raposo. artivismo_articulando dissidências, criando insurgências

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  • 7/26/2019 Raposo. Artivismo_articulando Dissidncias, Criando Insurgncias

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    CADERNOSAA

    Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 4, n 2/2015, pag. 3-12

    ARTIVISMO: ARTICULANDODISSIDNCIAS, CRIANDOINSURGNCIAS

    Paulo RaposoISCE-IUL, CRIA-IUL, Lisboa, Portugal1

    in.sur.gir (lat insurgere)1. Amotinar(-se), revoltar(-se), sublevar(-se).

    2. Opor-se, reagir.3. Emergir, surgir, aparecer, vir tona, (surgir) de dentro

    (in Balaklava, 2014, s/p.)

    Enquanto preparava a introduo a este dossi, tive a oportunidade de conhecer o interes-sante trabalho de um artista brasileiro, Andr de Castro, talvez pelas piores razes. Este artista

    carioca, radicado nos Estados Unidos da Amrica, tem vindo a desenvolver vrios projetos quepensam a dimenso poltica da arte e cruzam os territrios do protesto social, procurando umavisibilidade artstica de situaes sociais politicamente significantes. Um desses projetos intitu-la-seMovimentos(2013) e consiste:

    (...) num painel composto por impresses em serigrafia dos envolvidos nos movimentos do Brasil, EUA(Occupy), urquia e Grcia, juntamente com suas referncias polticas. Cada participante enviou atravs dasmdias sociais uma foto de rosto e respondeu a uma srie de perguntas relacionadas ao movimento polticode seu pais e sua identidade: uma cor, uma pessoa, uma imagem, um lugar, uma data, uma msica e um ob-jeto. Justapondo essas referencias a suas fotos, foram criados retratos polticos individuais. O conjunto dasimagens gerou uma mini etnografia da cultura material e imaterial das manifestaes.2

    Como referi, o meu cruzamento com a obra de Andr de Castro ter sido movido pelaspiores razes, porque se ficou a dever ao facto de este artista estar a acompanhar e a elaborar umprojeto artstico, praticamente em tempo real, sobre um protesto de jovens ativistas angolanospresos h mais de 3 meses - tempo limite legal em Angola para priso preventiva - e acusadosde preparao de insurreio e levante contra o Estado. Segundo a verso oficial do Governode Luanda, estes jovens teriam sido detidos em flagrante delito em Junho 2015, como cons-ta no seu processo acusatrio, numa altura em que se encontravam reunidos num livraria deLuanda, lendo um livro de Domingos Castro Ferramentas para destruir o ditador e evitar novaditadura - filosofia da libertao de Angola,considerado proibido pelas autoridades angolanas e

    1 Contato do autor: [email protected] Andr de Castro website - http://cargocollective.com/andredecastro/Projeto-Movimentos (acesso em Outubro,15, 2015)

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    pag. 4 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA

    inspirado na obra de Gene Sharp Da ditadura democracia, que ter sido uma das obras rastilhodas chamadas primaveras rabes. Estas leituras eram feitas regularmente nestas reunies pelosjovens ativistas, no quadro de pequenos cursos de formao para ativistas. Andr de Castro, porisso mesmo, decidiu expor um conjunto de serigrafias a partir de fotos dos ativistas com umelemento comum - #liberdade j - que o hashtag polticoda campanha internacional de soli-dariedade com este processo e, dessa forma, instal-la num painel numa praa pblica do Riode Janeiro, dando assim voz e visibilidade sua luta pela liberdade de expresso, de reunio e demanifestao.

    Andr de Castro, 2015. Monoprint em Serigrafia, acrlica sobre pa-

    pel, 50x70cm.

