"quinhentos anos de contato": por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem

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Artigo do Mana de Marcio Goldman

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  • MANA 21(3): 641-659, 2015 DOI http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p641

    Apresentao

    com muita satisfao que publicamos na seo Documenta de Mana a conferncia proferida pelo Prof. Marcio Goldman durante seu concurso para Professor Titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ.

    A conferncia teve lugar no Museu Nacional, no dia 16 de maro de 2015, diante da banca examinadora formada pelos professores Otvio Velho, Gemma Orobitg, Jos Carlos Rodrigues, Pedro Pitarch e Sylvia Caiuby e de uma audincia de colegas, alunos, ex-alunos e muitos outros interessados.

    Nela, o autor opta por explorar o que denomina provisoriamente de relao afroindgena, termo usado para designar os agenciamentos entre afrodescendentes e indgenas no continente americano. Apresentando o que o autor chama de um carter incerto e aberto, a conferncia oferece-nos a possibilidade de acompanhar o momento de amadurecimento dessa reflexo ainda em curso, no deixando de registrar o quanto ela se ancora em slida e longa trajetria de pesquisa, formao e orientao. Densidade etnogr-fica e terica combinam-se, desse modo, com vivacidade em um texto que coloca sob desconfiana as snteses e as redues. Como destaca Goldman, pensar sobre a relao afroindgena pensar sobre uma relao com alto potencial de desestabilizao do nosso pensamento e que, por isso mesmo, deve estar no corao de uma antropologia que encara as diferenas, que leva a srio o que as pessoas pensam, que capaz de se manter afastada dos clichs que nos assolam e, assim, pensar diferente.

    Os Editores

    DOCUMeNTA

    QUINHENTOS ANOS DE CONTATO:POR UMA TEORIA ETNOGRFICA

    DA (CONTRA)MESTIAGEM

    Marcio Goldman

  • documenta642

    O texto que se segue possui, ainda, um carter incerto e aberto, uma vez que diz respeito a um tema com o qual comecei a trabalhar apenas recen-temente e que denominei, provisoriamente, de relao afroindgena (sem hfen ver Goldman 2015) em poucas palavras, os agenciamentos entre afrodescendentes e amerndios. Tema que certamente deriva de meu campo emprico de investigao, o candombl de nao angola, com seus infindveis debates sobre origens e sincretismos, mas que aparecer apenas no incio da apresentao.

    Aps algumas observaes iniciais e a apresentao algo abstrata da questo da relao afroindgena, procurarei extrair algumas concluses provisrias a partir da justaposio de dois casos etnogrficos especficos. O objetivo comear a testar a possibilidade de pensar essa relao apli-cando a ela o que Bruno Latour denominou princpio de irreduo: no reduzi-la de antemo a uma pura questo identitria; e, ao mesmo tempo, no negar a priori que a identidade possa ser uma dimenso do fenmeno. Trata-se, basicamente, de pensar a relao afroindgena de um modo que no a reduza a simples reao dominao branca, nem mera oposio entre duas identidades no importa se tidas como primordiais ou como constitudas por contraste. Ao contrrio, trata-se de pensar essa relao a partir das alteridades imanentes que cada coletivo comporta e que devem ser relacionadas com as alteridades imanentes de outros coletivos, traando espaos de interseo em que as chamadas relaes intertnicas no so redutveis nem ignorncia recproca, nem violncia aberta, e nem fuso homogeneizadora (ver Losonczy 1997).

    Comeo com a lembrana de um estranho conto de Jorge Luis Borges, intitulado O atroz redentor Lazarus Morell, no qual o autor assinala, de modo irnico, um dos paradoxos que marcam a invaso do futuro continente americano pelos europeus:

    em 1517, o padre Bartolom de las Casas compadeceu-se dos ndios que se

    extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas, e props ao

    imperador Carlos V a importao de negros, que se extenuassem nos laboriosos

    infernos das minas de ouro antilhanas. A essa curiosa variao de um filantropo

    devemos infinitos fatos: os blues de Handy, o sucesso alcanado em Paris pelo

    pintor-doutor uruguaio D. Pedro Figari, a boa prosa agreste do tambm oriental

    D. Vicente Rossi, a dimenso mitolgica de Abraham Lincoln, os quinhentos

    mil mortos da Guerra da Secesso, os trs mil e trezentos milhes gastos em

    penses militares, a esttua do imaginrio Falucho, a admisso do verbo linchar

    na dcima terceira edio do Dicionrio da Academia espanhola, o impetuoso

    filme Aleluya, a fornida carga de baionetas levada por Soler frente de seus

  • documenta 643

    Pardos y Morenos em Cerrito, a graa da senhorita de Tal, o negro que assassinou

    Martn Fierro, a deplorvel rumba El Manisero, o napoleonismo embargado e

    encarcerado de Toussaint Louverture, a cruz e a serpente no Haiti, o sangue

    das cabras degoladas pelo machado dos papaloi, a habanera me do tango,

    o candombe. Alm disso: a culpvel e magnfica existncia do atroz redentor

    Lazarus Morell (Borges 1974:295).

    A isso, conclui Borges, devemos infinitos fatos, dos quinhentos mil mortos da Guerra da Secesso, da admisso do verbo linchar na dcima terceira edio do Dicionrio da Academia espanhola, dos trs mil e trezentos milhes gastos em penses militares, aos blues de Handy; a habanera me do tango; o candombe; a graa de algumas senhori-tas; a cruz e a serpente no Haiti; o sangue das cabras degoladas pelo machado dos papaloi.

