questões de educação escolar indígena: da formação do professor

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Questıes de educaªo escolar indgena: da formaªo do professor ao projeto de escola

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Questões de educação escolar indígena: da formação do

professor ao projeto de escola

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Questões deEducação Escolar Indígena:

da formação do professor ao projeto de escola

Núcleo de Cultura eEducação Indígena

DEDOC

Juracilda Veiga e Andrés Salanova(organizadores)

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Dados internacionais de catalogaçãoBiblioteca “Curt Nimuendajú”

ALB - Associação de Leitura do BrasilNúcleo de Cultura e Educação Indígena

Faculdade de Educação / UNICAMPCidade Universitária ”Zeferino Vaz”13081-900 - Campinas/SP - Brasil

[email protected]

FUNAI - Fundação Nacional do ÍndioDAD - Diretoria de Administração

DEDOC - Departamento de DocumentaçãoSEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 1ºAndar

70390-025 - Brasilia/DF - [email protected]

Capa: foto e criação de Wilmar D’AngelisFotografia: professores Guarani, Tranquilino Martinez e

Silvana Veríssimo, da Aldeia Pinhalzinho(PR), 2001Catalogação e revisão bibliográfica: Cleide de Albuquerque Moreira

Bibliotecária/CRB 1100Revisão final: Karla Bento de Carvalho/DEDOC

Editoração: Marli Moura/DEDOCImpressão Gráfica: Wilson Machado/DEDOC

2001

Veiga, Juracilda; Salanova, Andrés(Orgs.)Questões de educação escolar indígena: da formação do professor ao

projeto de escola./ Darlene Taukane... (et al). - Brasília: FUNAI/DEDOC,Campinas/ALB, 2001.

172p.III Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas (12º COLE -

Congresso de Leitura do Brasil, UNICAMP, 20 e 23 de julho de 1999).Bibliografia1. Educação Indígena 2. Formação Profissional - Professores Indígenas

3. Política 4. Paresi 5. Bakairi 6. Guarani 7. Nambikwára 8. Irántxe 9. LínguaIndígena 10. Ensino Bilíngüe 11. Kaingang I. Título II. Autor

CDU 572.95(81):37

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Agradecimentos

Ao Departamento de Documentação da FUNAI,que possibilitou a publicação deste livro.

À ALB e aos coordenadores gerais do 12° COLE,pelo apoio à realização do III Encontro sobreLeitura e Escrita em Sociedades Indígenas.

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Sumário

Apresentação ................................................................ 9

Capítulo 1

Avanços e impasses no projeto de educaçãoescolar diferenciada entre povos indígenas

Avanços e impasses na educação escolar indígena: aexperiência Kurâ-BakairiDarlene Taukane ............................................................. 13

A educação indígena estava muito fechadaGilda Kuitá ..................................................................... 24

Comentário da debatedora .............................................. 30

Capítulo 2

A educação escolar em novos contextospolíticos e culturais

Educação escolar indígena: um projeto étnico ou umprojeto étnico-político?Wilmar da Rocha D’Angelis ............................................. 35

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Educação escolar entre os Pareci, Nambikwara eIrantxe no contexto socioeconômico da Chapadados Parecis - MTDaniel Matenho Cabixi .................................................... 57

Capítulo 3

A formação de professores indígenas no Brasil

Rediscutindo a formação de professores no Brasil:aproximando-se da educação indígenaHelena Freitas ................................................................. 73

A formação de professores indígenas no Brasil hojeSusana Grillo Guimarães ............................................... 97

Professores Kaingang de Inhacorá (RS):uma experiência de formaçãoJuracilda Veiga .............................................................. 113

Capítulo 4

A língua indígena na escola: questões de políticalingüística

Política e planejamento lingüístico nas sociedades indígenas do Brasil hoje: o espaço e o futuro daslínguas modernasRuth Monserrat ............................................................. 127

A língua indígena na escola indígena: quando,para que e como?Angel Corbera Mori ....................................................... 160

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Apresentação

Questões de educação escolar indígena: daformação do professor ao projeto de escola reúne osprincipais textos das conferências e mesas-redondasrealizadas durante o III Encontro sobre Leitura eEscrita em Sociedades Indígenas, que fez parte do12° COLE (Congresso de Leitura do Brasil), realizadona Unicamp entre 20 e 23 de julho de 1999.

A proposta de fazer um livro com as principaisapresentações desse encontro surgiu durante opróprio evento e foi aprovada como resolução nasessão final de avaliação. O principal motivo apontadofoi a relevância das contribuições e a importânciade ampliar a abrangência de sua circulação. Dostextos aqui publicados, alguns correspondem à versãoescrita entregue pelo conferencista, enquanto outrosresultam da transcrição das fitas gravadas. Paramanter a unidade temática, decidimos não incluiras muitas comunicações apresentadas durante oencontro.

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Os Encontros sobre Leitura e Escrita emSociedades Indígenas ocorrem desde 1995 no âmbitodo COLE1, promovido bienalmente pela Associaçãode Leitura do Brasil (ALB). Esses encontros têm,entre seus objetivos principais, trazer umacontribuição original à reflexão dos diferentesagentes de programas de educação escolar indígena,em especial aos professores indígenas, permitindo-lhes uma compreensão maior do contexto no qual seinsere o seu trabalho. Valoriza, por isso, anecessidade de rever consensos, pensar e repensarcriticamente os caminhos e descaminhos daeducação escolar entre os povos indígenas. E procuraapoiar os grupos organizados destes mesmos povosna consolidação de um espaço de autonomia querealize a escolarização como um processosubordinado, em primeiro lugar, ao desenvolvimentopróprio de cada cultura e de cada povo, e não ainteresses de grupos da sociedade majoritária.

O III Encontro sobre Leitura e Escrita emSociedades Indígenas teve, como pontos focais: aautonomia das comunidades indígenas na definiçãode seu processo de aquisição da escrita, aimportância da formação dos educadores comoagentes desse processo de autonomia e a relação doensino escolar bilíngüe com a definição de umapolítica lingüística de cada sociedade indígena.

1 Os textos do primeiro encontro foram reunidos no livro “Leitura

e Escrita em Escolas Indígenas”. W. D’Angelis e J. Veiga (orgs.).Campinas: ALB e Mercado de Letras, 1997.

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O primeiro capítulo deste livro, “Avanços eimpasses no projeto de educação escolar diferenciadaentre os povos indígenas”, corresponde à aberturado encontro, em uma mesa composta por professoresindígenas, e traz as contribuições das professorasDarlene Taukane e Gilda Kuitá.

O segundo capítulo, “A educação em novoscontextos políticos e culturais”, reúne os textos daconferência do lingüista Wilmar D’Angelis e daexposição de Daniel Matenho Cabixi na mesa-redonda que se seguiu a ela. O primeiro coloca oproblema das limitações de um projeto histórico decunho unicamente étnico, que reduz a questãoindígena a uma dicotomia “índios x brancos”, e deum projeto escolar assim orientado. Já a exposiçãode Daniel Cabixi focaliza as tensões dos programasde educação nos contextos em que a sociedadeindígena está imersa na pressão dos interesseseconômicos regionais, nacionais e “globalizantes”.

“A formação de professores indígenas noBrasil”, que compõe o terceiro capítulo, reúne asapresentações de uma mesa-redonda que teve porobjetivo aprofundar a reflexão acerca da formaçãode professores e avaliar distintos programas deformação e capacitação de professores indígenasem andamento no Brasil.O capítulo se inicia com otexto da conferência da pedagoga Helena Freitas,contextualizando o debate sobre formação deprofessores no Brasil para, em seguida, travar umdiálogo entre sua perspectiva acerca do trabalho deformação e as necessidades de formação no campoda educação indígena. Segue-se o texto da exposição

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de Susana Grillo Guimarães, que traça umpanorama, ao mesmo tempo informativo e crítico,dos grandes programas de formação de professores,apontando os problemas de um esvaziamento dascategorias com que se vem tratando a educaçãoescolar indígena (diferenciada, intercultural etc.) ede uma generalização dessa formação que, na prática,contradiz os pressupostos que defende. O texto deSusana também exemplifica e enfatiza o papel daSociolingüística nos programas bilíngües. O capítuloconclui-se com o texto da antropóloga Juracilda Veigaacerca de uma experiência não-formal (tanto nosentido de não-oficial, como no sentido de não voltadaà titulação) de formação de professores Kaingang noRio Grande do Sul.

O quarto capítulo está centrado no debatesobre Políticas Lingüísticas, ensino bilíngüe e futurodas línguas indígenas. Abre com o texto daconferência da lingüista Ruth Monserrat, queconceitua Política Lingüística e discute se há, ounão, uma política do Estado brasileiro voltada paraas línguas indígenas. Na seqüência, Monserratdiscute as condições para uma política dassociedades indígenas de defesa e vitalização de suaslínguas próprias. O segundo texto do capítulocorresponde à contribuição do lingüista AngelCorbera Mori ao debate sobre o uso e o ensino daslínguas indígenas nos programas de educaçãoescolar.

Juracilda Veiga e Andrés Pablo Salanova

Núcleo de Cultura e Educação Indígena, ALB

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AVANÇOS E IMPASSES NO PROJETO DE EDUCAÇÃOESCOLAR DIFERENCIADA ENTRE OS POVOS

INDÍGENAS

Avanços e impasses na educação escolar indígena:a experiência dos Kurâ-Bakairi

Darlene Iaminalo Taukane2

Meu nome é Darlene Yaminalo Taukane.Pertenço à etnia Bakairi e atualmente souCoordenadora da Educação Escolar da FUNAI deCuiabá - MT. Desde o segundo grau sou professorapor opção, quando cursei o Magistério. Dandocontinuidade aos meus estudos fiz graduação emLetras - Licenciatura Plena e, depois, o Mestradoem Educação Pública, pela Universidade Federal deMato Grosso. Recentemente, neste ano, lancei o livroque é o resultado da pesquisa desse Mestrado. Esse

2 Mestre em Educação. Coordenadora de Educação da FUNAI - Cuiabá.

Capítulo 1

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livro é sobre a história da educação escolar entre osKurâ-Bakairi.

Quero agradecer à coordenação dessecongresso por eu estar aqui. É a primeira vez quevenho e participo de um Congresso da Leitura doBrasil. Embora eu já tenha ouvido falar, essa é aminha vez; cada um tem o seu tempo, e eu creio queessa oportunidade é o meu tempo.

Quero dizer que nós, os povos indígenas,devemos nos orgulhar muito e ao mesmo tempo nosresponsabilizar muito pelo fato de que nós nãoestamos nesse processo de discussão sobre atemática de educação escolar, mas somos e fazemosparte desse processo. Eu não estou por acaso, estoude fato; esse é o compromisso que temos, enquantopovos construtores da nossa história. Se a gente tivera clareza de que podemos e devemos construir anossa história, muitas coisas poderão mudar muitono futuro, porque é uma relação nova deoportunidades, de querermos falar da nossacaminhada e da nossa luta nas travessias deeducação escolar indígena e fazer algo em prol denós mesmos. Nesse sentido, agradeço aos nossosinterlocutores a disposição de quererem nos ouvir,ouvir a voz dos povos indígenas. Ao mesmo tempo,nós queremos ter oportunidades de estar ouvindo oque vocês pensam da gente, principalmente emrelação à temática da educação escolar indígena.

Então, o tema proposto dessa mesa é:“Avanços e impasses no projeto de educaçãodiferenciada para os povos indígenas”. Eu achei

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extremamente amplo e complexo o tema proposto,se pensarmos em falar de todas as experiências dospovos indígenas. Eu achei que é muito compromissopara a minha pessoa, pela limitação do meuconhecimento diante de tanta diversidade eexperiências dos povos. E fiquei pensando comoestaria norteando a minha fala. Então, eu estou aquipara falar da experiência que eu conheço e quevivenciei e que até hoje continuo vivenciando, cujotema é: Avanços e impasses na educação escolarindígena - A experiência dos Kurâ-Bakairi.

A experiência de educação escolar indígenade que eu estou falando é dos Kurâ, mas tambémsomos mais conhecidos como Bakairi. Atualmenteos Kurâ estão localizados em duas terras indígenas,denominadas de Santana, no município de Nobres,e Bakairi, no município de Paranatinga, ambas emMato Grosso. Eu faço parte da sociedade dos Kurâ-Bakairi do último município.

Na realidade, comecei a refletir e repensarsobre a educação escolar para e do povo Bakairi em1994, quando comecei a fazer levantamento de dadospara o Mestrado. Até então, eu não tinha aconsciência de que eu mesma era fruto de um projetode educação escolar de negação, de não-valorizaçãocultural, enquanto pessoa e como mulher indígena.Fui me revendo: como fui educada nos moldes deuma educação para que eu me tornasse uma pessoa“civilizada”. Até então não se tinha a preocupaçãode uma educação diferenciada para o povo Kurâ-Bakairi, assim como para os demais povos indígenas.

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Para falarmos e avaliarmos os avanços eimpasses no projeto de educação diferenciada do povoKurâ-Bakairi, primeiro quero falar um pouco sobrea história do contato, com o objetivo de situar e, aomesmo tempo, nortear a minha fala.

Segundo os registros oficiais, os Kurâ-Bakairide Paranatinga e de Nobres iam a Cuiabá desde oano de 1847, dirigindo-se à sede da Diretoria Geraldos Índios da Província em busca de ferramentas,tecidos e armas de fogo. Eram considerados“mansos”, porém “independentes” – pelo Diretor-Geral, em seu relatório de 1848 –, ainda quemantendo relações com os colonizadores (Barros1977, 1992). Tem-se ainda o registro de que os Kurâ-Bakairi conheciam a escrita e a educação escolarantes mesmo da implantação de qualquer escola[oficial] entre eles. Segundo fontes escritas, em 1882o “Capitão Reginaldo”, da região de Nobres, dirigiu-se ao Presidente da Província, através de um bilhete,comunicando-lhe que estava se dirigindo à cidadeacompanhado de 12 homens. Comentou o Presidente:“Aquele cacique já se acha semi-civilizado, por tersido criado por negociante português que residia navila de Diamantino e deo-lhe as noções de primeirasletras que ainda conserva, pois que prevenio de suavinda à cidade através de um bilhete escripto depróprio punho” (Alencastro, 1882: 33).

Mas as passagens de Karl von den Steinen,em 1884 e 1887, alteraram profundamente a vidados Kurâ-Bakairi. Foi através dessas expedições queos Kurâ – que viviam, no Xingu, até então isoladosdo ponto de vista do contato com os colonizadores,

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como os demais povos dessa região – tornaram-seconhecidos; uns e outros passaram, desde então, ase visitar. Após a passagem daquele cientista, ogoverno de Mato Grosso intensificou a sua políticade atrair os Bakairi alto-xinguanos e outros povosque viviam nessa região. Sobre a expedição de Karlvon den Steinen entre os Bakairi, escreveuCapistrano de Abreu: “Desde 1884/1885 voltou-separa eles a curiosidade do mundo científico, que bemmerecem pela língua que falam, grupo etnográfico aque se filiam, costumes característicos queconservam, dupla face por que se apresentam, jádomesticados no Tapajós, ainda perfeitamenteselvagens no Xingu. Foi Dr. Carlos von den Steinen– auxiliado pelo nosso governo que lhes concedeu aexpedição entre os dois pontos, quem, estudando-os, abriu o que não é exagero chamar uma épocapara a nossa etnografia selvagem...” (Abreu, 1976:156).

Em termos de classificação cultural, fomosincluídos na Área Cultural Uluri (Galvão, 1960), oque se explica pelo fato de que, historicamente, umaparcela de nossos antepassados viveu no Alto Xingu,na diáspora, e hoje somos o único povo Karib quevive no cerrado matogrossense.

Em 1910 foi criado o Serviço de Proteção aosÍndios e Localização de Trabalhadores Nacionais.Segundo registros feitos pelo Capitão RamiroNoronha, da Comissão Rondon, em 1920 foiimplantado o Posto Indígena Simões Lopes, logo apósa realização da primeira demarcação da ÁreaIndígena Bakairi. E, em 1922, foi implantada a

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primeira escola indígena, posteriormentedenominada “Escola Rural Mixta do Posto Indígenade Simões Lopes”. É claro que essa escola veio paraatender e cumprir o seu papel de civilizar, de acordocom os ideais e idéias positivistas de Cândido Marianoda Silva Rondon, que norteavam toda a políticaindigenista. É o que se pode depreender da seguintepassagem: “A catequização dos indígenas,compreendendo a sua incorporação à nossasociedade pela assimilação de nossas artes, de nossaindústria, como pela adoção de nossos hábitos, queresultam de nossas crenças religiosas. No sentidodo positivismo destes termos, julgo-a ser umproblema diretamente inabandonável no presente”(Ribeiro, 1970:135).

De 1922 a 1942, a educação escolar indígenaentre os Kurâ-Bakairi teve a principal função depreparar a mão-de-obra do sexo masculino: a partirdo momento em que eles sabiam ler e escrever, jápodiam ser encaminhados para trabalhar na lida degado como vaqueiros, ou como carpinteiros, oleiros,pedreiros e, principalmente, os que sabiamcomunicar-se minimamente bem em Português,eram escolhidos como guias e tropeiros paratransportar os mantimentos plantados e colhidos poreles, no trajeto da aldeia para Cuiabá, na época doSPI. Então, a função da escrita e da oralidade emlíngua portuguesa está clara entre os Kurâ: era paraa eficácia da mão-de-obra deles. Somente a partirde 1945 a educação escolar é estendida para asmeninas. Da mesma forma que os meninos, elasforam preparadas para lides domésticas, isto é, para

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serem cozinheiras, costureiras, bordadeiras e boasesposas, nos padrões culturais do homem branco.

Se olharmos pela lente do retrovisor do tempoo que significou a caminhada dos povos em nome daeducação escolar, é que podemos avaliar e entendero porquê da educação diferenciada para os povosindígenas na nossa atualidade. É claro que não estouaqui somente para falar da ingratidão, do descasoimposto e praticado pela educação escolar entre osKurâ–Bakairi, mas também falar de alguns avanços,de alguns aprendizados no transcorrer da batalha.E, em primeiro lugar, quero considerar como um dosavanços o fato de que a educação escolar indígena,desde a promulgação da Constituição Brasileira de1988, foi reconhecida legalmente, tanto no que dizrespeito ao uso da língua materna quanto aosprocessos próprios de aprendizagem. No ato dereconhecimento dos nossos direitos na Constituição,nós, indígenas, também nos fortalecemos enquantopovos nas nossas singularidades.

No caso específico dos Kurâ-Bakairi, os nossosavanços antecedem a própria promulgação daConstituição brasileira de 1988. Em 1985, a educaçãoescolar já era ministrada pelos próprios Bakairi e opensamento da escola já era um instrumento deluta a favor de nossos interesses e para a construçãode nossa autonomia, assim como o Posto Indígena ePosto de Saúde já eram também administrados porpessoas da aldeia. O que representa um avanço éque, desde a sua implantação, a escola e o PostoIndígena sempre haviam sido dirigidos por não-

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indígenas, mas a partir dessa data os professoresindígenas se tornam visíveis no cenário daconstrução de sua própria história, marcada pelaresistência étnica.

Em 1991, pelo Decreto 26/91, é atribuída aoMEC a coordenação das ações referentes à educaçãoescolar indígena. No seu artigo 2º ele atribui àsSecretarias Estaduais e Municipais de Educação aexecução de ações referentes à educação escolarindígena.

Em 1989, o quadro de professores já eraestável, quando eles começaram a ser contratadospela Prefeitura Municipal. É importante esclarecerque, na aldeia indígena Pakuera, funciona urnaeleitoral desde 1958: a 43ª zona do município deParanatinga. O número de eleitores nessa aldeia ésuficiente para eleger um vereador e, portanto,contribuem significativamente os votos dos índiospara a decisão da eleição do Prefeito Municipal.Nessa relação de contato branco e índio, nós, osKurâ, aprendemos a utilizar os nossos votos a favorde nossos interesses. Na ocasião da campanhaeleitoral de 1997, elaboramos um documento aoscandidatos à Prefeitura Municipal, com areivindicação da implantação e continuidade doEnsino Fundamental na aldeia. Hoje já é umarealidade a extensão de 5ª a 8ª séries na aldeia e,gradativamente, conforme a formação de professoresindígenas avançar, poderemos continuar lutando paraa implantação de segundo grau e, a longo prazo, nãocusta sonhar com a universidade indígena na aldeia.

