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Rdio no Recncavo da Bahia do alto falante s transmisses
radiofnicas (um estudo de caso em Cachoeira e So Flix) Alene da Sillva LINS
1. Professora MSc do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Recncavo da Bahia; orientadora do Projeto
Memria do Rdio no Recncavo pelo Programa Permanncia UFRB MEC/SESu;
Cachoeira e So Flix, respectivamente a 110 e 120 km da capital, s tiveram emissoras
no final da dcada de 90 (Cachoeira) ou ainda operam no sistema de alto-falante (So
Flix). A decadncia econmica, vivida pelas cidades do interior do Recncavo, explica
em parte a falta de investimento na radiodifuso local no perodo ureo do rdio.
Mas o circuito fechado (sistemas de alto-falantes) teve e ainda tm funo estratgica na
comunicao e informao para as duas cidades, j que elas no possuem cobertura de
emissoras de TV.
O rdio muito valorizado nas duas cidades, tm grande audincia e participao de
ouvintes. Este artigo resultado do Projeto de Pesquisa Memria do Rdio no
Recncavo, com utilizao da metodologia da Histria Oral em entrevistas com
moradores antigos, alguns radialistas aposentados, alm de visitas s rdios atuais e ao
estdio do sistema de alto-falante; o resultado foram depoimentos ricos sobre a
linguagem de rdio nos sistemas de circuito fechado e a programao que deixou um
saudosismo nas lembranas dos depoentes.
Palavras-chave: Radiodifuso; Circuito Fechado de Rdio; Histria Oral;
Cachoeira e So Flix.
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Introduo
No Brasil, a utilizao de alto-falantes na transmisso da linguagem de rdio (emisso
em circuito fechado), comeou no dia 7 de setembro de 1922, na comemorao do
Centenrio da Independncia. A instalao foi feita pela Companhia Telefnica
Brasileira. (COSTA & NOLETO, 1997). Pouca gente tinha aparelho de rdio e o
circuito fechado foi uma maneira de difuso bastante democrtica, adotada para fazer
as ondas do rdio viajarem para mais pessoas. Mais de oitenta anos depois, com a
facilidade de compra e evoluo do aparelho, que se tornou porttil, como explicar a
sobrevivncia do circuito fechado em algumas cidades, como nica forma de
transmisso local da linguagem de rdio?
So Flix, no interior da Bahia, situada no Recncavo Baiano, a 120 km da capital, no
tem uma emissora, apenas um sistema de alto-falantes, que ainda hoje o meio mais
utilizado pela populao para mandar recados e divulgar produtos.
Cachoeira, a cidade vizinha, ganhou a primeira emissora em 1998.
A Bahia tem emissoras de rdio desde maro de 1924, quando Oscar Carrascosa,
Agenor Miranda, Caio Moura e Gustavo Lopes fundaram a Rdio Sociedade da Bahia.
A Rdio Sociedade PRA-4 tinha programao variada com radionovelas, radioteatros,
programas de auditrio, de calouros, audies de artistas internacionais, nacionais e
locais, debates e conferncias e era referncia no estado.
A Rdio Excelsior ZYD-8, segunda emissora de rdio da Bahia, fundada em 1940
pertencia a Igreja Catlica e era dirigida por um religioso. Por ser de orientao
catlica e pouco ligada a assuntos de cunho poltico, a programao dessa rdio tinha
um jornalismo pouco assduo.
A Rdio Cultura ZYN-20 pertencia ao paulista Jos Ribeiro Rocha. A ZYN-20 era
tambm conhecida como, a caulinha, por ter nascido em 1950, dez anos aps a
segunda emissora de rdio do estado, a Excelsior, sendo, portanto, a terceira da regio.
Tinha programao diversa, do radiojornalismo ao programa esportivo, alm de
programas de auditrio como, por exemplo, As Grandes Atraes Musicais, sob o
comando de Jorge Santos (PAULAFREITAS, 2004).
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Dessas trs emissoras de Salvador, a que possua maior potncia era a Rdio Sociedade
com a fora de 50.000 watts. Era a emissora dos baianos, rdio mais ouvida na
capital e tambm nas pequenas cidades do Recncavo. Todos os depoentes desta
pesquisa, com mais de 50 anos, lembram de ouvirem a Sociedade.