    Entretanto um dos ativistas, o luso-angolano e rapperLuaty Beiro, decidiu iniciar umagreve de fome que nesta altura em que escrevo vai j no 30 dia e que espero profundamente noresulte, tragicamente, na sua morte.3Luaty, representa assim neste processo de luta a expressomxima do combate desigual que cidadania e poder podem travar. E , por tudo isso, que estejovem est representado na serigrafia de Andr de Castro que constar de prximas exposiesa realizar pelo artista plstico no Brasil e em Nova Iorque e com a qual eu desejava iniciar aintroduo a um dossi sobre este tema: o artivismo.

    3 Quando esta introduo estava j em fase de edio final, fomos surpreendidos com a notcia do final da greve defome de Luaty Beiro, cumprindo exatamente o mesmo nmero de dias de greve quantos os anos da presidnciados Presidente Jos Eduardo dos Santos em Angola - 36.

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    Introduo pag. 5

    Cheguei a Andr de Castro porque o seu trabalho comeou a chegar at mim por via dociberespao e pela rede social Facebook. Na rede de contatos com amigos brasileiros, muitosdeles ativistas e investigadores, foi-me apresentado o projetoMovimentose, com alguma felici-dade e rapidamente, pude chegar a contatar diretamente o seu autor e perceber o seu trabalho.Creio que o que este artista plstico est a fazer recobre justamente uma parte importante doapelo que fizemos para este dossi:

    A utilizao de inmeras linguagens e plataformas para explicitar, comentar e expressar vises do mundo ede produzir pensamento crtico, multiplica o espectro do artivismoa partir do qual possvel intervir poticae performativamente e construir espaos de comunicao e de opinio no campo poltico - arte de rua, aesdiretas, performances, vdeo-art, rdio, culture jamming, hacktivism, subvertising, arte urbana, manifestos emanifestaes ou desobedincia civil, entre outras. (...) Que conexes se buscam entre poticas e performan-ces no espao pblico e no ciberespao (Castells 1999, Downing 2001, Reguillo 2005)? E de que modo oartivismoencontra no mundo digital um territrio amigvel para se tornar viral e simultaneamente para seconstruir como um arquivo de documentao performativa poltica (aylor 2003)?

    O trabalho de Andr de Castro , pois, em meu entender, no apenas uma expresso

    potica e performativa de arte urbana, ele tambm adquire uma propenso de documentaoperformativa poltica, pelo seu carcter viral de difuso digital em redes globais e rizomticas( Juris 2005, Joyce 2010, Postill 2012), que alis me levaram at ele.

    Artivismo um neologismo conceptual ainda de instvel consensualidade quer no campodas cincias sociais, quer no campo das artes. Apela a ligaes, to clssicas como prolixas e po-lmicas entre arte e poltica, e estimula os destinos potenciais da arte enquanto ato de resistn-cia e subverso. Pode ser encontrado em intervenes sociais e polticas, produzidas por pessoasou coletivos, atravs de estratgias poticas e performativas, como as que Andr de Castro temvindo a prosseguir. A sua natureza esttica e simblica amplifica, sensibiliza, reflete e interroga

    temas e situaes num dado contexto histrico e social, visando a mudana ou a resistncia.Artivismoconsolida-se assim como causa e reivindicao social e simultaneamente como ruptu-ra artstica nomeadamente, pela proposio de cenrios, paisagens e ecologias alternativas defruio, de participao e de criao artstica. Resta saber se esta parceria invisvel entre o artistacarioca (Andr) e o ativista luso-angolano (Luaty) cumprir o seu destino libertador?