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Se compararmos a geração alfabetizada pelasescolas do S.P.I. e da FUNAI, nós temos os dados deque 70% dos Kurâ são alfabetizados, sabem ler efalar em português. Todos têm umacomunicabilidade razoável com os não-indígenas e20% não lêem e também não falam português,apenas o entendem com auxílio de uma tradução nalíngua materna. E 10% falam, lêem e escrevem –isto é, fazem o uso da oralidade e da escrita – emlíngua portuguesa e na língua materna, conformeseus interesses e necessidades no dia-a-dia: sãoprofessores, agentes de saúde, Chefe de Posto epresidente da Associação Indígena.

Um dos avanços, também, é a própria reflexãoenquanto agentes educadores indígenas, desde 1985.Dez anos depois, em 1995, realizamos, pela primeiravez, um seminário sobre educação escolar Kurâ, paraavaliarmos a nossa caminhada. E refletimos muito,na época, o destino da escola: que escola queremos?Essa época era o auge da implantação e discussãosobre a “educação escolar diferenciada interculturale bilingüe” e essa expressão era interpretadaliteralmente pelos professores como “a escola doMEC”, “a escola que o MEC quer para os índios”. Euconfesso que levamos um bom tempo paraentendermos a proposta do MEC, porque a nossaprática de docência nas aldeias e a proposta de umaeducação diferenciada eram bem diferentes.Deparamos com esta situação quando começamos afalar de nós mesmos. Na época foi uma boadiscussão, mas creio que esses impasses já foramsanados, na medida em que estávamos fazendo

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reflexão do nosso papel e do nosso compromisso coma nossa comunidade com objetivo de que um diapudéssemos exercer a nossa cidadania indígena.

Um dos impasses e desafios é o destino dosalunos depois que terminarem seus estudos dasséries de primeiro grau nas aldeias, quando terãoque sair das aldeias para dar prosseguimento aosseus estudos, em nível de segundo e terceiro graus.Mas, da mesma forma que existem os impasses edesafios, creio que haverá soluções concretas, paraque eles possam, futuramente, buscar e correr atrásde seus sonhos. O que eu quero dizer, finalmente, éque entre os Kurâ já é realidade que o professor éindígena e desempenha bem o seu papel; ele temcompromisso com a sua comunidade. Mas éimportante lembrar sempre que, para estarmos nesseprocesso de educação escolar que consideroavançado, muitas águas já passaram debaixo e emcima da ponte. Sempre que olhamos e falamos dopassado, não é com sentimento de que somosderrotados mas com sentimento de refazer,reconstruir, reescrever a nossa história com olhose pensamentos do presente, para que haja aperpetuação no futuro: o desejo é o sentimento de

ser sempre Kurâ.

Referências Bibliográficas

ABREU, Capistrano. Os Bacaeris. estudos e ensaios.2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

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BARROS, Edir Pina de. KuraBakairi/Kura Karaíwa:dois mundos em confronto. Brasília: UNB, 1977.(Dissertação de Mestrado).

______.História e cosmologia na organização social deum povo Karib: os Bakairi. São Paulo: USP, 1992.(Tese de Doutorado).

GALVÃO, Eduardo. Áreas culturais indígenas doBrasil: 1900-1959. Boletim do Museu Paraense EmílioGoeldi, Belém, n.8, p.1-41, jan.1960.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

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A educação indígena estava muito fechada

Gilda Kuitá3

A educação indígena estava muito fechada.Agora é que começam a descobrir, a levantar o panoda educação indígena.

Eu me formei na escola Clara Camarão4; soudas primeiras turmas que se formaram para aeducação bilíngüe. Faz vinte e cinco anos que euestou em sala de aula. Eu gosto muito do que eufaço, não sei se vou me aposentar ou não, eu fico emdúvida ainda. Pois agora vejo que o que nósaprendemos lá nos anos 70, hoje é que nós estamosapresentando. Há uns cinco anos para cá é quecomeçamos a compreender. Nós temos outrasprofessoras aqui que se formaram lá: a Rosângela, aMaria Virgínia, que é da minha turma. Então a gentecomeça a compreender que é agora que nós vamosaproveitar aquilo que a gente aprendeu.

Os não-índios pensam que a educaçãoindígena é a mesma coisa que a de vocês, mas é

3 Presidente da Associação dos Professores Indígenas da região deGuarapuava (PR) é professora indígena, alfabetizadora, nascida emIbirama (SC), filha de pai Xokleng e mãe Kaingang. Fala fluentementeo Xokleng, o Kaingang e o Português.

4 O Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão funcionou naárea de Guarita (RS), entre 1970 e início dos anos 80. Entre 70 e 73formou três turmas de “monitores bilíngües”, por convênio entre aFUNAI, o Summer Institute of Linguistics (SIL) e a Igreja Evangélica deConfissão Luterana no Brasil.

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muito diferente. Nós sofremos muito durante osanos. Eu estava ouvindo a Darlene falar, e nóstivemos a mesma experiência, da escola começar edepois fechar; eu mesma fui vítima disso. Ia unsmeses, parava, e depois começava. Mas nós estamosaqui, resistindo ainda. Então, no Paraná, a educaçãoindígena está, assim, se movimentando. Tem pessoasnos apoiando, as parcerias, porque sozinhos nós nãovamos fazer mesmo, é difícil. Só que, há alguns anos,as pessoas que faziam isso não faziam com seriedade,faziam porque era o serviço delas, mas agora mudou,depois dessa lei que nos ampara (a ConstituiçãoFederal de 1988).

Mas ainda encontramos resistência daspessoas que não entendem, que acham que a criançaindígena tem que ser ensinada como qualquer outracriança. Não só as pessoas lá de fora, mas dentro denossa própria equipe. Nós enfrentamos muito isso:coordenadora, secretária municipal de educação; sea gente vai falar, eles acham que a gente não querdar aula, não quer ensinar. Mas, depois do encontroque tivemos agora, a secretária de educação veiopedir desculpas para mim. Tivemos umdesentendimento no início do ano, e agora ela veiodizer para mim: “agora é que estou entendendo essaresistência tua, porque é que você dizia para mimque isso não ia dar certo”. A partir desse encontroque tivemos dia 5 e 6 de julho.

Então eu acho que nós índios estamosganhando espaço para fazer as pessoas entenderem.Porque até há pouco nós não tínhamos esse espaço

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de chegar e dizer para as pessoas o que é que nósqueremos, de que é que nós gostamos, o que é anossa realidade. Nós não tínhamos esse espaço. Aspessoas brancas, os professores, as pessoasresponsáveis pela sociedade indígena vinham,impunham: “vocês têm que fazer isso” e pronto. Nóssofremos muito com isso, nós, professores índios. Aliderança mesmo passava a achar que os professoresíndios não iam ensinar bem, que quem ensina bemé o professor não-índio. “Por que o meu filho índiovai escrever a língua indígena se ele não vai usar?”Era esse o entendimento deles: “Eu não aprendiporque eu não sei falar a língua (portuguesa); entãoo meu filho vai ter que aprender a falar para aprendera ler.”

Então nós sofremos. Existem reservas5

indígenas no Paraná que acham que os professoresindígenas não vão ensinar tão bem quanto oprofessor não índio. “O índio só fala a língua, como éque ele vai ensinar as coisas do mundo dos brancos?”Mas com essa organização que nós tivemos agora,faz um ano e meio que nós criamos a associação;isto é, já foi criada antes, mas eu fui eleita agorafaz um ano e meio. Então a partir desse momento,nós professores indígenas estamos lutando para isso,para que os índios, nossas comunidades, vejam o

5 As denominações das áreas indígenas têm mudado: atualmente sãochamadas, pelo órgão federal indigenista (FUNAI), de terras indígenas,sendo consideradas “reservas indígenas” apenas as áreas adquiridasde particulares para assentamento de população indígena. É comum,no entanto, que as comunidades indígenas continuem utilizando asantigas denominações de “reserva” e “Posto Indígena” (Nota dos Orgs.).

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professor índio como qualquer outro professor. Porqueàs vezes nós temos professor capacitado e o índionão acredita nele. Eu acho que isso é um mal. Osíndios em geral são assim, pelo que eu entendi doque Darlene falou. Eu pensava que eram só os índiosda nossa região, mas agora eu percebo que não.

Mas aos poucos vai mudando; levou 25 anospara a gente poder chegar nesse espaço, a gentesofreu, a gente batalhou. Hoje eu me sinto comoquase realizada, pois, a partir desse momento, osnossos professores novos é que vão continuar aquiloque nós conseguimos. Na nossa escola mesmo, hácolegas que acham que não se deve fazer educaçãodiferenciada: “mas como? como vou fazer isso?”,então é difícil a gente enfrentar; tem que fazer duascoisas: fazer o índio entender e o não-índio também.Não é fácil, a nossa luta! Temos que dizer para oíndio: “nós vamos ter que aprender igual o branco.Podemos saber igual o que o branco sabe, sendoíndio.” No mesmo instante, nós temos que enfrentaras professoras não-índias, que estão lá junto conosco.Temos que dizer: “agora nós vamos ensinar o índioassim, você vai ter que entender, é a nossarealidade”. Então é uma coisa difícil para nós. É umaluta diária, pode-se dizer.

Então, em uma das reservas que aindaconserva a sua língua indígena, sua tradição e osseus costumes, poucos falam Português; às vezeseu estou lá na minha sala de aula e vem uma índiae me diz: “me leve lá na enfermaria porque eu queroremédio, mas eu não sei contar o que eu tenho”.

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Então eu tenho que deixar a sala de aula e ir lájunto, depois voltar. Então a gente faz um trabalhoassim que é gostoso, tudo o que acontece a genteestá vivendo. Com a Juracilda lá, eu pude tambémdescobrir muitas coisas que eu não sabia, que euacho que vão servir muito para nós, nessa luta. ASecretaria de Educação, depois desse curso, estáde acordo com o que nós vamos fazer; inclusive jáfizemos até nosso calendário, nosso planejamento.O Estado está lutando para publicar o currículo.Talvez demore ainda um pouquinho, mas estão sepreparando. Parece que, com a educaçãodiferenciada, a partir desse momento a gente vaiconstruindo essa união dos índios com os não-índios,nós vamos conseguir realizar muita coisa.

Aqui mesmo tem índios de várias etnias,várias aldeias e estados, é uma coisa muitointeressante a gente saber, pela conversa dela, queo índio, como ele pensa, é quase igual. Eu me sintocontente de ver que ainda existem pessoas quelutam a favor dos povos indígenas, da educaçãoindígena, porque eu considero que os índios são deuma resistência muito grande, apesar desses 500anos que vocês estão, agora, festejando. Para nósnão é festa não. Então, eu vinha viajando, e meufilho veio junto. Desembarcamos do ônibus e ficamoslá, descansando. Eu disse para ele: “você já imaginouque quando minha avó me dizia que os índios foramdaqui, eles desceram a serra, com certeza eramdaqui”, eu disse para ele. A gente vê esses ônibus,esse movimento, esse asfalto com essas construçõesaí. Quantas vezes os índios não passaram aí na

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picada, para descer. Eles dizem que foram para SantaCatarina, os índios Xokleng são de Santa Catarina.Os índios são resistentes mesmo. É uma reserva sóque existe lá, e falam a língua; todos os filhos falama língua; inclusive eu me criei com os Kaingang,meus pais vieram morar com os Kaingang quandoeu tinha um ano. Falo a língua Kaingang e falo oXokleng; então dá para ver que é uma resistênciaenorme. Então, eu estava mostrando para ele: “olha,os brancos estão festejando 500 anos de Brasil. Enós? Cadê o mato? Nós vemos só essas construçõesaí. Eles contentes, acham que os índios estãocontentes com isso. Mas ele não estão, não.” Mas,não é? Toda essa destruição que o homem brancofaz, destrói tudo e o índio continua aqui. E isso émuito bom, quando o índio se sente valorizado esente que pode fazer alguma coisa pela suacomunidade e pela sua gente.

Então é isso que eu tenho para apresentarpara vocês: minha experiência como professora, jáfaz 25 anos. Eu aprendi, chorei bastante e temmomento que eu achava que não ia continuar mais,mas agora eu acho que devo continuar, porque agoraé que está ficando bom mesmo. Eu gosto muito debrincar; como Darlene disse: os índios discriminammuito as mulheres; então nós mulheres sofremosmuito com isso. As mulheres não têm voz ativa, asmulheres têm que ficar quietinhas, as mulheres nãopodem dar opinião. Mas nós estamos vencendo issotambém. Não é só com os homens brancos não; oshomens índios estão pior, eu acho.

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Comentário de Rosa Helena Dias da Silva6

Quando eu me apresentei, eu disse que tiveo prazer de estar nos três encontros [1995, 1997,1999]. E eu queria retomar algumas falas doProfessor Bruno Kaingang, lá em 1995, e do ProfessorOrlando Makuxi, que pertence à COPIAR, que é aorganização dos Professores Indígenas do Amazonas.Também a COPIAR esteve participando ao longodesses três encontros. É a partir de algumas falasque, desde 1995, a gente começou a pensar, em 1997a gente retomou, e agora, através das falas daDarlene e da Gilda, a gente volta a pensar. Não éque sejam as mesmas questões, mas são aindaquestões que nos perseguem, nessa angústia detentar entender melhor o que são realmente essasescolas indígenas.

Qual é o papel do professor indígena? Qual éo papel das assessorias? Como ficam asuniversidades nessa história? O que é que vocêsesperam da gente? Essas são as questões do grupo,essas questões aparecem tanto na fala da Darlenecomo na da Gilda. A Darlene não destacou, mas euqueria destacar: ela é a primeira Mestre indígena.Nessa busca da profissionalização, que é um outroponto de interrogação, tem a experiência tambémda colega Xokleng/Kaingang. Enquanto vocês

6 Doutora em Educação, professora da Universidade do Amazonas eassessora da COPIAM (ex-COPIAR). Excepcionalmente, incluímos essecomentário, da gravação do encontro, por sua pertinência. (Nota dosOrgs.).

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estavam falando, eu fiquei conversando comigomesma. Conversando com a experiência que euacompanho, que é a dos professores indígenas doAmazonas, Roraima e Acre, que agora em agosto vãorealizar seu 12o encontro anual, e escolheram comotema justamente “Educação Indígena na trilha dofuturo: o Brasil que a gente quer, são outros 500”.

Pegando justamente o eixo das pedagogiasindígenas enquanto pedagogias da resistência, quevocês já citaram, e pegando também a escolaindígena e o papel do professor indígena enquantoenfrentamento de situações novas, que se colocampela questão do contato. Isso ficou claro na fala dasduas colegas: a escola chega com o contato, comprofessor branco. E daí eu queria perguntar um poucosobre essas questões que são para mim até um poucopolêmicas, que acabam atrapalhando um pouco oavanço dos modelos indígenas de escola, que sãomais questões da nossa sociedade “branca” do quequestões de vocês (aquela velha questão de que oproblema dos índios são os brancos e não os índios).A questão da legislação, por exemplo, que a gentepoderia considerar os grandes avanços de que agente vive falando, mas que acabam sendo tambémimpasses: a questão das exigências da LDB, dasexigências que acabam caindo, de novo, no formatoe no modelo.

Eu queria falar com vocês se não seria o casode a gente começar a trabalhar o que a gente levantouno encontro passado, de que escolas indígenas sãosistemas indígenas de educação escolar e que não

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se esgotam no sistema indígena, senão que dentrode um sistema do educação maior [oficial brasileiro].Como é que eles vão se articular? Como dito na falada Darlene, quando ela coloca: a escola de 1ª a 4ªexiste [na aldeia], mas e depois? Vem dessa questãodo atrelamento. A educação indígena é o sistemaFundamental, pronto... Sai por baixo, todas asgarantias à diferença, e a diferença virou o quê?Detalhe, adaptação.

Queria trabalhar com essa idéia: sistemasindígenas de escola. Eu fui buscar lá no texto o queo Bruno falava em 95. Há uma fala de um professorTicuna, o professor Alídio Ticuna, que diz assim: “Senão tivesse branco no meio dos Ticuna, talvez atéhoje não teria escola”. Daí o Bruno falou assim paranós, no COLE: “a escola entrou como um corpoestranho. A escola entra e se apossa da comunidade,não é a comunidade que é seu dono. Hoje os índioscomeçam a dar as regras para o jogo da escola. Tá,você fica aqui, mas dessa forma. Temos leis que dãorespaldo, mas ainda não estamos sabendo usar”. Euma fala de um grande colega nosso na assessoriado Movimento de Professores, que é o professor MárcioSilva. O Márcio me falou uma coisa em 88 que meinstigou e me deu vontade de estudar: “a escolaindígena para ser boa, precisa primeiro ser dosíndios”. Eu queria que vocês avaliassem como ficaessa questão de ser dos índios mesmos.

Então, para citar o Orlando Makuxi, ele dizisso: precisamos pegar as regras, os mecanismoscolocados de fora, no caso a escola, e fazer deles

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parte de nossa sociedade. Precisamos nos organizarcomo povo. Temos que preservar a cultura e a língua,mas não podemos preservar a fome. O que o OrlandoMakuxi está trazendo são questões novas. Então porisso é essa loucura o papel do professor indígena.Tem que trabalhar tanto com a tradição quanto comas questões novas. É um desafio imenso, eu tenho omaior respeito pelos professores indígenas que estãoaqui tentando pensar essa questão, mas me angustiomuito ao pensar como é que a gente pode contribuirnessa discussão de vocês. É com muito respeito queeu trago esses questionamentos.

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A EDUCAÇÃO ESCOLAR EM NOVOS CONTEXTOSPOLÍTICOS E CULTURAIS

Educação escolar indígena: um projeto étnico ou umprojeto étnico-político?

Wilmar da Rocha D’Angelis7

Esta conferência tem um título que talvezprecise ser esclarecido. E como o título traz umapergunta, esclarecer o título talvez seja tudo o queeu tenha que fazer aqui, e com isso estará dito oque me foi proposto discutir.

A primeira parte do título é: educação escolarindígena.

Bem, quanto a isso parece que bem pouco

precisa ser dito, em termos de esclarecimento. Mas,

Capítulo 2

7 Lingüista e indigenista, professor no Departamento de Lingüística doInstituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e membro do Núcleode Cultura e Educação Indígena da ALB (Associação de Leitura do Brasil).

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ainda assim, sabendo que serei repetitivo para

muitos, vou arriscar esclarecer o que entendo por

essas palavras.

Educação escolar é uma expressão que muitas

vezes é substituída, em nossa sociedade, pela

palavra ensino, ou ainda, por ensino escolar. Por um

lado, temos um substantivo (educação) que aparece

seguido de um adjetivo (escolar), e isso significa que

não é de qualquer educação que se está falando, e

muito menos de toda a educação em uma sociedade

indígena (lembrando que a palavra indígena está

funcionando como outro adjetivo, que qualifica a

expressão “educação escolar”). O adjetivo (escolar)

restringe o termo educação (da mesma forma como

funciona em outras expressões como “material escolar”

ou “merenda escolar”), de modo que aqui somos

chamados a discutir o “problema” da educação

realizada na escola. Por outro lado, é importante

observar que a palavra escolhida para falar do que

se faz na escola foi educação e não ensino, o que

talvez dê mais destaque às responsabilidades dos

professores e de todo o programa escolar, porque

este faz parte do sistema educacional de uma

sociedade.

No entanto, é bom destacar que, embora nosso

foco seja a educação escolar nas sociedades

indígenas, não é admissível discutir isso sem fazer

referência à educação indígena como um todo, uma

vez que entendemos que o que se ensina na escola

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de uma sociedade indígena deveria ser aquilo que

aquela sociedade deseja que se ensine. Dizendo isso

em outras palavras: a escola – como diversas outras

formas de ensino – faz parte do sistema educacional

de uma sociedade (lembrando que, nenhuma

sociedade, por mais níveis de ensino que possua,

educa seus filhos apenas na escola). A educação

das crianças, sua socialização na comunidade, se

faz na família, pelo ensinamento dos pais, pelas

palavras e histórias dos mais velhos e por muitos

outros meios que a comunidade possua, inclusive

pela escola (ou seja, também pela escola).