Cachoeira e So Flix, conhecidas por sua diversidade e tradio cultural, trazem na
memria de seu povo histrias de lutas e conquistas. As cidades tiveram forte
imprensa, principalmente no perodo em que o transporte no interior da Bahia era pelo
Rio Paraguau. Mas o interior do Recncavo foi esquecido econmica e socialmente
aps a mudana da capital do Brasil para o Rio de Janeiro, com o declnio do acar e
da desvalorizao do preo da terra e da desativao do transporte martimo e posterior
abandono do Porto de So Roque do Paraguau, com o crescimento das vias terrestres
(BRANDO, 1999).
As cidades de Cachoeira e So Flix no tiveram a pujana radiofnica que se
observou em outras regies da Bahia. No projeto Memria do Ouvinte de Rdio (um
estudo de caso em Cachoeira e So Flix), investigou-se quais as primeiras emissoras
de rdio em sistemas de radiodifuso ou circuito fechado (alto-falantes), nestas duas
cidades e como o rdio era valorizado pelos ouvintes da poca de implantao do
veculo no Brasil. Utilizou-se a estratgia metodolgica da Histria Oral (ALBERTI,
1990) nas entrevistas com idosos, radialistas antigos e profissionais de rdio que esto
na ativa.
A Radiodifuso, os sistemas de circuito fechado e a linguagem de rdio em
Cachoeira e So Flix
(...) A Rdio Sociedade, foi a primeira que eu lembro de ouvi (...) minha
famlia era muito humilde, eu era mulecote quando tive esse contato com o rdio.
Mais tarde aqui em Cachoeira, tinham os servios de alto-falantes, era uma coisa
mgica, todo mundo no horrio do seu programa ideal tinha que pregar os ouvidos no
rdio e s saa no final. Era mgico porque a populao mais humilde, que era quem
mais ouvia o servio, participava diretamente da programao. Os programas eram
interativos e as pessoas podiam mandar recados, mandar mensagens. E os locutores
faziam muito sucesso. Alguns chegaram a ir para o Rio de Janeiro. Foi uma poca
mgica, Cachoeira vivia o progresso. uma pena que o tempo passe e as coisas boas
acabem ficando para traz.
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(Edson Salgado Almeida, 77 anos, aposentado, morador de Cachoeira).
O primeiro servio de alto-falante foi implantado nos anos 1940. Segundo o morador
de Cachoeira, Sr. Adilson Nascimento, hoje com 78 anos, radialista aposentado, o
servio se chamava Vozes do Norte e inicialmente funcionou na rua 13 de Maio,
centro de Cachoeira. Pouco tempo depois foi inaugurada Vozes de Cachoeira para
fazer concorrncia com o servio j existente.
De acordo com o relato do morador de Cachoeira Salustiano de Arajo, farmacutico
aposentado, ex-prefeito da cidade, o alto-falante era muito apreciado, tinha extrema
importncia na manuteno da populao informada e funcionava tambm como forma
de entretenimento.
Naquele tempo chamvamos cornetas os alto-falantes e do estdio a gente
tocava e o pessoal ficava na praa brincando o carnaval porque naquela poca
Cachoeira tinha carnaval,
(Adilson Nascimento, 78 anos, radialista aposentado, morador de Cachoeira)
Segundo Sr. Adilson, os alto-falantes eram instalados atravs de fios de ao e muitas
caixas de som, espalhadas pela maior parte da cidade, que transmitiam a programao
que acontecia no estdio. Eram noticiados aniversrios, casamentos, falecimentos,
noivados, batizados e o que mais se quisesse anunciar (trecho do depoimento dele).
O servio DPR-1 Vozes da Primavera (Diviso de Publicidade e Radiodifuso Vozes
da Primavera) foi o de maior popularidade. Seu fundador, Elias Cardoso, era um
mecnico apaixonado por msica. No por acaso, o nome do seu servio de alto-
falante herdou o nome de uma msica que ele apreciava muito, Vozes da Primavera
de John Strauss.
O estdio era na cidade da Cachoeira, porm as transmisses eram feitas tambm para
So Flix. L se chamava DPR-2 Vozes da Primavera. A fiao passava toda pela
ponte centenria D. Pedro II, que liga as duas cidades, e muitas vezes a transmisso era
feita em cadeia, ou seja, um radialista que estivesse em So Flix falava ao vivo de
l; isso dava a impresso de ser realmente uma rdio, segundo Adilson Nascimento.
