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II CONINTER Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013 RACIALIZANDO PARA DESRACIALIZAR: RESSIGNIFICANDO O CONCEITO DE “RAÇA” NO BRASIL. SANTOS, JORGE LUÍS RODRIGUES DOS (1). 1. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO. Centro de Ciências Humanas e Sociais - Programa de Pós-Graduação em Memória Social. Av. Pasteur nº458, prédio Pe. Anchieta. Urca - Rio de Janeiro - RJ [email protected] RESUMO A necessidade de desenvolver ações de caráter reparatório e de reconhecimento em favor da população negra, que está submetida a condições de desigualdade e vulnerabilidade social, é consensual e exige dos estados uma mudança na forma de buscar a eliminação das injustiças históricas e promover uma eliminação das diferentes formas de discriminação e inclusão que acometem esta população (no caso particular do Brasil, a maioria da população). Neste sentido, o governo do Brasil tem procurado trabalhar, por meio de seus organismos públicos e em parceria com diferentes instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais, conhecer, mapear, e analisar a presença, localização e condições de vida desta população, de modo a melhor desenvolver ações que atendam as demandas existentes. Entretanto, a utilização do termo raça tem sido contestada por muitos que, buscando impedir a efetiva implementação de políticas de ação afirmativa em favor da população negra, utilizam-no no sentido “biológico”, desconsiderando a sua influência na construção de desigualdades na dimensão social.Analisar os modos pelos quais é necessário “racializar” as políticas públicas visando “desracializar” as consequências do racismo estrutural existente no Brasil, ressignificando o termo raça, de modo a conferir ao mesmo um caráter afirmativo, é a intenção deste artigo. Palavras-chave: Raça. Racismo. Ações Afirmativas.

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Page 1: RACIALIZANDO PARA DESRACIALIZAR: RESSIGNIFICANDO … II Coninter/artigos/764.pdf · No caso particular do Brasil, esse etnocentrismo do branco em relação ao negro e ao não-branco

II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades

Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013

RACIALIZANDO PARA DESRACIALIZAR: RESSIGNIFICANDO O CONCEITO DE “RAÇA” NO BRASIL.

SANTOS, JORGE LUÍS RODRIGUES DOS (1).

1. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Centro de Ciências Humanas e

Sociais - Programa de Pós-Graduação em Memória Social. Av. Pasteur nº458, prédio Pe. Anchieta. Urca - Rio de Janeiro - RJ

[email protected]

RESUMO A necessidade de desenvolver ações de caráter reparatório e de reconhecimento em favor da população negra, que está submetida a condições de desigualdade e vulnerabilidade social, é consensual e exige dos estados uma mudança na forma de buscar a eliminação das injustiças históricas e promover uma eliminação das diferentes formas de discriminação e inclusão que acometem esta população (no caso particular do Brasil, a maioria da população). Neste sentido, o governo do Brasil tem procurado trabalhar, por meio de seus organismos públicos e em parceria com diferentes instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais, conhecer, mapear, e analisar a presença, localização e condições de vida desta população, de modo a melhor desenvolver ações que atendam as demandas existentes. Entretanto, a utilização do termo raça tem sido contestada por muitos que, buscando impedir a efetiva implementação de políticas de ação afirmativa em favor da população negra, utilizam-no no sentido “biológico”, desconsiderando a sua influência na construção de desigualdades na dimensão social.Analisar os modos pelos quais é necessário “racializar” as políticas públicas visando “desracializar” as consequências do racismo estrutural existente no Brasil, ressignificando o termo raça, de modo a conferir ao mesmo um caráter afirmativo, é a intenção deste artigo.

Palavras-chave: Raça. Racismo. Ações Afirmativas.

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(...) o negro é um personagem ativo, vivo, que construiu uma história, uma

memória. (...) O negro como ator fundamental da história brasileira, que tem

legitimidade suficiente para reivindicar que a história do Brasil inteira seja

relida.

(Museu Afro Brasil: Ritos e ancestralidade)

RAÇA E RACISMO NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA

A questão racial está presente nas sociedades de modo marcante, desde pelo menos o

século XV, e não são recentes suas influências nas relações e interações entre os diferentes

sujeitos que delas fazem parte. Sua atualidade é fruto de sua capacidade de renovação e

adequação aos contextos e interesses (de diferentes naturezas) nas mais diferentes

estruturas sociais, conforme declara Ianni (2004, p.1):

A questão racial parece um desafio do presente, mas trata-se de algo que

existe desde há muito tempo. Modifica-se ao acaso das situações, das

formas de sociabilidade e dos jogos das forças sociais, mas reitera-se

continuamente, modificada, mas persistente. Esse é o enigma com o qual se

defrontam uns e outros, intolerantes e tolerantes, discriminados e

preconceituosos, segregados e arrogantes, subordinados e dominantes, em

todo o mundo. Mais do que tudo isso, a questão racial revela, de forma

particularmente evidente, nuançada e estridente, como funciona a fábrica da

sociedade, compreendendo identidade e alteridade, diversidade e

desigualdade, cooperação e hierarquização, dominação e alienação.