Por que é importante compreender isso?

Em primeiro lugar, porque é disso que se trata,

quando se fala em “educação diferenciada”. Na

verdade, se quer falar de “escola diferenciada”, para

dizer que a escola em uma sociedade indígena não

é – ou, pelo menos, não deveria ser – igual à escola

da sociedade brasileira não-indígena, exatamente

porque os valores e as necessidades educacionais da

sociedade indígena são diferentes, e por isso sua

escola será diferente. Isso significa que o sistema

educacional de uma sociedade está subordinado aos

interesses gerais dessa comunidade.

Em outras palavras, a educação faz parte das

políticas que cada sociedade ou comunidade adota,

buscando a sua sobrevivência e a continuidade dascoisas que ela valoriza e em que acredita (por

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exemplo: sua língua, sua música, sua religião, etc.).8

Isso nos permite desenhar um esquema como oseguinte:

Escola

Sistema Educacional

Políticas

Em segundo lugar, é importante compreenderisso, porque é exatamente nesse ponto, ou seja, narelação entre a educação escolar e as políticas dasociedade indígena para sua sobrevivência, que secoloca o problema do tipo de programa escolar quese quer planejar e desenvolver: trata-se de um projetoétnico ou de um projeto étnico-político?

Bem, chegamos à segunda parte do título, aque coloca exatamente essa pergunta. Para entendera pergunta, precisamos saber o que se está

8 Na nossa sociedade, a educação escolar reflete muito dasdiferentes opiniões, crenças, valores que as pessoas ou gruposde pessoas adotam. Por isso, há muitas escolas diferentes: escolasconfessionais (católicas, luteranas, batistas, judaicas, etc.),escolas comunitárias, etc. Por isso, também, em alguns lugareshá escolas apropriadas para pessoas surdas, e em outros não,porque algumas comunidades (cidades, estados) valorizam aLíngua de Sinais e respeitam as diferenças entre as pessoas,enquanto outras comunidades dão valor a uma suposta igualdadeque não reconhece diferenças. É preciso não confundir asexpressões “todos somos iguais perante a lei” e “não fazerexcepção de pessoas”, com a idéia de que efetivamente as pessoassão iguais. Há muitas diferenças na nossa sociedade (a começarpela diferença de classes), e não reconhecê-las como reais é uma

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entendendo por projeto étnico e o que se entende porprojeto étnico-político.

Vamos começar, novamente, tentando clarearo sentido das palavras e expressões que estamosusando.

Em primeiro lugar, vamos pôr nossa atençãona palavra projeto. Muitas comunidades indígenas,ou quase todas, já ouviram essa palavra com umsignificado bem diferente do significado que vamosusar aqui. O que as comunidades indígenascostumam ouvir é pessoas de ONGs, deuniversidades, da FUNAI, falando em “fazer umprojeto” para conseguir dinheiro para uma lavoura,ou para uma construção, ou para a escola indígena,ou para a publicação de um livro, e coisas assim.Nesse caso, as pessoas estão usando a palavra projetopara significar um documento escrito, onde sedescreve uma atividade bem definida e se apresentaum orçamento (quer dizer, uma previsão de gastos),

séria dificuldade de compreensão da realidade. Da mesma forma,a proposição (legítima) de que se deve tratar as pessoas comigualdade, não significa tratá-las de forma igual. Em muitos casos,a única garantia da igualdade é o tratamento diferenciado. Porexemplo: como dizer que um ouvinte e um surdo tem as mesmasoportunidades em nossa sociedade se o segundo não pode ouvirrádio e não tem acesso real a mais de 90% da programaçãotelevisiva? E, além disso, quantos surdos podem iniciar seusestudos em sua língua, quando a maioria dos ouvintes de fatotem essa oportunidade? As confusões conceituais (e políticas),no entanto, levam a propostas ridículas, como a da chamada“inclusão”, que – alegando necessidade de “tratamento igual” –coloca surdos em salas de ouvintes. Por que a política da “inclusão”não coloca os pobres nas escolas dos ricos?

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pedindo dinheiro de algum órgão do governo ou dealguma entidade do exterior para realizar aquilo.

Mas aqui, hoje, nós estamos falando de projetoem outro sentido. Aqui, quando estamos usando apalavra projeto, estamos falando de um plano, umideal colocado por uma sociedade, ou um grupo dasociedade, para o seu futuro. Numa sociedadecapitalista, como é a sociedade brasileira, há muitosprojetos diferentes, ou seja, muitos planos de futurodiferentes, conforme os interesses das pessoas. Porisso, numa sociedade como a nossa, existem partidospolíticos, porque os partidos são diferentesagrupamentos de pessoas que têm projetos para asociedade, ou seja, cada partido tem, nos seusplanos, um ideal de sociedade diferente. E, paraconseguir esse ideal, cada partido usa recursosdiferentes. Alguns preferem usar mentiras natelevisão e no rádio, dizendo que querem “acabarcom as desigualdades” no Brasil, e na verdade são ospartidos que mais se beneficiam com a existênciade tanta pobreza e desemprego no país. Um casobem claro, por exemplo, é o do PFL, que todo mundoconhece, que é o partido do Antonio CarlosMagalhães, do Bornhausen, e outros desse tipo, eque é o partido do vice-presidente da República. Outropartido que costuma mentir, dizendo que quer umacoisa, quando na verdade o seu projeto é outro, é oPPB do Paulo Maluf, que também apóia o governoFernando Henrique. Partidos como esses sãochamados conservadores, porque o projeto deles éconservador; quer dizer, eles querem conservar asociedade do jeito que está, com as desigualdades

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que ela tem, garantindo que os privilegiadoscontinuem com seus privilégios. Tem também oPSDB, por exemplo, que é outro partido que está nogoverno do Brasil, e que é o principal responsávelpela política econômica atual que vem trazendo maisdificuldades para a nossa população. Algunschamariam esse partido de reformista, porque o projetodele, o ideal de sociedade que eles têm não é demudanças nas estruturas da sociedade. Ou seja, oPSDB não quer mudar a forma capitalista deorganizar a sociedade brasileira, e o projeto dele nãoé acabar com as condições que geram a fome e odesemprego. Mas o projeto dele é um pouco diferentedos conservadores, porque esse partido pretende fazerreformas muito pequenas, pequenos ajustes nasituação, algumas vezes apenas para aliviar aspressões dos mais pobres (por exemplo, com acaridade da “Comunidade Solidária”). Pode-se dizerque a estratégia deles é “mudar” um pouco para quetudo continue como está, ou seja: os que ganhammuito vão continuar enriquecendo, e os pobres vãocontinuar dando seu trabalho em troca de muitopouco. Um projeto bem diferente é o dos partidoschamados de esquerda, porque eles querem que asociedade seja reorganizada de maneira bemdiferente do que está hoje. Os projetos revolucionáriossão os que não querem conservar as coisas comoestão, nem simplesmente fazer “reformas”, masquerem mudanças profundas na sociedade. Umpartido com um projeto revolucionário tem o plano deconstruir um ideal de sociedade diferente, mudandoas prioridades na aplicação dos recursos públicos egovernando em benefício da maioria da população, e

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não apenas para o benefício de uma minoriaprivilegiada.

Bem, com isso, fica claro o sentido em queestamos usando aqui a palavra projeto. E fica claro,também, o que é um projeto político: um projeto políticoé um plano de futuro para uma sociedade; um planode futuro idealizado e defendido por um grupo depessoas dentro dessa sociedade. Quando a sociedadeé mais unida, e não está dividida em classes sociaiscomo a nossa, o seu projeto político pode ser um só, etodo mundo acredita nele. É o que muitas vezes nóschamamos de projeto histórico.

Toda sociedade tem um projeto histórico,mesmo que muitas vezes as pessoas nem percebamcomo ele foi constituído e como elas “embarcaram”nele, digamos assim. Por exemplo, em nossasociedade, a maioria das pessoas gasta cada vez maisenergia elétrica, comprando cada vez mais aparelhoseletrônicos e usando cada vez mais certos recursos,como os computadores, etc. O que as pessoas quefazem isso não percebem é que, para gerar a energiaque cada vez mais gente consome no Brasil, é precisoconstruir mais e mais hidrelétricas, que vão alagarmais e mais terras, expulsando agricultores dalavoura ou inundando cada vez mais áreas indígenas.Assim, sem mesmo perceberem, todas essas pessoasestão dando a sua parte na definição de um projetohistórico-político para o Brasil; e o projeto que elasestão ajudando a implementar, na prática, é umprojeto que destrói muitas comunidades e prejudicacada vez mais o meio-ambiente.

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O que acontece é que, em sociedades comoa nossa, onde há minorias que se beneficiam eenriquecem à custa do trabalho da maioria9, existemaqueles projetos políticos diferentes, em constantedisputa, mas existe sempre um projeto dominante,um projeto que consegue ganhar (ou forçar) o apoioda maior parte das pessoas, mesmo que seja atravésda manipulação e de muitas formas de enganar. Issose reflete na maneira como as pessoas votam oudeixam de votar (ou são obrigadas a votar) naseleições; no tipo de programa que elas gostam deassistir na televisão ou ouvir no rádio, e em muitasatitudes que as pessoas tomam no dia-a-dia da suavida. No início dos anos 70 no Brasil, por exemplo,apesar de haver opositores, e apesar da luta dospartidos revolucionários, a ditadura militar conseguiater o apoio da maioria da população brasileira, mesmoque isso tenha sido conseguido com muita censuraà imprensa e com o apoio declarado da Rede Globo,de muitas rádios e de vários setores influentes.

Aqui, portanto, está um ponto muitoimportante para tentarmos responder à pergunta queestá no título dessa conferência: ninguém, nasociedade brasileira, escapa de estar apoiando algumprojeto político. Em outras palavras: cada pessoa quevive no Brasil ou está apoiando e ajudando asustentar o projeto político dominante (que nóssabemos que é feito pela aliança dos conservadorescom reformistas), ou está claramente apoiando um

9 Seja pela exploração direta, seja pela manipulação dos recursos

públicos.

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projeto político diferente, que se oponha ao projetodominante. Não existem pessoas neutras numasociedade em que existem disputas políticas comoacontece na nossa. Até o sujeito que anula seu voto,pensando que isso é uma atitude de neutralidade,não percebe que, com isso, muitas vezes pode ajudara manter a política dominante.

Se não existem pessoas neutras, também nãoexistem grupos e minorias neutras. Cada povoindígena, cada minoria lingüística, que vive dentrodo território chamado “brasileiro” (a não ser queainda esteja isolada na floresta) mantém relaçõescom a chamada sociedade nacional, integrando-sede alguma forma (e em alguma medida) nela. Assimsendo, os povos indígenas, por também participaremdas relações sociais, políticas e econômicas com asociedade nacional brasileira, acabam sempreapoiando ou sustentando algum projeto político nessasociedade.

E aqui se coloca, então, o problema da escolhapor um projeto étnico. O que significa isso?

Um projeto étnico é um projeto históricoelaborado com referência a um grupo ou gruposétnicos, ou seja, a uma ou várias etnias.

Uma etnia, como sabemos, é um grupo depessoas de uma mesma origem10, que partilham umamesma identidade, se reconhecem e são

10 A origem comum é elemento importantíssimo para o sentimento (oureconhecimento) de pertença a um grupo étnico, ainda que esta nãoseja necessariamente uma origem biológica comum (o que lembraria oconceito de raça, há bastante tempo abolido do vocabulário das ciênciassociais). Trata-se, o mais das vezes, do reconhecimento de uma origem

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reconhecidos como um grupo ou comunidadehumana diferente das demais11.

Pois bem. Estou chamando de projeto étnicoum tipo de projeto histórico de um grupo étnico(indígena ou não) que se baseie no fato de que asdiferenças entre aquele grupo e os brancos sãodiferenças de origem, em geral também vistas comodiferenças culturais e lingüísticas12. Os defensores

12 Às vezes junto, às vezes em oposição à idéia de que uma etnia temuma origem comum, sugere-se que uma etnia é composta por pessoasque partilham uma cultura comum. No entanto, parece melhor, paraatender à diversidade de situações em que grupos humanos reivindicamuma identidade comum, não incluir-se essa ‘exigência’ na definição,ainda que alguns ou vários elementos culturais comuns costumemocorrer nos grupos étnicos. Por exemplo: se admitirmos que existaalgo como uma etnia “brasileira”, em termos bem gerais (ainda queexcluíssemos dela muitos grupos de ascendência estrangeira recente,como italianos, alemães, libaneses, ucranianos, japoneses, palestinosetc.), quantas diferenças culturais não observaríamos entre um brasileiro(“caboclo”, diríamos no Sul - numa acepção diferente desse termo parao Norte do Brasil) da costa do rio Uruguai, no Rio Grande do Sul, de umbrasileiro do sul da Bahia, ou de um brasileiro ribeirinho do Acre?

histórica comum. Em muitas sociedades indígenas ou outras minoriassemelhantes, um indivíduo pode ser considerado membro do grupo,apesar de sua origem biológica reconhecidamente distinta (inclusive,muitas vezes, quando essa origem está no grupo social dominante),desde que efetivamente adotado e integrado no interior do grupo (comoem casos de adoção de órfãos, rapto de crianças etc.). Não me parece,no entanto, que as adesões voluntárias e conversões de fé (por exemplo,ao judaísmo, ao islamismo, ao budismo etc.) possam dotar o indivíduode uma identidade étnica socialmente aceita (freqüentemente, nem paraa unanimidade do grupo ao qual aderiu, nem para os outros gruposcom o qual ele se relaciona).11 Como lembra Giralda Seyferth, “Etnia tem sido um termo dos maisusados nos mais diversos contextos das ciências sociais, mas,inexplicavelmente, ou por causa de sua ambigüidade, nunca recebeu umaconceituação mais elaborada. É um termo que não se encontra nos dicionáriose enciclopédias de ciências sociais mais conhecidos” (Dicionário de CiênciasSociais. [2a. ed.] Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1987. VerbeteEtnia, pg. 436). “Atualmente – segundo a mesma autora – a classificaçãoetnia se estende a praticamente todas as minorias que pretendem o direitode manter um modo de ser distinto; algumas delas, inclusive, reivindicamtambém sua independência política”.

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de um projeto étnico acreditam que as dificuldadesde sua etnia (povo indígena, por exemplo) seresolverão com mais escolas, com mais e melhorensino escolar para suas crianças, e com maiorhabilidade para lidarem com as situaçõesinterculturais. Quando estão engajadas em umprojeto étnico, as pessoas acreditam que sua luta épara conquistar espaços da sociedade dos ‘brancos’que as discrimina, e em geral pensam que isso sefaz pelo esforço e capacidade de cada um, ou seja,acabam transformando uma situação política,econômica e social coletiva em uma questãopraticamente individual. O caso mais extremo deum projeto étnico é quando as pessoas daquele grupopassam a praticar a discriminação e o preconceitoinvertido: ou seja, passam a acreditar que o simplespertencimento a uma etnia diferente daqueladominante (isto é, o simples fato de ser um não-branco) faz delas pessoas melhores que as pessoasda sociedade que as domina. Um projeto étnico é,afinal, um projeto de pessoas com pouca ou nenhumacompreensão da forma como se constituem asrelações de poder numa sociedade como a nossa13.Por isso é possível, em um projeto desse tipo, que oslíderes apelem para que as pessoas não olhem paraas diferenças que existem entre elas mesmas e,principalmente, não critiquem o apetite pelo poder

13 Não devemos deixar de considerar a situação (aliás, bastante comum)na qual os “formuladores” de um “projeto étnico” de fato têm um projetopolítico próprio e bem definido (que fica secreto), mas que para bemexecutá-lo, constróem um “projeto étnico” como forma de iludir osingênuos e conquistar seu apoio.

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ou o apetite econômico de alguns dentro do grupo,em nome de manter uma “unidade” que deveria servalorizada acima de tudo.

Exatamente por esse motivo, um projeto étnicoé bastante sujeito à manipulação política14. Aliás,há um bom par de anos escrevi, em um outro texto:

“A participação dos povos indígenas no processorevolucionário que transformará a sociedade brasileira (...)seria por demais frágil e pouco consistente sefundamentada tão somente numa consciência étnica. Naverdade seria impossível, se o fundamental (...) é queessa participação seja consciente. Se não há consciênciapolítica e mesmo assim há participação/engajamento noprocesso político, então evidentemente está ocorrendomanipulação (que tanto direita quanto esquerda sabem

fazer)...”15

Afinal, que tipo de projeto interessa à educação escolarindígena?

Agora já podemos voltar à pergunta do título,e sugerir uma resposta a ela. Vou escolher uma

14 A propósito, o que é o projeto do governo brasileiro, em parceria coma Rede Globo de Televisão, para comemoração dos 500 anos de Brasil?Um projeto étnico, para afirmação de uma “brasilidade” pentacentenária?Ou um projeto político? É muito importante conseguir responder bem aessa pergunta. Ela nos faz perceber que não existe projeto étnico que nãoseja também um projeto político, apenas as massas manipuladas é quenão percebem isso, e carreiam água para moinhos alheios.

15 Os povos indígenas: consciência étnica e consciência política. Publicadona revista Perspectiva, da Fapes/Erechim-RS, junho de 1983, n° 25, eno jornal Porantim, do Cimi/Brasília-DF, outubro de 1983, n° 56.

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resposta no sentido de uma proposta. Isso quer dizerque, ao invés de discutir e analisar como são hojeas escolas e os programas escolares nascomunidades indígenas, eu vou sugerir o que eupenso que elas deveriam ser.

Primeiramente, se não fui bastante claroantes, quero esclarecer agora que, na discussãoentre definir-se por um projeto étnico ou por um projetoétnico-político, nem estou admitindo a possibilidadede que o projeto político indígena seja um projetoconservador ou reformista. Não que isso não exista.Ao contrário, existem projetos conservadoresassumidos por índios, e de fato isso acontece emmuitos lugares do Brasil: todos nós conhecemoslideranças, autoridades indígenas e diversos índiosque optaram por reproduzir, na comunidade indígena,as mesmas diferenças de classe que existem nasociedade brasileira. É claro que esses índiosconservadores costumam integrar o grupo dominantee privilegiado dentro de suas comunidades: são osque dominam a política e a entrada de recursos nacomunidade; ocupam os postos e cargos remuneradosmais importantes, como funcionários da FUNAI ouda Prefeitura; e muitas vezes estão bastanteenvolvidos com os políticos conservadores ‘brancos’do seu município.

Vejam bem: não estou dizendo que todo índioque seja funcionário ou assalariado defenderáobrigatoriamente um projeto conservador. Mas éverdade que, entre os índios que assumem edefendem um projeto conservador, muitos são

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assalariados do Estado. Não é porque estão em cargos“do governo” (como as pessoas costumam dizer), queeles são conservadores, mas é bastante comum quese tornem conservadores porque vivem uma situaçãodiferente e privilegiada em relação à maioria dosíndios: eles têm um ganho (salário) garantido todomês, anos a fio, e têm a perspectiva de aposentar-secom um bom salário para viver dele para o resto davida. É bem verdade o que ensinava, há mais de 100anos, um revolucionário alemão: a nossa práticasocial (quer dizer, nosso dia-a-dia e as relaçõessociais e de trabalho das quais participamos)condiciona bastante a nossa forma de ver o mundo ede avaliar as coisas.