    Recentemente tambm, enquanto vagabundeava surfando o ciberespao em busca de refe-rncias ao neologismo artivismo, encontrei uma curta entrevista num blog de eco-ativismo4auma artista-ativista vietnamita, Hong Huoang que resultava de uma notcia sobre um encontrocom jovens ambientalistas -East Asia Leadership Camp- realizado em Ha Long no Vietnam ecujo estimulante ttulo era Artivism and Creativity in Southeast Asia. No resisto a citar umapassagem da curta entrevista em que Houang responde a uma questo sobre as possibilidades daao direta em certos pases do sueste asitico e a importncia da arte e da criatividade:

    Confrontation means different things in different contexts. In places where it might be a little more diffi-cult to use direct action to speak truth to power, we can tap into the creativity of young people and use thiscreativity to convey messages in a less confrontational way. On top of that, art crosses boundaries and breakslanguage barriers. With art, we have the opportunity to tell stories without a shared language to get ourmessages out there.5

    4 O blog 350.org pode ser acedido em http://350.org/ (acesso em Outubro, 15, 2015)5 in http://350.org/40605/ (acesso em Outubro, 15, 2015)

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    pag. 6 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA

    Esta mesma postura pode ser replicada no contexto do conflito Israelo-palestiniano, no-meadamente com o exemplo e a trajetria de um coletivo artstico - Te Freedom Teatre- comsede no Campo de Refugiados de Jenin, a norte da Cisjordnia, territrio tutelado pelas autori-dades palestinianas mas controlado pelo exrcito de Israel. Definido com um grupo de ativismocriativo de base comunitria, enquadrado por um centro cultural cuja concepo foi iniciada em1953, Te Freedom Teatre, ter sido, apenas aparentemente de forma paradoxal, resultado deum projeto de uma ativista dos direitos humanos israelita, Arna Mer Khamis que ali desejavaabrir um espao de encontro entre jovens e de terapia ps-traumtica, resultante dos efeitosda 1 Intifada. Aps a sua morte, o projeto foi continuado pelo seu filho Juliano Mer Khamisque ali abriu na dcada de 1980 vrios centros educativos pela arte at que um dos espaos - oStone Teatre - foi destrudo por um ataque israelita no mbito da Guerra de Jenin, em 2002,tendo morrido vrios estudantes. Juliano, cineasta e ativista, decidiu partir para a Europa (ondeir produzir um documentrio6sobre a me e o seu sonho) mas, a pedido de antigos alunos,regressa a Jenin em 2006 para refundar o projeto, e agora finalmente sob o ttulo de Te FreedomTeatre. Nas suas palavras, a misso do teatro era:

    You dont have to heal the children in Jenin. We are not trying to heal their violence. We try to challenge itinto more productive ways. And more productive ways are not an alternative to resistance. What we are do-ing in the theatre is not trying to be a replacement or an alternative to the resistance of the Palestinians in thestruggle for liberation, just the opposite. Tis must be clear. I know its not good for fundraising, because Imnot a social worker, Im not a good Jew going to help the Arabs, and Im not a philanthropic Palestinian whocomes to feed the poor. We are joining, by all means, the struggle for liberation of the Palestinian people,which is our liberation struggle. . . . Were not healers. Were not good Christians. We are freedom fighters. 7

    Dramaticamente, e profetizada pelo prprio, em 2011 a morte veio ao encontro de Juliano,assassinado por um atirador solitrio, presumivelmente do Hamas(grupo armado palestiniano)

    embora as razes estejam at hoje envoltas em mistrio. Sabe-se que no era particularmenteapoiado pelos radicais conservadores palestinianos que o consideravam um corruptor de jo-vens afastando-os da misso da resistncia armada a Israel e a direita israelita considerava-o umtraidor que defendia a causa palestiniana. O projeto sobreviveu sua morte e est hoje ativoe reconhecido internacionalmente, sendo curiosamente dirigido por uma atriz portuguesa,Micaela Miranda. Mas em ambos os casos referidos, seja nos emergentes movimentos sociaisna sia, seja no perene conflito israelo-rabe, poder, ento, a arte anular o destino?8