A temática racial no Brasil tem provocado contemporaneamente um debate que cresceu

em amplitude e intensidade. A sociedade civil e o governo têm sido desafiados a discutir sobre

a existência do racismo na sociedade brasileira, suas causas, consequências; sendo instados

a estabelecer formas de eliminação/reparação de perdas e desigualdades sociais e

econômicas, provocadas pela discriminação e desigualdade racial no Brasil e que atingem a

uma parcela significativa da população do país.

A necessidade de desenvolver ações de caráter reparatório e de reconhecimento à

população negra, que está submetida a condições de desigualdade e vulnerabilidade social, é

consensual e exige dos estados uma mudança na forma de buscar a eliminação das injustiças

históricas e promover uma eliminação das diferentes formas de discriminação e inclusão que

desde então acometem esta população (no caso particular do Brasil, a maioria da população).

O racismo é uma chaga que deve ser eliminada, bem como as consequências decorrentes de

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sua presença e influência nas relações sociais. Turra e Venturi (1998, p.5,6), em seu trabalho

pioneiro a respeito da existência do preconceito de cor no Brasil, já afirmavam que:

(...) o Brasil é racista contra pessoas negras. A diferença é que isto foi, pela

primeira vez constatado cientificamente. Números e limites desse racismo

foram identificados. Mapearam-se frases e atitudes racistas ou intolerantes

contra negros – inclusive dos próprios negros, que também demonstraram

preconceito contra integrantes de sua etnia. Infelizmente, como não havia

trabalho anterior e da mesma amplitude, não foi possível uma comparação

com outros períodos da história do país. Agora isso é viável.

A negação da existência do racismo no Brasil, e a sua presença velada em diferentes

esferas e práticas sociais, acaba por dificultar o seu combate (e sua consequente eliminação).

Evitando debatê-lo como um problema crucial da pauta de questões nacionais, permite-se a

sua manutenção, bem como a dos privilégios que as diferentes práticas racistas conferem a

determinados grupos sociais, e a exclusão que impõe a população negra. A promoção de

políticas afirmativas, fundamentadas na utilização do termo “raça”, têm sido contestadas por

grupos que, buscando impedir a efetiva implementação destas políticas em favor da

população negra, utilizam-no em seus discursos de oposição no sentido “biológico”, afirmando

que só há “uma raça: a humana”; desconsideram desta forma a sua influência na construção

de desigualdades nas dimensões social, estrutural e históricas, profundamente enraizadas na

sociedade brasileira. Nascimento (2013, p. 9, 10), analisando esta estratégia de negação,

destaca que:

(...) A questão do racismo passa, então, a ser objeto de um discurso

dominante, cuja voz e cujo alcance reverberam ampliados em poderosos

órgãos da mídia escrita, falada, televisiva e eletrônica. Tal discurso se

assenta sobre uma postura de má fé intelectual, mobilizando a boa vontade

da população, que quer se afirmar antirracista, com base em uma falsa

oposição entre supostos democratas, que não aceitariam “criar divisões” com

base em critérios genéticos, e supostos racistas que advogam ações

afirmativas.

Acreditava-se no passado que homogeneizando-se a identidade nacional, impondo

valores únicos e invisibilizando (e inviabilizando) a existência das diferenças raciais

(existententes entre brancos e não- brancos – sendo estes no caso brasileiro representados

pelos negros e indígenas), eliminaria-se o problema. O diferente (o outro) deveria ser negado,

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assim como a sua história, seus valores, seus saberes. Bauman (1998, p. 27) a este respeito

observa que:

Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade

produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira,

inimitável. Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa

cognitivo, moral ou estético do mundo – num desses mapas, em dois ou em

todos três;

Deve-se negar a identidade do “diferente”, torná-lo um “estranho”, e deste modo, fazê-lo

aceitar a “identidade hegemônica” como “superior”; o estranho deverá submeter-se aos que

lhe são superiores, por serem estes os detentores da identidade “ideal”. A definição de uma

identidade racial é de extrema importância, tendo em vista as possíveis dificuldades e

barreiras que esta identificação poderá causar para o seu portador.