Um exemplo bem recente e bem típico deuma autoridade indígena que assumiu um projetoconservador é o de um cacique Kaingang, em umaárea indígena de Santa Catarina. Sua família (seusirmãos, primos e cunhados) dominava a áreaindígena, com uma política repressiva contraqualquer índio que fizesse oposição. Com isso, usavamem benefício próprio todos os recursos dacomunidade, desde carros e máquinas agrícolas atéos recursos naturais, como madeiras e pedras semi-preciosas. Além disso, seu grupo beneficia-se com oarrendamento das melhores terras de plantio dacomunidade. O cacique tinha, também, mais de ummercado dentro da área indígena (inclusive,explorando os aposentados, como fazem outros“bodegueiros” da região). Finalmente, esse caciqueestava bem integrado na política regional, sendo quea área indígena representa uma parcela muito grande

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do eleitorado de um pequeno município que foi criadoem volta dela. Assim, elegeu-se vereador pelo PMDB,controlando os votos da comunidade como umverdadeiro “curral eleitoral” (como se costuma dizer),e chegou a articular sua candidatura a presidenteda Câmara. E, como uma parte importante da terraindígena, tomada dos Kaingang há 50 anos, e aindahoje reivindicada pelos índios, é hoje patrimônio degrandes proprietários ligados ao PMDB, ele nuncalevou adiante as iniciativas propostas pelacomunidade para recuperar aquela área. Paraconcluir, vale dizer que ele possui a casa maisimponente e mobiliada da área indígena, sendo oprimeiro índio da região a possuir sua antenaparabólica. Em resumo: esse é um exemplo bem clarode um grupo de índios que assumiu um projeto políticoconservador, porque se beneficia diretamente dele ese torna, assim, um grupo privilegiado e dominanteem sua área. Em alguns casos, lideranças ouautoridades indígenas que se desenvolveram assimtornaram-se importantes figuras políticas para outrasáreas indígenas da sua região, conquistando outrosapoios dentro e, principalmente, fora da áreaindígena, para ter mais poder e influência. É o caso,por exemplo, do professor e funcionário da FUNAI,Pedro Seg Seg, que coordena, no Paraná, umaorganização indígena que os brasileiros chamariamde “pelega”. Há muitos outros, pelo Brasil afora, domesmo tipo, que todos nós conhecemos.

Mas, é bom lembrar, não são apenas aquelesque se beneficiam pessoalmente que defendem umprojeto conservador. Muita gente que não ganha nada

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com isso acaba defendendo esse estado de coisas,simplesmente porque não imagina que a sociedadepossa ser organizada de forma diferente, ou até porrazões de sua tradição cultural, que dá muito valore respeito aos caciques e autoridades, por exemplo.Há outros, ainda, que embarcam na ‘canoa furada’de um projeto conservador exatamente porqueacreditam em um projeto étnico: são aqueles que têmuma compreensão política limitada e acreditam queum “índio bem sucedido” (seja como empresário, sejacomo político regional) é uma coisa da qual todos osíndios se deveriam orgulhar, assim como muitobrasileiro assalariado orgulha-se de termos, noBrasil, um grande empresário como Antônio Ermíriode Moraes16. O limite extremo dessa posição é a dequem acredita que trabalhar para um patrão índio émelhor que trabalhar para um patrão branco.

Pois bem, eu dizia que esse tipo de posiçãoconservadora existe, e é até bastante comum emsociedades indígenas pelo Brasil afora. No entanto,não é essa posição que defendo, primeiro porqueacredito que nenhum projeto conservador poderepresentar os interesses da coletividade de umasociedade indígena. Segundo, porque entendo quetodo projeto conservador só tem compromissos com os

16 Isso também explica, por exemplo, porque os índios no Brasil, dequalquer etnia, costumavam admirar (ou ainda admiram) o Mário Juruna,Xavante que foi o primeiro indígena a se tornar Deputado Federal.Independentemente de qual fosse sua posição política e do papel querepresentasse na política brasileira, a perspectiva “étnica” (despolitizada)levava a que fosse admirado como “índio bem sucedido”, “índio quebranco respeita”, “índio que ocupa lugar importante de branco” e coisasassim que, embora jamais ditas pelas pessoas com essas palavras,traduzem o sentimento que justificava seu poder de provocar admiração.

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interesses econômicos dos grupos dominantes17, ea única circunstância na qual esse tipo de projetopode vir a apoiar um movimento étnico (seja eleindígena ou não) é quando isso trouxer aos gruposdirigentes algum benefício econômico, ou algumbenefício político que gere benefícios econômicos. Eo inverso também é previsível: toda vez que umareivindicação étnica contrariar interesseseconômicos dos grupos dirigentes (ou interessespolíticos que estão ligados a interesses econômicosdos grupos dominantes), ela certamente serárechaçada e, conforme o caso, até reprimida18. Emoutras palavras, um projeto étnico cabe dentro de umprojeto político conservador, desde que não contrarieos interesses dos grupos dominantes.19

Nesse caso, voltamos à nossa pergunta dotítulo, que agora precisa ser mais especificada: aeducação escolar indígena faz parte de um projeto

17 No nosso caso, são os setores privilegiados da sociedade dos “brancos”e, dentre eles, aqueles que estão vinculados ao chamado “capitaltransnacional”.

18 Vale lembrar que, há alguns anos, na vigência da ditadura militar, oSNI (Serviço Nacional de Informações) impediu o registro de umaorganização que se chamou UNI - União das Nações Indígenas. O motivoda proibição era a compreensão dos militares de que a idéia de “naçõesindígenas” era incompatível com a unidade nacional brasileira, sendopor isso considerada “subversiva” da “ordem” nacional. Essa ainda é avisão militar e, tudo indica, a posição geral do governo brasileiro.

19 Poderia acrescentar um terceiro motivo, pessoal, para recusar aposição conservadora: porque penso que os índios que defendem umprojeto conservador não precisam de apoios como o meu; ou eles searticulam com os que têm dinheiro e poder na sociedade regional (oque não é o meu caso), ou se integram nesse projeto como peões esubalternos explorados, e para conseguirem isso podem dispensarqualquer ajuda.

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étnico ou deve integrar um projeto étnico-políticorevolucionário?

Como sugeri no início, esclarecer o título talvezseja tudo o que eu tenha que fazer aqui, e com isso dizero que me foi proposto discutir. Depois desse longopercurso, acredito que não só esclareci como euentendo o significado das palavras presentes notítulo, mas, também, como eu entendo que essaspalavras se articulam para sugerir uma reflexão arespeito dos caminhos da educação escolar indígena.Por isso fui capaz de reescrever o título, numa formamais longa, mas que me parece mais esclarecedora:

A educação escolar indígena faz parte de umprojeto étnico ou deve integrar um projeto étnico-políticorevolucionário?

Sou dos que acreditam que uma perguntabem formulada já nos dá metade da resposta; ou,pelo menos, é a forma mais garantida deencontrarmos a melhor solução.

Para essa pergunta, assim reformulada,sugiro a seguinte resposta:

As limitações dos projetos étnicos de fatoimpedem que eles sejam o caminho da conquista deverdadeira autonomia dos povos indígenas. Isso talvezexplique porque no Brasil ainda não existe ummovimento indígena autônomo (essa é a minhaavaliação, ainda que um tanto provocadora). Por outrolado, como já se discutiu, projetos políticosconservadores subordinam qualquer movimento ou

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organização indígena aos interesses da classedominante (que se beneficia das desigualdadessociais e do controle do Estado brasileiro). E nuncaé demais alertar que as presenças de missõesreligiosas quase sempre estão vinculadas comperspectivas políticas conservadoras.

Concluo, portanto, que apenas um projetopolítico transformador (ou revolucionário, como queiram)pode ser do interesse das sociedades indígenas, seelas desejam conquistar alguma autonomia de fato.Não estou negando que muitas pessoas, e atécomunidades indígenas inteiras, desejem desistirde qualquer projeto político próprio, e tornar-se umacomunidade plenamente subordinada à nação e aoEstado brasileiro, simplesmente como mais umacomunidade rural brasileira. Isso é uma decisãodelas (embora, é verdade, na maioria dos casos estaseja uma decisão praticamente imposta pelascondições de dominação, opressão e destruição quesofreram ou sofrem de parte dos brasileiros não-índios, inclusive e sobretudo por meio dos governose de muitas missões). O que estou dizendo é queaquelas comunidades indígenas que alimentam osonho de uma educação diferenciada, porque dãovalor à sua identidade própria de povo indígena edesejam manter ou defender sua cultura, seusvalores, ou alguma autonomia enquanto sociedadediferenciada, para essas comunidades não existealternativa senão integrar-se em um projeto políticotransformador, porque um projeto simplesmenteétnico, ou um projeto político conservador, só podemlevar à manipulação por interesses de outros.

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Por outro lado, não estou sugerindo apenasuma “adesão” a um projeto político transformadorpronto e acabado, porque corre-se o risco, tambémnesse caso, de “servir de palanque para os outros”,como se diz. A única forma de construir um programaescolar realmente indígena que sirva ao futuro dessassociedades é com a busca de uma maior consciênciapolítica, ou seja, com a busca de conhecer comofuncionam e como se distribuem as relações de poderna sociedade majoritária. Compreender isso éperceber, entre outras coisas, que o poder não émonolítico, ou seja, não é um bloco inquebrávelconcentrado em um lugar único (e normalmente sepensa que esse lugar é o governo). O poder só seconcentra quando muitas pessoas ou grupos depessoas abrem mão dele, e deixam que uma pessoasó ou um pequeno grupo concentre em si um poderque era de todos. Toda vez que preferimos deixaroutros nos representarem, ou tomarem decisões pornós; ou toda vez que aceitamos que outros decidamo que é melhor para nossa vida, para nossa sociedadeou para os nossos filhos, estamos – nesses casos –abrindo mão do poder que é nosso e deixando o poderse concentrar em alguns grupos.

Resta responder: e o lugar do étnico nesseprojeto?

Respondo com um trecho de um outro textomeu, escrito há alguns anos:

“A questão indígena vai além da luta pelamudança nas relações de classe; e no campo da lutapartidária, a questão indígena ultrapassa os partidos.

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Porém, ir além e ultrapassar supõe passar por, e algo mais.Ou seja, o componente étnico da luta indígena nãodispensa, não anula, nem pode omitir o componentesócio-econômico e o componente político classista quetambém está presente nela”.20

Concluo com palavras da conhecida Declaraçãode Barbados, que faz ecoar a voz de Paulo Freire:

“É preciso ter em conta que a libertação daspopulações indígenas é realizada por elas mesmas, ou

não é libertação”.21

20 Panorama da produção indigenista no Brasil. Inédito, 1991, p. 5(ligeiramente adaptado). Fica óbvio, me parece, que o que pretendoenfatizar nessa passagem é a relação (e participação) necessária doprojeto étnico-político em um projeto político mais amplo, e que estamediação, em nossa sociedade, passa por partidos políticos em algummomento, quando se coloca a questão da disputa do poder políticorepresentado no Estado. A objeção de que “não se deve partidarizar” aquestão indígena é própria de certas correntes do meio acadêmico, masestá longe da realidade do indigenismo.

21 Declaracion de Barbados - Por la liberación del indígena. In: Por laliberación del indígena. Buenos Aires, Ediciones del Sol, 1975, p. 29.

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Educação escolar entre os Pareci, Nambikwara eIrantxe no contexto socioeconômico da Chapada dos

Parecis, MT

Daniel Matenho Cabixi22

Para que haja um entendimento maispróximo da educação escolar, em novos contextospolíticos e culturais, eu gostaria de falar rapidamentesobre a minha experiência individual em termos daaprendizagem em uma escola de brancos, que numprimeiro momento se deu na missão dos padresjesuítas de Utiariti, da minha primeira infância esegunda infância até a adolescência.

Com dois anos eu fui tirado da aldeia e fuilevado para esse patronato dos padres jesuítas. Tantoé verdade que eu não tive oportunidade de crescerjunto com a minha mãe, com os meus parentes, comos meus tios, com os meus avós, com os meusbisavós, na aldeia, e isso criou uma ruptura muitogrande em termos do meu conhecimento dastradições do meu povo. Foi uma perda da qual eu meressinto muito, hoje em dia ainda. Mas, se por umlado eu perdi, eu não devo negar que, por outro lado,também, ganhei. Eu adquiri conhecimentos de várioslivros, e a escola onde estudei, apesar de alienante,me deu subsídios para que eu pudesse,

22 Da nação Pareci. Administrador da FUNAI em Tangará da Serra,Mato Grosso.

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posteriormente, entender melhor as circunstânciasem que eu fui criado; e me deu oportunidade,também, de eu entender melhor as necessidadesdo meu povo, as mudanças em andamento e, também,fez com que eu me engajasse definitivamente nessaluta, nesse trabalho que é de lutar junto ao meupovo e às demais etnias da minha região, das quaiscito os Nambikwara, os Pareci e os Irantxe, que sãotrês grupos étnicos distintos que habitam a região.

O ecossistema onde se localizam esses povosé muito semelhante, sendo região de cerrado, dechapadas, com nascentes de muitos rios. Inclusive,nós habitamos a região que é o divisor das águas dabacia Amazônica e da bacia do Prata. Então, há umacaracterística muito particular, muito específica doecossistema geográfico da região, e esses trêsgrupos, hoje, vivem uma situação – em termoseconômicos, em termos sociais, em termos políticos,em termos culturais – muito próxima, e tudo o queirei dizer aqui estará relacionado diretamente àrealidade desses três povos.

Quando se fala da educação escolar, tem-seum leque de muitas nuanças, muitas sobreposiçõesde questões que, às vezes, até chegam a confundira cabeça da gente, porque a gente adentra numcampo de conceitos científicos, técnicos,antropológicos, que às vezes para nós são bastanteincompreensíveis e de difícil entendimento. Alguémfalava, ontem, se havia necessidade de nós, osindígenas, ingressarmos na escola Fundamental, noEnsino Médio e no terceiro grau – quer dizer, em

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nível de faculdade –, para que nós, indígenas,pudéssemos ter a capacidade mais eficaz de atuarmosjuntos, mais coletivamente, com maior eficiência eum maior resultado na nossa interferência, na nossaatuação junto aos nossos povos, junto às nossasescolas e junto às nossas organizações. Eu acho que,no presente momento, essa é uma estratégia quetem que ser adotada por nós, pelo menos comoestratégia do momento. Eu tive oportunidade deconversar agora, antes da conferência, com o DanielMunduruku, e ele me dizia do seu projeto de trabalhoque está sendo implementado aqui em São Paulo,na questão da relação com as escolas, faculdades eprogramas educativos, projeto que me chamou muitoa atenção, em função de que também nós, emTangará da Serra, estamos com um projeto junto àsescolas da região e, principalmente em Tangará daSerra, com os alunos que saíram da aldeia, ondefizeram até a 4ª série, e ingressaram nas escolasbrancas da cidade, em razão de não haver, na aldeia,o prosseguimento da 5ª à 8ª série. Então, eu vejoque existe de fato essa necessidade de que nósadquiramos também esses conhecimentos para quenós possamos estar tecnicamente eprofissionalmente capacitados para podermosproduzir e atuar com maior eficácia junto aos nossospovos.

Para argumentar sobre os novos contextospolíticos e culturais, eu gostaria de fazer um brevehistórico do povo Pareci, para situar em relação aopassado, o presente e a perspectiva para o futuro dopovo Pareci e dos Irantxe.

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A Chapada dos Parecis é um território deaproximadamente 6 milhões de hectares, uma áreaextensa, que é o território tradicional dos índiosPareci, dos Nambikwara e dos Irantxe. Num primeiromomento histórico houve o trabalho do extrativismoflorestal e mineral, nos idos de 1700, quando foidescoberta uma mina aurífera em Diamantino,localizada exatamente dentro do território tradicionaldo povo Pareci, que era composto por três distintossubgrupos: os Kaxíniti, os Kosárini e os Waimare. E,em outro momento, a extensão das linhastelegráficas, feita pela expedição do MarechalRondon, cruzou o território Pareci. Mais ou menosna mesma época, começam a adentrar o territórioPareci as missões jesuíticas e as missões de seitasprotestantes, que entraram para evangelizar ecatequizar os índios. E, depois, veio a fase daintrodução das estradas, principalmente a BR-364,que liga Cuiabá a Porto Velho, e que cortoupraticamente o coração do território tradicionalPareci e dos índios Nambikwara, como também dosíndios Irantxe. E podemos também dizer que os Pareciforam submetidos à ação dos poderes públicosgovernamentais – através da FUNAI, através do SPI– e também à atuação de organismos não-governamentais, já nos idos de 1970.

E, para chegar à questão, eu gostaria derelatar aqui sobre as escolas que foramimplementadas na área Pareci e em toda região.Num primeiro momento, foram criadas duas escolasno território Pareci, foi criada escola na terra dosIrantxe, cujos professores não tinham muito preparo

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em termos de capacitação profissional, em termosde conhecimentos, em termos de formaçãopedagógica, em termos de capacidade para produziros currículos para as escolas. Simplesmente foiintroduzido o modelo de ensino que as missõesadotavam em Utiariti, modelo esse que foidesestruturador, que não reconhecia as culturasindígenas – inclusive Utiariti era um lugar em queforam absorvidas umas oito etnias diferentes, e ondeera proibido falar-se as línguas indígenas, fazer asmanifestações das nossas culturas, sendo o nossoúnico instrumento de comunicação a línguaportuguesa, com todas as conseqüências que todomundo aqui sabe, já que a maioria aqui trabalhacom índios e conhece as conseqüências desse tipode atuação.

O importante para mim é esclarecer a vocêsque esse modelo de ensino trouxe umadesestruturação cultural, uma desestruturaçãoideológica, política, social e, eu diria, até econômica,porque a geração de adultos de hoje, que passamospelas escolas da missão, hoje a gente percebe que

sente uma dificuldade enorme em restabelecer os

laços com a tradição antiga; perdeu a capacidade deiniciativa, de buscar junto aos anciãos que detêm oconhecimento tradicional, e de restabelecernovamente, dentro das circunstâncias de hoje, umanova estratégia de recuperação da cultura. Etambém, nesse processo de desagregação dasculturas, houve o incentivo dos próprios missionáriosde fazerem os casamentos intertribais, quer dizer,houve uma mesclagem muito grande por casamentos

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de diferentes etnias e hoje nós encontramos aldeiasem que há adolescentes hoje que são filhos deRikbáktsa com Nambikwara, Nambikwara comPareci, Pareci com Irantxe, Irantxe com Kayabi eassim por diante. Quando se pensa, hoje, emfomentar uma escola para essa realidade, aí fica oparadoxo: em que língua ensinar? Que culturaintroduzir dentro dessas escolas? Uma vez que nãose falam mais as línguas, uma vez que as própriascrianças não têm um referencial: eles não sabemse eles são Pareci, se são Irantxe ou Nambikwara,ou se são Kayabi. Quer dizer, houve uma indefiniçãode personalidade étnica e isso é muito prejudicialno contexto atual dessa realidade, comoconseqüência dessa escola das missõestradicionalistas.

E, quanto aos aspectos da restruturaçãosócio-política desses grupos que foram afetadosdiretamente por esse programa de ensino, é muitopreocupante verificar que, quando se fala de umprojeto étnico, não existe um parâmetro dereferências que possam dizer que os Irantxe hojetêm um projeto étnico ou um projeto étnico-político.Então, a gente não consegue perceber com clarezae com nitidez para onde estão caminhando essesgrupos indígenas, enquanto existem, hoje, outrasrealidades em que os índios conseguem ver commaior clareza essa questão de um projeto étnico ede um projeto étnico-político para os seus povos.

Então, dentro dessa realidade, os própriosprofessores índios e os próprios alunos querendo

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aprimorar os seus conhecimentos e trabalhar commaior ênfase a questão da educação nas escolas, éque se pensou no Projeto Tucum, no Mato Grosso,com quatro pólos, e que tem como objetivofundamental formar os professores técnica eprofissionalmente em nível de magistério. Esse é oobjetivo principal do Projeto Tucum. Está previsto queo Pólo 1 do Projeto vá terminar agora em janeiro (de2000) e, fazendo uma avaliação superficial dosresultados do Projeto Tucum, pelo menos para o Pólo1, que é a minha região, que abrange os Nambikwara,os Pareci, os Irantxe, os Umutina, os Rikbáktsa, osKayabi – que são os grupos que estão maisdiretamente vinculados ao Pólo 1 –, fazendo umaavaliação muito superficial em relação aos resultadosdesse projeto, é preciso dizer, primeiro, quepraticamente todos os professores que atuam nasaldeias são professores que têm, no máximo, a 5ª ou6ª série, e a maioria deles é paga pelas prefeiturase eles adotam, dentro das suas escolas, essasistemática adotada em qualquer escola rural ou dacidade. Então, tentando mudar um pouco essarealidade, fazendo com que os professores consigamter uma visão mais clara em relação ao seu trabalhona sala de aula e a escola dentro do seio dacomunidade, verifica-se que até hoje não houve umresultado muito positivo nesse sentido.