    De forma sem dvida menos irnica que Borges, e sem qualquer refe-rncia ao universo indgena, o mesmo ponto tambm foi levantado por Flix Guattari ao falar do jazz, que:

    Nasceu de um mergulho casmico, catastrfico, que foi a escravizao das

    populaes negras nos continentes norte e sul-americano. e, depois, houve

    uma conjuno de ritmos, de linhas meldicas, com o imaginrio religioso do

    cristianismo, com dimenses residuais do imaginrio das etnias africanas, com

    um novo tipo de instrumentao, com um novo tipo de socializao no prprio

    seio da escravido e, em seguida, com encontros intersubjetivos com as msicas

    folk brancas que estavam por l; houve, ento, uma espcie de recomposio

    dos territrios existenciais e subjetivos no seio dos quais no s se afirmou uma

    subjetividade de resistncia por parte dos negros, mas que, alm do mais, abriu

    linhas de potencialidade para toda a histria da msica (Guattari 1993:120).

    Ora, como o jazz, o blues, a habanera e o candombe, as religies de matriz africana tema com o qual trabalho h quase quarenta anos so um dos resultados desse criativo processo de reterritorializao que se seguiu brutal desterritorializao de milhes de pessoas no movimento de origem do capitalismo com a explorao das Amricas pela utilizao do trabalho es-cravo. em face dessa experincia mortal, articularam-se agenciamentos que combinaram, por um lado, dimenses de diferentes pensamentos de origem africana com aspectos dos imaginrios religiosos cristos e do pensamento amerndio e, por outro, formas de organizao social tornadas inviveis pela escravizao com todas aquelas que puderam ser utilizadas, dando origem a novas formas cognitivas, perceptivas, afetivas e organizacionais. Tratou-se,

  • documenta644

    assim, de uma recomposio, em novas bases, de territrios existenciais aparentemente perdidos, do desenvolvimento de subjetividades ligadas a uma resistncia s foras dominantes que nunca deixaram de tentar sua eliminao e/ou captura.

    Pedindo perdo pela obviedade, a expresso religies de matriz afri-cana designa, pois, de forma algo grosseira, um conjunto heterclito, mas articulado, de prticas e concepes religiosas cujas linhas de fora principais foram trazidas pelos escravos africanos para as Amricas. Provavelmente formadas ao longo do sculo XIX, essas religies, como as conhecemos hoje, incorporaram, assim, ao longo de sua histria, em maior ou menor grau, elementos das cosmologias e das prticas indgenas, do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeia. esses elementos foram se transformando na medida em que iam sendo combinados e foram sendo combinados na medida em que se transformavam, gerando uma infinidade de variantes religiosas muito parecidas quando olhadas de uma certa distncia e bem diferentes quando olhadas de outra. Pode-se, assim, observar uma bem marcada diversidade entre os diferentes grupos de culto, diversidade ligada regio da frica de onde provm a maior parte do repertrio de cada grupo, assim como s modalidades e intensidades de suas conexes tidas por sincrticas com outras tradies religiosas. Meu trabalho etnogrfico diz respeito a uma dessas variantes, o candombl, mais especificamente um terreiro de nao angola, situado na cidade de Ilhus, no sul do estado da Bahia, no nordeste brasileiro. No obstante, acredito que o que tentarei dizer aqui tambm seja vlido para outros casos, ainda que com o custo de algumas transformaes.

    O processo histrico de constituio dessas religies parece explicar, ao menos em parte, o fato de serem ininterruptamente atravessadas por um duplo sistema de foras: centrpetas, codificando e unificando os cultos; centrfugas, fazendo pluralizar as variantes, acentuando suas diferenas e engendrando linhas divergentes. Mas o ponto fundamental que essas foras esto sempre em coexistncia e que elas no podem ser dispostas segundo um esquema histrico linear indo da unificao desagregao ou desta para a primeira. A insistncia em distribuir pela histria foras sempre em coexistncia costuma redundar em uma v tentativa de apagar contradies aparentes, mas acaba, na verdade, apagando a heterogeneidade constitutiva do sistema.

    tambm em funo dessa dualidade de foras que prefiro empregar a frmula religies de matriz africana no Brasil em lugar das tradicionais expresses religies africanas no Brasil, religies afro-brasileiras ou, pior, cultos afro-brasileiros. Isto porque o termo matriz tem a vantagem

  • documenta 645

    de poder ser entendido, simultaneamente, em seu sentido de algo que d origem a alguma coisa o que respeita, alm de utilizar, o uso nativo, sempre preocupado em relacionar essas religies com uma frica que no acredito ser nem real, nem imaginria, nem simblica, mas dotada de um sentido existencial e em seu sentido matemtico ou topolgico (matriz de transformaes), que aponta para o tipo de relao que acredito existir entre as diferentes atualizaes dessas religies e, ao mesmo tempo, para o mtodo transformacional que penso necessrio para seu tratamento analtico.

    Retornemos, contudo, s observaes de Borges e de Guattari. De fato, e ainda que os nmeros sejam algo controversos, no nada improvvel que ao longo de cerca de 300 anos quase 10 milhes de pessoas tenham sido embar-cadas fora da frica para as Amricas, na maior migrao transocenica da histria. O ponto que eu gostaria de sublinhar aqui que os cerca de 4 milhes de pessoas que podem ter chegado ao que hoje chamamos de Brasil encontraram milhes de indgenas, vtimas de um genocdio paralelo dispora africana, processos que, nunca demasiado lembrar, sustentam a constituio desse mundo chamado de moderno. nessa histria, que a de todos ns, que coe-xistem os poderes mortais da aniquilao e as potncias vitais da criatividade.

    Nesse sentido, aquilo que eu gostaria de explorar tentativamente aqui o encontro entre afros e indgenas nas Amricas o resultado do maior processo de desterritorializao e reterritorializao da histria da huma-nidade, e bastante notvel que um fenmeno dessa envergadura tenha recebido relativamente to pouca ateno, ou que tenha recebido um tipo de ateno que desconsidera completamente o que eu chamaria de dimenso transcendental desse encontro.

