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  • 7/29/2019 Ral Antelo - Suplemento MG - Monstros

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    Belo Horizonte, Junho/2009 Edio Especial Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais

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    Edio Especial

    Crimes, Pecados e

    Monstruosidades

    Julio JehaLyslei Nascimento

    Organizadores

    O s artigos que compem este nmero do Suplemento Literrio de Minas Gerais foramescritos a partir de trs eixos temticos: o crime, o pecado e a monstruosidade. Odiscurso da vtima, encenado no papel, alia-se, nos textos aqui presentes, quase comonum duplo, ao do seu algoz. Testemunhas, rus confessos, vtimas, criminosos e vingadores habi-tam pginas e pginas da literatura promovendo, entre o crime e a lei, inmeras possibilidades de

    escrita e de leitura. Intimamente ligado ao crime, o pecado traz, por sua vez, um ponto de vistaque emerge da religio, do drama da conscincia, do mal como transgresso a uma norma divina.Na cena literria, as vozes de pecadores, penitentes, vigilantes e prevaricadores se proliferam nafico; desmontam, pela ironia, ou reforam, pelo castigo, o drama dessa infrao.

    Se o crime e o pecado podem ser vistos, de certa maneira, como filhos gmeos do mal moral,religioso ou legal , a monstruosidade se insinua no risco do descontrole, da ausncia de limites,na transgresso que deforma e forma leitores atentos do cotidiano. O ato criminoso, a revelaodo pecado ou a insinuao do mal atravs da monstruosidade so, nos artigos aqui apresentados,mais do que catarses, confisses, denncias: so iluminaes, um tanto quanto profanas, de nossa

    condio humana.As ilustraes deste nmero, que comemoram os 200 anos de nascimento de Edgar Allan Poe(18091849), pem em relevo o escritor que revolucionou a arte de escrever contos, histrias dedetetive, fico cientfica e fantstica, poesia lrica e histrias de terror. Alm de suas histriasextraordinrias povoarem o imaginrio de leitores e escritores aficionados, tambm o cinema pro-duziu inmeras verses que, entre a lucidez e a loucura, redimensionam o estatuto da verdade e dafico. Os mundos dos sonhos, os crceres dos remorsos, das culpas e das penitncias, tornam-secenrios em que personagens, s vezes monstruosas, lutam com a linguagem em seus dilemas.

    Filsofo da composio literria e pai da narrativa policial, Poe nosso contemporneo, muitomais do que o poeta de uma poca. Suas reflexes, traduzidas para inmeras lnguas e linguagens,iluminam, com humor e ironia, o estatuto da fico do sculo 20. Essas reflexes acompanharo,para sempre, os dilemas de leitores, escritores e cineastas que se dedicam a esquadrinhar almas eabismos psicolgicos.

    JULIO JEHA

    Doutor em Letras e Professor de Literaturas em Ingls

    na Universidade Federal de Minas Gerais

    LYSLEI NASCIMENTO

    Doutora em Letras e Professora de Literatura na

    Universidade Federal de Minas Gerais

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    FACA NO

    CORAO Berta WaldmanD alton Trevisan um escritor que no faz concesses: no d entrevistas, nose deixa fotografar, no conversa com leitores nem participa de encontro deescritores. Seu primeiro livro de 1959,Novelas nada exemplares.1 Contandohoje com uma vasta e significativa obra, est entre os melhores escritores vivos do pas,unanimidade que poucos ousariam afrontar sem incorrer em deslize crtico.

    Trevisan se repete? Trata-se, a meu ver, de um escritor programtico e obsessivo, queinstrumentaliza a repetio, utilizando-a como matria literria. Ora, direis, ele se repete.E eu vos direi, no entanto, como poderia se cada personagem baseado numa pessoa dife-rente? Se algum se repete so elas, essas pessoas iguais, sempre as mesmas. P, destinoprprio, histria nica, vida original no h mais?2

    At 1972, data de publicao de O rei da terra, a investigao da matria literria tempeso maior na obra de Trevisan; essa matria sofre reduo paulatina e, com ela, vem oenxugamento da linguagem, que se depura e se inova para dar relevo esttico e histricopara as coisas de seu tempo e lugar.3 Nesse sentido, a Curitiba que emerge dos contos, maneira do que acontece com o nordeste de Graciliano Ramos ou o serto de GuimaresRosa, o prprio mundo, porque o mundo tambm Curitiba no que tem de grotesco eregressivo. Em outras palavras, a medida de um escritor, principalmente nos pases perif-ricos como o Brasil, deriva, em grande parte, da agudeza para perceber que a complexidadedo mundo contemporneo tambm se expressa aqui, e que uma representao artstica eeficaz do particular contribui para a construo de uma imagem do conjunto.

    Ambientados na periferia da periferia, desfilam nos contos, sob um facho de luz fria,funcionrios pblicos, lojistas, prostitutas, donas de casa, domsticas, normalistas, traba-lhadores da terra, malandros, bandidos, policiais, viciados em droga, bbados, religiosos,maches, abusadores de menores. O autor monta uma cena ficcional presa entre quatro

    1. TREVISAN, Dalton. Novelas nada exemplares. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959.

    2. TREVISAN, Dalton. Pico na veia. Pico na Veia. Rio de Janeiro: Record, 2002.

    3. TREVISAN, Dalton. O rei da terra. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1972.

    No teu labirinto a nica sada o ventre do Minotauro.

    Dalton Trevisan,Dinor

    William Wilson

    In my death, see by this image, which is thine

    own, how utterly thou hast mrdered thyself

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    paredes, que objetiva, entre ns, a negatividade de umaobra construda segundo a melhor tradio literria nomapa da narrativa contempornea.

    A partir de 1974, com O pssaro de cinco asas,Trevisan radicaliza a reduo da linguagem,tomando como alvo o haicai, as ministrias

    (neologismo do autor), a palavra descarnada.

    4

    Ao mesmo tempo em que submete a lingua-gem a diferentes experincias formais

    verticalizao do conto recorta-do em verso e reduo do conto aministria , o autor corta a frasee cria-lhe novos ritmos: eliminam-se verbos, conjunes, pronomes,adjetivos; evita-se a subordina-o e delineia-se a orao nomi-nal como predileta. Concomitantecom a reduo, faz-se um recortemais restritivo do universo de per-sonagens que vai se acuando periferia, em consonncia com a histriapresente do pas, onde os desempregados, excludos, marginais e semperspectivas formam maioria cada vez mais significativa, ainda que invi-svel. essa zona obscura que a obra de Trevisan ilumina e nos obriga a ver.

    O ltimo livro, O manaco do olho verde, inscreve-se nessa mesmamoldura.5 Violncia, roubo, estupro, assassinato, droga, bebida, alca-guetagem, identificao entre ladro e polcia, transitam pelos contos,homologando a falta de solidariedade entre pares, o gesto gratuito deviolncia, o abuso sexual de crianas, num mundo em que no existemais vestgio do bem nem princpio moral ou lei que se sustente.

    Transformado em atividade puramente mecnica e compulsiva, osexo predica a ausncia de um sujeito. Predica o vazio. Assim, o relatoem primeira pessoa no supe obrigatoriamente um enfoque pessoal, amanifestao do personagem-narrador em pleno ato presente, como umeu que ocupa totalmente a tela imaginria da narrativa, porque h entreo eu e o narrado a mediao de um objeto que reaparece: a linguagem.

    Escuta atenta e aguda, o autor registra falas de grupos sociais e aspe em circulao em seus livros. Variadas, facilmente identificadas peloleitor, elas vo sendo atualizadas. Assim, em obras mais recentes, ganhaespao o discurso do viciado em crack, do cheirador de p, do traficante,ou a incluso de falas relacionadas a seitas e grupos religiosos divulgadospela media, que trazem a promessa de se montar uma vida espiritual poralgum prefixo telefnico, em ligao direta com Deus. Esses discursos

    deslocados do real para a fico compem com breves pinceladas umaespcie de quadro vivo concentrado no essencial, sem alapes ilu-

    sionistas nem jogos de luz enganadores. Funcionando como moedacorrente, essas falas so dessubjetivadas, no se ligam a um cor-

    po, correm soltas na boca da jovem, da velha, do malan-dro, do pivete, do bacana, da mulher, do doutor.

    Lapidadas a faca, o autor, mestre minima-lista, as recorta, subtrai e decanta os res-tos, imprime-lhes um ritmo que quaseprescinde do uso de pontuao. Essa

    linguagem provoca, sem dvida, umaboa dose de desindividualizaoda matria narrada. Transforma apersonagem no mais um euque se conta ou conta o mundoatravs dela em portador abstra-to da linguagem, que desse modose emancipa, toma rumo prprio,alheio s intenes de qualquer

    subjetividade. Expresso da violncia tambm no modo direto com queaborda sua matria, a linguagem incisiva, licenciosa, compacta, tem apreciso de um tiro queima-roupa, ainda que no prescinda de algumadose de humor. difcil, entretanto, sustentar o riso quando o leitor sed conta de que o que se apresenta um mundo sem sentido e sem sada,em relao ao qual ele quer estabelecer distncia, mas que obrigadoa enxergar. Esse mundo calcado no negro, sem o anteparo de qualqueridealizao ou promessa de redeno, detm-se num corpo-a-corpo como real. Para forar a difcil identificao do leitor com as personagensem situao, uma das estratgias do autor fazer deslizar a pessoa quefala (eu) para a pessoa com quem se fala (voc), de modo a implicartambm aquele que l na matria narrada: Eu tava trs dias fumandohorrores. Sem comer. Sem dormir. S queimando a pedra. Nunca possoguardar umazinha s. Fumo tudo que tiver. Se voc pra a fissura tepega.6 Voc inclui o leitor, em quem tambm respinga a violncia dosatos, transformando a todos em coparticipantes da vida nua, feita da dis-tribuio global de vcio, misria e morte. Os personagens catadores depapel, de latinhas so vtimas incautas da violncia policial, presos porequvoco, notadamente porque pobres e margem, vagabundos, viciadosem crackou alcolatras, sempre identificados como assaltantes, ladres.Todo tira abusa da autoridade, tortura, atua fora da lei. Mas medida quese avana pelos contos, vai se ganhando uma estranha simpatia por seuspersonagens muitas vezes annimos, mas demasiado humanos, enquanto

    4. TREVISAN, Dalton. O pssaro de cinco asas. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1974.

    5. TREVISAN, Dalton. O manaco do olho verde. Rio de Janeiro: Record, 2008.

    6. TREVISAN, O manaco do olho verde, p. 7.

    7. TREVISAN, O manaco do olho verde, p. 125.

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    algumas imagens em forte concentrao lrica vo somando linguagem um crescente vigor.O conto que d nome ao livro O manaco do olho verde o dilacerado depoimento em

    primeira pessoa de um estuprador compulsivo. O manaco, para quem todas as mulheres soiguais, ouve o comando de um assobio interno e, ato contnuo, ataca qualquer uma, de qualqueridade, sem planejamento prvio. O mais pungente o caso da menina:

    De volta da escola, a mochila amarela nas costas, um macaquinho verdesuspenso, pra c, pra l.De brao aberto, ela se equilibrava no trilho. Ali mesmo eu derrubei. Tofeinha e magrinha. Quantos anos voc tem? Onze, ela disse. O assobiome azucrinava a cabea. Escapar j no podia. Nem eu nem ela.Feche o olho, eu disse. Sim, senhor. Sem eu desconfiar. Virgem, a pobre.At pedi desculpa por toda a sangueira.7

    O autor humaniza seu personagem ao ampliar-lhe a vida: tem me que depende dele e nopode saber o que o filho faz; tem profisso, eletricista; deseja namorar e casar; sabe que tem umdistrbio e que at capaz de matar e sabe tambm que corre o risco, se for pego, de ser linchado,sodomizado, currado.