Alguém falava aqui, ontem, que o professorsai para caçar, sai para pescar, e a prefeitura paga;essa é uma verdade que a gente não pode negar, enão existe um mecanismo, nas comunidades, paracobrar desse professor essa assiduidade nas aulas.

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A avaliação que eu faço desse tipo de comportamentoé que o Projeto Tucum está terminando e não vaiatingir, na prática, seus objetivos iniciais pensados,que seriam o de capacitar os professores e demelhorar a qualidade do ensino, dentro das salasde aula, nas aldeias indígenas. E o preocupante,também, é que se percebe que, quando se observase existem comunidades ou povos que tenham umadefinição muito clara em relação ao seu projetopolítico em termos de escola, não se sabe se existeuma consciência muito clara em relação ao projetoétnico ou em relação a um projeto étnico-políticoem determinadas comunidades; na nossa regiãopercebe-se que os resultados nesse sentido são muitoincipientes e que nós devemos trabalhar um poucomais nesse sentido.

Então, quando me convidaram para vir parao COLE, sabendo da temática que seria tocada –uma das minhas grandes preocupações é aprimoraros meus conhecimentos, e eu posso até estar sendoum pouco ambíguo, nesse sentido, porque eu estouvindo para fora buscar elementos, estou vindo parafora buscar conhecimentos que possam seradaptados ou adequados à nossa realidade; por queeu não buscar os conhecimentos tradicionais do meupovo e trabalhar em cima desses conhecimentostradicionais para criar fórmulas de uma novapedagogia, de uma nova metodologia de ensino paraa produção de currículos específicos? –, a gentepercebe que os professores têm uma grandedificuldade, não só de lecionarem de uma forma maisprodutiva, mas, também, de produzir os seus próprios

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currículos. Toda a realidade, todo o contextosocioeconômico do entorno das terras indígenasexerce uma grande influência nos parâmetros decomportamento, hoje, não só da sociedade Pareci,mas também das outras sociedades indígenas noentorno.

Então, na questão da produção dos novosconhecimentos e na questão da estratégia de ensino,é como eu acabei de dizer, na produção de novosconhecimentos os professores deixam muito adesejar e faltam definições mais claras por partedos professores índios em definirem com maiorclareza as suas estratégias de ensino dentro de umaproposta política ou dentro de uma proposta étnica.

Todos esses fatores estão vinculados, hoje,ao contexto socioeconômico e político da região. AChapada dos Parecis, hoje, é vista como um dosmaiores celeiros de produção de grãos do País; umaárea, em termos geo-políticos e econômicos,extremamente importante para o estado de MatoGrosso e para o Brasil, porque praticamente toda aChapada dos Parecis hoje se transformou numgrande tapete de soja, arroz, milho, feijão, sorgo,canaviais, e isso tem refletido diretamente no modusvivendi das populações indígenas que habitam essaregião. Tanto é verdade que, na Chapada dos Parecis,estão implantados, hoje, dois grandes projetoseconômicos do estado de Mato Grosso, constituídospelas empresas Maggi e, todos conhecem, OlacirFrancisco de Morais. Dois grandes produtores de soja(um já foi destronado como ‘rei da soja’, é hoje e afamília Maggi quem detém essa “coroa” de ser o

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maior produtor de soja do País). E, essas empresas,aliadas a outras empresas de menor porte, têm umprograma econômico-político de grande envergadurapara a região.

Por exemplo, a reserva Pareci está localizadaestrategicamente na região, de modo que elarepresenta o estrangulamento ou o avanço desseprojeto econômico das grandes empresas da região,porque é uma terra que está localizadageograficamente num ponto que dá acesso para PortoVelho, onde foi implantada, através do Rio Madeira,a escoação da produção de soja da Chapada dosParecis – tem lá não sei quantas barcaças, e cadauma transporta quinhentas toneladas de soja – etambém existe a pretensão de abrir um outrocorredor de exportação via Tocantins-Araguaia,escoando a produção; e existe um projeto deconstrução de uma estrada ligando Cuiabá a PortoVelho, cujo projeto já está aprovado no CongressoNacional, e a pretensão é que essa estrada já nasçaasfaltada. Praticamente já está aprovada noorçamento da União a abertura dessa estrada, e elairá cruzar mais uma vez a terra dos Pareci. A médiade produção da região hoje é de três milhões equinhentas mil toneladas de grãos por safra e aprevisão é haver aumento dessa capacidade deprodução. Então, os Pareci, hoje, especialmente aslideranças, são muito acariciados, se “puxa o saco”demais das lideranças, em função desses interesseseconômicos. É a sereia cantando aos ouvidos do povoPareci, do povo Nambikwara, do povo Irantxe, quesão os mais afetados por esses grandes projetos.

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Dentro desse conjunto de fatores, eu gostariade falar um pouco sobre a questão do materialdidático até hoje produzido para os Pareciespecificamente. A única produção de materialdidático que nós temos são umas cartilhas de 1° a4° ano, formuladas pelo Summer, o InstitutoLingüístico de Verão. É incrível perceber que essascartilhas foram feitas dentro de uma técnica quenão é hoje aceita pelos Pareci, em função dasdiferenças dos subgrupos, que são os Kaxíniti, osWaimare e os Kosárini e, como eu disse antes,também em função de que os professores índios aindanão conseguiram, eles mesmos – não sei se por faltade interesse ou por falta de visão – criar mecanismosde produção dos seus próprios materiais didáticos.Essa consciência do professor – como a Darlene diziaontem – dessa preocupação de produção de dados,de registro; e por quê? Por que a produção de dados,por que o registro, por que o currículo? esses sãoquestionamentos que a gente ainda não percebe,pelo menos no Pólo 1 do Projeto Tucum, não consegueperceber isso com muita clareza ainda. É uma coisaque tem que ser trabalhada ainda mais.

E, dentro desse contexto todo, quando se falaem novos contextos políticos e culturais é que voltoà questão das estradas hoje, que é uma realidadena questão dos Pareci, a atuação dos organismosgovernamentais, a atuação das organizações não-governamentais (indigenistas, ambientalistas, oindigenismo missionário), a questão das grandesmonoculturas que são implantadas no entorno dasterras Pareci, a questão das hidrovias, a questão do

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aumento da produção; dentro desse contexto todo, agente fica imaginando que direção a realidade dasnossas escolas têm que tomar. Porque percebe-seque há uma desvinculação da conceituação dosprofessores da sala de aula, em que eles sóconseguem enxergar aquele pequeno mundo: ‘eu souo professor, vocês são os alunos, o material didáticoé esse, os conteúdos são esses e é isso que eu vourepassar para vocês’. Então, o mundo dos professoresfica estritamente fechado a esse micro-campo, sempoder extrapolar as portas da sala de aula, se integrare interagir dentro das suas comunidades e, daí,projetar-se à comunidade como um todo, em relaçãoàs outras escolas e, desde aí, surgir uma consciênciapolítica em função dessa realidade que hojesobrecarrega a realidade dos povos Nambikwara,Pareci e Irantxe. Como adequar uma escola, umaproposta escolar, dentro dessa macro-visão que agente vê que os índios tem dificuldade de enxergar,têm dificuldade de entender, tem dificuldade de agirou reagir, em razão das fortes pressões e tambémem razão, eu diria, da própria miséria material quese abate sobre essas comunidades?

Existe, então, um contra-senso dentro daspróprias comunidades. Só para citar alguns exemplosdesse contra-senso, recentemente foi discutida aquestão do arrendamento e da parceria agrícola nasterras indígenas. Num primeiro momento, os índiosachavam que poderiam e teriam plena liberdade dearrendar suas terras. Posteriormente, foi-lhesmostrado que seria impossível, dentro de uma lógicalegal, levar avante a discussão desses

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arrendamentos com os fazendeiros, quediariamente, quotidianamente, estão, no ouvido dosíndios, falando: “por que vocês têm um milhão dehectares aí e vocês vivem nessa miséria total? Porque vocês não arrendam essas terras? Vocêspoderiam ganhar muito dinheiro com isso, plantandosoja, milho, arroz, feijão etc, etc.” E os índios ficamobcecados pelo canto dessa sereia e não conseguemestabelecer, dentro do próprio sistema organizativoPareci, mecanismos de relações mútuas,mecanismos de estudo, mecanismos de avaliação,mecanismos de projeções, enfim, eles só conseguemenxergar que o fazendeiro está ali do lado, tem umabela mansão, com antena parabólica, freezer, gadono pasto, uma D-20, cinco D-20, uma frota decaminhões, é só isso que eles conseguem enxergare não mais além disso.

Então, o desafio de uma proposta, de umprojeto escolar para a nossa realidade éextremamente grande, é extremamente desafiador.Eu acredito que, dentro de poucos anos dificilmentea gente irá conseguir estabelecer parâmetros juntoaos nossos povos para que eles possam ter umaconsciência mais crítica, em função de que é muitomais fácil o prefeito da região chegar lá e falar parao índio: “ô, cacique; eu te dou uma D-20 e você medeixa passar uma estrada”. O fazendeiro chega lá efala: “eu te dou duas F-4000 e você me arrenda 600hectares de terra”.

Então, é uma situação de extrema gravidadee de extrema preocupação que me deixa muito

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preocupado; e, quando eu disse, ontem, na abertura,que existe uma certa agressividade em relação àinfluência de terceiros, principalmente de ONGsindigenistas, aos Pareci, eu queria ressaltar aqui amentalidade que não foi criada pelos Pareci, masacarretada por influência ideológica do sistemaeconômico e político do entorno. Por exemplo, quandose fala em meio ambiente, a reflexão que os índiosfazem é a seguinte: “parece que há extremapreocupação em defender o jacaré, defender ocágado, defender o papagaio, defender a árvore, enós, os índios? Estão canalizando milhões derecursos para defender os bichos da mata e nós,aqui, morrendo de fome. Agora a gente quer arrendara nossa terra, a gente quer fazer uma parceriaagrícola, vem um Procurador da República, vem umaONG, vem não sei quem mais, e fala que nós nãopodemos fazer nada. Que negócio é esse?” Então,quando falei ontem, na abertura, que são agressivosnesse sentido, é em função dessa ideologia doentorno. Por exemplo, quando a gente conversa comos caciques Pareci sobre a questão da introdução deculturas perenes ou de programas que se dizem auto-sustentáveis, eles simplesmente rechaçam isso. Elesfalam: “não, isso é besteira, isso é mentira; isso nãovai resultar em nada. Se os caras querem nos ajudar,mandem tratores, mandem equipamento, mandeminsumos, vamos derrubar esse cerrado aí, vamosproduzir; é isso que nós queremos”. Então, aí se vê ocontra-senso, a ambigüidade que existe dentro deum processo, que eu diria, um processo lento quepoderia levar os índios a uma outra situação sociale econômica. Porque, politicamente – como dizia o

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Wilmar antes – é essa questão do poder políticoatrelado ao poder econômico.

Assim, na nossa realidade existem todasessas nuanças e eu estou aqui exatamente paracolher subsídios para como enfrentar e montarestratégias para reverter esse quadro que éextremamente grande, extremamente desafiador emque a gente está com um peso muito grande nas

costas.

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A FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS NO BRASIL

Rediscutindo a formação de professores no Brasil:aproximando-se da educação indígena

Helena Freitas23

Introdução

Eu estou bastante emocionada com a fala doDaniel, porque pessoalmente ainda não haviaentrado nesta dimensão da educação indígena;sempre ouvi, li, mas ao entrar nessa temática, nestamesa me puseram em contato com essa imensidãoque é a produção teórica e prática da educaçãoindígena, e me dei conta de quão pouco eu sei daeducação indígena, dos próprios povos indígenas.

Capítulo 3

23 Professora da Faculdade de Educação da Unicamp e membro daAssociação Nacional de Formação de Professores (ANFOPE).

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Nós vivemos em um país que cada vez menosvaloriza o humano, cada vez mais nos desapropria,cada vez mais nos tira as riquezas da terra, a riquezaconstruída ao longo destes quase 500 anos.

Tenho enorme satisfação de estar aqui comvocês; espero que possamos travar um diálogoprofícuo, que ajude tanto à ANFOPE quanto a vocêsa encontrar caminhos conjuntos para levarmos estanossa luta.

A ANFOPE - Associação Nacional pelaFormação dos Profissionais da Educação, é umaassociação nacional que surgiu em 1983, comoComitê Nacional de Reformulação dos Cursos deFormação de Educadores. Em 83 houve um processode ruptura com o MEC, que desde o final da décadade 70 queria reformular os cursos de formação doeducador com uma concepção mais tecnicista,voltada para a formação do técnico para atuar nointerior dos sistemas de ensino. Lembrando, no finalda década de 70, a época do “milagre econômico”,houve todo um movimento por parte dos órgãosoficiais de adequarem a educação às exigências queentão se colocavam para o desenvolvimento docapitalismo em nosso país. Desde 79 até 83 omovimento dos educadores vinha discutindoquestões específicas da educação e da formação doeducador, em 83 o movimento rompe com o MEC e,a partir dali, passa a se organizar e desenvolver deforma autônoma.

Em 91 criamos a ANFOPE, que é uma enti-dade que vem se preocupando com a questão da for-

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mação do educador, do profissional da educação, doprofessor, e que produz, a cada dois anos, um en-contro nacional. E nesse encontro nacional, vamosacumulando experiências, a partir das experiênciasdas instituições formadoras, das universidades, docurso normal, da prática pedagógica dos professo-res; vamos acumulando essas experiências e produ-zindo novos conhecimentos quanto à formação doeducador. Então, para nós, é importante estar aqui,porque, apesar de termos colegas nas universida-des (Acre, Roraima, Amazonas, Tocantins etc.) quetrabalham com a questão indígena, ainda não haví-amos tido oportunidade, enquanto entidade e dire-toria, de nos debruçarmos mais detidamente sobreo tema.

Vou dividir a minha fala em dois momentos.Em um primeiro momento, gostaria de compartilharcom vocês um pouco da reflexão que temos feito so-bre o contexto em que se dá a discussão da forma-ção de professores no Brasil, recuperando um poucoda história, principalmente a partir do Plano Decenalde Educação e de todo o movimento nacional e in-ternacional no sentido de adequar a educação a essanova fase de expansão capitalista ou “globalização”,internacionalização do capital.

No segundo momento, vou dialogar um pou-co com vocês e também socializar os diálogos que eufiz com vários dos autores [do livro do 1° Encontro],que eu acredito que estejam aqui: a Rosa Helena,Luis Donizete, Wilmar, Juracilda, Orlando..., ten-tando discutir a questão dos princípios da ANFOPE,vendo como é que nós poderíamos fazer uma aproxi-

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mação com as questões levantadas pelos professo-res indígenas e com os estudiosos da área. Esperoque eu tenha feito isto de uma forma interessante,respondendo ao que vocês estão colocando.

A atualidade dos debates sobre formação dosprofissionais da educação

De 83 a 91 a luta da ANFOPE, com relação àformação de professores no nosso pais, ficou um poucorelegada ao debate nas universidades, das entida-des de formação de professores; por parte do Minis-tério da Educação, a questão da formação do profes-sor ficou colocada muito de lado, sem políticas deformação, sem uma preocupação efetiva com a qua-lificação e elevação da formação de professores paraalém da escola normal. Então, o que nós temos hojeé que, de 1.400.000 professores no Brasil, cerca de700.000 não têm formação superior, tanto de 1 a 4série como de 5 a 8 série do Ensino Médio. No Bra-sil, as pessoas que dão aula de 5 à 8 série não têmsequer o primeiro grau (professores leigos).

Esse quadro não é só perverso pelo que elesignifica para os professores no nosso país. Ele éperverso pelo que ele significa em termos da nossaeducação básica, para a formação das novas gera-ções. Em termos da educação das crianças indíge-nas, segundo os dados que tomei do referencial doMEC, é exíguo o número de escolas para atendertoda a população indígena, e a meta que o governose coloca no Plano Nacional de Educação é de, em

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10 anos, ampliar a formação da criança de 1 à 4série. Não se fala da continuidade, nem mesmo daformação de professores para formar as crianças in-dígenas. Então a dívida do governo brasileiro, danação brasileira é esta.

Agora, isto é gratuito?

Não, não é. Nós sabemos que essas questõesde formação do professores só aparecem no nossocotidiano porque nós sabemos que a nossa escola,tal como ela está, não atende aos interesses dosestudantes. Tanto é que o capitalismo teve uma certaevolução, com as alterações do campo produtivo (dainformática, da robótica,...) incorporadas no proces-so de trabalho, e com estas modificações o capitalse deu conta de que nossas escolas não formavamos jovens e crianças para dar conta do trabalho eocupar determinados postos no sistema produtivo.

Nossa escola foi se desenvolvendo para queo operário na fábrica pudesse decodificar os símbo-los da leitura e da escrita, fazer algumas operaçõesmatemáticas e apertar uma manivela, participar noprocesso do trabalho de uma forma simplificada.Quando essa fábrica se complexifica com novastecnologias, é aí que o capital se dá conta de que aeducação é um elemento estratégico, inclusive pararecuperar a sua própria capacidade de acumulaçãode riquezas. Um trabalhador mal qualificado parausar novas tecnologias precisa de um processoeducativo que envolva novas capacidades, com asquais a escola não está preparada para lidar.

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O capital teria que investir muito mais naformação desse trabalhador. Então as políticas deformação de professores vêm responder a isso. E, aí,nós temos que estas políticas estão ligadas às políti-cas globais, às novas tecnologias, à informática, àabertura econômica do nosso país, ao Estadoneoliberal, com a retirada de subsídios aos progra-mas de saúde e educação, a redução da cobrançade impostos do capital e o aumento para o trabalha-dor, a redução da mão-de-obra e o desemprego; ou-tra característica do Estado neoliberal e da políticade globalização é a política de focalizar investimen-tos em determinados setores e a privatizaçãoindiscriminada que é resultado da redução do papeldo Estado.

Tudo isto para gerar novos patamares de acu-mulação . A crise do capitalismo no final da décadade 70 vinha apontando para uma crise de acumula-ção do capital, pela mudança no padrão de trabalho.O que isto tem a ver com a educação e formação? Éque a educação, como ela passa a ser um elementoestratégico nesse processo de acumulação de riquezapor parte do capital, tem que dar conta da formaçãodos trabalhadores; e é aí que o capital entra numacontradição, porque ele sabe que precisa da forma-ção dos trabalhadores, só que, quanto mais ele edu-ca, mais permite que se forme um trabalhador maiscapacitado, e ao mesmo tempo, quanto mais ele edu-ca, mais ele cria condições de que nós, educadores,possamos aproveitar as contradições e formar tam-bém um novo homem a partir dessas contradições.

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No campo da formação dos professores, aspolíticas atuais colocam ênfase no treinamento, naqualificação instrumental, não na formação plenado educador. Há uma volta ao tecnicismo, à forma-ção dos professores com ênfase na resolução de pro-blemas da sala de aula: há que se formar o profes-sor para “dar conta da alfabetização, noções de His-tória, Geografia, Matemática”. Há uma visão de quea resolução dos problemas da escola se faz dentrodela, então se parte para a busca de parceiros quemantenham a escola, o financiamento da educaçãopelas empresas e indústrias, desobrigando cada vezmais o Estado da manutenção da educação básica,todas estas medidas tomadas tendo como suporte aconcepção de que a educação é um problema de to-dos (e quando é de todos não é de ninguém), deso-brigando o Estado e o poder público de sua manu-tenção. Por outro lado, a descentralização, que éuma descentralização falsa, porque se diz que cadaescola pode fazer o que quer, cada sistema faz o seucurriculum, mas o MEC avalia, pelo SAEB, Provão,ENEM24, e avalia com base nos critérios estabeleci-dos a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais.Temos observado, no nosso país, um conjunto de me-didas no campo da formação de profissionais da edu-cação que são profundamente danosas para o con-senso que o movimento de educadores, e acreditoque também os educadores indígenas, têmconstruído através de sua história.