    Como j observava Roger Bastide em 1973, os antroplogos se interes-saram sobretudo pelos fenmenos de adaptao dos candombls africanos sociedade dos brancos e cultura luso-catlica (Bastide 1976:32). O que quer dizer, por um lado, que no se escreveu tanto assim sobre o que Basti-de chamava de encontro e casamento dos deuses africanos e dos espritos indgenas no Brasil. Mas quer dizer sobretudo que aquilo que foi escrito, em geral, o foi a partir de um ponto de vista que subordinava a relao afroin-dgena a um terceiro elemento que estruturava o campo de investigao na mesma medida em que dominava o campo sociopoltico: o branco europeu. Na prpria obra de Bastide, a questo central talvez seja justamente a da famosa integrao do negro na sociedade de classes. Tudo se passa ento, como acontece frequentemente demais na antropologia, como se o ponto de vista do estado, com seus problemas de nation building, levasse a melhor, impondo essa espcie de certeza, que parece durar at hoje, de que a nica identidade legtima a identidade nacional.

  • documenta646

    claro que a estatizao, ou o branqueamento, da relao afroindgena no marcou apenas as investigaes acadmicas. Como bem se sabe, no caso brasileiro, assim como em muitos outros, o encontro e a relao afroindgena foram devidamente submetidos sociedade dos brancos e pensados na forma daquilo que se convencionou chamar mito das trs raas. Mito, intil lembrar, que elabora, justamente, a contribuio de cada uma dessas raas para a constituio da nao brasileira, mas segundo uma lgica e um processo em que o vrtice superior do tringulo das raas s pode ser, claro, encabeado pelos brancos.

    Quanto antropologia, em especial a brasileira, a questo que se coloca bem simples. Por que, afinal de contas, a proximidade entre amerndios e afro-americanos ou seja, o fato inelutvel de que, ao longo dos sculos, e ainda hoje, eles no puderam deixar de estabelecer e de pensar suas rela-es sempre esteve acompanhada de um afastamento terico que faz com que dessa relao no saibamos quase nada ou saibamos apenas o menos interessante? Pois esse afastamento que fez com que esses coletivos e suas cosmopolticas tenham sido to raramente estudados e/ou analisados em conjunto, preferindo-se, em geral, aproximaes tericas com outras terras, a Melansia, a Sibria ou mesmo a prpria frica. Contra essa pobreza antropolgica muitas etnografias recentes vm mostrando a riqueza com a qual a relao afroindgena pensada pelos coletivos nela interessados e que no encontra nenhum paralelo digno na reflexo acadmica.

    O primeiro passo, sem dvida, consistiria em um movimento para libertar a relao afroindgena da dominao e do ofuscamento terico--ideolgicos produzidos pela presena dessa varivel maior, os brancos, o que significa tentar praticar aquilo que, seguindo o exemplo do autor de teatro Carmelo Bene, Deleuze denominou operao de minorao: a subtrao da varivel majoritria dominante de uma trama faz com que esta possa se desenvolver de um modo completamente diferente, atualizando as virtualidades bloqueadas pela varivel dominante e permitindo reescrever toda a trama (Deleuze & Bene 1979:97-101). em poucas palavras e grosso modo: como ficaria o mito das trs raas se dele suprimssemos no o fato histrico, poltico e intelectual do encontro, mas o vrtice maior do trin-gulo, os brancos? Como apareceriam afros e indgenas sem este elemento sobrecodificador?

    Antes, contudo, como costuma dizer Isabelle Stengers, talvez seja preciso ir um pouco mais devagar e comear sublinhando os riscos desse empreendimento. Para isso, necessrio deixar claro as imagens que eu no gostaria que o termo afroindgena evocasse, os clichs que eu no gos-taria que ele desencadeasse. O ponto central que no se trata de pensar a

  • documenta 647

    relao afroindgena nem de um ponto de vista gentico (no sentido amplo do termo), nem a partir de um modelo tipolgico. No se trata de gnese porque no se trata de determinar o que seria afro, o que seria indgena e o que seria resultado de sua mistura ou, eventualmente, o que no seria nem uma coisa nem outra. e isso seja em um sentido propriamente biolgico ou genealgico, seja em sentido cultural, social etc. No se trata, portanto, de um problema de identidade, muitas vezes, alis, confundido com o das origens, o que pode no ser to fcil quanto parece, porque a primeira coi-sa que somos tentados a fazer toda vez que nos deparamos com situaes afroindgenas so exatamente essas triagens que eu gostaria de evitar.

    Por outro lado, no nada incomum que, ao evitar o fogo da gnese, os antroplogos caiam na frigideira da tipologia, onde, fingindo fazer abs-trao das conexes genticas, acabam chegando exatamente no mesmo lugar. estabelecer um tipo (ideal ou no, pouco importa) afro puro, um tipo indgena puro, e quantos tipos intermedirios forem no , de modo algum, o que importa. Nem os modelos historicistas, nem os estrutural-funciona-listas, em suas variantes explcitas ou mais ou menos disfaradas, possuem qualquer utilidade aqui. Pois no se trata, na verdade, de identificar e/ou contrastar aspectos histricos, sociais ou culturais em si, mas princpios e funcionamentos que podem ser denominados amerndios e afro-americanos em funo das condies objetivas de seu encontro, o que significa que no so traos, aspectos ou agrupamentos culturais que devem ser comparados, mas os princpios a eles imanentes.

    Observemos, igualmente, que esse enfoque privilegiando comparaes e interaes afroindgenas poderia tambm conduzir produo de contri-buies inovadoras para o campo das chamadas relaes intertnicas. Sabe-se bem como a histria de diversos pases americanos foi contada, em uma chave ideolgica, com nfase sobre o encontro das trs raas que teriam harmoniosamente constitudo a nao. suprfluo denunciar o carter mistificador deste tipo de narrativa, mas talvez valha a pena as-sinalar que ela reelabora um fenmeno que indubitavelmente no pde deixar de ter ocorrido. Como tambm escreveu Roger Bastide (1960:20), no so as civilizaes que esto em contato, mas os homens ou as pessoas e cabe a ns tentar descobrir e pensar o que aconteceu e ainda acontece nesses encontros que, alis, no so apenas entre pessoas, mas tambm com deuses, objetos, lugares, msicas, danas etc. Por outro lado, como vimos, nunca se enfatizou suficientemente que a natureza das relaes que unem os vrtices do tringulo das trs raas no pode ser a mesma, caso se considerem as relaes entre dominantes e dominados ou apenas aquelas entre os segundos.