A hierarquia racial existente no Brasil estabelece uma posição de “superioridade” dos

brancos em relação aos “não-brancos”; estes estariam na base da pirâmide, enquanto

aqueles se encontrariam no topo. A este respeito, Moura (1990. p. 215) assevera:

No caso particular do Brasil, esse etnocentrismo do branco em relação ao

negro e ao não-branco em geral teve e tem como função exatamente

estabelecer fronteiras hierárquicas do ponto de vista étnico para que

essas etnias consideradas inferiores não possam transpô-las através

da mobilidade social vertical individual ou massiva. Fecha-se, assim, o

leque de oportunidades para os membros considerados inferiores. Isto

aconteceu desde o Brasil colônia, e durante todo o período imperial,

prosseguindo, com modificações “modernizadoras”, até os nossos dias”.

(grifos meus)

AS POLÍTICAS DE ESTADO A PARTIR DA RAÇA: A HISTÓRIA DA

EXCLUSÃO OFICIAL

Os registros históricos difundidos socialmente sobre a contribuição dos negros no

desenvolvimento do país, desde a sua introdução no espaço nacional até o momento

presente, referiam-se em sua grande maioria a “memória da escravidão” ou a “memória do

tráfico Atlântico”. O imaginário a respeito deste fato, violento e degradante, fortalecido por

discursos e imagens que (re)tratavam os negros em situação de submissão, fez com que

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estes tentassem “esquecer” desta “chaga”, das experiências dolorosas, vergonhosas as quais

foram submetidos.

Apesar da condição (violenta) de escravizado, na qual os negros foram inseridos no

Brasil, desumanizando-os, coisificando-os e negando suas contribuições culturais,

contemporaneamente ocorre um resgate das competências intelectuais (e saberes) destes

“negros”. Suas lutas e ações de resistência, bem como as contribuições culturais por eles

legadas, começam a emergir das sombras da história. História que também registra os

modos por meio dos quais esta população negra vem sendo excluída e marginalizada até os

dias de hoje. Como bem destaca Franklin (1999, p.59):

Ao examinar a História de um povo, devemos distinguir entre o que

verdadeiramente aconteceu e aquilo que os que escreveram a história

disseram ter acontecido. (grifos meus)

Os colonizadores selecionaram o que deveria ser “lembrado”, permitindo assim a

manutenção de sua hegemonia, e o que deveria ser “esquecido”, encobrindo assim o

conhecimento da violenta e desumana forma utilizada no tratamento de outros seres

humanos, escravizando-os. A construção da memória deveria ser, então, o resultado de um

processo de elaboração resultante da combinação entre lembrança e esquecimento. Gondar

(2000, p. 38) observa que:

(...) a própria sociedade deseja ocultar tudo aquilo que pode revelar seus

paradoxos, suas falhas, enfim, tudo aquilo que poderia comprometer a

imagem – a ficção – que ela pretende fornecer sobre si mesma. Assim, ela

não apenas se “esquece” destes elementos capazes de revelar sua

alteridade consigo própria, como também se esquece deste esquecimento, e

dos meios que utilizou ou utiliza para efetivá-lo. Em outras palavras; não

esquecemos apenas os elementos segregados, mas o próprio fato de que

houve uma segregação, e as maneiras pelas quais segregamos. (...)

Desnaturalizar o esquecimento é, portanto, uma tarefa essencial para

pensarmos a constituição da memória.

As transformações ocorridas atualmente no Brasil, em diferentes espaços políticos,

sociais, culturais, e também territoriais, como no Rio de Janeiro por exemplo, revelam que o

tráfico Atlântico e o tratamento violento e desumano aos quais os negros foram submetidos,

(tendo alguns sido soterrados no passado com o objetivo de apagar da história nacional o

verdadeiro genocídio negro ocorrido), estão vindo à tona, conforme registrado em reportagem

de Clarissa Monteagudo, em abril de 2012, e veiculada no jornal Extra:

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Soterrado pelo Império para ocultar os horrores da escravidão, o sítio

arqueológico foi revelado pelas obras de drenagem na Avenida Barão de

Tefé. Onde todos veem pedras, Celina enxerga orixás e objetos sagrados

usados pelos africanos para suportar com fé as dores do cárcere (...)

Proprietários de uma casa na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa, levaram susto

ao fazer a reforma no imóvel: encontraram ossadas enterradas. A construção

foi erguida em cima de um cemitério. Pesquisadores acreditam que tenham

sido sepultados no terreno até 30 mil escravos africanos. Muitos já chegavam

doentes da dolorosa travessia nos navios negreiros.

Mas, afinal, ao que nos referimos quando falamos de memória? De que modo ela é

construída? Por quem? Que intenções estão presentes (ou não) na sua construção? Oliveira

e Orrico (2005, p. 85), afirmam que:

Ao falar de memória, tratamos de um fenômeno que diz respeito às relações

entre os sujeitos no seio de uma comunidade e entre o passado e o presente.