    Ao escapar da estereotipia do vilo desenfreado, o protagonista ganha humanidade e com elafora a identificao do leitor com esse mundo que se deseja invisvel:

    Bem que as pessoas no entendem: um louco! Um assassino! Ummonstro!Me diga. Que culpa tenho eu? Assim fui nascido. Simples caprichodo Senhor Deus. Sei l, o mau sangue dos pais. Uma praga do capetadesgracido.Podem me condenar, babacas e bundes. O que eu fao? Tudo o quevocs gostariam. Eu sou um de vocs.

    O conto perde um pouco o impacto quando o personagem, no final, diz o que o leitor j sabe,por deduo e empatia. Mas ele um exemplo de como o autor nos fora a aceitar esse mundoindesejado e desidealizado, sem nenhuma perspectiva de redeno.

    A linguagem que corre num determinado segmento social e que carregada de uma histria,o autor a seleciona, estiliza e a transpe para seus contos. Entretanto, ocorre uma reverso, napassagem da ordem histrica para a ordem ficcional. Por meio dela a linguagem torna-se peaarticulada que, em sua inteireza artstica, mantm inteligvel a imagem do grotesco e da alienaodo grupo em que circula.

    Os contos de Dalton Trevisan, apesar da proximidade que mantm com sua matria, instituemum outro princpio de realidade atravs do estranhamento. Pois s quando quebra com o exis-tente que a fico realiza sua funo cognitiva, comunicando sensaes, intuies, verdades queo mais das vezes no so transmissveis de outro modo. nesse sentido que ela contra-diz, e nesse sentido tambm que ela subversiva. Ao invs de confirmar o que o leitor deseja ler, o autorlana-o para uma esfera demonaca e atinge-o com uma faca no corao.

    BERTA WALDMAN

    Doutora em Letras e Professora Titular de Literatura

    na Universidade de So Paulo.

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    da tradio

    traio comoliteratura

    8 Junho/2009Especial Monstros

    JudasDelzi Alves Laranjeira

    Berenice

    It was a fearful page in the

    record of my existence

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    9Secretaria de Estado de CulturaSuplemento Literrio de Minas Gerais

    Os evangelhos cannicos narram a passagem

    sobre a traio de Judas, fato que lhe relegou

    o papel de maior vilo da histria ociden-

    tal, recentemente ratificado pelo papa Bento 16, que, emuma audincia durante a Semana Santa de 2006, confir-

    mou Judas como o apstolo traidor. Se na tradio crist

    Judas a personificao do mal, na literatura seu papel

    tem sido constantemente revisto. Os romances Testament,

    do escritor canadense Nino Ricci, e o clssicoKing Jesus,

    do ingls Robert Graves, reinterpretam a figura de Judas,

    apresentando uma viso alternativa na qual o discpulo no

    mais se mostra como inimigo ntimo, aquele que se vol-

    ta contra seu mestre, seja movido pela ganncia ou comoinstrumento de um poder maligno.

    As verses de Marcos, Mateus, Lucas e Joo fomentaram e corroboraram interpretaes sobreo carter maligno da personalidade e aes de Judas. Entre os escritos apcrifos, o Evangelhorabe da Infncia projeta a origem do mal em Judas j em sua meninice, quando dominadopelo esprito maligno de Satans, que o leva a atacar e morder todos sua volta. Irineu de Lyon,Orgenes e outros padres da igreja tambm dedicaram textos a Judas, reforando, invariavelmente,seu papel de arquipecador e traidor de Jesus.

    A Idade Mdia consolidou a imagem de Judas como a sntese do mal e a mais poderosa liodas consequncias terrveis do pecado. As representaes dos mistrios e da paixo, nos scu-los 14 e 15, combinaram a morte por suicdio descrita em Marcos e Mateus com o derrame dasentranhas em Lucas, adicionando o que acontece com a alma de Judas. Em uma das verses, ela cozida por demnios e servida para Satans, produzindo um espetculo grotesco e violento, queassustava a audincia ao mesmo tempo em que advertia sobre o destino dos pecadores.1Na DivinaComdia, Dante, ao descer ao inferno com Virgilio, encontra Judas sendo mastigado por uma dasfaces de Lcifer, com Brutus e Cssio, assassinos de Csar tambm considerados traidores.

    1. PAFFENROTH.Judas: images of the lost disciple, p. 27.

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    Fora da tradio crist que corroborou os evangelhos, porm, h escritos sobre Judas que ocolocam em outro patamar no que diz respeito ao seu relacionamento com Jesus. O Evangelhode Judas, que faz parte de um grupo de escritos designados como gnsticos, retrata Judas comoo mais sbio e mais amado apstolo de Jesus, o nico a merecer o conhecimento dos mistriosdo universo, e, por meio dele, ascender a um plano divino e iluminado. Paradoxalmente, Judas apresentado como uma figura positiva no porque no traiu Jesus, mas justamente por causa disso.Como Jesus precisa libertar-se de seu invlucro terreno para tambm ascender ao plano superiororiginal, Judas incumbido por Jesus de entreg-lo aos seus inimigos. A noo de mal que perpas-sa a narrativa dos cannicos e que foi assimilada em escritos posteriores inexiste noEvangelho deJudas. Assim, a interpretao da traio de Judas vista sob outro contexto, que eleva Judas comodiscpulo e ser humano.

    Robert Graves, emKing Jesus (1946), conduz a narrativa em relao a Judas de forma a permi-tir uma interpretao que tambm diverge da tradio cannica. Judas mencionado pela primeiravez no romance quando Jesus retorna do deserto, onde, segundo o relato bblico, foi tentado pelo

    demnio. Judas cuida de Jesus, que estava bas-tante alquebrado pela experincia, e torna-seseu discpulo. Judas retratado como uma pes-soa articulada e de fcil trnsito entre as dife-rentes culturas que se misturavam na Palestina:romanos, gregos, srios e judeus. Alm disso,conviveu com os ebionitas, que o ensinaram ater compaixo pelos pobres e excludos.

    A suplementao que Graves fornece sobrea vida de Judas antes de conhecer Jesus oretrata como um homem de boas qualidades,que foi vtima de uma injustia. Ele foi acu-sado de cometer incesto com a jovem mulherde seu tio e sofreu por isso, a ponto de modi-ficar sua viso de mundo e seu compor-

    tamento. O profundo compromisso de Judas com os pobres a sua principal caracterstica, eser a razo pela qual rejeitar as ideias de Jesus a respeito de sua morte ser necessria comoo cumprimento de uma antiga profecia judaica. Para Judas, Jesus representa a esperana demudanas para melhor, uma vida nova para todos, que ele deseja partilhar e tornar realidade.

    Robert Graves no diferiu da tradio ao relatar o destino de Judas, mas recontextualizou-o deforma a permitir uma interpretao alternativa de seu papel na morte de Jesus. Quando Jesus avisaaos discpulos que seu fim est prximo, que sua morte est anunciada e que um dos discpulosser o responsvel por ela, todos se inquietam, principalmente Judas. A ltima ceia se apresentouum espetculo bizarro, com Jesus pedindo-lhes que bebessem do vinho como se fosse seu sanguee comessem do po como se fosse seu corpo. Para Judas, Jesus pretende cumprir a profecia anun-ciada por Zacarias, de que um falso pastor ser sacrificado para redimir os pecados de todos.

    Nas entrelinhas do texto evanglico, que nunca oferece detalhes sobre o comportamento e ospensamentos de Judas, Graves elabora a agonia de Judas por ser escolhido para executar o seumestre. Tal ao vai contra valores que so essenciais para Judas: o amor pelo mestre e a obedin-cia ao Declogo de Moiss. A simples ideia de que suas aes possam causar algum mal a Jesus impensvel para Judas. Movido por essas reflexes, ele procura a ajuda de Nicodemos, que elabo-ra um pano para ajudar Jesus: Judas dever entreg-lo ao sumo sacerdote, que ordenar sua priso.Uma vez preso, Jesus no poder levar a cabo suas intenes de ser sacrificado. Nicodemos, um

    A ltima ceia se apresentou como um espetculo bizarro, com Jesus

    pedindo-lhes que bebessem do vinho como se fosse seu sangue

    e comessem do po como se fosse seu corpo. Para Judas, Jesus

    pretende cumprir a profecia anunciada por Zacarias, de que um

    falso pastor ser sacrificado para redimir os pecados de todos.

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    judeu influente, interferir para que Jesus seja libertado, quando ento eles o convencero de queainda no chegada a hora do Messias manifestar-se. Convencido de que o plano de Nicodemos a melhor forma de salvar Jesus, Judas realiza o ato que o transformou no arquivilo da culturaocidental: entregou Jesus aos seus inimigos, traiu seu mestre.

    Tendo executado sua parte do plano de Nicodemos, Judas espera que tudo ocorra dentro doesquema proposto. Seu gesto, no entanto, fica marcado aos olhos dos outros discpulos, que,alheios ao arranjo estabelecido entre Nicodemos e Judas, fazem desse ltimo o pior juzo. Pedro,ao testemunhar o pagamento das trinta moedas a Judas, fica horrorizado: Como foi possvel queJudas, seu companheiro Judas, a quem eles consideravam o mais generoso e escrupuloso entreos Doze, pudesse vender seu Mestre por uma soma insignificante? O Adversrio de Deus, comcerteza, deve ter entrado nele.2 As reflexes de Pedro sobre o comportamento de Judas foramas que se perpetuaram ao longo da trajetria do advento cristo: Judas traidor e pactuado com odemnio. possvel inferir pela narrativa de Robert Graves que a demonizao de Judas e seuepteto de traidor foram frutos de uma interpretao distorcida dos fatos, ocasionada pela falta deinformao dos motivos que o levaram a agir como tal. A sua morte, ocorrida pouco depois dacondenao de Jesus, apenas corroborou a verso que doravante seria propagada.

    Na perspectiva do romance, o suposto ato de traio de Judas foi realizado com a melhordas intenes, ainda que desconhecida aos olhos da maioria, porm fatores que nem ele nemNicodemos puderam prever interferiram e determinaram um desfecho trgico para Jesus, quenenhum dos dois foi capaz de modificar. Para qualificar uma ao como propriamente malvola, necessrio haver inteno e conscincia por parte do agente; caso contrrio estaramos falandode acidentes comuns que decorrem da falta de cuidado e negligncia. 3 A ao de Judas, aindaque tenha causado sofrimento fsico desnecessrio a Jesus, no est carregada pela inteno deprovocar tal sofrimento. Dessa forma, pode ser considerada um mal-feito, e no uma maldade,um pecado, ou um crime, pois no resultou de um desvio intencional de ordem moral. 4 O que areescrita de Graves enfatiza em relao a Judas o seu papel profundamente trgico e irnico nahistria de Jesus, descartando o mal como um elemento que se possa ligar sua pessoa ou s suasaes, a no ser por meio da interpretao de outros personagens. Para o leitor, que tem acesso aospensamentos de Judas, fica mais difcil perceber Judas como instrumento de um poder malficosuperior ou do mal como uma caracterstica intrnseca de sua personalidade.