    Decidi incluir uma citao a propsito do termo insurgir que, tal como a serigrafia deAndr de Castro, me iluminaram esta introduo. Retirei-a de um texto com o curioso ttuloBalaklava. Um Chamado guerra nmade. Faces Fictcias,uma publicao online, apcrifa elibertria, de circulao relativamente restrita (uma vez mais via redes sociais), mas muito decor-rente da temporalidade contempornea de dissidncia poltica e de confronto direto entre podere cidadania, sem passar, digamos assim, pelo quadro representativo das chamadas democraciasmodernas. A balaklava (ou passa-montanhas) de certa forma um dos smbolos mais constan-tes nos ltimos tempos no que confere ao protesto poltico - desde a sua apario romntica

    6Arnas Children(2004, Palestiniano-holands, 84 min) pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=-cQZiHgbBBcI (acesso em Outubro, 15, 2015)7 Our Legacy Te Freedom Teatre (acesso em Outubro 15, 2015) http://www.thefreedomtheatre.org/who-we--are/mission/

    8 Esta era a alis a questo de rastilho para um colquio onde tive a honra de participar no MNAC - MuseuNacional de Arte Contempornea em Lisboa, em Janeiro 2013 no mbito da exposio Are You Still Awake?.(http://www.museuartecontemporanea.pt/pt/programacao/1444, acesso em Outubro 22, 2015)

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    Introduo pag. 7

    pela mo do sub-comandante Marcos no movimento zapatista no Mxico, at capa da imeMagazineque em 2011 elegeu Te Protestercomo figura do ano a partir de uma ilustrao deuma manifestante com uma espcie de hbrido da balaklava(um leno e um barrete, que serviabasicamente para escapar aos gases disparados pela policia), esteticizando assim o protesto po-ltico e apagando o seu rasto histrico. E, de facto, h que imaginar um itinerrio histrico paraestes fenmenos recentes de protesto social que alguns autores associam emergncia do quechamam os novssimos movimentos sociais( Juris, Freixa, Pereira 2009) - e esse itinerrio leva-nosem linha direta aos protestos anti-globalizao de fim de sculo, em Seattle 1999, Praga 2000ou a Genva 2002 (cf. Di Giovanni 2012). Como nos refere John Dawsey (2012), os mesmosprotestos que a revista ime Magazine considerou ineficazes e irrelevantes. rata-se, con-forme Di Giovanni, de um conjunto de insurreies que, por sua natureza temporria, nuncachegaram a completar o destino trgico das revoltas tradas (2012:14).

    Insurgir associa-se, ento, sinonimicamente a sublevar-se, amotinar-se, revoltar-se, emer-gir, surgir de dentro, reagir, opor-se, tudo sinnimos prximos do desejo insurrecional, da insur-

    gncia. Mas de algum modo insurgir no contempla necessariamente a sua completude. Destinoe desejo, continuam, suspensos ou adiados, a confundir-se na boca e nos corpos dos seus atores.E esta uma das inquietaes que este dossi procura equacionar. Como pensar o artivismoen-quanto insurgncia poltica que no contendo propriamente um plano de transformao socialpossa ser todavia o rastilho para se comear a viver o que se sonha (Arditi 2012, Holston 2007)?E um pouco mais alm ainda na ambio do debate aqui incluso neste dossi: como se constituiatravs do artivismoo direito a reclamar a cidade (apolis) ou a emancipar discursos contra-he-gemnicos ou de contra-cultura (Harvey 2008, Lefvre 1968, Rancire 2005)?

    A Escola de Frankfurt tinha bem presente a equao arte e poltica. er sido talvez Walter

    Benjamim um dos maiores crticos da esteticizao da poltica praticada pelo fascismo, no-meadamente pelo III Reich na Alemanha Nazista, procurando simultaneamente dar conta daurgncia de uma arte politizada que nasceria pela mo do comunismo. Jacques Rancire no sereconhece nesta especificidade temporal de Benjamim, afirmando que:

    No h novidade radical. A esttica e a poltica so maneiras de organizar o sensvel: de dar a entender, de dara ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos. Para mim, um dado permanente.(2010:s/p)9

