadas, o Ricardo Noblat de ‘A arte de fazer um jornal

diário’.

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Na primeira vez (2003), os exercícios são a produção de um texto sobre a rua em que

vivem, o que eu chamo de reportagem-conto. Afinal, a rua onde vivemos é o contexto

imediato de cada um. E é um teste para a capacidade de observação dos detalhes que passam

despercebidos na correria diária. Um novo exercício de sensibilidade. Os textos que

acompanham este exercício vêm de João o Rio, ‘ A alma encantadora das ruas’ – falando das

ruas do Rio no século XIX, e de Eduardo Fenianos, ‘O urbenauta’ – falando das ruas de São

Paulo no século XX.

A partir do segundo ano em que dou esta matéria(2004), percebo a necessidade

enfocar mais detalhadamente o que é um conto e o que é um ensaio.Começo a dar aulas

específicas sobre isso e exercícios de criação de contos e ensaios, antes de exigir a reportagem

conto ou a reportagem-ensaio deles. E percebo claramente que, na média, os textos das

reportagens melhoram.

A leitura exigida para o sexto semestre é a de qualquer livro-reportagem, dando como

referência a Coleção Jornalismo Literário, da Companhia das Letras. Nomes como Gay Talese,

Ryzyard Kapucinski, Joel Silveira, Zuenir Ventura são fundamentais. Eles preparam um

seminário sobre cada um dos livros lidos. Peço para haver bastante diversidade na escolha,

com o mínimo de títulos repetidos para a apresentação em grupos de cinco integrantes, no

máximo. Neste ano de 2005, eles produziram ótimas apresentações – principalmente as do

Hiroshima (John Hersey) e do Fama & Anonimato(Gay Talese).

Uma deriva

No sétimo semestre aprofundo a discussão das relações entre Jornalismo e Literatura,

através da obra de Cremilda Medina ‘A arte de tecer o presente’ e do caderno ‘Jornalismo e

Literatura’, de Gustavo de Castro e Alex Galeno. Em 2005, pude contar com a substancial ajuda

do ‘Pena de Aluguel’, da Cristiane Costa, com uma ótima e profunda discussão dessas relações

e dos híbridos que ela criou: a crônica, o romance-reportagem, por exemplo.

Também começo uma discussão sobre o documentário contemporâneo brasileiro,

passando desde ‘Cabra Marcado para Morrer’, até ‘Edifício Master’, de Eduardo Coutinho,

desde ‘Ônibus 174’ até ‘Nelson Freire’ou ‘Fé’.Depois de cada um discutíamos a linguagem, a

construção do documentário, e o jornalismo de profundidade inserido em suas narrativas.

Discuto também a linguagem do jornalismo de televisão, com especial atenção para a

videorreportagem e o videorrepórter. Ambas como novas formas narrativas jornalísticas para

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o audiovisual. E falo, muito brevemente dos jornalismos especializados, como o cultural, o

científico, o político.

Os resultados

As novas perspectivas trazidas pela matéria Redação Jornalística frutificaram numa

série de Trabalhos de Conclusão de Curso e Monografias abordando especificamente as

questões levantadas nela. Até agora, foram três trabalhos enfocando o Jornalismo Literário,

todas ganhando nota máxima da banca. E mais dois trabalhos nos jornalismos especializados –

o cultural e o científico. Estão em pesquisa para os próximos dois semestres o jornalismo

político, o jornalismo científico e o jornalismo gonzo. Esta amplitude de narrativas e

modalidades jornalísticas nunca haviam sido abordadas antes pelos estudantes do curso, que

já tem 40 anos de história. Um dos trabalhos foi apresentado no Sipec2004, teve textos das

reportagens publicadas no site Texto Vivo – específico de Jornalismo Literário, e está publicado

na Biblioteca On Line de Ciências da Comunicação (BOCC), de Portugal.

Hoje, 2005, estou experimentando mais exercícios de sensibilidade, com expressão corporal,

toque, meditação, hai-kai (um tipo de poesia japonesa, que promove a percepção do entorno,

a síntese,o humor), para provocar um texto mais sensível, que espelhe as complexidades do

humano e do mundo humano.

Conclusão

Na década de 70 foi lançado em São Paulo um jogo que era um espelho preparado,

modificado. O tamanho era de mais ou menos 30x30cm. Duas pessoas por vez jogavam.

Colocava-se o espelho num anteparo sobre uma mesa. Era necessário que ficasse na altura do

queixo dos participantes. Então, apagavam-se as luzes e duas velas eram acendidas. Uma

ficava coma a pessoa na frente do espelho, outra com a pessoa atrás do espelho.

Movimentando as velas, os jogadores tinham que encontrar o ponto onde os rostos se

fundiam.

O espelho misturava características de um e outro e o que se via era um novo rosto, o mestiço.

Havia jogadores que não suportavam o que viam. Achavam grotesco, e crispavam. A sensação

provocada tinha uma grande intensidade, como uma perda momentânea de identidade, uma

alucinação lúcida. O jogo, chamado ‘Persona’, tornava-se, para outros, um exercício de

aceitação do outro em si mesmo, uma aproximação solidarizante, uma reflexão sobre o ‘eu’.

Nosso envolvimento – teórico, prático e existencial - com o jornalismo e suas narrativas precisa

ser assim: produzir estranhamento e entranhamento, dar a ver que estamos falando de

histórias de vida, de gente que está inserida naqueles acontecimentos que se tornam notícia. A

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palavra precisa encarnar-se numa narrativa que estabeleça conexões com a multifacetada

realidade, para que o leitor, ouvinte ou telespectador possa entender melhor o que se passa

em torno, decidir melhor como cidadão que rumo tomar. Este jornalismo, que não se permita

separar o que em nós sempre esteve junto – razão e sensibilidade.