    Em Testament, de Nino Ricci, tambm possvel identificar uma maneira de conceber Judasna contramo da tradio crist eclesistica. O leitor conhece a vida de Jesus pelo olhar de quatropersonagens, cujas narrativas se sobrepem e cobrem determinados perodos de sua vida. Judas o primeiro a dar seu testemunho, seguido por Maria Madalena, Maria, me de Jesus, e um pago,Simo de Gergesa. No primeiro relato, o leitor descobre um Judas politicamente engajado, cujasdiscusses com Jesus sobre uma nao soberana para os judeus definem o tom do relacionamentoentre ambos. Enquanto Jesus imagina o novo reino em termos filosficos, Judas luta por sua con-cretizao. Descreve-se como um homem culto e viajado, e faz parte de uma faco revolucionriaque pretende subtrair Israel ao jugo romano. Conhece Jesus em suas andanas pelo pas, enquantoleva e traz informaes para seus companheiros. Jesus o impressiona muito, e ele resolve acom-panh-lo em sua peregrinao por Israel. Estabelece-se entre eles uma amizade e companheirismoque no se repetir com nenhum dos outros discpulos. Como no Evangelho de Judas e emKingJesus, Judas torna-se uma espcie de preferido de Jesus.

    2. GRAVES. King Jesus, p. 377. Traduo livre da autora.

    3. JEHA. Monstros e monstruosidades na literatura, p. 13.

    4. JEHA. Monstros e monstruosidades na literatura, p. 16.

    Berenice

    Detalhe

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    12 Junho/2009Especial Monstros

    Porm, pouco antes de Jesus e os apstolos seguirem para Jerusalm,onde Jesus ser preso e morto pelos romanos, Judas deixa o grupo, sobpresso de seus companheiros de luta revolucionria. No toma parte,portanto, da priso e crucificao de Jesus. Seu nome no mencionadopor Madalena, Maria ou Simo de Gergesa quando narram os aconteci-mentos referentes morte de Jesus. Ricci retira Judas da cena dos acon-tecimentos que foram fundamentais para sua demonizao, fazendo damorte de Jesus um fato resultante de conjunturas polticas, e no religio-sas ou fruto da ao de algum que quisesse prejudicar Jesus.

    Se o relato de Judas o coloca sob lentes positivas, o testemunhoseguinte, o de Madalena, fornece uma srie de elementos que enfatizamo contrrio: ela faz referncias negativas sua pele escura e afirma quesua chegada ao grupo trouxe m influncia. A alteridade de Judas defi-ne sua viso negativa aos olhos dos outros. Madalena no compreendecomo Jesus consegue identificar-se e manter um relacionamento comele. Para ela, Judas era o forasteiro que desequilibrou a harmonia dogrupo, fazendo-os conscientes de tudo que eles no eram: viajado, culto,articulado. O julgamento de Madalena, no entanto, no procede, e elamesma, ao refletir sobre a forma como tratava Judas e tudo que se rela-cionava a ele, reconhece que sua maneira de pensar estava errada. Numgesto final de autocrtica e humildade, Madalena refaz o seu julgamentoda relao de Jesus e Judas, reconhecendo que este foi a nica pessoacapaz de captar a real dimenso de Jesus, pois ambos estavam em ummesmo nvel intelectual, diferentemente dela e dos demais discpulos.

    Nino Ricci aponta, em Testament, que a demonizao de Judas nodecorreu de suas aes, mas da interpretao de outros sobre sua manei-ra de se colocar em relao a Jesus e ao mundo. O que tantoKing Jesuscomo Testamentenfatizam que Judas foi to humano quanto qualquerum de ns, incluindo a parte negativa, ou seja, ele tambm esteve sujeitoa falhas, julgamentos equivocados, decises errneas e aes inconse-quentes. Tais caractersticas podem, de fato, moldar o perfil de uma mpessoa, mas como os romances permitem inferir, Judas, no fim das con-tas, no era mau, mas tornou-se mau, pelo olhar do outro.

    Referncias

    GRAVES, Robert. King Jesus. New York: Farrar Straus Giroux, 1981.

    JEHA, Julio (Org.). Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte:

    Ed. UFMG, 2007.

    PAFFENROTH, Kim.Judas: images of the lost disciple. Louisville: Westminster

    John Knox Press, 2001.

    DELZI LARANJEIRA

    Doutora em Letras e Professora de Lngua e Literatura Inglesa.

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    13Secretaria de Estado de CulturaSuplemento Literrio de Minas Gerais

    Berenice

    Detalhe

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    14 Junho/2009Especial Monstros

    A meninade Cornlio Penna:

    Josalba Fabiana dos Santos

    Orenomado crtico Luiz Costa Lima publicou h alguns anos um artigo intitulado Um

    romance mpar (1997), referindo-se ao livro A menina morta (1954), de CornlioPenna (18961958). Nesse artigo, Costa Lima reproduz uma ideia que j apresen-

    tara anteriormente: a ltima obra publicada por Cornlio no teria pares na literatura brasileira.Somente uma filiao com o romance gtico europeu seria possvel. No entanto, talvez tenhaescapado ao crtico que, ao aproxim-la do gtico, deixou de observar que a obra no se trata demera reproduo de um gnero datado, mas de uma corrupo. Ou seja,A menina morta no umromance gtico e, sim, uma pardia do gtico que encena.

    O gtico um gnero romanesco circunscrito a um momento esttico e histrico: o final dosculo 18 e o incio do 19. Permeadas por situaes em que o mistrio, o suspense e o fantstico

    definem o tom, as narrativas se desenvolvem em castelos, abadias arruinadas ou outros locaisafastados. Bem como costumam transcorrer no passado, sobretudo o medieval. Trata-se, portan-to, de histrias marcadas pelo isolamento: espacial e temporal. Caso semelhante ao de A meninamorta. Escrito e publicado em meados do sculo 20, narra uma histria que transcorre na segundametade do 19, numa fazenda produtora de caf situada s margens do rio Paraba. Os morado-res, especialmente as moradoras, vivem reclusos ao espao domstico, o contato com o mundoexterior quase no existe. O distanciamento no tempo e no espao contribui para o clima geralde mistrio. O Groto, nome da propriedade, um lugar onde se podem ver passar fantasmas empleno dia, afirma uma das escravas da casa-grande.

    Desde o ttulo possvel se perceber relaes com o gtico.A menina morta remete o leitor ideia de fantasma, afinal, se menina indica vida, e vida na sua pujana, morta o seu oposto.O fantasma um morto-vivo porque morreu mas permanece entre os vivos: o ausente se pre-sentifica e assusta, pois no deveria nem poderia estar ali. Morto de forma trgica ou violenta, o

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    morta,um fantasma tropical?fantasma um ser que teria morrido antes da sua hora. Uma menina, uma criana morta algumque morreu antes da hora que lhe teria sido destinada. Alm disso tudo, o ttulo gera outro enigmaimediato: a menina sofreu morte natural ou fora assassinada? Como morreu essa criana?

    Esses e outros elementos contriburam e contribuem para leituras que vem a narrativa deCornlio Penna prxima ao gtico. Mas Marlia Rothier Cardoso na apresentao deFronteira, oprimeiro romance do autor de A menina morta, suscita novas possibilidades:

    Cornlio Penna constri sua estratgia narrativa, que, selecionando algu-mas conquistas da vanguarda, adapta-as a traos do romance gtico e

    da tradio fantstica. Produz, assim, na contramo do regionalismo emvoga [o do romance do Nordeste], um estilo de alto requinte, capaz deperscrutar a intimidade e sugerir panoramas scio-histricos, de formasutil, nebulosa e fragmentria, longe da banalidade realista.

    Observe-se que onde Marlia Rothier Cardoso diz de maneira genrica que Cornlio Pennaseleciona algumas conquistas da vanguarda, adapta-as a traos do romance gtico, eu pontua-ria uma relao intertextual ou pardica com a fico gtica que justamente uma das conquis-

    tas das vanguardas. No que a intertextualidade ou a pardia em si sejam frutos exclusivos domodernismo, mas o seu uso sistemtico com certeza o . A parfrase e especialmente a pardiachegam ao modernismo j bem conhecidas pela tradio literria, mas a partir desse momento taisrecursos passam a se integrar como tcnica de construo na literatura, exacerbando o seu carter

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    metalingustico. Afinal, parodiar um exerccio que no apenas desdobra um texto sobre outro,mas igualmente obriga a uma reflexo sobre a linguagem.

    Assim sendo, a obra corneliana no seria anacrnica como afirmaram Mrio de Andrade eLuiz Costa Lima em alguns dos seus textos crticos. Muito ao contrrio, a obra corneliana dialo-garia com o seu tempo, estaria muito mais prxima da ruptura proposta pelos escritores ligados Semana de Arte Moderna e s vanguardas europeias do incio do sculo 20 do que da banali-dade realista para utilizar a expresso de Marlia Rothier Cardoso. Um livro como A meninamorta no estaria simplesmente tentando reproduzir a tcnica ou a frma do gtico mas o estaria

    parodiando, estaria relacionando-se com ele para dizer outra coisa. O estado de apreenso queenvolve o leitor de Cornlio Penna no o do gtico. Os fantasmas e os duplos do seu ltimolivro no pretendem assustar o leitor, mas desviar o seu olhar para outros focos: a violncia dosistema patriarcal-escravocrata, por exemplo. Eu no s diria queA menina morta no um livroanacrnico porque se vale de fantasmas na sua estratgia narrativa, como tambm que a pardia um recurso literrio que se constitui como um duplo ou um fantasma. Isto , o recurso da pardianesse romance reproduz no seu formato elementos, como o duplo e o fantasma, que fazem partedo seu contedo: a forma ou a frma reproduz o seu contedo.

    A pardia um duplo ou um fantasma de outro texto, a pardia um texto que j morreu e que

    revive atravs do seu duplo ou fantasma. Como j afirmei anteriormente, um fantasma um serque teria morrido de forma trgica, violenta, um ser que teria morrido antes da sua hora. Este serque teria morrido de forma trgica, violenta ou antes da hora resistiria em abandonar o reino dosvivos, teria uma m morte, uma morte ruim. Obviamente no penso num texto nos mesmos ter-mos. So considerveis as diferenas entre pessoas e livros. No entanto, deve ser observado que afico gtica enquanto momento esttico acabou. Vrios dos seus recursos permanecem utilizadosem outros gneros, mas so precisamente isso, outros gneros, no so mais exemplos do gtico,no o reproduzem na sua totalidade. Por analogia ao humano, pode-se dizer que o gtico morreumas continua vivo nos novos gneros que se valem de alguns dos seus recursos, transformou-se,

    portanto, num fantasma.Da mesma maneira, pode-se afirmar que o texto escrito depois de extinta a fico gtica, mas

    que se vale de algumas das suas conquistas, se encena como seu duplo. Todavia, nem duplo nemfantasma devem ser reduzidos a cpias, a meras reprodues. Existe repetio, no h dvida, mas repetio na diferena, como diria Gilles Deleuze. O duplo e o fantasma reafirmam at certoponto os seres que os motivaram ou precederam mas so outros, permitem o reconhecimento, masno a identificao total. O mesmo ocorre com a pardia, que reafirma o texto motivador ou prede-cessor, mas no o repete na sua ntegra, pois se o repetisse no seria uma pardia, seria o texto quea motivou ou no mximo uma parfrase. Na pardia literria h uma corrupo de outro texto, h

    uma deformao, segundo Affonso Romano de SantAnna. O fantasma e o duplo, to presentesno romance corneliano, tambm so corrupes ou deformaes de outros seres. Reforando ocontedo atravs da forma,A menina morta se duplica e se fantasmagoriza ao mesmo tempo num

    jogo de espelhos para o leitor. Naturalmente um romance como todo romance que se vale de

    The Mystery of Marie Rogt

    In his toilsome journey to the water his fears

    redouble within him

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    um recurso intertextual que solicita um leitor bem equipado, inseridona tradio literria, para poder revelar seus enigmas ou pelo menos paracompreender as suas funes, a dos enigmas.