24 SAEB: Sistema de Avaliação do Ensino Básico; ENEM : Exame Nacional do EnsinoMédio; Provão: exame nacional de avaliação de cursos superiores. (nota dos orgs.)

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Uma questão que é importante destacar aquié que se pretende acabar com o curso de pedagogiacomo formação de professores de 1ª à 4ª séries eeducação infantil; nós sabemos que quem tem for-mado professores em nível superior e também osprofessores indígenas têm sido os cursos de pedago-gia, que se desenvolveram como um curso que temcomo objeto a educação, que trabalha com a forma-ção de professores com uma perspectiva mais am-pla, de formação do educador. A medida que estárondando nossas portas é a transformação dos cur-sos de pedagogia que formam professores em cursosnormais superiores. O curso de pedagogia fica comocurso para formar o cientista da educação, aquele“grande pensador”, desligado dos problemas da prá-tica que, afinal de contas, quem faz é o professor.

Esta política de formação de professores estámuito em sintonia com a política global de reduçãode cargos, a política econômica, e cada vez mais aênfase na formação de um professor que dê contaexclusivamente das questões relativas ao ensino dasdisciplinas específicas, e não um profissional comcondições de compreensão das questões da educa-ção como ciência, como prática; um profissional comvisão conteudista, com ênfase na metodologia deensino; o importante é que você saiba como ensinar,como se ensina História, Geografia, ... Quando mui-to, você pode ter um professor que está muito namoda agora, um professor “reflexivo”, que refletesobre sua prática, e nada mais do que isso.

Nós entendemos que não; nós entendemosque o professor reflexivo é um professor crítico. Críti-

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co de quê? Da sua própria prática? Não exclusiva-mente. É um crítico da sociedade; um crítico do seutempo; um crítico das condições históricas que pro-duziram a condição de vida de seu povo. Um profis-sional capaz de se situar no tempo, na história, com-prometido com a transformação dessas condições eda escola e da educação. Então, esta é a visão quequeria compartilhar com vocês.

Formar o professor para a educação básica:o profissional da educação necessário na realidade atual

Como é que o movimento dos educadorestem desenvolvido essa discussão da formação doprofessor?

Nessa discussão particular da educação dospovos indígenas, fui podendo identificar algumasmanifestações universais a respeito também da es-cola dos não-índios. Alguns textos colocam que aescola indígena é uma escola que deve revelar oprojeto histórico do povo. Eu me pergunto: qual é oprojeto histórico do nosso povo? A resposta a essaindagação me leva à concepção do educador e daeducação que explicitamos nas nossas propostas deformação e de organização pedagógica. Que profissi-onal da educação nós pretendemos formar? Parapermanecer e contribuir para que as atuais estru-turas de uma sociedade capitalista desigual, injus-ta, discriminatória e excludente continuem, ou paraa transformação radical dessa sociedade?

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Nisso até pela posição da escola indígena,pois há uma luta toda na escola indígena pela ma-nutenção da tradição; nós também perdemos nos-sas tradições no embate com a questão da educaçãoescolar, nós, os não-índios. Daí surgem algumasquestões importantes: a primeira é que a formaçãodo educador é sempre contextualizada; em nossopaís, ela esteve sempre muito contextualizada. Oque valia para nós no começo da década de 70, hojejá não vale mais, porque a educação atende às exi-gências que vão se colocando pela prática social.Então, se o desenvolvimento capitalista da décadade 70 apontava para uma determinada direção, hojeo próprio desenvolvimento capitalista aponta parauma formação mais articulada e integral. Há, nacrise educacional brasileira, algo que constitui umadas facetas da nossa temática mais ampla, que sãoas condições econômicas, políticas e sociais que cons-tituem uma sociedade profundamente desigual e in-justa, que vem esmagando a maioria da população erelegando-a a uma situação de exploração e misé-ria.

Segundo, a transformação do sistema edu-cacional exige e supõe sua articulação com a pró-pria mudança estrutural da sociedade, em busca decondições de vida justas, democráticas e igualitári-as para as classes populares. Ter presente essasligações mais amplas é fundamental para que a genteevite que o debate da formação do educador perma-neça nas questões técnicas, e que de repente pos-samos imaginar que encontramos a saída mágica;por exemplo o construtivismo, que anda muito naonda hoje.

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No movimento de luta pela democratizaçãoda sociedade brasileira está inserida a necessidadede gestão democrática da escola e da educação emtodos os níveis, e esta é uma batalha que a gentevem perdendo. Achei muito interessante o movimen-to dos professores indígenas de Roraima, que con-seguiu criar um departamento de educação indíge-na, porque nós, nos Conselhos Estaduais e no Con-selho Nacional de Educação, perdemos a luta porconselhos democráticos, abertos e com participaçãodas entidades. Hoje, nos vários Conselhos, são asexigências do setor privado da educação que predo-minam. Essa questão também é importante para vercomo é que são as amarras que encontramos.

Outra questão importante é a autonomia uni-versitária, que hoje também está sendo atingida, esem ela nós não vamos conseguir caminhar paragarantir a qualidade socialmente referenciada emnenhum curso de formação de profissionais, médi-cos, engenheiros, advogados, ..., e muito menos edu-cadores, se nós não lutarmos pela autonomia dessauniversidade. E acho que é uma questão tambémimportante reafirmar que essa luta pela formaçãodo educador, do professor, ela não tem prazo paraterminar; ela continua, é eterna, e a gente pode seconvencer de que a gente vai morrer lutando porela, nossos filhos e nossos netos vão continuar lu-tando por ela, porque ela se insere nesse movimen-to mais amplo dos educadores brasileiros, que porsua vez se insere no movimento dos trabalhadores,em geral pela transformação da sociedade.

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Eu gostaria de fazer aqui um exercício, comvocês, que há décadas se debruçam sobre essatemática dos povos indígenas; gostaria de fazer umexercício no sentido de tomar esta posição teóricaque o movimento tem construído sobre a formaçãodos professores, dialogando com as questões que,espero, tenha aprendido em minha incursão nestatemática.

É importante dizer que, para nós, e acho queesta é uma luta que se amplia também para os po-vos indígenas, o educador é um profissional do ensi-no. O professor é um educador e é um profissionaldo ensino. Então, não reduzo a questão à sua atua-ção em sala de aula, mas defendo uma compreen-são mais ampla da educação. O educador tem adocência como base da sua identidade profissional,sim; somos todos professores: diretores, coordena-dores pedagógicos, supervisores, dominamos o co-nhecimento científico da nossa área, articulado aoconhecimento pedagógico. Então, os professores deQuímica, Física, Alfabetização, Letras, Matemática,dominam o conhecimento científico de sua área es-pecífica e o conhecimento científico e pedagógico daárea da educação, numa perspectiva de totalidadede conhecimento socialmente produzido que nos per-mite perceber as relações existentes entre a edu-cação e a totalidade das relações sociais, econômi-cas, políticas e culturais em que o processo educa-cional ocorre. E somos capazes de contribuir, porconta dessa nossa formação, com a transformaçãoda realidade da escola, do ensino e da educação, eda sociedade.

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Compreender o educador como um sujeitohistórico implica também nos questionarmos a res-peito do futuro e das perspectivas que se abrem paraa construção de um novo tempo, uma nova socieda-de e uma nova escola. Implica também entender-mos o professor como sujeito que constrói uma prá-tica social e, nesse sentido, nos aproximamos tam-bém da compreensão de nossos professores, o pro-fessor não-índio e o professor indígena, como cate-goria prática e organizativa em plena construçãopelos próprios povos indígenas.

A desqualificação a que vem sendo submeti-da a categoria do magistério no nosso país, expostana primeira parte deste texto, evidencia a realidadedesta afirmação. Isto é, a construção da identidadedo professor indígena e do professor não-indígena éuma luta cotidiana no nosso país.

É possível indagarmos por que professores/profissionais daeducação os povos indígenas anseiam?

Ao entrar na temática da educação indígena,me fiz a seguinte pergunta: é possível nos indagar-mos por que professores ou profissionais da educa-ção os povos indígenas anseiam? Vou fazer um pou-co o diálogo com vocês sobre como temos progredidonessa área. Me parece que esta questão não podeser respondida sem recorrer às falas dos sujeitosdiretamente envolvidos nesta discussão. E vou, nestatentativa, me aproximar destas falas nos limites da

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socialização e do material ao qual tive acesso, espe-

rando que possamos estabelecer esse diálogo.

O diálogo nesta trajetória é com estudiososda temática e com os professores indígenas, atravésde suas falas e vozes nos textos disponíveis. Como éque temos definido a questão do profissional que serianecessário na realidade atual, dadas as condiçõeshistóricas que eu coloquei na primeira parte?

(a) Em primeiro lugar, nós teríamos que pen-sar, como condições importantes da formação, umprofissional da educação que tivesse condições, nasua prática e na sua formação, de entender a totali-dade cultural como fruto da atividade humana dosdiferentes povos, índios e não-índios, em nosso país,e dos demais povos da América; como prática de pro-dução e de criação dos sujeitos, artífices e autoresdo seu mundo e sua história. Compreender nessecontexto a origem das danças, dos rituais e dos cos-tumes de cada povo indígena e o papel que têm naconstrução da identidade cultural de nossos povos.

(b) Em segundo lugar, que possa sedesenvolver a capacidade de conhecer ascaracterísticas, necessidades e aspirações de seupovo e da sociedade a que pertence, identificandoas diferentes forças e seus interesses de classe,captando contradições e perspectivas de superação.Remeto-me aqui à discussão sobre as políticasintegracionistas e colonizadoras que informaram aatuação de diferentes segmentos junto àscomunidades indígenas, tanto aquelas como o SIL e

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MCD, a FUNAI e o próprio MEC, quanto à atuaçãodas ONGs, dos indigenistas, dos estudiosos datemática e outros setores comprometidos com a lutapela autonomia dos povos indígenas.

(c) Em um outro ponto, uma estrutura deformação que possibilite a formação de um profissio-nal com condições de compreender o caráter histó-rico das relações de dominação entre a sociedadenacional e as sociedades indígenas, contribuindopara a formação crítica das novas gerações indíge-nas (ou não-indígenas).

(d) Um profissional capaz de compreender asparticularidades do processo do trabalho pedagógicoque ocorre nas condições concretas da escola (indí-gena e não-indígena), da educação formal e não-formal, ou seja, das práticas culturais, bem como ascondições de desenvolvimento das crianças, jovense adultos, enfim, um estudioso da educação de seupovo.

(e) Um profissional capaz de compreender adinâmica da realidade atual, identificando os pro-cessos pedagógicos que se desenvolvem na práticasocial e cultural concreta de sua comunidade, utili-zando-se dos conhecimentos próprios de sua cultu-ra e das diferentes áreas do conhecimento ociden-tal para produzir o que se poderia denominar a pe-dagogia indígena, ou as pedagogias indígenas.

(f) Um profissional capaz de equacionar osfundamentos das políticas públicas para a educaçãoindígena, desvelando os interesses das políticas

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integracionistas e colonizadoras sobre os povos indí-genas exercida pelas missões, entidades e órgãosoficiais como FUNAI, bem como os fundamentos dapolítica atual do MEC em relação a elas, intervindonas diferentes instâncias – em nível de sistemasmunicipal, estadual e federal –, com condições depropor, alterar e/ou contrapor políticas educacionais,

pedagógicas e curriculares que eliminem a discri-

minação e a seletividade que hoje impedem o aces-so e o direito à educação.

(g) Um profissional capaz de desenvolver suaautonomia e independência intelectual pelo estudocientífico da educação, da escola e do ensino, cons-truindo a crítica das propostas pedagógicas atuais eapropriando-se de práticas pedagógicas que respon-dam aos interesses da educação e da escola públi-cas, em oposição aos enquadramentos dos PCNs25,Referenciais Curriculares, Diretrizes Curriculares.

(h) Buscar articuladores que garantam a uni-dade teoria/prática no trabalho pedagógico, buscan-do a construção de parâmetros que orientem a to-mada de decisão em relação a um currículo dife-renciado: seleção, organização e seqüência dos con-teúdos curriculares que respeitem e considerem asua cultura como educação.

(i) Vivenciar o trabalho coletivo einterdisciplinar no trabalho pedagógico, partindo dasformas particulares de sua cultura na transmissão/

25 PCN: Parâmetros Curriculares Nacionais. (nota dos orgs.)

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socialização dos conhecimentos, na relação crian-ça-adultos, de forma interrogativa e investigativa,contribuindo para a construção e socialização dossaberes indígenas e conhecimentos no campo daeducação indígena.

(j) Implementar formas de gestão democrá-tica da escola, a partir da apreensão dos sentidosdas práticas solidárias e cooperativas de seu povo,organizando e gerindo, como profissional, a articu-lação dos sujeitos escolares entre si e destes com aprópria comunidade, buscando caminhos paraequacionar os graves problemas do processo deescolarização, tais como o desinteresse, a desistên-cia, o abandono da escola, a repetência por partedas crianças e jovens indígenas.

(k) Assumir o compromisso de transformaras condições atuais da educação de seu povo, bemcomo as condições sociais sobre as quais ela se dá,tendo como norte a participação no processo de cons-trução da sociedade almejada para seu povo e detransformação da sociedade nacional atual.

Em direção a uma política educacional globalde formação do profissional da educação indígena

Nesse sentido, o que temos colocado em ter-mos da formação de professores e profissionais deeducação é a defesa da necessidade de uma políticanacional global de formação de profissionais de edu-cação, que discuta a formação inicial, ou seja, como

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é que você forma os professores, pela universidadeou no nível médio, que discuta a carreira, a condi-ção de trabalho, o salário, e que discuta a formaçãocontinuada, ou seja, uma vez formado o professor,como é que o Estado se responsabiliza pela conti-nuidade dessa formação. Entendemos que educa-ção é um processo em constante transformação, quea própria sociedade constantemente se transformae que, por isto, o educador precisa estar se atuali-zando no processo formativo.

Os educadores têm levantado algumas ques-tões em relação ao financiamento da educação: éimportante que se garanta o financiamento da edu-cação básica e superior pela União, estados e muni-cípios, que deverão disponibilizar, em suas esferas,os recursos necessários para o ensino gratuito dequalidade em todos os níveis, garantindo auniversalização da educação infantil, do Ensino Fun-damental e Médio e a ampliação do ensino públicosuperior. Isto, contrapondo-se às políticas de parce-rias que desobrigam o Estado; não que não se bus-que parcerias e apoio, mas que isto não signifiqueestar desobrigando cada vez mais o Estado, e rele-gando a comunidade cada vez mais a buscar recur-sos financeiros para a manutenção da educação deseus filhos. Na discussão sobre a vinculação admi-nistrativa das escolas indígenas, não tenho muitoselementos para entrar; assim como na questão daformação inicial como educação bilíngüe eintercultural, ou educação indígena através de pro-gramas em centros regionais; acho que essa é umaluta, pelo que eu pude depreender, focalizada em

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alguns centros universitários; a formação contínuacomo direito do professor e obrigação do estado; acarreira e condições de trabalho; concursos públi-cos considerando as características interculturaise bilíngües, e as condições de organização dos pro-fessores indígenas: vide a experiência do COPIAR,curso de magistério indígena – para professores ín-dios, escola de Ensino Fundamental e Médio na co-munidade, e Divisão de Educação Indígena, ondeum índio é o chefe de toda a educação indígena noestado de Roraima.

Nesse sentido, vejo que a luta dos professo-res indígenas pela carreira do magistério indígena,que envolve as condições adequadas de trabalho, deremuneração e isonomia com os professores da redede ensino, faz parte também da definição dessa po-lítica nacional global de formação e profissionalizaçãodo magistério. É nosso entendimento que a recupe-ração da dignidade profissional do professor, com adefinição do Plano de Carreira com piso salarial ejornada de trabalho que favoreça sua permanênciana escola, é indissociável da profissionalização domagistério.

Igualmente, poderíamos definir como partedela a reivindicação pela formação de professoresem regime parcelado, em nível médio ou superior,em períodos de recesso escolar (Prof. EniltonWapixana de Roraima, nos RCN, p. 42).

E aí eu acho importante, os professores in-dígenas devem saber disso, que a gente tem umaluta para tornar a universidade o locus privilegiado

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da formação do profissional da educação. Porque nósachamos que é na universidade onde se produz co-nhecimento sobre a área educacional, sobre as ci-ências da Química, da Física, da Matemática; nãoexiste outro lugar onde se produz esse conhecimen-to, e formação de professores sem estar referenciadana produção de conhecimento também na Química,Física, Matemática, História, Geografia, é uma for-mação baseada em transmissão, não em produçãode conhecimento, e isso, pela nossa experiência, jáfoi demonstrado que não dá certo.

A base comum nacional: instrumento de luta contra adegradação da formação dos professores/profissionais daeducação

E aí eu queria só tomar alguns pontos dabase comum nacional. Nós temos lutado, temosconstruído a base comum nacional, e temos defen-dido, junto ao MEC, em todos os pólos, nas universi-dades, que os nossos cursos de formação contem-plem um conjunto de princípios que, para nós, sãofundamentais. Quais são esses princípios?

O primeiro deles é a formação teórica sólidae de qualidade. Não abrimos mão disto: nós temosque contrapor este princípio a esses cursos que for-mam professores em um ano e meio ou dois anos,ou a distância. Temos que encontrar formas alter-nativas, pois é difícil que o professor tenha acesso,mas é possível encontrar caminhos que não signifi-cam a desqualificação da formação, nem a substi-

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tuição da formação pela certificação. Porque o que oMEC está fazendo hoje é dar um certificado que vocêestá formado em nível superior, mas formado mes-mo você não está; você só tem um diploma.

O diploma não vale nada, não vale nem quan-do a gente faz quatro anos de estudo, nem quandose faz mestrado e doutorado. O Wilmar levantou umponto importante, em um texto dele, que é o conhe-cimento da teoria sobre currículo, e das experiênci-as em nível continental, dos outros povos, sobre cons-trução de currículos indígenas; acho que isto temque fazer parte não só do curriculum de formaçãode professores indígenas, mas do nosso. A gente aca-ba não se debruçando sobre isso porque partimos doprincípio de que os PCN são o currículo “que vale naprática”. É preciso que tenhamos visão crítica dosPCN e que os professores indígenas também saibamcomo foram elaborados. Isso não significa negar, massignifica encontrar o caminho de partida daquelascontradições que estão ali presentes. Então essa éa questão da formação teórica.

Um outro ponto que a gente defende é a uni-dade entre teoria e prática; o curso de formaçãotem que possibilitar a permanência do professor ín-dio nas escolas, pois estes são professores que jáatuam nas escolas indígenas. Então, o curso de for-mação tem que garantir que ele possa continuar noseu trabalho pedagógico concomitantemente ao seucurso de formação. Esta concepção evoca a impor-tância do trabalho, tal como ele se realiza na socie-dade, o trabalho como elemento da formação huma-na, como elemento que nos humaniza e, com todas

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as suas contradições, também nos escraviza, mas éo que possibilita que a gente se construa como su-jeito e como ser humano. O trabalho na sociedadecapitalista sempre tem esse duplo caráter: um ele-mento de exploração e de realização. Nós vamos lu-tar sempre com isso.

A questão da gestão democrática, é impor-tante também que nos currículos se discuta; na for-mação de professores é importante que se dêem osconceitos necessários para que os professores indí-genas possam se tornar diretores, com todas as prá-ticas que eles consideram importantes. Sabemos queessa denominação não é a que vocês querem paraas escolas indígenas: “diretor”, nesse sentido de al-guém burocratizado, nem um supervisor, no sentidode alguém que está controlando a aplicação de umcurriculum, senão para tomar mesmo uma concep-ção de gestão democrática.