Vozes da Primavera tinha uma programao diversificada para agradar a todos os seus
ouvintes:
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O dono do servio, Elias Cardoso, tambm criou um sistema de brincadeiras
de auditrio, A tarde Nossa, que eu animava. A gente fazia com que as crianas
fossem no cinema tambm, fazia no auditrio do cinema e pra toda a cidade. Ele teve
uma idia tambm de criar o programa de calouros nos bairros
(Adilson Nascimento, 78 anos, radialista aposentado, morador de Cachoeira)
Outro programa que fazia bastante sucesso era Algum passou por aqui, no qual o
artista que visitava a regio cantava ao vivo no estdio.
Segundo os entrevistados, um programa de grande preferncia e audincia era o de
calouros que percorria os bairros da cidade e de onde o programa era transmitido para
o restante da cidade, provando que a proximidade era o maior atrativo.
O rdio o jornal de quem no sabe ler; o mestre de quem no pode ir
escola, o divertimento gratuito do pobre; o animador de novas esperanas; o
consolador do enfermo; o guia dos sos, desde que o realizem com esprito altrusta e
elevado (TAVARES, 1999, insero do CD).
Os programas eram interativos e prendiam a ateno da populao que j vivia
intensamente a alegria do rdio, segundo o aposentado Heraldo de Oliveira, 77 anos,
morador de Cachoeira.
O proprietrio do servio de alto-falantes possua uma discoteca com vrias relquias
da msica nacional e internacional. Segundo os jornais da poca, o servio perdeu
muito pblico com a chegada do rdio porttil (aparelho) em Cachoeira, e mais ainda
com a posterior chegada da televiso na dcada de 80.
Mesmo enfrentando dificuldades, Elias manteve o servio que desempenhou um papel
social muito importante, poca em que a maior parte da populao no tinha acesso ao
rdio e a televiso: A popularizao do rdio e da televiso foi aos poucos fazendo com que esse
veculo de comunicao que j prestou relevantes servios comunidade fosse ficando
de lado. (COSTA, 1991).
Fundada em 25 de abril de 1990, a agncia RN Publicidade, localizada na cidade de
So Flix, , atualmente o sistema de alto-falante e nica rdio da cidade. Reginaldo
Nascimento, radialista, publicitrio e assessor de comunicao, declarou que desde
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1985 queria fundar uma rdio, mas houve uma resistncia por parte da prefeitura, pois
achava que teria fins polticos.
O mini-estdio do servio de alto-falante de Reginaldo composto por um
computador, um microfone, uma mesa de som com oito canais, um toca CD com cinco
pratos e um amplificador delta que sustenta a rdio. So ao todo doze caixas de som
distribudas pelas principais ruas e praas da cidade: Praa do Iguatemi, rua JJ Seabra,
na rua Paulino Gil, na Praa Ruy Barbosa, Praa do Relgio, Av. Salvador Pinto e
Praa Antnio Almeida Maia.
O estabelecimento comeou com uma vitrola de disco de vinil, que tocava msicas de
vrios ritmos, desde MPB lambada. Para se pedir uma msica, os ouvintes precisam
se deslocar at o mini-estdio, porque no tem linha telefnica que possibilite esse tipo
de servio. O custo alto para colocar uma linha telefnica, destacou Reginaldo
Nascimento em seu depoimento.
A RN Publicidade patrocinada por anunciantes (a maioria comerciante). Os
comerciais so pagos por chamadas, mas quando o tipo de nota de utilidade pblica
como, por exemplo, nota de falecimento, no cobrada taxa de custo.
Reginaldo considera o servio de alto-falante de grande utilidade para os 13 mil
habitantes de So Flix.
Em Cachoeira, a primeira emissora com transmissor s foi ao ar no ano de 1998, 75
anos depois de implantada a primeira de rdio em Salvador, a 110km de distncia.
A pioneira Rdio Magnfica uma rdio comunitria vinculada parquia e s obteve
sua licena temporria em 1998. O prazo para a licena da rdio comunitria se
esgotou no ano de 2000, mas ela continuou operando de forma pirata, at que houve
uma denncia annima, que provocou o fechamento da primeira rdio com
transmissor. (...) os tcnicos da ANATEL, chegaram no meio programao dizendo que a
emissora estava ilegal. Eu estava no ar. Eles desligaram os equipamentos. Depois
fizeram outra denncia, disseram que nos reabrimos a rdio. Os tcnicos da ANATEL
voltaram e dessa vez lacraram tudo e levaram todos os aparelhos.