    Gostaria de destacar ainda um ponto que considero chave para discu-tir a relao entre a narrativa requintada deA menina morta e o popularromance gtico europeu, principalmente de lngua inglesa, dos sculos18 e 19: a questo do valor. Mrio de Andrade afirma em artigo intitulado

    originalmente como Romances de um antiqurio:

    No vejo razo para ele [Cornlio Penna] se utilizar [] de truques fceis, que atingemmesmo, s vezes, o irritante dos romances de fantasmas, rudos atrs de portas,cochichos indiscernveis, medos inexplicveis, que nada podem acrescentar aoverdadeiro mistrio.

    bvio que Mrio de Andrade v na aproximao

    entre a obra de Cornlio Penna a parte da obra queMrio conheceu, bem entendido, porque faleceu antesda publicao de A menina morta e o romance defantasmas um rebaixamento. Indo na direo do roman-ce de fantasmas, a narrativa corneliana se afastaria doverdadeiro mistrio e perderia em valor literrio. JLuiz Costa Lima dir em O romance em Cornlio Penna(2005) que este: conhecido por mnimos leitores. Seno por falta de edies, s poder ser porque no se

    inclui entre as leituras de prazer. Este crtico vai numadireo bastante diferente da de Mrio, mas em ambospaira a questo do valor. A afirmativa de Costa Lima tra-ta do baixo volume de leitores que a obra de CornlioPenna tem angariado, porque uma obra que resiste aser conhecida, no se facilita diante do leitor, afugenta-omuito mais do que o atrai. A grande ironia paira justa-mente nisso: como um romance (penso em A meninamorta) que se fecha a leituras rpidas e superficiais pode

    estar to prximo de um tipo de narrativa, a gtica, quedesfrutou de uma popularidade sem par no seu momento?Um tipo de narrativa que, segundo as palavras de MassaudMoiss: Quer se crer que no se trata de uma fico menor,votada ao entretenimento do leitor. Saliento a necessidadede defesa implcita nessa passagem. Percebe-se facilmenteque o romance gtico est sendo defendido, defendido de certacrtica que o trataria como uma fico menor, votada ao entretenimen-to do leitor, porque, diz Moiss: Quer se crer que no se trata disso.

    Ora, o recurso constante da pardia dedicado em A menina mor-ta, como em muitos dos romances modernos, a um embaralhamento defronteiras, a um embaralhamento do que seria a alta e a baixa litera-tura. Grosso modo, poderia se dizer que a alta literatura seria aquela

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    que resistiria a leituras rpidas e descompromissadas, enquanto que a baixa pertenceria ao uni-verso do entretenimento. Parodiando o gtico europeu, Cornlio Penna constitui seus romances,sobretudoA menina morta, na fronteira entre uma alta e uma baixa literatura, uma fronteira quemuitos modernistas pretendiam ver destruda e que, como escritor do seu tempo, Cornlio contri-buiu para aniquilar.

    O mais interessante, no entanto, que ao contrrio de muitos dosnossos modernistas que dessacralizaram textos consagrados como a

    Cano do exlio, de Gonalves Dias Cornlio Penna parodia umanarrativa considerada menor, deforma o que j estaria deformado. Tal

    ousadia literria, parodiar o j rebaixado atravs de um estilo de altorequinte, problematiza radicalmente a ideia de tradio literria, de

    cnone literrio e faz, sim, de Cornlio um escritor do seu tempo ouat alm do seu tempo.

    Referncias

    ANDRADE, Mrio. Nota preliminar. In: PENNA, Cornlio.

    Romances completos. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958.

    CARDOSO, Marlia Rothier. Paratexto. In: PENNA, Cornlio.

    Fronteira. Rio de Janeiro: Artium, 2001.

    DELEUZE, Gilles. Diferena e repetio. Trad. Luiz Orlandi e

    Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

    LIMA, Luiz Costa. Um romance mpar.Jornal do Brasil, Rio de

    Janeiro, 6 dez. 1997.

    LIMA, Luiz Costa. O romance em Cornlio Penna. Belo

    Horizonte: Ed. UFMG, 2005.

    MOISS, Massaud. Dicionrio de termos literrios.

    So Paulo: 1985.

    PENNA, Cornlio.A menina morta. Rio de Janeiro:

    Artium, 1997.

    SANTANNA, Affonso Romano de. Pardia, parfrase & cia.

    So Paulo: tica, 1985.

    JOSALBA FABIANA DOS SANTOS

    Doutora em Letras e Professora de Literatura na

    Universidade Federal de Sergipe.

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    OSCAR WILDELuiz Nazario

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    E m maio de 1994, a rainha Elizabeth II recebeu uma carta comum estranho pedido: que fosse concedido o perdo ao escritorirlands Oscar Wilde (18541900), condenado a dois anos depriso por homossexualismo em 1895.1 Sua priso foi tanto uma mons-truosa perseguio a um homossexual quanto um ato de vandalismo cul-tural, que tirou de nosso pas e do mundo um grande gnio, esclareciaPeter Tatchell, do grupo Outrage. Em julho de 1994, o governo ingls

    rejeitou o pedido: No h motivo para supor que Oscar Wilde no tenhasido condenado e sentenciado de forma correta de acordo com a lei e aprtica da poca, declarou James Toon, secretrio pessoal do Ministrodo Interior Michael Howard.2

    De fato, a condenao foi correta; incorreta era a lei em nome da quala vida de Oscar Wilde pde ser destruda. Dez anos antes de seu proces-so, a legislao inglesa no condenava os atos homossexuais cometidosem privado entre homens adultos, apenas os atentados pblicos ao pudore as tentativas de corrupo da juventude. Foi Mr. Labouchere quem pro-

    ps, em 1885, a criminalizao da prtica sexual entre adultos do sexomasculino transcorrida entre quatro paredes. A nova lei, que criou umnovo crime, entrou em vigor a 1o de janeiro de 1886, permitindo todotipo de chantagem e invaso da privacidade. O artigo foi adotado quasesem discusso, e a nica emenda, proposta por sir Henry James, visava aaumentar a pena mxima de um para dois anos de priso.

    A homossexualidade de Oscar Wilde deve ter se manifestado j emOxford, onde se deixou seduzir pelas teorias da arte pela arte e onde con-traiu sfilis. Mais tarde, aparentemente curado, casou-se com uma mulher

    rica e pouco inteligente, com quem teve dois filhos. Em sua manso emTite Street, Wilde produzia peas, contos e novelas de rara qualidade;depois, saa para levar rapazes, s vezes de baixa condio, a restau-rantes caros. Como Dorian Gray, personagem de seu melhor romance,Wilde procurava, sobretudo, um prazer perigoso, frequentando incg-nito o bas-fond londrino. E, como que marcado pela fatalidade de suacriatura, acabou tambm cruelmente desmascarado ao cair sob a mira deum homem odioso, o marqus de Queensberry.

    O marqus era um esprito vulgar, esportista e lutador fantico, que

    maltratava a esposa e os filhos. Sua paixo era a maldade, a inveja e odio. Quando descobriu que seu filho lorde Alfred Douglas gozava dacompanhia constante de Wilde, quis conhecer este homem, e ficou fasci-nado por ele. Mas ouvindo coisas a seu respeito, comeou a trabalhar

    para destruir a amizade entre os dois, ameaando Wilde com cartas ofen-sivas, acusando-o de posar de pederasta e de corromper seu filho.

    Como o jovem lorde Alfred Douglas sonhava em ver seu pai atrsdas grades, Wilde, tambm cansado das agresses do marqus, resolveuprocess-lo por difamao. Wilde tinha duas peas em cartaz, uma noHaymarcket Theater e outra no Saint-James. Seu processo no Old Bailey,entre 3 de abril e 31 de maio de 1895, envolvendo ilustres advogados

    e juzes da poca, transformou-se na terceira sensao da temporada,mobilizando a imprensa e o pblico. Enquanto as acusaes permane-ciam no domnio da literatura, Wilde dominava a situao. No segundoprocesso, a acusao quis interpretar o sentido que a palavra Vergonhaassumia no clebre poema de lorde Alfred Douglas:

    Os dois amores

    Jovem encantador,Dize-me: por que, triste e suspirante, errasNestes reinos aprazveis? Peo-te, dize-me:Qual o teu verdadeiro nome? Meu nome o Amor.Ento, o primeiro virou-se para mim,E gritou-me: Ele mente, porque o nome dele a Vergonha.Eu quem sou o Amor, e costumava estar aquiSozinho, neste belo jardim, at que ele chegouComo um intruso durante a noite. Sou eu o verdadeiro Amor, que anima

    de uma chama mtua os coraes dos rapazes e das moas.Ento, suspirando, o outro disse: Segue tua fantasia,Porque eu, eu sou o Amor que no ousa dizer seu nome.

    Wilde defendeu o malicioso simbolismo do poema com uma descri-o do amor platnico:

    O Amor que no ousa dizer seu nome, em nossa poca, esta imen-

    sa afeio de um homem maduro por um outro mais jovem, parecidaquela que unia David e Jonathan, parecida quela sobre a qual Platoergueu os fundamentos de sua filosofia, parecida tambm quela que seencontra nas obras-primas de Michelangelo e de Shakespeare. esta

    1. Em 1973, a Associao Psiquitrica Americana (APA) retirou a homossexualidade da lista

    de transtornos mentais; em 1985, o Conselho Federal de Medicina do Brasil (CFM) retirou-

    a da condio de desvio sexual; nos anos de 1990, o Manual Diagnstico e Estatstico de

    Transtornos Mentais (DSM-IV), que codifica distrbios mentais, orientando a classe mdica e

    psiquitrica, retirou-a da lista; em 1993, devido ideia de doena nele implcita, a Organizao

    Mundial de Sade (OMS) condenou o termo homossexualismo, substituindo-o pelo termo

    homossexualidade. Estes avanos cientficos no impedem que religiosos de todo o mundo

    continuem a condenar a homossexualidade, estimulando com suas pregaes a discrimina-

    o, a perseguio e o assassinato de homossexuais por homofbicos. Ainda hoje 86 Estados

    membros das Naes Unidas, especialmente os islmicos, criminalizam as relaes sexuais

    consensuais entre adultos do mesmo sexo, oficializando a homofobia. No Ir, por exemplo, os

    homossexuais so enforcados com a presena obrigatria dos pais, que, se no comparece-

    rem, sero igualmente enforcados. (OTTOSSON, Daniel. Homofobia no Estado. Uma pesquisa

    mundial sobre legislaes que probem relaes sexuais consensuais entre adultos homosse-

    xuais. Um relatrio da ILGA, International Lesbian and Gay Association, 2008. Em: http://www.

    ilga.org/statehomophobia/ Homofobia_do_Estado_ILGA_2008.pdf.