A questão do compromisso social desse pro-fissional. Compromisso social de transformação dasociedade, das condições de ensino, articuladas comos movimentos sociais. Portanto o profissional quese articule tanto com sua comunidade como com osmovimentos indígenas, com movimentos de sem-ter-ra, movimentos de luta pela cidadania, e não se iso-le, não se aquartele na sua concepção de escolaexclusivamente. Um trabalho coletivo interdisciplinar;os cursos têm que propiciar, na própria organizaçãodos cursos de formação, que a construção nossa sejacoletiva, articulada com outras áreas. Temos desen-volvido uma concepção do processo de formação, onde

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a construção coletiva do conhecimento, a questãoda pesquisa é fundamental como eixo curricular, per-mitindo formar professores em condições de inves-tigar, por exemplo, as raízes da história indígena.Tentar entender, por exemplo, qual é a raiz da dan-ça do meu povo, da geografia de onde fica a minhacomunidade, da história. É importante que possa-mos formar um professor com condições de conduziruma pesquisa.

Desafios para os educadores e a ANFOPE

Neste momento, nós estamos vivendo a dis-cussão do Plano Nacional de Educação, que está sen-do aprovado pela câmara, e é um plano que vai vigo-rar neste país pelos próximos anos. Então é precisoque nos organizemos e, do ponto de vista da educa-ção indígena, possamos estar definindo a meta paraa educação escolar indígena. Isto exige de nósmobilização e organização.

Então este momento é um momento de luta,para que a gente possa fazer a crítica dessa escola edesse processo atual de formação, tanto da forma-ção dos professores indígenas e não-indígenas; e éai que encontramos elementos de aproximação daluta indígena com a luta da sociedade nacional quenós queremos, que também é uma parte da luta in-dígena. Eu queria, para finalizar, trazer uma fala doprofessor Euclides Pereira, do povo Macuxi deRoraima, que está presente no texto da professora

Rosa Helena:

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Estamos hoje, de uma certa forma, obrigados aassumir para nós aquilo que não é nosso, quenão faz parte da nossa cultura. São costumesdesta sociedade que invade as nossas malocas,e a gente, sem perceber, vai absorvendo essa si-tuação e prejudica nossa cultura. Essa situação,de certa forma triste, em que se busca, através daeducação, uma possível saída para os problemas.Às vezes eu vejo que a escola pode ser o caminhopra mudar essa mentalidade. A partir do momen-to que se trabalha com crianças. Eu acredito quenossa forma de viver, a nossa forma de ver o mun-do tem que ser preservada, porque essa vida des-sa sociedade não é mais admitida por ela mes-ma. Porque você já pensou? Crianças abandona-das, mulheres prostituídas... Eu acredito que nósnão somos obrigados a entrar nesse sistema paramatar nossa cultura, nossa dança, nosso canto, orespeito que nós temos pelas pessoas. Para ondenosso povo vai caminhar? Aonde nós queremoschegar?

Esta parece ser uma indagação que nós, bran-cos ou não-índios, também devemos nos fazer. Paraonde nosso povo vai caminhar? Aonde nós queremos

chegar?

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A formação do professor indígena no Brasil hoje

Susana Grillo Guimarães26

A mudança nos parâmetros legais no Brasil,deixando a política integracionista e trazendo aohorizonte um outro embasamento legal para orelacionamento com as sociedades indígenas,também trouxe uma mudança muito grande nasinstituições. Até 91, temos na FUNAI uma instituiçãoresponsável pelo funcionamento das escolasindígenas; é claro que ela não fazia isto sozinha,pois existiam convênios com instituições religiosas,mas a FUNAI tinha exclusividade para oferecereducação escolar para as sociedades indígenas.

Em 1991 houve uma mudança importanteneste quadro, quando o MEC passou a coordenar asações referentes à educação escolar indígena; dentrode suas atribuições está normatizar, e as secretariasde educação passam a ser responsáveis pelaexecução da política do MEC. O MEC cumpriu essepapel de normatizar e definiu como prioridade parauma política pública a questão da formação dosprofessores indígenas e a publicação de materialdidático. Nesse momento a FUNAI teve também queredefinir seu papel institucional; tentamos colocarcomo uma atribuição nossa, além de ser parceiros e

26 Sociolingüista. Diretora do Departamento de Educação da FUNAI,Brasília, à época da realização do 12º COLE.

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colaboradores em vários cursos de formação ecapacitação de professores indígenas (a FUNAIparticipa com aporte de recursos financeiros outécnicos em mais de 27 projetos de formação oucapacitação), fazer a avaliação desses projetosconforme os princípios que foram definidos para aeducação escolar indígena; acompanhar, fazer umaavaliação dos projetos, do impacto e do benefício queeles trazem às comunidades a que eles se destinam.

Um ponto que ressalto é que a FUNAI nãotem condições institucionais de que essa avaliaçãoseja um programa do Departamento de Educação. AFUNAI já deveria ter se adequado a esses novosparâmetros legais, à nova política indigenista que ogoverno traçou em termos legais, mas já passou otempo da gente ter se adequado a isso, e nós nãotemos condições institucionais de fazer disso umprograma; é mais uma intenção de desempenhareste papel.

Então um pouco da minha fala é um exercícionesse sentido, de ver o que nós podemos fazer paracontribuir para a avaliação desses cursos que vêmsendo executados em todos os estados. Num primeiromomento tivemos uma tendência de saber como essapolítica pública de formação estava sendo executada;tínhamos a preocupação de saber qual secretariaainda não tinha definido o projeto, qual secretariaestava fazendo um levantamento da demanda porformação e capacitação, se todos os professoresestavam sendo incluídos em algum programa. Apreocupação era em saber quem estava executandoessa política pública de formação dos professores.

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Hoje existem muitos projetos de formaçãode professores; agora o momento não é mais de sepreocupar em saber quem está executando, quantosprojetos são, quem não está fazendo ainda, quantosprofessores estão sendo abrangidos. A questão agoraé de avaliar um pouco mais a qualidade dessescursos, e o impacto que eles estão tendo.

Então minha fala é um exercício de avaliação,e tem a intenção de colocar alguns pontos que têmnos preocupado muito nesse sentido. Sãopreocupações generalizadas.

Uma primeira questão é que, quando o MECfez a definição dos princípios da educação escolarindígena, ele não inventou a roda. O MEC seapropriou de determinados conceitos e princípios queforam gerados ao longo da história e, principalmente,que tiveram grande aporte a partir dos anos 70,quando organizações de apoio às comunidadesindígenas passam a atuar. Isto foi gerando umamassa de conceitos e de encaminhamentos que oMEC, quando em 1993 lança as diretrizes, ficaramdefinidas como a interculturalidade, a diferenciação,

a especificidade e o bilingüismo.

Houve um processo de construção dessascategorias, e acho que hoje temos que passar porum processo de desconstrução, pois notamos umproblema, é que, se formos avaliar o que quer dizerinterculturalidade, diferenciação, especificidade emesmo bilingüismo, que é uma questão maisespecífica, elas são categorias absolutamente vaziasde conteúdo. Estas categorias vão se preencher no

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conhecimento específico de uma dada sociedadeindígena. Então se essas categorias foramconstruídas a partir de propostas de trabalho numacerta comunidade indígena, hoje elas correm o riscode se tornar chavões, chavões muito manipuláveispelos agentes de governo. Uma coisa que aprofessora Helena tocou é uma oposição entreprojetos contextualizados e formação de professores.Ao longo do movimento por uma educação escolarque não fosse uma dominação cultural ou querevertesse esse processo, nós tínhamos diferentesprojetos que eram absolutamente contextualizados.Então, para tomar um caso que todos conheceramnuma fala aqui ontem, e não cometer a injustiça dedeixar de citar um ou outro destes projetos, cito ocaso do Tapirapé. Vocês viram que é uma experiênciade mais de 25 anos, que foi perfeitamentecontextualizada em cima da questão da luta pelaterra. A experiência no Acre é outra experiênciareferencial que está trilhando o mesmo caminho.Foram projetos de educação absolutamentecontextualizados na situação sociocultural e políticade sociedades específicas.

A partir do momento em que a formação deprofessores se tornou uma política pública, essacontextualização vem se anulando ao longo do tempo.O que nós tínhamos no começo como projetoscontextualizados hoje foram reduzidos a projetos deformação de professores indígenas.

Por isso eu acho esta uma questãocomplicada de avaliar, porque houve uma reduçãomuito grande nisso. Como começou tudo nos

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Tapirapé? Começou com uma problemática ligada àterra, com adultos discutindo a questão do alcanceque o processo educativo poderia ter para ofortalecimento do povo. Hoje as propostas de cursosestão reduzidas à formação de professores indígenas.Esse é um ponto que eu acho bastante sério de setratar; a idéia de se resgatar um pouco esse trabalhominucioso de conhecimento de uma realidadeindígena, que não sei até que ponto agentes dogoverno podem fazer. A gente parte do princípio deque o governo age sob a égide da homogeneização.Desde as secretarias, MEC, FUNAI, partem doprincípio da homogeneização cultural.

Então nós estamos de novo homogeneizandoquando se coloca que a prioridade é a formação dosprofessores. Mas em cima de que contexto?

Os cursos são colocados sem essacontextualização. Será que em alguns casos é mesmoa formação ou capacitação de professores que énecessária? Será que não é outro tipo de projeto?Estamos vendo esse problema. Quando se define umprojeto de formação de professores, é muito maispara cumprir uma exigência da LDB, que dá um prazocurtíssimo para que todos os professores tenham umahabilitação, do que realmente para se dedicar apensar em que aspecto uma educação escolar podefortalecer um povo, a dar melhores condições derelacionamento deles com a nossa sociedade. Euacho que essa questão é importante. Essascategorias da educação indígena, interculturalidade,diferenciação, especificidade, elas só vão sepreencher quando você souber qual é contexto

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específico e as demandas específicas que umasociedade específica coloca para a questão da escola.Quando a gente conhecer qual é a demanda queaquela comunidade tem com relação à educaçãoescolar, aí você vai começar a preencher aquelascategorias da interculturalidade, da diferenciaçãoe da especificidade. Elas são categoriasabsolutamente vazias de sentido, e cada povo vaiconstruir essas categorias, os agentes vão construirem cima do conhecimento específico de cadacomunidade indígena. Senão essas categorias vãose tornando chavões, estão sendo simplificadasdemais; em vários lugares a questão da diferenciaçãoe da especificidade está se reduzindo simplesmenteao fato de se falar uma língua indígena na escola.

Outro lado disso é quando se interpreta quesociedades indígenas que perderam o uso de sualíngua não precisam de ensino diferenciadoespecífico, porque não têm sua língua. É umarealidade que temos encontrado muito,principalmente no Nordeste, com povos que perderamo uso de sua língua.

O bilingüismo é uma outra dessascategorias, que continua sendo tratada numaindiferenciação muito grande. As pessoas falam debilingüismo como se estivessem tratando dobilingüismo dos anos 70. Em vários casos, inclusive,não se faz diferenciação entre monitor bilíngüe eprofessor indígena; parece que se está falando damesma coisa. O bilingüismo é tratado em váriosprojetos com uma indiferenciação muito grande:bilingüismo é quando você fala duas línguas, e só

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isso. Temos sentido muita falta de abordagensteóricas deste tema nos cursos. Falta uma formaçãoteórica para que os professores indígenas tomemsuas próprias decisões. As propostas muitas vezesse tornam receitas de bolo e o professor não temsubsídios para ele mesmo tomar suas decisõespedagógicas.

Uma carência que eu acho gravíssima é ade uma abordagem sociolingüística; dos professoresterem contato com os conceitos e diagnosticarem asituação dos usos lingüísticos nas suas comunidades:como é que ocorre, que tipo de substituição lingüísticahouve, se está havendo perda lingüística, como semanifesta, e isto varia muito de sociedade parasociedade. A ausência de uma abordagemsociolingüística é muito grave em sociedades queperderam o uso da sua língua. No Nordeste há umadiscussão terrível de professores e liderançasindígenas preocupados por recuperar o uso da línguaque foi perdida já no século passado. Essas pessoasnão se dão conta de que isso pode ser mais umaspecto da nossa dominação cultural, no sentido deque só se aceita a identidade étnica se tiver a línguaindígena; é uma renovação da dominação. Há umaangústia por recuperar essas línguas e ninguém sepreocupa em fornecer um instrumental para oentendimento político disso: que processo históricoaconteceu para que os povos indígenas deixem defalar a sua língua? Parece que os povos optaram pordeixar de falar sua língua. Houve processosviolentíssimos e os professores não estão tendoacesso ao instrumental que os faça entender como

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se deu esse processo, e entram em viagens derecuperar o uso de sua língua com listas de 180palavras recolhidas no século passado. Um povo quese posicionou contra essa história são os Potiguara;fora estes e os Fulniô, que conservam a língua, estãotodos no Nordeste direcionados para o resgate dalíngua.

Eu estive num encontro de professoresindígenas de escolas do Nordeste; uma liderança,chefe de ritual, colocava que eles perderam a língua,que têm que resgatar a língua ancestral, e ele, aofalar sobre o toré, contou sobre o processo da bebidade caju que acompanha o ritual; nessa explicaçãoele listou sete palavras para cada etapa dafermentação da bebida de caju, e em que momentocada uma dessas etapas estão presentes narealização do toré. Essas sete palavras sãoabsolutamente desconhecidas por mim; não são partedo português nosso. Esta era então uma situaçãoengraçada, em que ele falava sobre uma línguaancestral perdida, enquanto ele estava ali falandouma variedade do português que não é a nossa, éprópria dos Tremembé do Ceará.

Então está faltando um aporte teórico dasociolingüística para que eles vejam que o portuguêsque eles estão falando pode ser considerado umavariedade étnica do português. Enquanto eles ficamfalando em recuperar palavras ancestrais que estãomortas, eles estão numa realidade em que alinguagem revela o ambiente sociocultural em queestão imersos. É o caso então de proporcionar

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conhecimentos para que eles vejam que houveprocessos históricos de dominação cultural queacarretaram a perda da língua, mas ao mesmo tempoque o português falado por esse povo é uma variedadeétnica.

A questão sociolingüística também éimportante para os povos que falam suas línguasoriginais, para o professor diagnosticar a situaçãodos usos lingüísticos da sua comunidade, que agorasofrem uma nova pressão de perda de uso em vistadas novas tecnologias, as antenas parabólicas, queestão bem presentes nas comunidades indígenas.Então tem que haver um aporte teórico para fazerfrente a isso; definir projetos; e aí é que vem aquestão do projeto contextualizado: aí que você vaidefinir o projeto, como Eunice mostrou, de criarpalavras para novas realidades ou de recuperarpalavras que não estão sendo mais empregadas; aíestá a validade da proposta do dicionário monolíngüeque a Eunice colocou ontem.

Essas coisas só são possíveis se você temuma reflexão conjunta, uma articulação, um diálogocom essas sociedades e ver o que se pode encaminharpara melhorar a educação indígena nessassociedades e o que deve ser feito especificamentepara cada realidade. A gente vê com preocupação aredução que ocorre nos projetos voltados somente àformação do professor que não tem um conhecimentomaior da sociedade e da demanda específica queela queira fazer com relação à educação escolar.Tanto que vários projetos já começam com a propostacurricular do magistério pronta.

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Enquanto nós tivemos, ao longo da história,o projeto do Acre, por exemplo, que foi construir emtermos documentais o currículo, 15 ou 20 anosdepois; o do Tapirapé também levou esse tempo;hoje nós temos antes a proposta curricular daformação do professor do que os próprios cursos deformação; quando começa o curso já está pronto odocumento da proposta curricular da formação domagistério.

No Acre a proposta curricular foi tratadacomo documento 15 anos depois do curso já estarsendo executado, e agora é que está tomando formaa proposta curricular das escolas. Nós temos umainversão tanto no lado que antecede ao conhecimentoespecífico da sociedade (você já vem com o formatoda proposta curricular da formação do magistério),quanto com relação aos currículos das escolasindígenas, pois está havendo uma corrida louca pordefinir as propostas curriculares rapidamente pararesponder às pressões feitas pelas secretariasmunicipais de educação, que é outra loucuraacontecendo por aí também.

Outra coisa que os cursos estão fazendo,como são cursos que foram construídos, a maioriadeles, em termos genéricos, como eles sãoconstruídos sem um conhecimento maior dasociedade e um diálogo maior com suas liderançase com seus professores sobre projetos pedagógicos,e por não contemplarem uma questão deacompanhamento do professor na sua prática emsala de aula, está havendo um divórcio muito grandeentre o que acontece nas etapas dos cursos e o que

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acontece na sala de aula com o professor.

Vários professores têm comentado que o querola lá no curso só dá para fazer lá no curso, naescola da aldeia não dá para fazer não; como vocênão conhece a situação específica da comunidade enão define o rumo do projeto pedagógico, estas coisasvão aprofundando e vão dar em problemas sérios.Então vários professores indígenas dizem que o cursoé bom, mas que o que dizem lá, só funciona lá; naescola não funciona.

Outra coisa que vemos nesses cursos é quea questão da educação diferenciada parece que éuma coisa que nós sempre fizemos, nós quer dizeros agentes de governo. Parece que a educação numcontexto de multiculturalismo e diversidadesociocultural é uma coisa em que somosespecialistas, e é comum este tipo de abordagem. Otécnico da FUNAI ou de secretaria de educação falanisto como se fosse uma coisa muito fácil de se fazer,e tivéssemos tradição nisso. Não temos. A nossahistória de educação tem uma históriahomogeneizadora, é uma história de apagamento dediversidade cultural. Então está havendo uma faltade formação de técnicos e de formadores nessescontextos. Educação em contexto multicultural nãoé a nossa tradição. Nós não sabemos fazer isso.Estamos muito mais aprendendo, agora que temos ainjunção de uma política indigenista de favorecer amanutenção da diversidade, estamos aprendendo afazer isto, mas não é nossa tradição. Então estáfaltando formação, as faculdades de educação têmque abrir disciplinas de multiculturalismo na

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educação, porque nós não temos pessoas formadasnesse campo. A questão da interculturalidade estásendo muito simplificada e reduzida. No curso deformação, se dançou um toré já é intercultural ocurso; se fez um desenho ou há um texto feito pelosprofessores, já se está dando voz. A coisa é muitomais complexa; tem que haver um programa grande,as universidades têm que entrar, as faculdades depedagogia têm que criar disciplinas demulticulturalismo, pois nós não temos técnicos epessoas trabalhando com isso.

Então a questão da interculturalidade e domulticulturalismo tem arremedos; em muitos casosé arremedo o que se faz, e reificando a culturaindígena: cultura é aquilo que você tem. Isto acontecemuito no Nordeste. Se não aparecer de colar, cocare tanga de palha, então não é índio mais. É umapermanência da dominação cultural violenta sobreeles. Se eles não aparecerem nesses cursos ou naFUNAI em Brasília de cocar de penas e dançandocom chocalho não são mais índios e não vão imporos seus interesses, as suas demandas. Tem quehaver um pouco de cuidado nisso.

Por isso é tão necessária a formação detécnicos, pois não temos tradição de executarprogramas no contexto do multiculturalismo, esimplificamos muito a questão. Então isso faz aspessoas crerem que educação diferenciada, educaçãoindígena é uma coisa simples de você conseguir,basta falar que ela brota, tem geração espontânea.Nos cursos não há uma preocupação em que os

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professores ganhem um instrumental teórico paraeles fazerem uma análise da história da educaçãoescolar em suas comunidades.

Tem muitos cursos em que eu sinto que osprofessores ficam em posição de defesa: queeducação diferenciada é essa? Passaram anosdebaixo da dominação da escola homogeneizadora,de repente, em vez de dizer por que é que mudou,você entra com o papo da educação diferenciada. Láno Nordeste eles questionam: que história é essade educação diferenciada? Onde que você viuexistindo isso? Então acham que essa educação é aeducação do professor com uma formação menor, eque a escola não vai ser eficiente, não vai responderao que a comunidade quer. O que a gente acha éque muda o discurso, muda a política e não se debateisso. Então acho que faz parte da formação dosprofessores eles ganharem o instrumental paraanalisar a história da escola na sua própriasociedade; como começou, qual foi a frente decontato, que tipo de escola, sob a égide de que tipode instituição (religiosa, militar, do Estado etc.), oque é que isso trouxe para a escola, porque a maioriados professores que estão sendo formados hoje seescolarizou nesse modelo de escola. Então fica umacoisa estranha, pois o professor pensa: pois, se deucerto comigo, por que é que agora tenho que mudara minha prática; eu me alfabetizei, sou leitor, souescritor, por que é que tenho que mudar a minhaprática? O que está faltando é um reporte críticocom relação a isso. Não se trabalha essa questãocom os professores. Têm que fazer uma história

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crítica da escola: como a escola começou? Como elaestá hoje? Ela responde ao que a comunidade esperadela? O que vamos mudar, se não responde? O quese faz para que a escola passe a responder a essasnecessidades? Vamos preencher melhor essascategorias: escola diferenciada é uma escola quepreenche uma demanda que uma comunidadeespecífica tem em relação a uma instituição. Aí elavai se construir para a responder essa demanda;senão ela não é diferenciada.