  • documenta648

    Ora, essas relaes se estabelecem entre elaboraes que se situam em diversas dimenses: sociolgicas, mitolgicas, religiosas, epistemolgicas, ontolgicas, cosmopolticas. Trata-se, em ltima instncia, de mapear as premissas imanentes aos discursos nativos, extraindo consequncias terico--experimentais efetivas das crticas antropolgicas que, ao longo dos ltimos cem anos, vm insistindo na impossibilidade de determinao de qualquer grande divisor capaz de distinguir substantivamente os coletivos humanos entre si. Impossibilidade tanto mais evidente quanto as transformaes em-pricas em curso na paisagem sociocultural do planeta mostram a acelerao simultnea dos processos aparentemente contraditrios de convergncia e divergncia, mimetismo e diferenciao, dissoluo e endurecimento das fronteiras (tanto objetivas como subjetivas) entre os coletivos. estas dificul-dades devem ser levadas a srio, permitindo a elaborao de abordagens alternativas que afirmem a fecundidade epistemolgica de tais impasses e os situem no corao da produo antropolgica.

    Se quisermos escapar do clich antropolgico que quer nos prender mera determinao de variedades culturais e universais humanas, o que deve ser visado o mapeamento das premissas epistemolgicas, ontolgi-cas, cosmopolticas imanentes aos discursos nativos, o que, de imediato, revela que no h nenhuma razo para confinar o procedimento a uma rea etnogrfica ou a um tipo de sociedade. Trata-se de explorar luz de contribuies tericas recentes em torno da antropologia simtrica e dos grandes divisores a questo da potencialidade terica e/ou heurstica dessas distines entre sociedades, e a de sua superao. e trata-se em seguida de estimular um dilogo que, retomando a melhor tradio antro-polgica, confronte as contribuies especficas das pesquisas realizadas em sociedades indgenas e complexas, a fim de que possam se fecundar reciprocamente, escapando do aprisionamento em crculos restritos de es-pecialistas e das excessivas concesses aos clichs dominantes.

    Isto significa, sobretudo, evitar o risco de simplesmente reproduzir, num estilo talvez mais sofisticado, os clssicos debates em torno do chamado sincretismo religioso e, assim, isolar traos de culturas originais puras que teriam se mesclado formando cada manifestao sociocultural especfica. Ao contrrio, o ponto a delimitao e o contraste de princpios cosmolgicos de matriz amerndia ou africana, sem perder de vista nem sua especificidade, nem as condies histricas de seu encontro. Ou, em outros termos, trata--se de tentar colocar em dilogo produes etnogrficas e reflexes tericas oriundas de dois domnios tradicionalmente separados da antropologia, na esperana de que, por meio desse dilogo, seja possvel trazer luz novas conexes e novas distines entre eles.

  • documenta 649

    Se quisssemos seguir um modelo, poderamos denomin-lo, talvez, transformacional, em um sentido anlogo, mas no idntico ao que o ter-mo possui nas Mitolgicas, onde Lvi-Strauss (1964-1971) no descarta as conexes histricas, genticas e mesmo tipolgicas entre amerndios, mas desenvolve um procedimento que visa contornar e superar essas obviedades. Seguindo exemplos mais recentes, como o de Marilyn Strathern (1988) na Melansia, talvez seja possvel tratar desse modo materiais afro-americanos em conexo com materiais amerndios.

    Por outro lado, essas transformaes tambm devem ser pensadas no sentido deleuziano sugerido acima (o de um procedimento de minorao por extrao do elemento dominante) e em um sentido guattariano, porque as conexes que se pretende estabelecer no so nem horizontais, nem verticais, mas transversais. Ou seja, no se trata de encarar as variaes nem como variedades irredutveis umas s outras, nem como emanaes de um universal qualquer conectando entidades homogneas: as conexes se do entre heterogneos enquanto heterogneos, as relaes se do entre diferenas enquanto diferenas, como lembra Guattari (1992) ao falar de heterognese, conceito que tem como premissa fundamental a hiptese de que o diferencial no pode ser encarado como mera negao e/ou oposio, uma vez que ele sobretudo da ordem da criao ou da criatividade.

    Isto significa tambm, diga-se de passagem, que talvez seja preciso livrar a comparao levistraussiana da noo de estrutura, ou seja, abandonar a ideia da realidade como um conjunto de atualizaes parciais localmente moduladas de um conjunto de possveis que, uma vez no atualizados, so destinados a uma espcie de tranquila inexistncia. Como se sabe, Deleuze e Guattari propuseram uma perspectiva diferente sobre este ponto ao intro-duzirem o conceito de virtual-real para se opor justamente dupla noo estruturalista do possvel e do atual. Falar em virtual-real significa supor que o que no est manifestamente atualizado continua a existir de alguma forma, ou antes, continua a funcionar, podendo sempre ser recolocado em jogo. Mais que um mtodo transformacional, tratar-se-ia talvez de algo como uma perspectiva transformacional, na qual ontologia se torna sinnimo de diferena, e epistemologia, de tica. Porque no h nenhuma razo, a no ser moral e poltica, para subordinar a diferena identidade ou a tica epistemologia.

    preciso, pois, proceder com cautela, mas o esforo para colocar em dilogo materiais amerndios e afro-americanos to heterogneos permite desde j entrever ao menos trs tipos de elaborao. em primeiro lugar, contextos nos quais os prprios coletivos se definem, mais ou menos dire-tamente, como afroindgenas.