    2. MALBERGIER, Sergio. Folha de S.Paulo, 22 jul. 1994.

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    afeio profunda, espiritual, to pura quanto perfeita. Ela inspira e animaas grandes obras como as de Shakespeare e de Michelangelo e as cartasque escrevi, se no se as deturpa. Ele incompreendido em nossa poca,to incompreendido que pode ser descrito como o Amor que no ousadizer seu nome, e por causa dele que me encontro agora aqui. Ele belo, ele grande, ele a forma mais nobre da afeio. No h nada neleque seja contra a natureza. Ele intelectual, ele nasce fatalmente entre

    um homem maduro e um mais jovem quando o mais idoso tem gostosintelectuais e quando o mais jovem tem toda a alegria, a esperana e asmiragens da vida diante de si. Que tem de ser assim, o que o mundono compreende. O mundo reprime este sentimento e pe no pelourinhoos que so tocados por ele.3

    Com este discurso, Wilde arrancou da assistncia uma torrente deaplausos que deixou o jri confuso quanto ao veredicto. Suas rplicasforam descritas por um espectador como as mais notveis feitas por um

    acusado desde que so Paulo compareceu diante do rei Herodes Agripa.Contudo, no terceiro e ltimo processo, o marqus passou ao ataque,colocando em dvida a reputao de Wilde, que se viu obrigado a assu-mir, pouco a pouco, o papel de ru. Sua vida sexual comeou a ser vas-culhada pelos promotores e delatada por alguns de seus viciosos amantesde ocasio, chocando o jri, a plateia e os prprios advogados, que nosabiam mais que causa defender, uma vez que Wilde e Douglas haviammentido, jurando-lhes solenemente inocncia.

    A partida estava perdida. Wilde foi aconselhado a deixar a Inglaterra

    antes que a priso fosse decretada, mas ele parecia paralisado, domina-do pela vontade de ir at o fim daquele jogo perigoso, que o atraa comsua fatalidade, como se o veredicto representasse seu destino. De fato, acondenao pena mxima engendrou sucessivas catstrofes pessoais:Wilde teve seu casamento anulado, perdeu suas propriedades, mveis,livros, objetos de arte, seus prprios direitos autorais; teve suas peastiradas de cartaz e seus livros censurados. Caiu na misria e no esque-cimento, abandonado por quase todos. At Sarah Bernhardt recusou-sea pagar os direitos da pea Salom, que havia adquirido, quando ainda

    desejava interpretar o papel principal.Entre as poucas manifestaes de humanidade, a mais importante foi

    o pedido de indulto feito por Bernard Shaw. Para o Daily Telegraph,Wilde havia infligido ao pblico um dano moral da espcie mais vil eodiosa que seria possvel a um indivduo causar. Para oEvening News,Wilde era um flagelo social, um centro de corrupo intelectual, umdos grandes sacerdotes de uma escola que ataca tudo o que h de so,de viril e de puro no ideal da vida inglesa e exalta os falsos deuses de

    uma cultura decadente e de uma intelectualidade debochada.4 Nas ruasprximas ao tribunal, a imprensa honesta e a boa sociedade encontravamsuas aliadas nas prostitutas que levantavam a saia em danas obscenas,festejando a queda de Wilde, que elas consideravam um perigoso rivalde seu comrcio.

    Wilde saiu fsica e moralmente arrasado da priso. A experincia dador levou-o a escrever duas obras-primas: De Profundis, uma extensa

    carta de revelaes espirituais e acusaes dirigidas a lorde Douglas, eA balada da priso de Reading, ttrico poema que se encerra com oclebre refro:

    Todos os homens matam o que amamSeja por todos isto ouvido,Alguns o fazem com acerbo olharOutros com frases de lisonja,O covarde assassina com um beijo,

    O bravo mata com punhal.5

    Do crcere de Reading, Wilde partiu para Paris, reatou com lordeDouglas e continuou a praticar os atos impuros de que se arrepende-ra, cheio de remorsos cristos, emDe Profundis. Em 1899, o marqusde Queensberry encontrou o seu fim acossado por delrios persecut-rios, nos quais se via cortado em pedaos por carrascos imaginrios,aos quais chamava de oscar wildes Meses mais tarde, o escritor,que jamais voltou a por os ps na Inglaterra, morreu em Paris vitimado

    pela sfilis. Andr Gide escreveu o melhor relato sobre os anos de deca-dncia de Wilde, e lorde Douglas comps, em homenagem ao amigo, ocomovente poema A morte do poeta, considerado um dos mais belosda literatura inglesa.

    Em Oscar Wildes last stand, Philip Hoare reportou que, em 1918,dezoito anos aps a morte de Oscar Wilde, uma companhia de teatroousou montar Salomna Gr-Bretanha. Noel Pemberton Billing, mem-bro do Parlamento e autonomeado protetor da moral publica, ficou indig-nado e denunciou Maud Allan, a danarina norte-americana escolhida

    para o papel-ttulo, como a lder de um culto do clitris partilhado por47 mil integrantes do establishmentbritnico que seguiriam as inclina-es sexuais pervertidas de Wilde.

    O Outrage no se conformou com a negativa do perdo oficial s vs-peras do centsimo aniversrio de Wilde.6 Mas quem precisa de perdo?O drama desse escritor provou que o gozo associal da homossexualidadepode ser punido, a qualquer hora, pelos defensores do gozo instituciona-lizado por todos os Estados e consagrado por todas as religies. Oscar

    3. HYDE, Montgomery. Les trois procs dOscar Wilde. Paris: Denoel, 1951, p. 276277.

    4. HYDE. Les trois procs dOscar Wilde, p. 27.

    5. WILDE. A balada da priso de Reading, p. 984.

    6. A data foi lembrada com uma srie de homenagens a Oscar Wilde. Duas placas com seu nome

    foram inauguradas: uma no Royal Theatre Haymarkert de Londres por sir John Gielgud; outra

    no Poets Cornerda Abadia de Westminster, ao lado das de lorde Byron e D. H. Lawrence.

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    Wilde teria mais uma vez preferido o exlionuma natureza imaginria:

    A Sociedade que construmos no tem lugarpara mim, nem tem lugar nenhum para ofere-cer-me; mas a Natureza, cujas chuvas benfa-zejas caem tanto sobre o justo quanto sobre o

    injusto, ter para mim rochedos cujas cavida-des vo abrigar-me e vales secretos e silencio-sos onde poderei chorar em paz. Ela enxameara noite de estrelas para que eu possa caminharpelas trevas sem tropear, e o vento vir apagarminhas pegadas, a fim de que ningum possaseguir meu rastro para ferir-me; ela me purifi-car com suas imensas guas e me santificarcom suas ervas amargas.7

    Uma vez condenado, Oscar Wilde dispen-saria o gesto sbito e extemporneo da tolern-cia do poder, sustentado pelas pessoas honestase suas eternas aliadas, as mdias e a ideologiada prostituio, que destilam incessantementepropaganda e terror homofbicos.

    7. WILDE, Oscar. De Profundis.

    LUIZ NAZARIO

    Doutor em Histria e Professor de Cinema na Universidade

    Federal de Minas Gerais

    Morella

    The earth grew dark, and its figures passedby me, like flitting shadows, and among them

    all i beheld only Morella

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    P araso das Maravilhas: uma histria do Crime do Parque, deLuiz Morando, publicado em 2008, anuncia seu propsito jna introduo:[] por meio da apresentao de um acontecimento ocorridoem 1946 e de seus desdobramentos, pontuar diversos elemen-tos que confluem para uma possvel compreenso de formas de

    sociabilidade e de representao social homoerticas em BeloHorizonte nas dcadas de 40 e 50 do sculo 20. (p. 15)

    O acontecimento sobre o qual o livro ir discorrer ficou conhecidocomo o Crime do Parque e h muitos mistrios em torno desse epis-dio. Apesar de anos de investigao, nunca se pde afirmar com certezasequer se o Parque Municipal foi a cena do crime ou apenas o local ondeo corpo de Luiz Gonalves Delgado foi encontrado. Quanto aos desdo-

    bramentos das investigaes, esses incluem um suicdio e, ao que tudoindica, outro assassinato, desta vez tendo como vtima o nico acusadoformalmente pelo primeiro crime. Acrescente-se a esses dados o fato deque alguns dos principais envolvidos eram pessoas da alta sociedade belo-horizontina, mais a suposio de que a vtima era homossexual, e estarformado o cenrio capaz de proporcionar a aura que cercou esse episdio.

    Como relata Morando, em 22 de outubro de 1948 o vespertinoDirio da Tardecriava um refro que passou a ser repetido incansavelmen-te: nenhum acontecimento conseguiu apaixonar tanto a opinio pblica da

    capital como esse chamado Crime do Parque.. (p. 36). Essa mesma paixoressurgir quando do julgamento de Dcio Frota Escobar e, a sua maneira,oParaso das maravilhas vem atualiz-la para o leitor contemporneo.

    Para situar o cenrio em que o crime se deu, Morando apresenta embreves traos a histria do Parque Municipal, cuja inaugurao prece-deu a da cidade planejada para ser a capital de Minas. Situado na antigaChcara do Sapo, s margens do crrego Acaba Mundo, bem como doribeiro Arrudas e diversos outros cursos dgua, o Parque foi o localescolhido para moradia dos primeiros engenheiros-chefe, encarregados

    das obras de instalao da nova capital, e serviu de palco a diversascerimnias oficiais que precederam a construo da cidade. Seu traadooriginal foi encomendado a Paul Villon, que o fez conforme o modeloingls do incio do sculo 20. Como o resto do planejamento da cidade, oParque estava imbudo de uma funo de higienizao, constituindo umpurificador do ar da cidade.

    Em 1951 o Parque se encontrava em ms condies de manuteno,e o ento prefeito Amrico Ren Giannetti encomendou sua remodela-o a Roberto Burle Marx. Em homenagem pstuma, a partir de 1955,

    o Parque Municipal recebeu o nome desse prefeito. A escolha dos doispaisagistas atesta a importncia poltica que era atribuda a esse espao.Por outro lado, o Parque Municipal j foi muito maior do que hoje,e seu encolhimento acompanha sua perda de prestgio na cidade. Para

    acompanhar esse processo, gostaria de recorrer ao discurso que LusAlberto Brando Santos atribui esttua localizada no centro de um deseus lagos, pela preciso concisa desta exposio:

    Habito discretamente este vazio, que j foi, no passado, coex-tensivo cidade toda, criada como um invlucro a ser pre-enchido. Ocupar, edificar assim o mpeto modernizador vai

    tapando as frestas da paisagem urbana. Um parque que sedesmembra, e mngua, as bordas devoradas, um quarto, ummeio, dois teros de sua rea cedendo premncia empre-endedora. Era preciso rechear o vazio incmodo, construirum estdio de futebol, uma faculdade, um hospital, um tea-tro, um colgio, um orquidrio, uma quadra de tnis, outroteatro, uma concha acstica, encher de coisas, de bustos,coretos, tanques, monumentos, coisas que no cabem maisem outros cantos da cidade, e que aqui so teis para povo-

    ar a aridez deste deserto. Era preciso acordar o espao quedormitava no centro da insnia da cidade.