Nesse eixo espaciotemporal, devemos entender como se dão a construção e

a exteriorização da memória. Tendo em vista dois pressupostos básicos – a

reconstituição integral da memória é impossível e a memória é seletiva -, a

memória se manifesta por intermédio da obra humana. Considerada a

natureza da linguagem, isso pode ocorrer, entre outras formas, pela narração

(oral ou escrita), pela pintura e pelos filmes.

Os vestígios da presença negra estão impregnados na cultura brasileira, frutos das

produções decorrentes da utilização das “memórias das práticas originais”, as quais hoje são

patrimonializadas, em diferentes espaços de memória e linguagens. A herança africana nas

esferas da religiosidade, das artes, do mundo do trabalho, dentre outras. Entretanto, estas

presenças permanecem invisíveis, veladas, sendo necessário o resgate de fatos e

personagens que participaram de modo ativo e importante da construção do país, visando

torná-las perceptiveis. A patrimonialização de espaços (territórios) onde os negros

desenvolveram suas práticas e influenciaram de modo rico e fundamental a cultura brasileira,

permite a ressignificação de discursos que minimizaram e invisibilizaram a sua importância na

construção do país. Clarissa Monteagudo, em sua reportagem, registra que a revitalização

urbana da cidade do Rio de Janeiro, na atualidade, permite a visibilização e valorização da

presença africana em diferentes espaços urbanos, que foi apagada em diferentes momentos

históricos, em virtude de intervenções urbanas que visavam a “modernização e revitalização”

das regiões metropolitanas:

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A Pequena África compreende a região entre os bairros Gamboa e Saúde, a

Praça Mauá e um pedaço de São Cristóvão. Nesse lugar, baianas como Tia

Ciata realizavam encontros musicais e religiosos — as festas de candomblé

— em suas casas, além de seduzir o povo com os sabores de seus

tabuleiros. Essa história será contada aos cariocas e turistas que visitarem a

Zona Portuária.

— Quando as obras ficarem prontas, o circuito será um grande museu a céu

aberto. É a preservação do patrimônio material e imaterial da cidade (...)

(...) Já o memorial do Cais do Valongo terá 1.350 metros quadrados e

arquibancadas onde cariocas poderão ver preservada parte da história.

— A transformação do Cais do Valongo num monumento à herança africana

(...)

Neste sentido, Chelotti (2010, p.170) observa a importância deste processo de “resgate

de territórios”, que permite além da questão histórica, uma reconfiguração de relações de

poder:

O território além de sinônimo de poder, também, é sinônimo de diversidade. E

é na diversidade dos territórios que se constroem novas geografias, muitas

vezes, fazendo o percurso contrário dos interesses dos grupos

historicamente hegemônicos.

O racismo, presente nas relações sociais desenvolvidas cotidianamente, é

multifacetado e tem em sua composição diferentes elementos, que acabam por provocar a

sua ocorrência. A publicação “Para além do racismo: abraçando um futuro interdependente”

(2000, p.20), apresenta as seguintes definições:

(...) “racismo” descreve as crenças e os atos que negam a igualdade

fundamental de todos os seres humanos em função de diferenças percebidas

de “raça”, cor ou aparência. A discriminação racial é o racismo em ação”. (...)

O racismo e a discriminação podem ser incorporados em conseqüências

não-intencionais, porém prejudiciais, que têm origem em práticas ou políticas

aparentemente neutras. Em outras palavras, as atitudes e crenças em

relação à raça estão incrustadas nos valores sociais, nas práticas culturais,

nas leis, nos costumes e na maneira pela qual operam as instituições. O

racismo não é apenas um hábito do coração. Pode ser um hábito da indústria

ou um padrão de comportamento de indivíduos, grupos ou instituições. Tanto

ações não-intencionais como intencionais podem ser racialmente

discriminatórias.

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Desde o Império, e até os dias atuais, a situação da população negra é marcada por

exclusões e desigualdades. Políticas promovidas pelo estado, que impediam o acesso da

população negra a diferentes espaços sociais (como o educacional, por exemplo) já eram

implementadas, conforme registrado por Siss (2003, p.14):

(...) o Presidente da província do Rio de Janeiro, que abrigava a capital do

Império, ao decidir sobre o acesso às escolas públicas dessa Província,

sanciona a Lei n. 1, de 4 de janeiro de 1837 que, no seu artigo 3º. Rezava o

seguinte:

Art. 3º. São proibidos de frequentar as escolas públicas:

1º. Todas as pessoas que padecem de moléstias contagiosas.

2º. Os escravos, e os pretos Africanos, ainda que sejam livres ou libertos.