(Ivanildo Paulo, ex-locutor da rdio, morador de Cachoeira)
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No cabe neste trabalho julgar as aes da Anatel, mas percebeu-se a tristeza na fala do
depoente, na gravao efetuada. A Anatel tem fechado muitas rdios comunitrias e est
seguindo a Lei:
Em 20 de fevereiro de 1998, com a Lei n 9.612, as rdios comunitrias
passaram a ter existncia legal. Operando em freqncia modulada k, com transmissores
de baixa potencia (at 25 watts) e antenas no superiores a 30 metros de altura. Estas
emissoras devem atender a comunidade onde esto instaladas, difundindo idias,
elementos culturais tradies e hbitos locais, alm de estimular o lazer, a integrao e o
convvio, prestando ainda servios de utilidade pblica. (FERRARETO, 2001, p.50)
Mas esta tem sido uma prtica questionada pelos estudiosos, porque impede a
democratizao da comunicao. Essa uma questo polmica que no ser
aprofundada neste trabalho. Mas a rdio Magnfica s voltou a funcionar aps trs
anos. Trs longos anos sem uma nica rdio na cidade de Cachoeira.
A licena para o funcionamento definitivo veio em 16 de abril de 2003, sendo as
transmisses retomadas em 16 de junho do mesmo ano. Ela funciona at os dias atuais
e tem uma programao voltada para utilidade pblica.
A Lei 9.612/98 estabelece que uma rdio comunitria objetiva oportunizar a difuso de
idias, elementos culturais que englobam as tradies e hbitos sociais da comunidade
em que est inserida; estimular a formao e integrao da comunidade, com atividades
de lazer, cultura e convvio social, alm de possibilitar ao cidado o exerccio do
direito de expresso da forma mais acessvel possvel.
A primeira rdio comercial em Cachoeira, a Paraguau FM, foi fundada em 25 de maio
de 2003 e conta atualmente com seis locutores. A emissora cobre 26 cidades, incluindo
municpios do Recncavo, Feira de Santana e Territrio do Sisal e Regio
Metropolitana de Salvador. Alm de notcias locais e regionais, a rdio divulga
notcias nacionais.
A Rdio Paraguau FM pertence ao grupo do empresrio e ex-deputado federal Pedro
Irujo. Atinge a vrios municpios da regio com uma potncia de 5 (cinco) watts e
funciona 24hs.
Existem oito emissoras de rdio pertencente ao grupo Pedro Irujo: a Itapoan FM, em
Salvador, que pertence a Luiz Pedro, filho de Pedro Irujo; a Nordeste FM e a Suba
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AM, em Feira de Santana; na cidade de Ipia tem a Rdio Educadora AM; em
Jacobina a Rdio Serrana FM e a Rdio Clube Rio do Ouro AM; a Rdio Dias Dvila
FM, na cidade de Dias Dvila, regio Metropolitana de Salvador e a Paraguau FM
em Cachoeira. Em Santo Amaro ser inaugurada mais uma emissora do grupo ainda
em 2008. As principais notcias das cidades onde esto as emissoras, circulam por
todas elas, atravs de fax, email e telefone, o que forma uma rede de notcias, ainda
que no institucionalizada, pois os radiojornais dessas emissoras no so transmitidos
de forma interligada.
A rdio Paraguau FM comeou sem programas de notcias, mas em pouco tempo
houve uma interatividade com o pblico, atravs de ligaes, participaes ao vivo e
promoes e as notcias locais passaram a ter importncia fundamental para
manuteno da audincia. Os locutores entrevistados disseram que ela tem o objetivo
de informao e cultura para a populao.
Apesar desse descompasso temporal entre as implantaes das rdios em Salvador e
em Cachoeira e So Flix, to prximas fisicamente, mas to distintas na utilizao
dos mcm, a linguagem de rdio foi muito exercitada e criativa nas cidades. O Rdio
teve vida e voz para a populao por conta da iniciativa de pioneiros que utilizaram
sistemas de alto-falante.
Se analisarmos o conceito de radiodifuso: a palavra portuguesa equivalente inglesa Broadcasting, que significa algo
como semear aos quatro ventos. Embora utilizado como tal, no pode ser considerada
exatamente um sinnimo de rdio, mas sim de emisso de sinais por meio de ondas
eletromagnticas. (FERRARETO, 2001, p.22)
Veremos que Cachoeira e So Flix demoraram muito para ter radiodifuso gerada nas
prprias cidades. Mas apesar disso a linguagem de rdio foi exercitada com uma
programao bem variada pelo servio de alto-faltante, o circuito fechado de rdio.