    Essas consideraes so fundamentais para que o leitor possa recons-tituir o cenrio em que o crime se deu, situando a importncia que oParque ocupava, ento, em Belo Horizonte. Na dcada de 40, no estavacercado por grades. Essas haviam sido retiradas por Juscelino Kubstichek,quando fora prefeito da cidade. Com isso, tornara-se um local em que a

    vida diurna contrastava fortemente com a frequentao noturna, o queexplica, por exemplo, o fato de o corpo ter sido encontrado por alunasdo Instituto de Educao. Em outras palavras, coexistiam nesse espao ocrime e a passagem de mocinhas a caminho da escola.

    Apenas para acrescentarmos outra dico a esse relato, podemos recor-rer ao relato de Ronaldo Guimares, um antigo morador do Parque:

    Em dezembro de 46, alunas do Instituto de Educao descobri-

    ram o cadver de um homem debaixo dos eucaliptos. O primei-ro crime homossexual da cidade. Na capital s se falava nisso.Meu Deus, quem matou o pobre do engenheiro? O suicdiodo filho da empregada da repblica onde morava a vtima e aconfisso de uma danarina que fugira para Montevidu arvo-raram mais ainda a tradicionalssima famlia mineira.

    Em 1954, [] o principal suspeito foi levado a julgamentoe absolvido por cinco a dois. O ru declamou versos de CarlosDrummond de Andrade, para um pblico que no entendia de

    poesia, nem de crimes afeminados. []O Parque saindo na frente. Em plena dcada de 40, numa

    cidade povoada por preconceitos, o Parque acolhia homosse-xuais enrustidos e raivosos (GUIMARES, 2005, p. 4950).

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    Um crimeem Belo Horizonte:rastros e registros

    Maringela de Andrade Paraizo

    Observe-se a insistncia com que a conotao homoertica do crimerepercute nessas lembranas e verifique-se, mais uma vez, a importn-

    cia do livro de Morando.Na realidade, muito pouco ficou esclarecido sobre o assassi-

    nato de Delgado. Tendo sido noivo de uma moa da socieda-de belorizontina, chegou-se a suspeitar de envolvimento do

    ex-cunhado. Como era de se esperar, praticamente ningumadmitiu ser homossexual. As excees provm das classesmais baixas, frequentadores do parque que foram interro-gados. O prprio Escobar, acusado pela esposa de ter con-fessado o crime, supostamente movido por cimes, negaqualquer relao dessa ordem com a vtima ou com qual-quer outro. Como tambm nos informa Morando, Escobarseria brutalmente assassinado no Rio de Janeiro, algunsanos mais tarde.

    Quando se debruar sobre o Paraso das maravilhas,o leitor ter oportunidade de formar sua opinio sobre essa

    e outras questes, uma vez que o livro apresenta uma des-crio dos fatos apurados em extensa pesquisa, selecionados

    nos livros que registram o processo judicial que se seguiu descoberta do corpo de Luiz Gonalves Delgado, bem como nas

    retumbantes matrias produzidas pela imprensa. Curiosamente, ocontraste entre esses diferentes gneros textuais no to grande, o

    que j um dado esclarecedor sobre a postura da polcia.

    Nesse levantamento, Morando se abstm de enfatizar suas opinies,deixando que o estilo se marque pela seleo e organizao dos dados.Presta o devido respeito aos envolvidos nos trgicos eventos e no secontamina pelo tom exaltado dos arquivos expostos. Exemplo dessa ati-tude se traduz no silncio sobre a discretssima participao da famliaThe Premature Burial

    Detalhe

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    26 Junho/2009Especial Monstros

    de Delgado, que no se manifesta uma nica vez nesse processo. A curio-sidade do leitor no alimentada ou atenuada pela narrativa, que seguecosturando os diferentes registros, sem alargar ou tamponar lacunas.

    Embora o livro seja bastante extenso, trata-se de um relato to envol-vente que terminamos a leitura ainda querendo mais informaes, comoneste caso: somos informados de que Dcio Frota Escobar escreveu pelomenos trs livros de poemas. Um deles,Rua sul, foi anexado ao processo

    por Mrio Pinto Corra, um dos delegados encarregados da investiga-o, e alguns de seus versos foram utilizados na acusao de Escobar.Entretanto, Morando nada comenta sobre o teor dos livros ou sobre aatitude do delegado.

    Segundo a apresentao de Luiz Mott, o trabalho ao mesmo tempobeneditino e sherlockiano. Sem dvida, o livro nos apresenta detalhes,de tal maneira ordenados, que no resta dvida sobre a complexidadeda pesquisa que ele demandou: para que se chegasse a tal depurao,necessariamente muitas e muitas pginas foram lidas e relidas. Por outro

    lado, como so crimes no desvendados, coube ao autor levantar opiniesdspares, ater-se a pequenos detalhes, de modo a contemplar o enigmade todos os ngulos possveis, proporcionando uma leitura instigante, naqual compactuamos com a tarefa do detetive que persegue verdades nasentrelinhas do que a histria preservou. Mesmo que j se saiba que osmistrios no foram esclarecidos, ficamos na expectativa.

    Entre os atributos sedutores do Paraso das maravilhas, destaca-se,sobretudo, a linguagem agradvel, que no se exime de prestar esclare-cimentos ao leitor leigo, sem avizinhar-se do didatismo, como se v na

    simplicidade deste exemplo: Na Medicina Legal, h uma distino entreauto e laudo: o auto o documento ditado ao escrivo e o laudo o docu-mento redigido de prprio punho (p. 43).Nos captulos, os ttulos e subttulos se reportam ao universo teatral o

    que, alm de condizer com o carter espetacular emprestado aos acon-tecimentos narrados, atualiza, metaforicamente, o relato. A ttulo deexemplo, os dois captulos da primeira parte se intitulam: O cenrioe A cena. No contexto do livro, fcil perceber como as nuances desentido entre vocbulos to prximos acrescentam sutileza ao relato de

    fatos to cruis.A formao do autor Mestre e Doutor em Letras denuncia-se

    pela preocupao com registros literrios do Crime do Parque, que sesomam aos arquivos da polcia e da imprensa, sugerindo-nos outras lei-turas. Morando tem ainda o cuidado de desentranhar a bibliografia quefundamentou comentrios que constam do processo, como tambm ode recortar texto e contexto de obras como O corcunda de Notre Dame,de onde se retirou o epteto Ptio dos Milagres, tambm alusivo aoParque Municipal: De Ptio dos Milagres a Paraso das Maravilhas

    (percebam que as iniciais so as mesmas de Parque Municipal), h certoglamour expresso na aparncia das imagens (p. 67). Observe-se, entre-tanto, que Morando nem dramatiza nem glamouriza os episdios quedescreve.

    Assim, se o objetivo do livro era mostrar o tratamento da questohomoertica na Belo Horizonte dos anos 40 e 50, tambm proporcionauma reviso da histria da cidade, bem como a interferncia da polticaque orientou os procedimentos policiais e a atuao da imprensa, mostrasda influncia de famlias da alta sociedade local e nacional na conduodas investigaes e sua divulgao. Esses, os aspectos que atraem princi-palmente o leitor pesquisador. Mas h, sobretudo, as qualidades do texto

    em que se recontam essas histrias que nos enredam e fazem com quepaream poucas as trezentas e vinte sete pginas que compem o livro.Desse fascnio acredito no esto isentos os leitores mais exigentes.

    Referncias

    GUIMARES, Ronaldo. Parque Municipal. Belo Horizonte:

    Conceito Editorial, 2005.

    MORANDO, Luiz. Paraso das Maravilhas: Uma histria do

    Crime do Parque. Belo Horizonte: Argumentum, 2008.

    SANTOS, Luis Alberto Brando. Saber de Pedra. O livro das

    esttuas. Belo Horizonte: Autntica, 1999.

    MARINGELA DE ANDRADE PARAIZO

    Doutora em Letras e Professora de Literatura na

    Universidade Federal de Minas Gerais.

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    Febr

    nio

    ,om

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    roRaulAntelo

    Em um ensaio escrito para a revista

    Documents, Georges Bataille anali-sa algumas estampas includas por

    Regnault em Les carts de la nature (1775).Trata-se de uma srie de imagens de criatu-ras informes, portadoras de duas ou nenhumacabea, cuja incongruncia agressiva desperta,no espectador, certo mal-estar. Esse mal-estar,diz Bataille, est obscuramente ligado a uma

    seduo profunda, qual seja, a de um valor queno se contm numa tenso bipolar dicotmica,mas se derrama, entretanto, na ambivalnciainerente a qualquer avaliao. Bataille conclui,assim, que os monstros estariam situados, diale-ticamente, no avesso da regularidade geomtri-ca, no mesmo nvel que as formas individuais,porm, de uma maneira irredutvel,1 manei-ra essa que ele exemplifica com as palavras

    usadas por Eisenstein, em sua conferncia daSorbonne, quando argumenta que a determina-o de um desenvolvimento dialtico, em fatosto concretos quanto uma imagem, seria algopeculiarmente chocante para a sensibilidademdia das massas que s pode se tornar, a seusolhos, repulsivo.

    1. BATAILLE, George. Les carts de la nature. In: Documents,

    1930, p. 79.

    Th

    e

    FalloftheHouse

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    28 J h /2009

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    Os fatos concretos prometidos por Eisenstein eram os fotogramas deQue viva o Mxico! nos quais o cineasta explora o valor sacer da mor-te para a cultura latino-americana. Poderamos ver, assim, na mscarada caveira mexicana, um ultrapassamento efetivo do novo e do velho,tal como apresentado no ltimo filme sovitico de Eisenstein, A linhageral,2 de tal forma que a caveira potencializaria a prpria imagem doexcesso e nos permitiria, ainda, melhor entender o carter poltico do

    rosto, tal como se aprecia, por exemplo, no trabalho de Arthur Omar.Ora, essas ideias de Bataille servem-nos para retomar a leitura de

    um livro singular, As revelaes do prncipe do fogo (1926), redigidopor Febrnio ndio do Brasil. Quando de sua visita a So Paulo, BlaiseCendrars entrevistou Febrnio na Casa de Deteno e no descabi-do que esse contato tenha sido o propulsor de um livro de Cendrars, o

    Elogio da vida perigosa (1926), ampliado em 1938 comoA vida perigo-sa, em que lemos o retrato de Febrnio:

    Cada priso encerra o seu monstro. Na poca de nossa visita, a peni-tenciria do Rio de Janeiro mantinha enjaulado (esperando mand-lo

    para o manicmio, onde esse perverso est confinado desde 1927) ummonstro sdico cujos crimes e cuja loucura vertiginosa tinham apavo-rado as populaes. Durante meses e meses, os jornais consagraram

    pginas e pginas a Febrnio ndio do Brasil, o Filho da Luz, comose proclamara esse negro iluminado que arrancava os dentes de suasvtimas e as tatuava com um sinal cabalstico. Pedi pois permisso paraver Febrnio. [] Este bruto que tinha se acusado, impassvel, dos cri-

    mes menos confessveis, este esprito turvo que se queixava de ter sidomaltratado, surrado pelo diabo, por Sat em pessoa, esta alma penadaque se dissera impelida a agir, a obedecer a vises fulminantes e a vozesque lhe caam do cu, este animal selvagem que se havia espojado ementranhas quentes, latindo e sorvendo sangue, este assassino que nosabia o nmero de suas vtimas e no tinha a menor conscincia daenormidade nem da abominao de seus crimes, este sdico desumanono trazia nenhuma marca exterior de bestialidade, nenhum indcio detara, a no ser, talvez, o lbulo da orelha esquerda que era aderente, e

    talvez ainda, seus dentes cariados, o que muito repugnante num negroe que tornava sua boca irremediavelmente murcha, obscena.3

    curioso constatar que o trabalho de Febrnio despertou o interessede Mrio de Andrade, alguns anos mais tarde, em 1939, que o associou escrita de Lautramont (evoca por momentos a eloquncia apocalpticade So Joo, em outros, pelo inesperado sonhador das vises, lembraLautreamont), autor que, nesse mesmo ano, ganhava uma edio pelaSkira, com guas-fortes de Dali, edio essa que Mrio, de fato, possua.