A mudança de regime (do Império para a República), contudo, não promove uma

mudança na situação da população “preta” e “parda”. A legislação nacional acaba por incluir

um novo componente: o “racial”. A Constituição de 1934, em seu Capítulo II, Título IV, artigo

138b decreta:

- Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis

respectivas:

b) estimular a educação eugênica;

O componente racial está agora inserido no texto constitucional, definindo que a união

deverá estimular a “educação eugênica”, sustentada pela ideologia da “eugenia” que é ”a

ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da raça

humana”, e que de modo geral prega a supremacia dos brancos em relação aos demais.

Pereira (2001, p. 49), analisando esta forma de estruturar o lugar dos brancos e dos negros na

hierarquia social brasileira observa:

No tocante aos negros, percebe-se a existência de uma orientação ideológica

dominante que estimula a construção de representações baseadas no

sentido conservador do senso comum. Os negros são representados de

maneira estereotipada como se isto fosse uma verdade dada a priori e aceita

pela sociedade como justificativa para admitir que a inferioridade dos negros

parece ser incontestável. (...) Em outras palavras, as ideologias dominantes,

através do senso comum, fazem com que um fato socialmente construído

adquira status de fato natural. Na prática, isso significa dizer que a exclusão

por motivos étnicos está baseada na orientação ideológica que faz parecer

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natural um fato criado a partir de interesses de determinados grupos e

divulgado como verdade inerente à própria sociedade.

A pobreza no Brasil tem gênero e cor. A influência destas categorias nas relações

sociais, e seu impacto nos modos como esta “dimensão subjetiva”, estruturada em

preconceitos de gênero e raça, acabam por fundamentar processos de discriminação e

racismo, que mantém uma situação de “pobreza não-econômica” e “desigualdade ideológica”

sobre mulheres e negros. A estratégia de promoção da exclusão dos negros, em diferentes

momentos da história nacional, buscava invisibilizar a sua participação e até protagonismo na

construção da sociedade brasileira. O desenvolvimento de instrumentos jurídicos, dentre

outros, foi um recurso amplamente utilizado pelo Estado para legitimar a exclusão da

população negra, conforme relata Fonseca (2009, p. 49):

O africano e seus descendentes estiveram presentes em todo o processo de

construção da sociedade brasileira e do Estado, do período de consolidação

das possessões territoriais lusas até a República. Leis, decretos e

constituições reservaram espaço significativo para esse público,

garantindo-lhe sempre artigos, parágrafos e incisos marcantes. O Estado

monárquico português e o Império estiveram atentos à elaboração de

políticas que explicitassem o lugar do africano e do negro nacional na

sociedade brasileira de ontem, configurando o quadro etnorracial que

encontramos hoje.

E Fonseca (2009, p. 49, 50) prossegue afirmando que:

(...) as diversas legislações constituídas pelos Estados português e brasileiro,

entre os séculos XVI e XIX, tiveram como objetivo ampliar e aprofundar as

distinções entre uns e outros, dividindo a a sociedade e os grupos humanos

em partículas separadas e quase estanques. (...) as leis visavam alijar os

negros política e juridicamente dos benefícios sociais construídos com seu

esforço.

No que se refere à sociedade brasileira, Guimarães (2013, p. 18,19) observa que:

Nas raízes históricas da sociedade brasileira, a cultura política sempre

reservou aos indivíduos da população negra uma posição subalterna na

hierarquia social. O lugar imposto a esses indivíduos tem na esfera do

trabalho sua expressão mais clara e definida. Sobre eles persistem inúmeras

situações de discriminação, ligadas a valores negativos imputados à imagem

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social do negro por conta da marca da cor, da habilidade pessoal e da

capacitação profissional. Tal situação observada nesse espaço social – no

qual os indivíduos não só garantem sua sobrevivência como se reconhecem

e são reconhecidos, fortalecem sua autoestima e conquistam ou não a

cidadania plena – é um indício indiscutível e visível de expressões da

desigualdade e da discriminação racial brasileira.

A observação de Guimarães pode ser constatada no “Boletim de Políticas Sociais -

acompanhamento e análise nº 20, (2012, p. 314 ), onde abordando o tema da igualdade racial

é destacado que:

A Pesquisa das Características Étnico-raciais da População (PCERP),

realizada em 2008, de caráter amostral e domiciliar, revela que, para 63,7%

dos respondentes, a vida das pessoas é influenciada por sua cor ou raça –

constatação mais presente entre as mulheres, os jovens e as pessoas com

maior rendimento e escolaridade. A influência racial foi percebida,

principalmente, nas dimensões do trabalho, da relação com a Justiça e a

polícia, do convívio social e da escola.

Podemos perceber como não faltaram episódios e ações políticas desenvolvidas por

parte do Estado brasileiro, que em diferentes momentos de sua história, impediram a

população negra de ter o acesso igualitário e equânime aos bens e direitos sociais de

diferentes naturezas, legando-lhe assim uma cidadania de segunda classe, nos diferentes

níveis e esferas da vida social, inferior à situação da população branca.