Relatos de moradores idosos, reportagens da poca e documentos extrados de
arquivos pblicos reafirmam a fora da linguagem radiofnica nas cidades do
Recncavo.A linguagem radiofnica engloba o uso da voz humana, da msica, dos efeitos
sonoros e do silncio, que atuam isoladamente ou combinados entre si de diversas
formas. Cada um destes elementos contribui, com caractersticas prprias, para o todo
da mensagem. Os trs ltimos trabalham em grande parte o inconsciente do ouvinte,
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enquanto o discurso oral visa o consciente. A trilha sonora pode acentuar ou reduzir
determinados aspectos dramticos contidos na voz do comunicador, ressaltados por
vezes pelo silencio. Neste quadro, o efeito compensa a ausncia da imagem,
reproduzindo sons prprios de elementos que servem com pano de fundo, de um trovo
em meio a uma tempestade aos trinados de pssaros para representar o inicio de uma
primavera. (FERRARETO, 2001, p.26)
A memria do ouvinte
No na histria aprendida, na histria vivida que se apia nossa
memria (Maurice Halbwachs)
Os relatos dos ouvintes com mais de 70 anos, em Cachoeira e So Flix, resultaram em
depoimentos sobre os fatos histricos e registros, a partir da rdio transmisso,
enquanto veculo de comunicao. As entrevistas foram semi-estruturadas, mas
permitiu-se que os depoentes fizessem uma viagem ao passado e muito da memria
afetiva sobre o rdio se revelou nas lembranas.
Destacamos a lembrana da primeira vez que alguns entrevistados ouviram um rdio
ou tiveram conscincia da importncia de um registro histrico a partir do rdio:
Em 54, quando Getlio morreu, minha casa j tinha rdio e eu no gostava
(ela falava da morte de Getlio). No gostava porque toda hora falava da morte de
Getlio, colocava aquelas msicas tristes, colocaram fita preta na ponte, nos postes, a
cidade ficou de luto, tinha gente que dava ataque, chorava, levava uma semana de
desespero, e os alto-falantes tambm, tinha a Voz da Primavera. Esse alto-falante levou
mais uns quinze dias tocando msica clssica, msica fnebre, a, eu tinha medo,
pavor.
(Jiuclia da Silva, 59 anos, professora, mora em So Flix).
(...) que eu me lembre, eu devia ter l pros 21 anos, mais ou menos. Era uma
vitrola de corda, eu tinha que ir assistir a programao na casa dos amigos ou
vizinhos. Seu Aderbal foi quem me vendeu o rdio, era usado, mas funcionava muito
bem. Tinha que dar corda, seno o bicho no funcionava. Mas meus parentes tiveram
antes. Eu que era quebrado, num tinha dinheiro, s depois de trabalhar que eu tive o
meu rdio.
(Edson Salgado Almeida, 77 anos, aposentado, mora em Cachoeira).
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(...) Lembro como era o rdio. Primeiro eu ouvi na casa dos outros, eu vi
aquele negcio enorme falando sozinho. Fique encantado. Depois meus pais tiveram o
rdio, um dos grandes, e eu comprei um rdio ABC canarinho antigrico, quando
tinha meus 16 e j trabalhava, era empregado, da comecei a ouvir a rdio sociedade de
Bahia, foi a primeira rdio. Foi da que eu comecei, depois chegaram as FM. Eu t a
at hoje. Sou apaixonado pelo rdio. Eu no cheguei a ouvir o rdio na casa das
pessoas de maior condio financeira, eu era muito preso (em casa). O rdio tinha um
custo muito grande naquela poca. O rdio hoje em dia um meio de comunicao
mais vivel, a televiso tem que ficar em casa.
(Aldo Pereira de Lima, 71 anos, policial aposentado, mora em Cachoeira)
Brincadeiras de rua foram deixadas de lado, visitas casa do vizinho tinham horrio
certo, o rdio mudava o comportamento.
(...) tinha o almoo com msica, dia de domingo. A tocava Quando
Setembro Vier, Carinhoso, aquelas msicas antigas daquela novela que tinha o cravo
e a rosa. (...) A o pessoal dizia: vamos para casa de D. Nieta (av), que j t na hora
do almoo com msica. E a almoo com msica comeava 11h, terminava 12h, e dizia
assim: almoce com msica. E a todo mundo ia.