    Sem aprofundar as conexes, conste que esse annus mirabilis tambmo do ensaio de Mrio de Andrade sobre Machado de Assis, porque o anodo centenrio machadiano, o que nos permitiria pensar que, para almdo nome compartilhado, Mrio, Machado=M. de A., ambos os escritores

    padeciam da mesma marca: nome que comea com m tem m sina,segundo Macunama. E que essa relao difcil com a tradio que levaMrio, em ltima anlise, a tentar a escrita pasticheiramente machadia-na de seu romance Quatro pessoas (1939). Nesse momento, portanto,altamente carregado de potencialidades, em que Mrio se interessa tantopelos transgressores da lei, quanto por seus guardies, Febrnio a par-te maldita, a parte do fogo, que Mrio imola nesse culto sem amor que

    ele nutre pelo patriarca das letras, o que, de algum modo, nos solicitaum exame mais pormenorizado desse dom. Vamos coloc-lo da maneiramais sucinta possvel.

    As revelaes do prncipe do fogo funcionariam como revelaesdo ocaso da representao, como revelaes da sutil relao entreloucura, literatura, sociedade, ttulo, por sinal, de uma entrevis-ta, de 1970, em que Foucault dispara a frmula: o espao literrio a parte do fogo. Ora, nessa linha de anlise, cabe nos determos emLautramont. Comecemos, ento, a ttulo meramente hipottico, com a

    equao Febrnio=Lautramont. O prprio Mrio de Andrade, ao ler asRevelaes, deixou uma marginlia esclarecedora. Anotou automatis-mo margem da seguinte passagem:

    [] os archanjos fieis militaram o Throno da vida e baixaram em todaa extremidade da terra dizendo: os anjos fieis, os santos leaes reco-nheceram o legitimo Filho do Santo Tebernaculo-Vivo companheiro do

    Fiel Diadema Excelso, ns os archanjos fieis de espadas de fogo, lan-as nas mos arrebatemos e damos entrada no Sacro-Santo Throno da

    Vida; instantaneamente adejou a voz bemdita dentro do Santuario doTabernaculo do Testemunho que ha no Co dizendo: meu Filho per-cutindo lagrimas de immenso prazer na meiga encarnao da maiorinfancia, s a expresso mais pura de nobreza na designao virtuosadum mysterio divino; o gro iman da ingenua vontade perfeita habitano encanto juvenil da tua humilde innocencia, nato infinito do gor-geio primeiro, acatae os murmurios de saudades na nova do destino; eisaqui, Santuario do Tabernaculo do Testemunho que ha no Co; o que,o Rei do Throno da Vida annuncia-vos: s bemdito desde o teu inicio at

    a tua ultima extenso.4

    Tal como a escrita automtica de Revelaes, seu antecedente, osCantos de Maldoror serviram, como sabemos, de ponto de virada paracerta reflexo sobre a escritura que aparece entre os intelectuais niet-zschianos do grupo Minotaure e se tornar mais explcita entre os tel-quelianos. Bataille, Leiris, Caillois, entre outros, impugnavam a versoromntica do encontro fortuito, para postularem, porm, um novo con-ceito de experincia, que nada lhe devia viso ou evidncia. Os textos

    que melhor ilustram a busca de um conceito de esgotamento do empricoso precisamente os da teoria paranoico-crtica (Dali-Lacan). Com efeito,em Le problme du style et les formes paranoaques de lexprience,5Lacan parte de duas sries, a srie psiquitrica (a paranoia) e a srie filo-

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    sfico-jurdica (a personalidade), para mostrar-nos que o humano nopassa de uma peculiar estruturao de afetos, por meio dos quais o servivo se realiza, simbolicamente, atravs da linguagem, significando-sea si mesmo como sujeito desejante ou como cidado, mas confirmando,assim, que todos os homens so animais, muito embora nem todos osanimais cheguem a ser homens.

    A paranoia, portanto, define-se, a seu ver, como um conflito que lhe

    advm ao homem s quando suas ideias, normalmente reguladas pelarazo, encontram-se sob o efeito de automatismos corporais, chegando,em ltima instancia, a um impasse terico, no qual uma srie de argu-mentos organicistas, que julgam poder explicar todas as causas do mal,choca-se com a srie psicognica, impossibilitada, da mesma forma, defornecer qualquer explicao racional para o desvio. Porm, nesse pontovertiginoso, habita o Minotauro, quer dizer, o enigma. As fices ace-flicas do grupo rechaam, precisamente, tanto o materialismomecanicista do modelo orgnico, quanto o idealismo metafsico da for-

    mao e do carter, propondo, entretanto, uma linhagem tica spino-zista, segundo a qual positividade, entendida como essncia infinita,responde-se com uma afirmativa aptica, a de uma existncia necessriae imanente.

    Nesse sentido, se acatamos essa lio, a referncia que Mrio faz aLautramont para explicar o caso Febrnio adquire, portanto, um sen-tido muito preciso. que Lautramont liberta a poesia francesa de seusequestro formal. E esse gesto est vinculado a um outro: o da media-o. Febrnio v a si mesmo como um mensageiro, como Hermes, como

    o portador nietzschiano da Boa Nova, ou seja, que sua escritura tem,como funo precpua, a da transmisso de novos valores. Ora, a formaescolhida por Ducasse, que a histria literria convencionou em chamarde poema em prosa, tambm uma forma de mediao e traduo. Nopodemos esquecer que, na tradio literria francesa, o poema em prosasurge do gosto romntico pelas literaturas estrangeiras, pelas culturasfolclricas, primitivas, que eram traduzidas ao francs e prosa a par-tir de lieder e baladas estrangeiras (gregas, inglesas, espanholas). Empoucas palavras, o poema em prosa manifesta, fundamentalmente, um

    trabalho de traduo.Contrariamente tese autonomista de Suzanne Bernard, Marcelin

    Pleynet tem defendido a tese de que o poema em prosa, longe de ser umaforma, um travail de la langue dans la langue e isso significa que esseum trabalho que le pome en prose signale en mme temps quil le dissi-mule. O que quer dizer essa frmula de que o poema assinala e dissimulaao mesmo tempo? No quer dizer, como sustenta a tese autonomista,modernista, funcionalista, que o poema em prosa seja a unio dos con-trrios prosa e poesia, liberdade e rigor, anarquia transgressiva e hie-

    rarquia formal. Ao contrrio, baseado em Heidegger, Pleynet argumenta:

    Le pome en prose nest pas fond sur lunion des contraires mais ilappelle la pense et lharmonie qui ne se rvle pas au regard ordinai-

    2. No quarto nmero deDocuments, tambm de 1930, logo aps um artigo de Roger Herv sobre

    sacrifcios humanos na Amrica Central, Bataille se vale da figura da serpente com penas, o

    Quetzalcoatl, para analisar a histria em quadrinhos Les pieds nickels, artigo, por sua vez,

    acompanhado por uma srie de fotogramas de A linha geral, comentados por Robert Desnos,

    que enfatiza seu carter revulsivo para les amateurs de mystres bon march, les tenants

    du dualisme matire-esprit, o de soltar um vento annimo e poderoso sobre o rosto dos es-

    pectadores, ora nas florestas brasileiras, ora nos dens do Pacfico.

    3. CENDRARS, Blaise. Febrnio ndio do Brasil (deA vida perigosa). In: Etc,etc(um livro

    100% brasileiro). So Paulo: Perspectiva, 1976, p. 166168.4. FEBRNIO.As revelaes do prncipe do fogo. Rio de Janeiro: Tip. Monteiro & Borrelli, 1926,

    p. 47.

    5. LACAN, Jacques. Le problme du style et les formes paranoaques de lexprience. Minotaure,

    n. 1, Paris, p. 6869.

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    re, qui nest donc pour lui que contrastes hterognes cette harmoniesecrte est plus puissante que lharmonie manifeste Le pome en prose

    joue et djoue le langage ordinaire, en ce que le discours de tous les joursest un pome ayant echapp, et pour cette raison un pome puis danslusure, duquel peine encore se fait entendre un appel 6 cela mmeque entrane prcisment traiter la fausse opposition prose/posie.7

    Essa posio de Pleynet continua na comunicao por ele apresen-tada em dois colquios conjuntos, o primeiro, em Londres, o outro, emParis, ambos em maro de 1995. Na interveno londrina, o seminrioThe avant-garde and after, Pleynet se pergunta Comment en finir avecle modernisme? e toma, como exemplo, o caso do poema em prosa ou,trocando em midos, toma o problema de uma forma em sntese hege-liana de belo universal, desconstruindo sua falsa homogeneidade e argu-mentando que o poema em prosa, il participe de la prose comme posieet de la posie comme prose,8 quer dizer que ele seria um intruso, um

    parasita, no sentido de Srres, que agua os intercmbios simblicos naestrutura j existente.

    Aceito o argumento, poderamos projet-lo ao caso Febrnio e afir-mar que Febrnio Macunama, mas que esse seu discurso, uma sorte deladainha do homo sacer ps-nacional, participa das estruturas meldicasrepetitivas dos salmos e do discurso proftico, transformando-o, na ver-dade, em uma sorte de Vieira ensandecido e ambulante que, em plenaPraa da Luz, como epgono do Conselheiro, ainda prefigura mais umretorno, o de Macaba, o resto ps-humano na cidade que no incorpora

    mais ningum, cruzando, nesse gesto ambivalente, religio, transgressoe sexo, algo que mais tarde leremos tambm em Bundo, de Valdo Motta.No se trata, como se v, de uma questo formal, uma influncia deste oudaquele autor, sobre um outro, mas de uma questo inerente s categoriasa partir das quais pensar o moderno.