O LUGAR DA RAÇA NA DIMENSÃO DO ESPAÇO: A SEGREGAÇÃO

DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL

A luta por mudança de sua condição desigual na sociedade brasileira está presente em

toda a história da população negra: por meio de resistências, ações, reações, e até mesmo

em pseudo-conformações (individuais e coletivas) e está de acordo com o que é descrito por

Bourdieu (1989, p. 81):

O princípio do movimento perpétuo que agita o campo não reside num

qualquer primeiro motor imóvel (...) mas sim na própria luta que, sendo

produzida pelas estruturas constitutivas do campo, reproduz as estruturas e

hierarquias deste. Ele reside nas acções e reacções dos agentes que, a

menos que se excluam do jogo e caiam no nada, não têm outra escolha a não

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ser lutar para manterem ou melhorarem a sua posição no campo, quer dizer,

para conservarem ou aumentarem o capital específico que só no campo se

gera, contribuindo assim para fazer pesar sobre todos os outros os

constrangimentos, frequentemente vividos como insuportáveis, que nascem

da concorrência.

Segundo Hasenbalg (1982, p.91) “uma organização social racista limita as aspirações

do negro.” E o lugar dos negros no Brasil, historicamente é um lugar de desfavorecimento e

desigualdade, e neste aspecto Hasenbalg (1982, p.98) conclui que:

Transcorridos mais de noventa anos desde a abolição do escravismo, a

população negra brasileira continua concentrada nos degraus inferiores da

hierarquia social”. (...) Os negros sofrem uma desvantagem competitiva em

todas as etapas do processo de mobilidade social individual.

Passados quase trinta anos da afirmação de Hasenbalg, considerando-se os dados a

respeito da situação da população negra do Brasil, colhidos e analisados por diferentes

instituições de pesquisa (das esferas pública e privada), verificamos a manutenção (ainda) da

desigualdade entre brancos e negros. Através da utilização de dados de cor/raça, mesmo

após a adoção de políticas públicas de caráter universalista pelo governo, constatamos que

as mesmas não são suficientes para eliminar as consequências do racismo e de suas mais

variadas formas de discriminação.

Na esfera do emprego e da renda, além das questões relativas a menor escolaridade e

capacitação profissional da população negra, as mulheres negras ainda sofrem uma barreira

a mais que os homens negros: a desigualdade de gênero. Maniero (2011), relata que:

Desemprego - Dados mostram barreiras contra mulheres negras:

É para se comemorar a taxa de desemprego em 6,4%, a menor para o mês

de maio desde 2002, mas quando olhamos com atenção os dados do IBGE

chegamos à conclusão de que o mercado de trabalho brasileiro continua

bastante desigual, discriminando mulheres, negros e jovens. Os números

falam por si.

A discriminação racial acaba sendo expressa em espaços determinados, lugares onde

“o não-branco” não deveria adentrar; a fronteira limite onde a “branquitude” deve ser

respeitada; o lugar de privilégio onde só os brancos podem acessar e um espaço de poder

(econômico, político, social) do qual somente eles podem desfrutar. A aparência fenotípica (a

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marca racial) é o passaporte que permite ou bloqueia o ingresso. Sobre este aspecto, Muller

(2006, p.70) declara:

Sabemos que em nossa sociedade, de maneira geral, as concepções sobre

negros e mestiços são bastante negativas. Elas dizem respeito a valores

estéticos, morais, intelectuais. São essas concepções que ocorrem de

maneira difusa em nossa sociedade, que criam todas as e formas de

evitação, de mal-estar, de “antipatia”, que terminam por punir àqueles que

não possuem um fenótipo evidentemente branco.

A hierarquia racial existente no Brasil estabelece uma posição de superioridade dos

brancos em relação aos não-brancos; estes estariam na base da pirâmide, enquanto aqueles

se encontrariam no topo. A este respeito, Moura (1990. p.215) assevera:

No caso particular do Brasil, esse etnocentrismo do branco em relação ao

negro e ao não-branco em geral teve e tem como função exatamente

estabelecer fronteiras hierárquicas do ponto de vista étnico para que essas

etnias consideradas inferiores não possam transpô-las através da mobilidade

social vertical individual ou massiva. Fecha-se, assim, o leque de

oportunidades para os membros considerados inferiores. Isto aconteceu

desde o Brasil colônia, e durante todo o período imperial, prosseguindo, com

modificações “modernizadoras”, até os nossos dias.