    Rancire procura assim explicitar a perenidade da relao entre arte e poltica e afastar-seda posio de Benjamim sobre a intensidade daquela relao na primeira metade do sculo XXenquanto esteticizao do poltico. Reflexes que somadas frase do poeta modernista italianoGiuseppe Ungaretti, entrevistado por Pasolini no seu documentrio Love meetings(1964) re-velam uma espcie de perenidade desta dimenso transgressora da arte, dizia: Sou um poeta ecomo tal eu comeo a transgredir todas as leis fazendo poesia!10. Mas um debate mais filosficosobre arte e poltica ficou de algum modo suspenso no dossi. Os artigos aqui reunidos nobuscam tanto articulaes entre arte e Estado ou formas estticas de exerccio do poder masantes dar conta de formas dissidentes de arte que, praticadas por sujeitos isolados ou colectivose pontuadas por modos concretos de atuao poltica, se configuram como artivismo.

    9 in Entrevista revista Cult, n 139, Maro de 2010 (http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jac-ques-ranciere/, acesso em Outubro 22, 2015)10 Pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=LKr85prCmPY (acesso em Outubro 22, 2015)

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    pag. 8 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA

    Considerando que a equao em torno do relacionamento entre arte e poltica foi ilustradadesde muito cedo no pensamento aristotlico mas ligando-o sobretudo retrica e arte dodiscurso (o logocentrismo surge justamente como a dimenso poltica do ser humano aristot-lico), curiosamente, este peso da palavra, do discurso e do texto, podemos tambm v-lo plas-mado nas insurreies de rua em Maio de 68 em Paris, na profuso de declaraes, por exemplo,e em regimes de apresentao inovadores: os graffiti. A poesia nascia debaixo das pedras dacalada, onde floresciam praias sendo que a poesia era sobretudo ao. Esta poesia subversivatem regressado mais recentemente atravs de aes de subvertisinge culture jamminge que soformas de artivismo que ficaram ausentes deste dossi todavia.

    Como dizia Jerry Ruby nos anos 1960 a respeito dos protestos contra a guerra do Vietnama rua um palco, ou como intitulava Schechner (1995) um seu artigo sobre os confrontos naChina em 1989 que resultaram no Massacre de iananmen. Esta imprevisibilidade e improvi-sao que a insurreio anuncia projeta-se ento neste remoinho histrico (Dawsey 2012) deprotestos cuja marca de carnavalizao ou de riso (cf. Bakhtine 1965) se interseta com formas

    mais insurgentes de desobedincia. Henri Lefebvre no seu seminal ensaio de 1968, Le droit laville,falava de uma cidade com um enorme potencial revolucionrio em que se poderia respirarum ar que recordava as comunas dos finais da Idade Mdia e que tornava livres aqueles que orespirassem. O texto profeticamente publicado uns meses antes dos acontecimentos de Maio de68 em Paris, descrevia a equao tensional entre a racionalidade industrial das urbes modernascriando espaos abstratos o espao das mercadorias, homogneo, consensual embora segregadore onde a violncia era latente e uma outra ordem de habitar o espao, uma ordem do vivido,que devolvia aos sujeitos o direito cidade. Este espao haveria de emergir naquilo que profe-ticamente anunciava como uma rebelio do vivido. David Harvey em Rebel Cities (2012) traa oitinerrio do direito cidade na viso de Lefebvre emergente revoluo urbana protagonizada

    pelos corpos que habitam ou se insurgem agora nas praas ocupadas, um pouco por todo lado,nos ltimos anos.