    Mrio de Andrade, na resenha que dedica a Revelaes, deixa claraessa genealogia do homo sacer brasileiro:

    Eu desconfio bastante de que nas curiosas manifestaes de religiosi-

    dade coletiva, nas diversas caraimonhagas, nos Canudos e Joazeirosque surgem periodicamente pelo Brasil, entra tambm com boa cargade culpa o nosso apregoado individualismo. Ele que em grande parteleva criao desses ensimesmados deusinhos de meia-tigela que comtamanha facilidade se substituem s vagas noes de um Deus ritual,apreendidas desde a infncia. E ainda em grande parte deve ser essemesmo individualismo que, auxiliado pelas condies culturais e sociais,

    pelo ruralismo persistente mesmo em cidades grandes do pas facilita oimediato desapego s tradies religiosas e provoca as ondas adesistas

    que com tanta rapidez se formam em torno desses deuses novos, pro-metedores mais recentes de uma vida melhor. Nesse sentido a religio

    protestante veio auxiliar poderosamente o nosso individualismo. [] Asigrejas so lugares inteis, os padres perniciosos; e quanto a isso de

    adorar os santos de madeira ou gesso, que tomam para si grande partedo que a Deus devido, isso o maior dos crimes. Mas todos esses nor-destinos (so invariavelmente nordestinos ou baianos esses profetas),embora visivelmente destinados em sua santidade pelos princpios maisfacilmente apreensveis do protestantismo, tambm no aconselham afrequncia a nenhum culto protestante, no. A santidade est com eles,so todos eles uns Antnio Conselheiros ainda no ovo, que a indiferena

    urbana se esquece de chocar, nicos adeptos de sua bblia, l deles ense-bada e decoradinha do princpio ao fim.9

    Sabemos que Febrnio era filho de aougueiro e no podemos esque-cer que algum to prximo de Lacan como Georges Bataille via, noabatedouro, uma espcie de templo contemporneo. Diz Bataille no ver-bete sobre o matadouro de Documents que essas construes derivamda religio no sentido de que os templos primitivos estavam voltados aum uso dplice, tanto para as preces, quanto para as matanas, gerando

    assim uma coincidncia inquietante entre os mistrios mitolgicos e agrandeza lgubre dos locais onde escorre o sangue. A profanao, veionos lembrar mais contemporaneamente Giorgio Agamben, consiste, jus-tamente, na possibilidade de tocarmos nas vsceras, naquelas partes doanimal que entraro no sacrifcio e que no poderiam ser tocadas, da queo abatedouro tenha se tornado, assim, um lugar maldito, como um barcoportador de clera, nos diz Bataille.

    Esta ideia no fortuita porque se vincula a essa duplicidade entreme e mar, mre e mer, coincidncia que se manifesta claramente na

    sobrevivncia da Me dgua, nas Revelaes. Ora, em grego, tanto ocolo quanto as dobras do vestido (depois, explicitamente, o tero) tmo mesmo nome do mar. No livro sexto daIlada, Dionsio, aterrorizado,foge do mortfero Licurgo, atirando-se ao mar e, a seguir, Ttis recebe-o em seu klpos. Hefaistos, no livro 18, se salva da mesma forma, noklpos de Ttis, i.e., no mar. Nosso significante golfo provm de klpos,assim como a palavra francesa gouffre, todo um tema da modernidade apartir de Baudelaire. De modo que, sem maior deslocamento semitico,um poeta grego podia, com a mesma voz, dizer me e dizer mar. Nas ln-

    guas modernas, s o francs, por sinal, conserva essa ambivalncia, quefoi sabiamente explorada por Freddi Guthmann, em seu livroLa granderespiration danse.

    Admirado por Breton, Guthmann foi ntimo amigo de Cortzar, quenele se inspirou para plasmar o Oliveira do Jogo da amarelinha, dondeessa identidade transatlntica, cindida, euroamericana, sagrada-abjeta,irrigada em todo o ciclo da me dgua, prefigurada pela moral dos antro-pfagos de Os condenados, de Oswald de Andrade, retomada em Os pr-mios e expandida, mais adiante, nas passagens da fico de Cortzar,

    opera, na ambivalncia do kolpos, em busca de uma identidade sem cul-pa, sacer, tal como a de Febrnio. Donde, seria possvel concluir, que

    As revelaes do prncipe do fogo no tem a consistncia de um casopatolgico, mas conservam a dinmica de uma cultura.

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    Com efeito, em seu ensaio, Mrio deAndrade v, em Febrnio, um exemplo pecu-liar de refoulement. O conceito de refoulement,que o prprio Mrio extrai de suas leituras deFreud e que, mais tarde, ele mesmo traduziriacomo sequestro, constri-se a partir do verbofouler (do latim fullo, um cacete para bater os

    tecidos). O verbo fouler quer dizer, portanto,comprimir, apertar, curtir o couro, exercer pres-so manual, um contato corporal muito espec-fico. Est situado, ento, na esfera da icnologia

    o saber das impresses ou vestgios muitomais do que da iconologia, o saber das imagens.

    No podemos esquecer tambm que um dosconceitos mais recorrentes da psiquiatria e mes-mo da psicologia do sculo 19 o de foules, as

    multides, que assim se chamam porque vivemapertadas, se roando mutuamente, interpreta-das sempre como massas indiferenciadas, pres-tes a sucumbir a regresses atvicas de pulsesprimrias e inconscientes. Inserido numa foule,o sujeito moderno perdia toda dimenso subje-tiva individual e emergia com a fora informedo grupo irracional. A esse respeito, GustaveLe Bon publica em 1895 um ensaio clssico,

    usado, alis, por Freud emPsicologia das mas-sas e anlise do eu: La psychologie des fou-les. Entre os vanguardistas, a expresso fouleser logo incorporada por Marinetti, em artigopara aRevue Blanche, de 1900, artigo referidos passeatas milanesas de 1898. Seu fascniocom as foules contestatrias transparece ain-da emLe roi bombance, uma tragdia satricade 1905, calcada no modelo Ubu-Roi e onde,

    contra a massa e sua eterna fome de felicidadeimpossvel, Marinetti prope o Poeta-Idiota.

    H, ainda, um psiquiatra italiano, ScipioSighele, que, em 1903, publica Lintelligenzadella folla, no qual novamente se cruzam a mas-sa, o inconsciente e o primitivo, para mostrar aarticulao entre atributos fsicos (eletromag-netismo) e formaes sociais ou formaes doinconsciente. Hipnose, histeria, sonambulismo

    so assim ressignificados luz do significantevibraes, como estmulos aos quais a massa(sempre feminina) responderia passivamen-te. No custa sublinhar que Scipio Sighele, tal

    como Gabriel Tarde, era um continuador expl-cito de The pathology of mind, de Maudsley,o psiquiatra ingls a quem Euclides da Cunha,impotente e ultrapassado pelos acontecimentos,delega a responsabilidade de explicar a loucurade Canudos.

    Mais um dado. Em seu romance A virgem

    das rochas, DAnnunzio tambm alude s fou-les com os atributos medusinos de devorar oautntico soberano. As multides no passariamento de grgonas do pntano, gorghi melmosi,a chafurdar na lama. No h base etimolgicacerta, mas bem poderamos aventar a hiptesede uma relao efetiva entre a obscura insta-bilidade das massas e uma palavra portuguesacomo o adjetivo fulo, que alude tanto mudan-

    a de cor, sempre em torno do negro (fuligem),quanto ao carter irado, raivoso, histrico, dareao inesperada de ficar fulo.

    Ora, para sacudir as massas, para excit-las, em uma palavra, para salv-las, Marinettidesenha atos multitudinrios, conferncias, queele chamava de serate, em que ele recitava comtcnicas inovadoras, as da fisicofollia. Sublinhoo deslocamento: a follia conduzida pelo tcni-

    co modernlatra disciplina as foules desregra-das pela histria. Essa poderia, em suma, sera moral do sequestro. Onde h sequestro, hmediao do capital (da tcnica) para permitir,novamente, o fluxo das paixes.

    De algum modo, a leitura arqueolgica dAsrevelaes do prncipe do fogo pode nos auxi-liar a ler aquilo que no era esperado, a ler oque no se esperava que fosse lido. Esse mto-

    do colabora, efetivamente, a inventar, mas noa reconhecer, seno a descobrir, nunca a iden-tificar, as potncias da fico que dormem emum texto nada cannico e lido, to somente,conforme as regras de uma sociedade que mui-to ajudou a invisibiliz-lo.

    RAUL ANTELO

    Doutor em Letras e Professor Titular de Literatura na

    Universidade Federal de Santa Catarina.

    6. HEIDEGGER, Martin. Acheminement vers la parole. Paris,

    Gallimard, 1976.

    7. PLEYNET, Marcelin. Le pome en prose et la posie. Linfini,

    n 48, Paris: 1994, p. 81.

    8. PLEYNET, Marcelin. Comment en finir avec le modernisme?

    In: De Tel quel linfini. Lavant-garde et aprs? Paris: Pleins

    Feux, 2000, p. 38.

    9. ANDRADE, Mrio de. Um poeta mstico. O Estado de So

    Paulo, 12 nov. 1939. Vanessa Nahas explora as reverbera-

    es dessa obra em sua tese Rastros freudianos em Mriode Andrade (UFSC, 2003).

    32 Junho/2009E i l M t

  • 7/29/2019 Ral Antelo - Suplemento MG - Monstros

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    32 Especial Monstros

    O enfermeiro:nem crime,nem castigo

    Ruth Silviano Brando

    O blqua e dissimulada, assim Jos Dias descreve Capitu,assim repete Bentinho, assim escreve Bento Santiago, odom Casmurro, em seu texto de primeira pessoa; oblqua edissimulada, assim a retrica machadiana, em seu modo de mostrar queo rei est nu, numa sociedade que tem a lbia do pai de Janjo do contoA teoria do medalho. Nada de grandes verdades, ditas abertamente,disse ele, com outras palavras, em seu ensinamento a seu filho aprendiz

    de retrico, pois as linhas tortas ou tortuosas, as pequenas elipses, aspalavras insignificantes soltas, se dizem como se no tivessem nenhumaimportncia, num discurso em que nada se alinha rigorosamente, masapresenta lapsos a que ningum d muita ateno.

    Quem daria importncia ao fato de o enfermeiro do conto homnimo

    no ser enfermeiro, nem mesmo telogo, mas apenas copista? TambmJos Dias no era mdico, mas acabou tendo um papel importante nacasa de dona Glria, mesmo depois da revelao de no ter o diplomade medicina.

    Mesmo afirmando que falto eu mesmo e essa lacuna tudo, quemduvida das palavras de Santiago, ex-seminarista, advogado, bom deescrita? Tantas vezes se repetem as histrias oblquas e dissimuladas naobra machadiana e o leitor no lhes d ateno, pois a ele basta o pactocom o narrador, para dar entrada no fingimento da histria lida. O leitor

    entra na verso do narrador-personagem, como entramos e damos razo

    a quem nos conta a histria de um acontecimento de que participa ouparticipou, principalmente se nos conta em confiana, dando-nos o cr-dito a que s se d a pessoas que lhe importam. Em troca, damos-lhe umcrdito imediato, sem prestarmos ateno em detalhes.

    Leitores de Machado de Assis j notaram os furos e equvocos dospersonagens dos relatos em primeira pessoa, mas podem no dar impor-tncia ao fato de Procpio no ser enfermeiro e muito mesmo telogo,

    como afirma, corrigindo-se em seguida: fiz-me telogo, quero dizer,copiava os estudos de teologia de um padre de Niteri, antigo com-panheiro de colgio, que assim me dava, delicadamente, casa, cama emesa.1 Eis um pequeno lapso, sem importncia, se no houvesse enor-

    me distncia entre um telogo e um copista, mesmo nos lembrando da

    importncia daqueles que exerciam seu ofcio nas bibliotecas medievais,onde trabalhavam horas em suas cpias manuscritas, imersos no siln-cio, com ateno e pacincia, que, lembramos, Procpio no tinha, poiscom apenas um ano de trabalho j estava enfarado de copiar citaeslatinas e frmulas eclesisticas (MP, p. 529).

    Pode-se pensar que ser copista tambm ser um bom mimetizador, ter algo de ator e h mesmo algo da ordem do simulacro nesse trabalho.Alm disso, copiar pode ser to mecnico que o que fica do copiador a letra, so seus traos, seus vestgios que apontam para uma galeria de

    tipos machadianos, como o Jos Dias que tambm