Diversos indicadores sociais presentes na sociedade brasileira contemporânea

demonstram que a população negra é detentora de condições de inferioridade e exclusão

social, em relação à população branca. Neste sentido, Ferreira (2002, p.71) observa que:

(...) no Brasil, o preconceito não é abertamente afirmado, dificultando a

elaboração de leis que favoreçam sua reversão. A ideologia de que vivemos

num país em que as diferenças são aceitas e valorizadas, ‘um verdadeiro

exemplo para as outras nações’, encobre o problema. Em função disso, a

população negra encontra-se submetida a um processo em que as condições

de existência e o exercício de cidadania tornam-se muito mais precários com

relação à população considerada branca. Em decorrência, a construção de

uma identidade positivamente afirmada, requisito necessário para as

pessoas se engajarem em políticas efetivas voltadas para a melhoria de suas

condições sociais, torna-se um processo dificultado.

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Há a necessidade, conforme proposto por Fraser (2007, p. 106), de superar o não

reconhecimento, pois:

(...) o não reconhecimento consiste na depreciação de tal identidade pela

cultura dominante e o consequente dano à subjetividade dos membros do

grupo. Reparar esse dano significa reivindicar “reconhecimento”. Isso, por

sua vez, requer que os membros do grupo se unam a fim de remodelar sua

identidade coletiva, por meio da criação de uma cultura própria

auto-afirmativa.

A representação, a valorização e reconhecimento cultural, e a participação equitativa e

igualitária nos diferentes níveis e espaços sociais ainda estão aquém do ideal, se for

considerada a participação majoritária da população negra na composição populacional do

país. A população negra brasileira ainda é vítima das injustiças econômica e cultural, que

necessitam ser eliminadas. Para tanto, Fraser (2006, p. 232) propõe que sejam realizadas

mudanças nestas duas esferas (econômica e cultural) para tentar resolver estas injustiças,

que são:

(...) O remédio para a injustiça econômica é alguma espécie de

reestruturação político-econômica. Pode envolver redistribuição de renda,

reorganização da divisão do trabalho, controles democráticos do

investimento ou a transformação de outras estruturas econômicas básicas.

Embora esses vários remédios difiram significativamente entre si, doravante

vou me referir a todo esse grupo pelo termo genérico “redistribuição”. O

remédio para a injustiça cultural, em contraste, é alguma espécie de mudança

cultural ou simbólica. Pode envolver a revalorização das identidades

desrespeitadas e dos produtos culturais dos grupos difamados. Pode

envolver, também, o reconhecimento e a valorização positiva da diversidade

cultural. Mais radicalmente ainda, pode envolver uma transformação

abrangente dos padrões sociais de representação, interpretação e

comunicação, de modo a transformar o sentido do eu de todas as pessoas.

Apesar de todos os esforços e ações desenvolvidas, o racismo no Brasil ainda persiste,

e atinge a população negra, como descrito no “4º Retrato das Desigualdades de Gênero e

Raça”:

(...) O racismo é evidente ao se observar a disparidade na distribuição de

renda no Brasil. Os negros apresentam, em média, 55% da renda percebida

pelos brancos em 2009. Se, em 1995 os homens negros tinham renda

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superior ao das mulheres brancas, ao longo desses 14 anos eles passam a

receber ligeiramente menos. Em 2009, a renda das mulheres brancas

correspondia a 55% a dos homens brancos, para os homens negros o

percentual foi de 53%. Já as mulheres negras continuam isoladas na base da

hierarquia social: sua renda equivalia, em 2009, a 30,5% dos homens

brancos. Entre os 10% da população mais pobre do Brasil, os negros

correspondem a 72%.

O desenvolvimento no Brasil de políticas públicas que universalizaram, em especial na

última década, o acesso da população menos favorecida e mais vulnerável socialmente a

serviços como saúde e educação, a melhoria nas condições de saneamento básico e

moradia, a redução de desemprego e melhor distribuição de renda através de programas

governamentais, reduziram significativamente a extrema pobreza no Brasil. Entretanto, a

desigualdade entre diferentes sujeitos sociais ainda permanece. Bauman (1998, p. 48)

destaca que:

Não é meramente renda e riqueza, expectativa de vida e condições de vida,

mas também – e talvez mais fundamentalmente – o direito à individualidade,

que está sendo crescentemente polarizado. E, uma vez que continua dessa

maneira, há pouca oportunidade para se desenviscarem os estranhos.

A análise das condições nas quais encontram-se os negros, a partir de pesquisas de

caráter qualitativo e quantitativo, mostram existir ainda uma situação de desfavorecimento da

população negra em relação à população branca:

Educação - Média de anos de estudo da população ocupada com 16 anos ou mais de idade,

segundo sexo e cor/raça. Brasil, 1999 e 2009.