  • documenta650

    em segundo lugar, temos as situaes em que coletivos autodefinidos como amerndios e coletivos autodefinidos como afro-americanos se encon-tram e interagem efetivamente mesmo que, como costuma acontecer fre-quentemente, esses encontros e essas interaes possam ser to codificados que correm o risco de passar despercebidos.

    enfim, terceira possibilidade: aquela em que, de alguma forma, o prprio analista se faz, por assim dizer, afroindgena, promovendo e mesmo provocan-do o encontro de materiais tradicionalmente destinados incomunicabilidade, devidamente fechados em seus nichos acadmicos de proteo. No difcil imaginar como esse procedimento poderia enriquecer debates tradicionais confrontando temticas classicamente tidas como indgenas (totemismo, xamanismo, multiplicidade de espritos...) com outras, tidas por afro-ameri-canas (sacrifcio, possesso, pantees hierarquizados de divindades e assim por diante) e que, no entanto, todos sabemos poderem ser encontradas, de acordo com distintas transformaes, dos dois lados do divisor.

    Trata-se, assim, de proceder a um confronto entre cosmopolticas e cole-tivos em princpio heterogneos que poderia servir para seu esclarecimento mtuo, evitando o evolucionismo no plano histrico, o dualismo no plano ontolgico, e o maniquesmo no plano tico. essas cosmopolticas e esses coletivos devem, assim, ser tomados no que apresentam de desconhecido, incerteza, indeterminao, no a partir daquilo que sabemos ou acreditamos saber a seu respeito. No se trata tampouco de supor algum tipo de unida-de ou identidade l onde se via apenas diferena; trata-se, seguindo o que Deleuze e Guattari chamam mtodo diferencial, de buscar e analisar com cuidado as distines abstratas a fim de que as misturas concretas se tornem mais inteligveis. em outros termos, preciso distinguir analitica-mente bem para melhor entender as alianas e os agenciamentos efetivos que produzem as misturas concretas.

    Isto no significa, contudo, abrir mo de um ponto essencial, o fato de que, como escreveu em alguma parte Lvi-Strauss, a antropologia uma cincia emprica e que, nela, o material emprico deve guiar as problemati-zaes e as conceptualizaes. Com o adendo de que esse material emprico envolve necessariamente o que as pessoas pensam e tm a dizer sobre o que acontece com elas mesmas e com os outros, uma vez que a antropologia deve estar sempre subordinada palavra nativa, de tal modo que seu discurso no tenha privilgio algum em face daqueles com quem trabalha. Nesse sentido, o melhor procedimento inicial talvez seja tomar o termo afroindgena nos sentidos em que as prprias pessoas que gostam de pensar a si mesmas como afroindgenas o utilizam. Ou o que a mesma coisa, sublinhar que o termo afroindgena tem, ou pode ser tomado como tendo, uma origem afroindgena.

  • documenta 651

    Desse modo, eu gostaria de utilizar algumas reflexes nativas para apre-sentar um pouco melhor o que estou propondo. Tentarei faz-lo a partir da maneira pela qual dois coletivos distintos elaboram a relao afroindgena, abrindo assim, talvez, a possibilidade de uma reflexo antropolgica sobre este tema. esses dois coletivos, aparentemente muito heterogneos, vivem no extremo-sul e no sul baianos; o primeiro os membros do movimento cultural da cidade de Caravelas, estudados por Ceclia Mello (2003, 2010) se pensa decididamente como afroindgena; o segundo, os Tupinamb da Serra do Padeiro, estudados, entre outros, por Helen Ubinger (2012) se define resolutamente como indgena.

    Quando foram apresentados pela primeira vez, h mais de dez anos, nem o material etnogrfico, nem a anlise emprica e a terica de Ceclia Mello se acomodavam muito bem a um certo clich que parecia dominar o pensamento antropolgico, mas que, tudo indica, cada vez mais difcil de sustentar: a quase certeza de que no temos nada de importante a apren-der com as pessoas com quem convivemos durante nossas pesquisas, seja porque elas realmente no seriam capazes de nos ensinar nada, seja porque aquilo que elas eventualmente nos ensinam de curto alcance, limitado ao contexto paroquial em que vivem.

    As pessoas que Ceclia estudou em Caravelas criaram e fazem parte de um bloco de carnaval (o Umbandaum), de um Movimento Cultural (o Arte Manha) e de um Grupo Afroindgena de Antropologia Cultural todos os termos so deles. Neles, desenvolvem uma srie de atividades que visam resgatar a memria afroindgena, usando para isso formas de expresso artsticas, que envolvem a escultura, os entalhes em madeira, a pintura, mas tambm o teatro e a dana. Alm disso, e este ponto fundamental, sua arte resulta de pesquisas e debates coletivos sobre suas origens afroindgenas e suas formas de expresso. As atividades do movimento se concretizam tambm no Umbandaum, definido como bloco-manifestao poltica que, desde 1989, ocupa as ruas de Caravelas no sbado de carnaval, apresentan-do orixs, caboclos e personalidades histricas marginalizadas da histria baiana. esse desfile definido como o que Ceclia (2013) denomina um teatro-performance, em que os componentes incorporam personagens e traduzem suas caractersticas atravs de expresses faciais e corporais.

    As mesmas pessoas que fazem o movimento cultural e o bloco so, ade-mais, filiadas ao Partido dos Trabalhadores e desenvolvem intensa militncia poltico-eleitoral tendo alguns se candidatado por diversas vezes a cargos eletivos e mesmo ocupado algumas secretarias municipais. Alm disso, boa parte de seu tempo tomado pela elaborao de belssimas obras de arte, de esculturas a mveis chamados rsticos, criadas a partir da tcnica

  • documenta652

    que denominam reaproveitamento da madeira, ou seja, a utilizao de madeira considerada morta, encontrada nas matas que ainda sobrevivem aos eucaliptais que infestam a regio, madeira que, devidamente tratada, adquire uma espcie de nova vida.