    Foi portanto neste clima efervescente de protestos polticos associados reformulaode novos agentes - novssimos movimentos sociais - numa cidade cada vez mais caracterizadapor uma multido de despossudos e precrios (no sentido proposto por Athanassiou & Butler,2013) e por um tenso combate anti-capitalista, que o artivismose tem vindo a consolidar comomodus operandi. Em 2008, o termo artivismo ter porventura entrado no contexto acadmicocom um artigo de Chela Sandoval e Gisela Latorre sobre ativismo digital chicano 11. Para asautoras significava a prtica e a obra criada por indivduos que buscavam uma relao orgnicaentre arte e ativismo, exigindo por isso no apenas uma volio esttica mas um modo de cons-cincia e um posicionamento poltico no mundo. Uma vez mais fica em aberto a questo documprimento deste destino a que a arte com refinamento poltico se prope.

    Uma das mais recorrentes ideias nos estudos de mdia sobre movimentos sociais estarticulada com o chamado boomdos usos das tecnologias de informao e comunicao queestariam a modificar as interlocues e as relaes entre as pessoas a uma escala global. Defacto, houve uma revoluo nos formatos mediticos e nas tecnologias que os dinamizam e issotem mudado as nossas vidas e necessariamente as modalidades de protesto. Nos ltimos anos,movimentos globais tm ampliado as fronteiras da esfera pblica, reformulando ou mesmo

    11 Chela Sandoval & Gisela Latorre. 2008. Chicana/o Artivism: Judy Bacas Digital Work with Youth of Color,in Learning Race and Ethnicity:Youth and Digital Media, Anna Everett(ed.), Cambridge MA: MI Press. Pp-81-108.

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    Introduo pag. 9

    eclipsando a distino entre o real e o virtual. Na realidade, este trusmo sobre as revolu-es mediticas est de certa forma exorbitado na sua atualidade porque podemos pelo menosrecuar uns 30 anos para reconhecer esta tendncia em pensar (critica ou optimistamente) ademocratizao do uso tecnolgico. Os processos comunicativos nos movimentos sociais estoobviamente articulados com um novo enquadramento tecnolgico. Desde o inicio dos anos 80com a ajuda do telefax, ou depois com a exploso global do correio electrnico e dos frunsinternuticos nos anos 90, seguido pela febre da blogosfera e a criao dos Indymedia no finaldos 90, at ao aparecimento das redes sociais Facebook (em 2004), do You ube (2005) e dowitter (em 2006), todos estes aperfeioamentos tcnicos juntamente com a expanso de umesprito DIY (Do It Yourself) tiveram um impacto fundamental na forma como os movimentossociais passaram a comunicar, mobilizar e sustentam comunidades polticas de resistncia. alefeito obviamente estendeu-se ao artivismode um modo muito eloquente, como podemos veri-ficar nos exemplos mencionados no incio desta introduo, bem como em alguns dos textos dodossi. Em suma, a cdigo digital incorporado no artivismo, torna-se tal como o ciber-ativismo,uma categoria fluda e hbrida, resultando em itinerrios que ora se escondem e legitimam em

    rizomas independentes,peer-to-peer, libertrios e subterrneos, ora dialogam com os canais e asplataformas mainstreampara chegarem a audincias mais alargadas e para disputar a historici-dadeda informao e da mensagem com as grandes narrativas, hegemnicas e produzidas pelopoder. o que Athanassiou and Butler (2013) chamam de perfomativity in plurality: novasformas de organizao e resistncia incluindo prticas de arte de guerrilha, ocupaes artivistasde espaos do Estado, boicotes de instituies de arte e educao, ocupaes de fbricas, movi-mentos de ocupao de praas, hacktivismos, economias e assembleias comunitrias emergentes,espaos, publicaes e coletivos artsticos autogestionrios, estruturas participativas relacionaise performances experimentais crticas. Este dossi pretende justamente percorrer alguns dessescontextos singulares, desses processos de diferentes provenincias e origens, com atores e prota-

    gonistas muitos distintos, e com reflexes e enquadramentos tericos diversos.Abrimos com um artigo de Julia Ruiz Di Giovanni que, numa evocao mais teorizante,