(Jiuclia da Silva, 59 anos, professora, mora em So Flix).
(...) eu acompanhei muito as novelas quando comecei a vir cidade, juntava
todo mundo na casa de quem tinha o rdio pra poder assistir as novelas. Tinha um
programa de forr, que era bem cedinho, mas eu no lembro quem apresentava. Era na
rdio Sociedade, que era o meu preferido, era maravilhoso, eu s lamento pela pobreza
em que minha famlia vivia, mas foi uma poca importante.
(Valdomiro Nascimento, 70 anos, tratorista, mora em Cachoeira).
A expectativa para ouvir as programaes era muito grande e, maior ainda era a
curiosidade em saber quem estava do outro lado, quem era que proporcionava aqueles
momentos nicos para cada uma dessas pessoas.A gente imaginava n! Mas nem sempre era a mesma coisa. A gente pensa
que a pessoa forte por causa da voz potente e nem sempre assim, a pessoa
franzina.
(Jiuclia da Silva, 59 anos, professora, mora em So Flix).
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(...) o grande comunicador, Nilton Spindola Cardoso, acompanhei ele no
rdio e depois eu ainda trabalhei com ele, na festa de So Pedro, em So Francisco do
Iguape. Fiz sua segurana.
(Aldo Pereira de Lima, 71 anos, policial aposentado, mora em Cachoeira).
(...) Um dos programas que eu mais acompanhei foi o Vamos acordar da
rdio Sociedade (...) Era que nem o Jornal Nacional hoje em dia pra mim. Eu s saa de
casa depois de ouvir o programa, depois repassava as notcias com os amigos.
(Edson Salgado Almeida, 77 anos, aposentado, mora em Cachoeira).
... Ento era assim, ns assistamos novela das cinco na rdia Celso. Eu
colocava o p no cho, pegava no fio para fazer o fio terra para assistir a novela, porque
a novela era boa. Era um lambari, o Pescador. E tinha um caso de amor nessa novela.
Esse lambari, ele amava uma moa e todo namorado que essa moa tinha, aparecia
morto e ningum descobria quem era.(...) E ningum achava, ningum descobria quem
era e depois esse ltimo noivo, que a moa teve, comeou a perguntar a falar e, quando
ele ia namorar com ela, lambari estava sempre por perto (...) E ai eu ficava todo dia
querendo saber quem foi quem matou, porque agora a gente ainda tem umas pistas das
novelas, por causa da televiso, mas no rdio era difcil.
(Jiuclia da Silva, 59 anos, professora, mora em So Flix).
Consideraes finais
A pesquisa sobre o rdio nas cidades do Recncavo ainda est em andamento, mas at
o momento conclui-se que o rdio permanece como o principal meio de obter
informaes e como porta-voz da populao nas duas cidades estudadas. Percebe-se
que a memria resgatada ainda pequena, diante do perodo em que no se registrou a
histria do rdio na regio. Entrevistar mais idosos, principalmente aqueles que
tiveram participao efetiva na poltica, sade e educao, ser interessante para saber
a dimenso que o rdio tinha em situaes de mobilizao da comunidade.
Por sua caracterstica de oralidade, que faz uso de uma linguagem coloquial
desprovida de formalidade, muito prxima utilizada nas situaes presenciais, e por
ser o meio que mais facilmente permite a participao do ouvinte na sua programao,
o rdio propicia uma interao entre seus atores (comunicadores e ouvintes) no
encontrada nos demais veculos de comunicao. Nas cidades estudadas essa interao
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ainda mais presente, pela falta de uma emissora de TV. A divulgao do que
acontece nas duas cidades feita apenas pelo rdio para maior parte da populao, que
no tem acesso a jornal.
Precisamos ainda mapear os hbitos de consumo atuais frente s novas tecnologias e
traar o perfil da programao e da linguagem utilizada pelas emissoras de Cachoeira e
pelo servio de alto-falante de So Flix. Esse material ser utilizado para produo de
publicao sobre o sistema de radiodifuso ou de rdio circuito fechado para subsidiar a
disciplina de radiojornalismo e realidade regional.
Agradecimentos
Nossos agradecimentos aos bolsistas do Programa de Permanncia do MEC/SESu,
Elton Vitor Coutinho, Jadson Ribeiro, Maiane Matos e Marlene de Lima, pela
dedicao ao Projeto; aos entrevistados que cederam tempo e memrias e aos
radialistas de So Flix e Cachoeira.
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