    O ponto essencial aqui que essas pessoas no apenas se pensam (no sentido forte da palavra) como afroindgenas, como desenvolvem uma srie de complexas reflexes sobre essa expresso e sobre a sua prpria situao no mundo. em lugar de pretender saber de antemo e revelar o que seus amigos estariam realmente querendo dizer ao se afirmarem afroindgenas, Ceclia preferiu seguir de modo detalhado e profundo o que eles efetivamente dizem, fazem e pensam a respeito de si mesmos, dos outros e dos mundos de que participam. Porque a necessidade de que os outros pensem para usar uma expresso de Deleuze retomada por Stengers no significa, claro, que devamos obrig-los a pensar, muito menos tentar esclarec-los ou, no limite, lamentar que no pensem. A necessidade de que os outros pensem uma abertura para seu pensamento, a aceitao de que as pessoas realmente pensam, mesmo, ou principalmente, quando pensam diferente de ns. Desterritorializao do pensamento prprio por meio do pensamento de outrem, espcie de participao, discurso livre indireto, nica justificativa, talvez, para a prtica antropolgica.

    em lugar de ceder tentao de julgar se seus amigos eram de fato negros, ndios, mestios, pobres, ou o que quer que seja, a antroploga aprendeu que afroindgena no precisa necessariamente ser da ordem da identidade, mas pode ser pensado como algo que se torna, que se transforma em outra coisa diferente do que era, mas que, de algum modo, conserva uma memria do que se foi como um devir, portanto.

    Ceclia aprendeu tambm que o termo afroindgena quer dizer muitas coisas: um modo de descendncia, sem dvida, mas tambm uma origem explicitamente reconhecida como mtica e uma forma de expresso artstica, ou seja, criativa; que no se trata da simples justaposio de influncias ou formas distintas e irredutveis, mas de uma terceira forma, com caracte-rsticas prprias e ao mesmo tempo comuns s outras; que a relao entre afros e indgenas no pensada apenas como de proximidade entre mundos paralelos, mas como uma interseo entre esses mundos, como um encontro entre indgenas e africanos. Que o encontro tenha sido real ou no ou que ele esteja sendo explorado em sua realidade histria ou no pouco importa. O que realmente importa a virtualidade desse encontro, aquilo que ele poderia ter produzido e que, por isso mesmo, ainda pode s-lo. Finalmente, Ceclia tambm aprendeu que o conceito foi elaborado com as mesmas tcnicas utilizadas na criao das obras de arte que o grupo produz.

  • documenta 653

    V-se, assim, que as relaes afroindgenas so pensadas, simultanea-mente, na chave da filiao e na da aliana, extensivas e intensivas ao mes-mo tempo; que tanto uma quanto a outra so encaradas em sua molaridade histrica e em sua molecularidade criativa. O afroindgena uma linha de fuga minoritria no apenas em relao varivel majoritria dominante brancos, mas tambm em relao captura que sempre ameaa as linhas de fuga: o rebatimento do devir em uma identidade ou mesmo em um pertenci-mento negro, ndio como minoria em lugar de devir-minoritrio ou menor.

    nesse sentido que o conceito de afroindgena criado em Caravelas a partir dos mesmos procedimentos utilizados para criar qualquer obra de arte, ou seja, a partir dessa tcnica que os artistas chamam de reaproveita-mento ou ressuscitamento, tcnica que opera por meio da reatualizao de virtualidades reprimidas pela histria. Uma rvore derrubada ou uma dana esquecida preservam potncias vitais que o artista e o militante podem desencadear. Trata-se, assim, de uma espcie de bricolage das experincias histricas vividas de diferentes maneiras pelos membros do grupo como afros e como indgenas, ou seja, como dominados. Do mesmo modo que na madeira morta uma nova vida pode ser encontrada, nas experincias de resistncia dominao uma nova fora pode sempre ser despertada.

    Se para os Maia do Mxico contemporneo, como mostrou Pedro Pitarch (2013), a coexistncia de narrativas indgenas e europeias um modo de no permitir a incorporao da lgica europeia na prpria narrativa indgena, no caso de Caravelas tudo se passa como se fosse a articulao das narrativas afro e indgena que produz esse efeito de evitar a incorporao da lgica dominante, o que no significa que aquilo que os Maia obtm a partir de uma evitao rigorosa de qualquer mistura seja feito pelos afroindgenas simplesmente misturando as coisas.

    J h algum tempo, Jos Carlos dos Anjos (2006) nos revelou tudo o que teramos a ganhar abandonando os clichs dominantes da miscigenao, da mestiagem ou do sincretismo em benefcio de imagens oriundas de nossos prprios campos empricos de investigao. Assim, a ideia de linha cruzada, presente em praticamente todas as religies de matriz africana no Brasil, per-mite pensar um espao de agenciamento de diferenas enquanto diferenas, sem a necessidade de pressupor nenhum tipo de sntese ou fuso. As diferenas so intensidades que nada tm a ver com uma lgica da assimilao, mas sim com a da organizao de foras, que envolve a modulao analgica (contra a escolha digital) dos fluxos e de seus cortes, bem como o estabelecimento de conexes e disjunes. esse modelo heterogentico apoiado nas variaes contnuas permite opor termo a termo mestiagem e sincretismo, de um lado, contramestiagem e composio (no sentido artstico do termo), de outro.

  • documenta654

    Porque em ltima anlise do mito das trs raas que os afroindgenas de Caravelas esto tentando se livrar. e, se o fazem, porque sabem muito bem que os mitos das classes dominantes tm o mau costume de produzir efeitos muito reais. Nesse sentido, sua elaborao do afroindigenismo tem igualmente uma dimenso mtica. Aqui, entretanto, temos que livrar o con-ceito de suas dimenses representacionais ou mesmo estruturais. Como escreveram Deleuze e Guattari (1972:185), o mito no uma representao transposta ou mesmo invertida das relaes reais em extenso; ele, ao con-trrio, determina, conforme o pensamento e a prtica indgenas, as condies intensivas do sistema; ou, em outras palavras, o mito no expressivo, mas condicionante. O problema de agenciamento, no de representao.