    procura construir um trilho histrico e uma substncia narrativa que permita indagar sobreos modos de fazer implicados na criao de espaos polticos de experimentao, problemati-zar os modelos de anlise e buscar um ponto de vista que nos permita entender como certasprticas e usos atualizam a relao entre experincia subjetiva e a transformao da ordem so-cial. Utilizar como palcos para povoar estes argumentos, exemplos de protestos oriundos daEuropa, Amrica Latina e Estados Unidos, desde final da dcada de 1990. Julia pergunta-sea dado momento sobre que conceitualizao antropolgica da prpria arte nos pode ajudar afazer justia potncia das poticas de protesto? E alerta para que a necessria vigilncia para achamada dimenso artstica no contexto de movimentos sociais no termine recebendo o papelinglrio de simplesmente designar uma falncia em termos eficcia poltica.

    De seguida, o texto de Cladia Madeira, escrito na primeira pessoa, basicamente umtexto muito evocativo de memrias de afetos e de espetao de performances de forte presenapoltica que a autora foi conhecendo, assistindo, conhecendo e analisando. ratam-se de mem-rias performativas que desenham o ambiente vivido desde 2008 at atualidade em Portugal,particularmente na capital, Lisboa, mas, tambm, nas cidades do Porto, Guimares ou vora.A autora prope pensar uma certa temporalidade ciclica reperformativa que, no presente, emcontexto de crise social, econmica e poltica, tem vindo a reactualizar e a restaurar o que defi-

    ne como algumas caractersticas do imaginrio revolucionrio do 25 de Abril de 1974 e quese apresenta como um guio pronto a usar mas, tambm, a reinventar e questionar. Cladia

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    fala-nos de um processo dialectico todavia, um processo de emergncia e pulso performativaartivista, mas tambm de esquecimento e silenciamento institucional das mesmas. Nuns ca-sos, produzem festa, noutras, terror e medo, com toda a panplia de afeces que esses estadosproduzem.

    Rui Mouro, vem dar conta de um crescente interesse da arte contempornea pelo poltico,apesar de, como sugere, o sistema limitar a crtica poltica a uma mera estetizao disciplinada.O autor interseciona a emergncia de novssimos movimentos sociais com um potencial per-formtico de protesto que recorre fundamentalmente a prticas vindas das artes. Rui aponta opotencial do corpo como espao poltico e artstico para integrar arte e ativismo. Esse potencialreside na incorporao de uma emoo de entrega capaz de gerar mudanas a partir da perfor-mance, num paradigma onde para alm da arte pela arte emerge uma arte atuante. ambmeste autor se interroga sobre o potencial transformador da performance. raz-nos, neste arti-go, exemplos de Espanha, Inglaterra e Portugal e desenvolve tambm um debate invsivel esubterrneo (por vrias notas de rodap, inlcuisv) sobre a chamada curotocracia enquanto

    mecanismo de poder exercido por especialistas que controlam os discursos legitimadores e ossubjetivos critrios de mediao na arte para a partir dessa discusso refletir sobre a sua prpriaexperincia artivista como artista visual e, simultaneamente, como antroplogo etnografar pro-testos recentes no Portugal marcado, a nvel governativo e de soberania nacional, pela presenada roika (Banco Central Europeu, Fundo Monetrio Internacional e Comisso Europeia) edas suas medidas de austeridade.

    John Fletcher e Ernani Chaves na nica parceria autoral deste dossi convidam-nos avisitar interpretativa e antropologicamente o projeto artstico Gallus Sapiens, do artista pls-tico brasileiro Victor De La Rocque.alvez o artigo com um enfoque aparentemente mais