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Fonte: Retrato das desigualdades de gênero e raça. Ipea, 2011, p. 21

Previdência e assistência social - Distribuição dos domicílios que recebem Bolsa Família,

segundo cor/raça do/da chefe. Brasil, 2006.

Fonte: Retrato das desigualdades de gênero e raça. Ipea, 2011, p. 25

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Habitação e saneamento - Distribuição de domicílios urbanos em favelas,

segundo sexo e cor/raça do/da chefe. Brasil, 2009.

Fonte: Retrato das desigualdades de gênero e raça. Ipea, 2011, p. 31

Pobreza, distribuição e desigualdade de renda

Renda média da população, segundo sexo e cor/raça. Brasil, 2009.

Fonte: Retrato das desigualdades de gênero e raça. Ipea, 2011, p. 35

Podemos perceber, a partir da leitura dos gráficos anteriores, que a redução da pobreza

não significou a redução da desigualdade, em especial as relativas a gênero e raça. Marcio

Pochmann (2011, p.7), presidente do IPEA, afirma que:

“as desigualdades de gênero e raça são estruturantes da desigualdade social

brasileira. (...) Inúmeras são as denúncias que apontam para as piores

condições de vida de mulheres e negros, para as barreiras à participação

igualitária em diversos campos da vida social (...).

AFIRMANDO A IDENTIDADE NEGRA: “RACIALIZANDO” PARA

“DESRACIALIZAR”

Políticas de ação afirmativa são em geral adotadas para grupos que sofreram

prejuízos durante muito tempo. São políticas para compensar essa

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defasagem histórica. Mas temos que lembrar que o Brasil é precursor

mundial da política de ação afirmativa. A primeira aconteceu em 1818, quatro

anos antes da independência: foi quando dois mil suíços chegaram aqui e

foram colonizar Nova Friburgo. Depois, foram os alemães para São

Leopoldo. Mas o Brasil, que adotou a ação afirmativa para grupos europeus,

foi o último país a abolir a escravidão. (...) Eu na verdade sou contra a cota

para negros; sou a favor da redução da cota de 100% para brancos.

(SANTOS, Hélio. Pelo milagre da inclusão.)

A (re)construção (e aceitação) de uma identidade negra positiva é fundamental para que

possam ser realizadas importantes transformações na realidade da população negra do

Brasil. É a partir do fortalecimento desta identidade (negra) pelo negros, desprezando a

ideologia racista dominante que o vê como inferior, incapaz, e do seu reconhecimento pelo

conjunto da sociedade, por meio de ações afirmativas, irá permitir a efetivação de ações de

reparação/redistribuição. Através da implementação de ações afirmativas, pode-se do ponto

de vista jurídico, propiciar a efetivação do princípio constitucional da igualdade, e como afirma

Rocha (apud Gomes, 2001,p. 42) “superar o isolamento ou a diminuição social a que se

acham sujeitas as minorias”.

Fraser (2007, p. 103), observa que “justiça, hoje, requer tanto redistribuição quanto

reconhecimento; nenhum deles, sozinho, é suficiente”. Para Fraser, são necessárias pelo

menos duas condições básicas para que se possa alcançar a justiça, por ela denominadas

“condição objetiva da paridade participativa” e “condição intersubjetiva da paridade

participativa”. Na “condição objetiva” ocorre a distribuição de recursos e bens materiais de

modo a permitir a participação e independência dos beneficiados. Na “condição

intersubjetiva”, ocorre uma valoração cultural, onde os padrões veiculados socialmente

demonstrem respeito aos beneficiados e às suas contribuições, garantindo a estes iguais

oportunidades para obtenção de estima social.

Fraser (2007, p. 119) considera ainda uma terceira condição, a “condição política”. Nela

seriam considerados meios através dos quais fosse possibilitada a tomada de decisões em

esferas que marginalizam pessoas, e as excluem do acesso a espaços de poder político. A

possibilidade de terem acesso a estes espaços aumentaria a sua representação e permitiria

uma maior voz e participação na vida social.

O Estado brasileiro necessita ampliar as ações já em curso, aprofundar as medidas

focalizadas nas categorias de gênero e raça e promover o aumento da participação da

população negra nas esferas de decisão visando aumentar a sua representação e voz.

Eliminar de modo definitivo as consequências do racismo e promover a justiça e equidade em

favor da população negra brasileira, é ainda um desafio.

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Portanto, é necessário desenvolver processos de construção, implementação e

efetivação de políticas públicas em favor da população negra. Promover a adequada,

igualitária e equânime inclusão do negro nos diferentes espaços e níveis da vida nacional,

superando a sua persistente situação de desigualdade histórica. “Racializar” as políticas

públicas visando “desracializar” as consequências do racismo estrutural existente no Brasil,

ressignificando o termo raça, de modo a conferir ao mesmo um caráter afirmativo.

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