    Se a bricolage, como postulou Lvi-Strauss (1962), corresponde, no plano da atividade prtica, ao mito da atividade especulativa, a mesma passagem do expressivo ao condicionante poderia ser transposta para essa noo. O reaproveitamento, ou ressuscitamento, uma forma de resis-tncia, e a criao de novas condies e condicionantes faz parte inevitvel de toda luta poltica.

    O afroindgena pode aparecer, assim, como uma espcie de perspectiva. Perspectiva que no tanto a da oposio simples entre afroindgena, de um lado, e brancos, de outro o que reconduziria inevitavelmente a uma captura pela forma-identidade mas sim uma perspectiva estabelecida a partir da oposio mesmo entre afro e indgena, oposio que, evidentemente, de natureza muito distinta daquela entre afro e/ou indgena, de um lado, e branco, de outro.

    Trata-se esta talvez seja a hiptese mais forte que eu gostaria de le-vantar de um processo que poderamos denominar contramestiagem. No no sentido de uma recusa da mistura em nome de uma pureza qualquer, mas no da abertura para o carter analgico, e no digital, e para o elemento de indeterminao que qualquer processo de mistura comporta.

    em certo sentido, o desafio colocado pela explorao antropolgica da noo de afroindgena que aparece ou reaparece hoje em tantas partes bem como de seus correlatos, no mais do que a tentativa de elaborar em chave acadmica aquilo que os militantes afroindgenas de Caravelas, assim como muitos outros, expuseram em chave existencial.

    A quase 400 km ao norte de Caravelas, e a cerca de 50 km do litoral, fica a cidade de Buerarema, parte da antiga grande regio cacaueira baiana. e a pouco menos de 20 km do centro de Buerarema fica a Serra do Padeiro, onde vivem hoje quase mil tupinambs. eles fazem parte de um grupo mais abrangente que inclui os Tupinamb de Olivena (que vivem mais perto do litoral) e, como seus vizinhos, lutam h pelo menos vinte anos pela criao

  • documenta 655

    de sua terra indgena (sobre o que se segue, ver principalmente Ubinger [2012], tambm Macdo [2007] e Couto [2008]).

    A histria dos Tupinamb dessa regio se parece muito com a de in-meros grupos indgenas do nordeste brasileiro e hoje tambm de outras regies. Grosso modo, essa histria por eles dividida entre um grande perodo que vai do sculo XVI ao XIX (marcado por sua reduo em misses jesutas em conjunto com outros grupos indgenas e, depois, pela ocupao de certos territrios), seguido, a partir do incio do sculo XX, por perodos mais curtos de invaso, expulso, revolta, disperso, submerso e retomada. esta no a ocasio para nos determos nesse intrincado processo e no complexo modo como pensado e narrado pelos envolvidos. Basta observar que os Tupinamb no supem que tenham deixado de existir enquanto indgenas em nenhum momento, e que pensam as alianas e a submerso a que se viram obrigados a praticar como meios de luta para garantir a sua existncia.

    Desse modo, no veem nenhum problema em reconhecer que so mis-turados. No entanto, e ao contrrio do que vimos ocorrer em Caravelas, a expresso afroindgena parece no fazer muito sentido na Serra do Padeiro, uma vez que a mistura no anula o fato de que so, sempre foram e pretendem permanecer indgenas. Tudo se passa de modo semelhante quele que foi descrito pela primeira vez, em 1991, por Peter Gow para os Piro da Amaznia peruana: o fato de que a diferena entre pessoas pode ser introjetada em cada uma no anula o fato de que, coletivamente, podem seguir sendo o que sempre foram. Parafraseando uma comunicao oral de Pedro Pitarch para o caso dos Maia mexicanos, os Tupinamb da Serra do Padeiro no so os descendentes dos antigos Tupinamb: eles so aqueles Tupinamb que foram capazes de sobreviver a uma experincia histrica devastadora.

    De seu prprio ponto de vista, o ponto central dessa articulao entre identidade e diferena, continuidade e descontinuidade parece se situar no plano cosmolgico. Conhecidos pelo culto que prestam aos encantados, continuam a ver suas prticas religiosas sendo usadas para negar a eles o direito a terra, sob o argumento de que assim como fenotipicamente eles no parecem ndios, sua religio estaria mais prxima das religies de matriz africana do que de prticas indgenas.

    Como se sabe, por encantado entende-se, em praticamente todo o Brasil, do oeste amaznico ao litoral nordestino e do extremo norte do pas a Minas Gerais, um conjunto de seres espirituais que assumem caractersticas semelhantes e diferentes nas diversas prticas religiosas em que aparecem. Denominados em muitas partes caboclos, esses encantados se caracteri-zam, em geral, por no se confundirem com as divindades propriamente ditas e, ao mesmo tempo, por apresentarem algum tipo de afastamento significativo

  • documenta656

    em relao aos antepassados e aos espritos de mortos em geral. Ainda que isso no ocorra em todas as partes, os encantados costumam ser pensados como vivos, seja no sentido de que so seres que passaram deste plano da existncia para outro sem conhecer a experincia da morte, seja no sentido de que sempre existiram, habitaram e protegeram determinado territrio.

    bem nesta ltima acepo que os Tupinamb da Serra do Padeiro definem os seus encantados que eles ocasionalmente chamam de cabo-clos, termo igualmente utilizado como sinnimo de ndios. Os encantados so os donos da terra, essa terra que foi transformada em um territrio de sangue e que preciso agora curar, transformando-a em uma Terra sem Males. esta ser a nova forma da vingana tupinamb, no mais a partir de um derrame de sangue, mas justamente da cura de um territrio doente de sangue. Para isso, so necessrias as retomadas das terras, da cultura, da vida. Retomadas que devem ser entendidas literalmente no sentido proposto por Isabelle Stengers para a noo de reclaim: no simplesmente lamentar o que se perdeu na nostalgia de um retorno a um tempo passado, mas sim recuperar e conquistar ao mesmo tempo, tornar-se capaz de habitar de novo as zonas de experincia devastadas (Pignarre & Stengers 2005:185).