    tangncial ao tema do dossi - artivismo - embora enunciando os significados polticos, cr-ticos e poticos de um processo de criao, apresentao e fruio artstica no espao pblicobrasileiro, associado s 3 distintas fases de apresentao do Gallus Sapiensancoradas no campoda performance art. Na verdade, essa qualidade tangente acaba revelando um processo criativoartstico (engajado e no necessariamente artivista) que explicita fatores estruturais e polticossobre condies de percepo; pedagogias incidentes; e dilogos politizados e politizantes paraos diversos grupos sociais. Convocando a literatura dos estudos culturais, da antropologia e dafilosfia e dos estudos ps-coloniais, o artigo sustenta uma leitura e uma acepo da arte comoveculo discursivo declaradamente poltico [que] pode ser lida como operao capaz de co-mentar ou ilustrar um posicionamento crtico, por vezes, resistente quanto aos preceitos sociaistransvalorados; e, por vezes, como jocosidade cnica ante um modelo social em crise e sem prazode validade para seu trmino.

    Glauco B. Ferreira oferece-nos uma reflexo sobre performances artivistas associadas aomovimento pr-imigratrios nos Estados Unidos, nomeadamente na Baa de S. Francisco ecom incidncia especial no projeto I am Undocuqueer, do artivista latino-estadunidense deorigem mexicana Julio Salgado. O autor visita as narrativas e os processos locais de defesa dosdireitos imigratrios que acabam potenciando formas de pensar as relaes entre arte e polticaem grupos que se autodefinem como queer of color. Neste contexto, artivismo surge profunda-mente envolvido na reclamao de direitos civis dos migrantes e comprometido em abrir espa-os para a configurao de distintos processos identitrios interseccionais, estimulando outras

    discusses sobre o que seja a nao americana e remetendo para debates abrangentes sobrecidadania no sculo XXI.

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    Introduo pag. 11

    O dossi encerra com o texto (e o vdeo a ele associado) de Camile Vergara sobre a violn-cia performativa e a noo de corpo transgresso presentes nos protestos polticos no Brasilde coletivos como Bloco Reciclado, Black Blocs e Coletivo Coiote. A autora parte da descons-truo foucaultiana de corpos docilizados e procura dar visibilidade, pela leitura etnogrficade performances polticas particulares queles coletivos, da possibilidade de criao de corposinsurgentes. O cenrio dessas manifestaes foram as ruas no Rio de Janeiro antes e depois dejunho de 2013. Vinculada ao campo semntico da esttica da violncia, a autora, busca informa-es veiculadas a partir das imagens-violncia traduzidas nas performances. Para compreender aatualizao esttica da violncia convoca a noo de dispndio para uma nova gesto do corpo,aquele que enfrenta a violncia enquanto agente e no mais como vtima. E conclui que o quetorna comum estas trs formas de emergncia insurgente, a maneira como constroem um am-biente propcio para sua atuao e a ao direta pela via da esttica da violncia.

    Desejamos, aos leitores deste dossi, uma visitao plural e o mais diversificada possvel,em termos geogrficos e sociais, deste fenmeno complexo e singular do artivismo, associando

    performance, arte e poltica numa relao fundada na dissidncia e na insurgncia cvica e arts-tica. Desta visitao certamente poderemos observar uma certa propenso reperformatividadedos protestos ou sua ciclidade ssmica (com terramotos e rplicas sucessivas), podendo serconsiderada aqui como algo bem relevante, independentemente da singularidade dos contex-tos e das geografias variveis. A emergncia de cdigos digitais e a forte presena das culturasdigitais no artivismocontemporneo parecem tambm emergir fruto de uma articulao espe-cfica com o (#) hasthag poltico. Finalmente, prticas de insurgncia rizomtica global pareceminterseccionar-se com dissidncias pontuais, precisas e localizadas, tornando o artivismonummecanismo de intensificao e contgio do combate poltico e num espao da resistncia decontra-poder, mas tambm produzindo inquietaes no prprio territrio da arte contempor-

    nea e das suas fundaes.

    REFERNCIASBIBLIOGRFICAS

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  • 7/26/2019 Raposo. Artivismo_articulando Dissidncias, Criando Insurgncias

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