    O modo como os Tupinamb da Serra do Padeiro narram os comeos de seu culto aos encantados impressionante e constitui um dos condicio-nantes de suas prticas e representaes. Um migrante do serto baiano acaba parando na Serra e se casando com uma nativa. Um de seus filhos experimenta crises de dor ou mesmo de loucura. Seu pai decide lev-lo para a mais famosa me de santo da Bahia, Me Menininha do Gantois, sua parente distante. em Salvador, a poderosa me de santo se d conta de que no pode cur-lo porque ele j possui o poder da cura. e que a nica soluo cumprir sua sentena, ou seja, voltar para a Serra e comear a curar as pessoas. De volta, o primeiro paj tupinamb contemporneo cura primeiro a si mesmo e em seguida outras pessoas. em seus sonhos, descobre pessoas com o mesmo dom, capazes de acolher os encantados, e d incio a seu culto. Comea a acolher um encantado especfico, o Caboclo Tupinamb, que avisa que essa terra vai voltar a ser uma aldeia indgena, e anuncia a misso de retomada do territrio indgena. Nessa retomada, humanos e encantados so parceiros: os segundos seguem sempre na frente das ocu-paes territoriais e conduzem os primeiros na retomada da cultura.

    Quando confrontados com a acusao de que suas prticas religiosas no seriam realmente indgenas, mas misturadas ou mesmo de origem africana, os Tupinamb da Serra do Padeiro sabem exatamente o que dizer. Como afirma Clia, irm do cacique Babau e grande pensadora, o candombl bom pra gente usar (Ubinger 2012:149). Continuo a cit-la:

  • documenta 657

    A gente no discrimina, sabemos que algumas das entidades dos negros so

    do bem. Mas se eles no combinam, a gente no trabalha com eles, ns no

    trabalhamos com as entidades negras, mas algumas sim, pois elas ajudam.

    Porque havia muito contato entre as culturas (Ubinger 2012:135).

    Ora, essa viso pragmtica, no sentido filosoficamente mais profundo do termo, tambm pode ser aplicada s religies dos brancos. Como diz Clia, oraes catlicas, por exemplo, so utilizadas pelos Tupinamb, mesmo que eles de modo algum sejam cristos, porque e sigo citando-a:

    Ns fomos catequizados. A ns usamos o que era bom ou tinha mais fora da

    religio do outro e adaptamos s nossas prticas e crenas. Mas continuamos

    fazendo nossos rituais e tendo f nas nossas crenas, s que adaptamos, usando

    o que era til ou bom do homem branco (Ubinger 2012:135).

    To longe, to perto dos afroindgenas de Caravelas. A relao afroindgena segue sendo o modo pelo qual se pode resistir aos brancos, mesmo que, neste caso, seja preciso manter a separao interna entre afro e indgena, de algum modo eclipsada pelos militantes de Caravelas. ndios at o sculo XIX, os Tupinamb se veem obrigados a submergir para no serem mortos um pouco como seus encantados, que passam de um plano a outro sem conhecer a experincia da morte. Nessa submerso, tanto eles quanto seus encantados se metamorfoseiam em caboclos, capazes de sobreviver em alguns nichos at poderem reemergir neste mundo como ndios e encantados a fim de retomarem o que seu.

    No se trata aqui ainda de tirar muitas concluses da justaposio etnogrfica e conceitual que apenas esbocei a partir dos belos trabalhos de Ceclia Mello e Helen Ubinger. Limito-me a observar que esse confronto pode ser estendido a outras etnografias e teorias nativas na direo da ela-borao de teorias etnogrficas para voltar ao conceito malinowskiano que redescobri em meu trabalho sobre poltica do que estou chamando provisoriamente (contra)mestiagem.

    De todo modo, essas teorias etnogrficas devem necessariamente se apoiar em teorias nativas, e tudo indica que estas nunca deixam de opor, ou de distinguir, o cruzamento, a parcialidade, a heterognese, a modu-lao analgica, as intensidades, as variaes contnuas, a composio e a contramestiagem aos clichs dominantes da sntese, da totalidade, da miscigenao, da identificao por contraste, dos interesses, da lgica da assimilao, da fuso e da mestiagem e/ou sincretismo.

    nesse sentido que creio que a relao afroindgena possui um alto potencial de desestabilizao do nosso pensamento e que, por isso mesmo,

  • documenta658

    deve estar no corao de uma antropologia que encara as diferenas, que leva a srio o que as pessoas pensam, que capaz de se manter afastada dos clichs que nos assolam e, assim, pensar diferente.

    Para terminar, queria apenas justificar meu ttulo, no qual fiz o que sempre aconselho meus estudantes a no fazerem a utilizao literal de uma expresso nativa seguida de um rebuscado subttulo. Desta vez, contudo, no fui capaz de resistir fora do episdio que me foi narrado por outra ex-aluna que, como eu, fez sua pesquisa de campo em Ilhus. No mercado local de artesanato, Ana Cludia Cruz da Silva v um turista comprando artesanato indgena de um vendedor que se apresenta como tupinamb. Um pouco ctico, o turista pergunta se ele mesmo ndio; ele responde que sim, que ndio; o turista insiste na dvida, suspeitando, sem dvida, de uma ascendncia negra; o ndio confirma que tupinamb; o turista ainda argumenta: mas voc no parece ndio!. e a resposta: O que o senhor queria? So quinhentos anos de contato.

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