Outra questão que me preocupa muito, paraacabar, é a naturalização com que estamos tratandoa questão da escrita. Se a gente fala eminterculturalidade, é meio complicado não colocara questão da relação da escrita com a oralidade.Tem um lado que conhecemos: os povos indígenasquerem dominar a escrita e a leitura para se impormelhor na nossa sociedade, para não seremdiscriminados etc. Eles querem dominar um produtocultural nosso para trafegar melhor por aqui. Ao ladodessa questão tem a questão de que esse produtocultural apaga o outro, que é a oralidade. E aoralidade, até onde a gente sabe, é o que vem dandosustentação, manutenção e reprodução dessassociedades até hoje. O uso da escrita nas sociedadesindígenas ainda é muito reduzido. Está havendo umanaturalização muito grande em relação a esseproduto cultural da sociedade dominante que é aescrita.

Eu não estou dizendo que a escrita não temvalor. Estou dizendo que ela tem que ser tratada nocontexto de uma sociedade que tem outro

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mecanismo de reprodução cultural, que é aoralidade. Isso está sendo anulado. A gente impõe aescrita e os professores índios exigem a escrita, semque a gente tenha dominado o mecanismo daoralidade, que é um produto cultural específico, comresultados culturais específicos. A gente não temesse quadro, e, por não haver essainterculturalidade, você entra com um produtocultural e vai anulando o outro. Estes cursos têmque se colocar a questão da apropriação da escritamais a questão da oralidade, que tem sustentado areprodução sociocultural dessas sociedades até hoje.

Nesse ponto a escrita pode ser um projetoconservador. Nós não estamos vendo que isto sejadiscutido nos cursos, de projetos de escritacontextualizados a cada povo; a questão do que éque cada povo quer ver publicado na sua língua etc.Essa discussão em geral passa batida. Então, oprojeto de escrita acaba se tornando uma coisaconservadora, porque passa pelas decisões do não-índio. Se nós já vivemos sob a égide de cartilhas, depublicações de cunho religioso, hoje são outrashistórias que não são decididas junto com ascomunidades. É claro que o professor indígenaprecisa de material de apoio para sua práticapedagógica, mas é só isso que nós vamos publicar?Porque aí você vai dar um uso muito restrito à línguaindígena: nas cartilhas e no material pedagógico/didático da escola. Têm sido produzidos materiaismuito importantes; mas é só isso que vai publicarem língua indígena? Que outros projetos essesprofessores em programas de formação continuadapoderiam desenvolver? Produzir biografias de grandes

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lideranças, jornais, coisas pequenas que circulassemmais pelas comunidades; vídeos, outros tipos deprodução ou de vídeo que relatassem histórias docontato, de resistência. A questão da publicação, sejaem português, seja na língua indígena, está muitolimitada, voltada exclusivamente para questõespedagógicas. Se reduz a isto, quando deveria haverdiscussão com o professor sobre o letramento: quefunção a escrita vai ter para determinada sociedade?Ela vai ter a função de revitalizar o uso? Então vamospublicar alguma coisa; vamos definir com osprofessores uma publicação nessa linha, mas o quê?Histórias do contato, biografias, jornais, o que vaiser?

Essa discussão não está existindo; há umatradição que a gente segue: é cartilha, é materialdidático,... que está sendo publicado. É publicado eé um resultado, mas não tem circulação, não temdiscussão. Teve projeto que publicou pilhas de jornais;meses depois as pilhas continuavam lá, não tiveramcirculação. Então essas questões devem estarcontextualizadas: a formação de professores e aspublicações têm que estar contextualizadas para agente não estar fazendo um arremedo de educaçãointercultural.

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Professores Kaingang de Inhacorá (RS):uma experiência de formação

Juracilda Veiga27

Os Kaingang são atualmente um dos maiorespovos indígenas no Brasil, com cerca de 22 milpessoas, concentradas nos estados de São Paulo,Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Até ofinal do século XIX, ocupavam também uma parteda região de Misiones, na Argentina.

Nossa primeira aproximação com os Kaingangde Inhacorá (município de São Valério do Sul, RS)surgiu por uma pesquisa histórica de WilmarD’Angelis, que o levou a intuir que os Kaingang deMissiones, na Argentina, não teriam simplesmente“desaparecido” mas, em grande parte, migrado parao Brasil: a migração mais recente dirigida à regiãode Palmas e Xapecó, e a mais antiga, por volta de1865, transposto o rio Uruguai e se radicado no RioGrande do Sul.28 Em 1996, fomos convidados pelaSecretaria de Educação do Estado do Rio Grande doSul para assessorar cursos de capacitação para pro-

27 Antropóloga e indigenista. Coordenadora do Núcleo de Cultura eEducação Indígena da ALB. Bolsista FAPESP, Processo 95/03690-8(de 1996 a 2000).

28 Resultados dessa investigação foram apresentados no XII EncontroRegional de História, da ANPUH, na Unicamp, em setembro de 1994,e no V Encontro de Cientistas Sociais, na Unoesc, em Maio de 1997.

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fessores das escolas indígenas naquele estado, etivemos oportunidade de conhecer os professores in-dígenas de Inhacorá. Confrontados com aquela hi-pótese histórica, lembraram relatos da tradição oralde sua comunidade que se encaixavam nela. Visi-tando Inhacorá pela primeira vez, ainda em 1996,recolhemos depoimentos dos mais velhos que con-firmaram a pesquisa bibliográfica.

No ano seguinte, iniciei minhas pesquisasde campo naquela comunidade, como parte do meuDoutorado, e passei a participar diretamente da dis-cussão sobre o trabalho na escola.

A comunidade de Inhacorá reúne caracte-rísticas muito peculiares: é uma comunidade pe-quena, com aproximadamente 800 habitantes e cer-ca de 200 alunos, de pré-escola à 4ª série do Pri-meiro Grau, sendo que as crianças, ao ingressaremna escola, são monolíngües em Kaingang. Em 1996,seis professores Kaingang desta comunidade com-pletaram seu curso de Magistério. Possuíam, por-tanto, 8 professores Kaingang bilíngües, o que, nocontexto dos povos indígenas do Sul do Brasil, é umprivilégio. Apesar disso, os professores experimen-tavam muita dificuldade em alfabetizar os alunosna própria língua e estavam repetindo sua própriaexperiência: alfabetizar em português, utilizando oKaingang como língua de instrução. Logicamente,as dificuldades das crianças eram inúmeras e o de-salento dos professores também.

No final de 1997 eles decidiram convidar-nos (a Wilmar D’Angelis e a mim) para assessorar a

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escola indígena daquela comunidade. Consideramosque esta seria uma importante oportunidade parapodermos colocar em prática, de modo eficaz, muitasdas idéias que vínhamos defendendo e expondo emencontros mais gerais de professores indígenas eindigenistas. Discutiu-se muito o processo debilingüísmo de transição introduzido entre osKaingang, no qual se inicia a alfabetização em línguaindígena apenas porque as crianças não falam oportuguês, mas onde o objetivo não é o da valorizaçãoda língua e sua permanência, senão a transição, omais rápido possível, ao português.

Percebe-se que, para valorizar a línguaindígena, não basta apenas alfabetizar em línguamaterna, mas dar à língua indígena um lugar deprestígio. Se todos os conhecimentos novos einteressantes só podem ser acessados através dalíngua portuguesa, faz-se um discurso implícito,mas muito eficaz, de que a língua indígena temutilidade apenas dentro da aldeia e no contextodoméstico; para todas as demais atividadesnecessita-se do português. É por esse motivo que ospais indígenas exigem, muitas vezes, que osprofessores ensinem diretamente em português, semtomar em consideração os prejuízos imediatos dascrianças e o prejuízo futuro, de todo povo Kaingang,que gradativamente vai deixando de usar sua língua,em contextos significativos de sua vida, acarretadoem muitas áreas indígenas a perda lingüística.

Tentamos fazer com que os professorescompreendessem que sua missão como educadoresé ajudar as crianças a aprender, partindo da

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experiência do seu universo conhecido. Embora sendopequenas ao chegarem à escola, as crianças jápossuem uma experiência de mundo, e é dela quese deve partir para construir o conhecimento daleitura e da escrita. Alfabetizar na língua maternanão é um modismo, mas uma necessidade. A criançasó pode expressar sua experiência na própria línguae nesse aspecto o trabalho com a expressão oralprecede a escrita e sua compreensão, por isso omaterial didático a ser produzido deve provocar aimaginação da criança para que ela expresse seuconhecimento, sua compreensão da realidade quevive. Essa compreensão é sempre uma aproximação,que deve ser mais nítida e perfeita a cada etapavencida. Apenas depois que a criança tenhacompletado sua transição da casa para a escola esinta-se segura em expressar-se em Kaingangoralmente e por escrito; isto é, esteja plenamentealfabetizada, é que ela deve ser introduzida naescrita da língua portuguesa, como segunda língua.

Por isso, se coloca a necessidade do uso dalíngua indígena em todos os contextos deaprendizagem e não só “em aulas de línguaindígena”, onde a língua materna é ensinada comose fosse uma língua estrangeira e, muitas vezes,nem isso. No caso do Inhacorá, isso se configuracomo impossível, porque as crianças não entendemo português mas, passando para a 2ª série, isto é,sem mesmo ter completado sua alfabetização, acriança é transferida para a sala de uma professoranão-indígena, que só pode ensinar em português.Isso ocorre em muitas áreas devido à falta de um

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maior número de professores indígenas, mas comvisível prejuízo para as crianças.

Mesmo conscientes disso, sabemos que osproblemas não podem ser resolvidos todos de umavez, por isso nos detivemos a discutir a importânciade que ao menos a alfabetização fosse feitaintegralmente em língua materna, considerando-sea pré-escola, primeira e segunda séries, como otempo mínimo de alfabetização. Somente a partirda terceira série a criança começaria a serintroduzida no uso da língua portuguesa, comosegunda língua.

No contexto de evidenciar que todos osassuntos podem ser tratados e escritos em línguaindígena, criou-se, com os professores, termos emlíngua Kaingang, inclusive para os comandos decomputador, nos quais eles passaram a ser iniciados.Procurando responder à necessidade deinstrumentos eficazes de valorização da línguaKaingang, produziram em computador um primeirojornal em sua língua, o Jorvi. Jorvi é um passarinhoao qual os Kaingang atribuem a capacidade decomunicar-se com as pessoas por meio do canto,comunicando aos Kaingang fatos que aconteceramou vão acontecer.

Perspectiva histórica

O interesse dos professores e da comunidadesobre os registros da sua história tornou-sefundamental no processo de pesquisa e de

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compreensão do que poderia vir a ser uma escolaadequada para aquela comunidade. Juntos,passamos a investigar a origem da área indígena deInhacorá e eles passaram a inserir a história contadapelos seus pais e avós na história recolhida por nós,nos arquivos históricos. Estabelecer a relação entrea história escrita e a história que está na memóriae na percepção dos antigos Kaingang vempossibilitando aos professores indígenas acompreensão política do contexto onde vivem e dosinteresses que incluíram ou excluíram as populaçõesindígenas dos processos de formação da sociedaderegional, da qual são parte. A história regional estápresente nos relatos orais das comunidadesindígenas a partir de suas lembranças e dos seusengajamentos na construção das estradas, na“pacificação” de outros grupos indígenas hostis aogoverno, bem como na sua participação nas guerrasprovinciais ou internacionais, como a guerra doParaguai. A escola pode ajudá-los a relacionar essashistórias familiares com o contexto político nacional,naquele momento.

Essa é a leitura do mundo que, nas palavrasde Paulo Freire, precede a leitura das palavras.

Trabalhamos com eles a necessidade dedesenvolver tanto a sua postura de professor, quantoa de educador. Consideramos que o educador deveconter o professor, mas o papel do educadortranscende o de professor, sendo mais amplo eestando vinculado ao compromisso com a sociedadea qual pertencem. Os educadores sempre existiram

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em todas as sociedades, portanto também nasociedade Kaingang . Os educadores são aquelesresponsáveis pela formação do povo (Kaingang): afamília, com destaque para os mais velhos,detentores do conhecimento, suas autoridadesconstituídas e os jovens, que ocupam a posição deprofessores.

O professor indígena é alguém que deve estarpreparado para introduzir as gerações mais novasno conhecimento de técnicas e saberes de maneiraformal, mas ele não pode prescindir de ser tambémum educador. E, para ser um educador Kaingang, énecessário observar os valores da sua cultura, paraque os ensinamentos da escola não entrem emcontradição com a cultura indígena.

O jovem indígena, para se tornar umprofessor, é obrigado a penetrar profundamente nosconceitos e exigências da sociedade brasileira,completando no mínimo a 8a série e, muitas vezes,os que chegam a atingir essa condição foramobrigados a abdicar do uso da língua e a abandonarpráticas sociais fundamentais para as suascomunidades. O que significa que, como professorindígena, deve fazer o caminho de volta redescobrindo

práticas importantes para a sua comunidade.

Perspectiva lingüística

Esse trabalho com os professoresindígenas se volta, portanto, para a perspectiva de

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construir um projeto pedagógico com a suacomunidade. Aposta na perspectiva de construir omaterial didático da escola com os professoresenvolvidos nos processo de ensino-aprendizagem.Percebeu-se que um problema criado pela escritaKaingang foi a uniformização a partir do dialetoKaingang da região central do Paraná. E, a partirdisso, se passou a considerar que a maneira“correta” do Kaingang era aquela que estava escrita,mesmo não sendo o dialeto falado pela comunidadelocal. Isso acarretou um problema a mais para ascrianças. Consideramos necessário trabalhar naformação teórica dos professores e, a partir disso,construir com eles o material didático adequado,de acordo com os conceitos estudados, para que elessaibam por que estão utilizando aqueles recursos.

Nesse processo, construímos um primeiromaterial experimental, que estava baseado noseguinte roteiro de nossa primeira atividade deformação:

I. Alfabetização (introdução, idéias gerais efundamentais)

1) Avaliação da própria experiência: comofizemos em 97 e o que aprendemos (acertos e erros)

2) As experiências e conhecimentos dosoutros

II. A escrita (introdução, idéias gerais efundamentais)

1) A língua Kaingang e a escrita (incluindo:fonética e alfabeto)

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2) A língua Kaingang e a escola (incluindo:bilingüísmo e pré-escola)

III Como faremos a alfabetização em 98

1) Língua da alfabetização

2) Cartilhas, material (tipo de) letra, temas

3) Seqüência de dificuldades

IV. Como serão as 2ªs séries?

V. Outros temas

Uma conclusão comum, ao tratarmos doponto III.2, ou seja, do material para alfabetizaçãoem língua indígena, foi quanto à necessidade dedefinirem juntos “palavras geradoras’, construindoum conjunto de termos Kaingang, adequado àstarefas de alfabetização, seja do ponto de vistalingüístico (conjunto de letras do alfabeto, restriçõesfonotáticas, etc, seja do ponto de vista pedagógico(adequação às práticas e conhecimentos culturaisdo grupo, à psicologia do aluno etc) e político(interesses e preocupações da comunidade,valorização da identidade e das práticas culturaisindígenas). Essa tarefa, iniciada em grupos e, depois,completada pelo conjunto dos professores, resultouem uma listagem com 149 palavras Kaingang, dasquais foram selecionadas 30, para cujo empregoforam também relacionadas diversas sugestões deatividades construídas coletivamente. A propostaconcluída do material de apoio para a área dealfabetização em Kaingang incluiu a produção de umjogo de cartazes, acompanhado de ilustraçãocorrespondente, em parte produzidas a partir de

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fotos colecionadas durante meu trabalho de campo,e um manual de apoio para o professor, comsugestões de como explorar os temas. Esse materialvem sendo testado nos últimos 2 anos pelosprofessores, sendo alguns temas substituídos nesseperíodo, por outros mais adequados. Ele se opõe àidéia de cartilhas, que são materiais uniformes epermanentes e muitas vezes dispendiosos. Essaprática implica, por um lado, na confecção dematerial único e de acordo com aquela realidadeonde o professor trabalha e; por outro lado, exige aintervenção ativa do professor na sua realidade aopensá-la, concebê-la e produzir o material para asua turma. É nesse esforço da preparação de suasaulas e do seu material de trabalho que o professorindígena se constitui professor no exercício de sua

atividade criadora.

Perspectiva antropológica

Em seu curso de Magistério, os professoresdescobriram a necessidade de serem tambémpesquisadores da sua realidade e puderamaprofundar a experiência nas pesquisas e entrevistasque fizemos juntos, com as pessoas da comunidadeque possuíam uma grande experiência de vida eeram bons contadores de história. Eles foram meusintérpretes e tradutores na entrevistas com os maisvelhos e importantes debatedores das descobertasculturais que fazíamos com eles. Creio que pudemosconstruir juntos alguma idéia do que vem a ser um

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professor pesquisador da própria cultura. Essaprática modificou a imagem de que os jovens, porterem tido acesso à escola, são os que sabem, sendoos conhecimentos dos antigos “coisas do tempo quea gente estava no mato”, para passar a uma atitudede admiração dos conhecimentos do seu povo e dapossibilidade desse conhecimento ser enriquecido apartir da escrita. Fomos descobrindo juntos o quepoderia ser relevante tematizar na escola.

Nosso objetivo como educadores não énecessariamente encontrar a solução, mas fazerpensar aos nossos educandos, acreditando queaquele que tem o problema, tem também a solução.Os povos antigos tinham tempo para pensar, para seindagar e para ser curiosos diante da vida. A vidamoderna, facilitando uma série de soluções docotidiano, nos acomoda e nos impede uma série deexperiências que foram importantes para as geraçõesantigas.

Como educadores, sabemos que são osdesafios que nos constituem como seres humanos Éa nossa capacidade de pensar e de enfrentar osdesafios de nossa vida que produz a cultura.

Paulo Freire foi o primeiro educador a utilizarna sua pedagogia o conceito antropológico de cultura.Cultura não é apenas erudição, ou limita-se ao queestá escrito, mas sim o conhecimento que os homensadquirem na sua relação com o mundo que o cerca,incluindo o mundo natural, os seres humanos e osoutros seres, que não chamarei de sobrenatural, porser essa uma categoria que não corresponde

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àquelas do pensamento indígena. O que caracterizao ser humano é a cultura, ou, nas palavras de PauloFreire, a capacidade de transcender. A culturaancestral é a matéria-prima para construir o projetode futuro. Esse projeto de Escola deve ser adequadoàs necessidades culturais do povo a quem serve, àssuas aspirações do que deve ser um ser humanoadulto. Chamou-me a atenção a maneira como acriança é pensada pelos Bakairi, segundo a exposiçãofeita por Darlene Taukane, nesse encontro: seu povodiz que a criança é “minha mão”, ou seja, a criançatêm, na comunidade Bakairi, o lugar de auxiliar dosadultos. A criança presta pequenos serviços que sãoimportantes. É pela imitação dos mais velhos que acriança vai construindo seu projeto de pessoa. Aeducação formal também existe nas sociedadesindígenas: são os ritos de passagem, que permitiamàs pessoas ascender a uma nova condição: como sairda condição de menino e ser admitido na categoriade guerreiro. Esses ritos de passagem normalmenteestão ligados à adolescência, quando a vida floresceem toda sua exuberância. Nesse momento essaenergia é canalizada para produzir pessoas aptas amanter a sobrevivência do grupo.

A escola, tal qual funciona atualmente, nasáreas indígenas, tende a tornar as crianças e jovenspessoas disfuncionais para o seu povo, porque estãovoltadas para uma realidade que não é a sua. Porisso muitos povos indígenas têm resistido à escola.Não só para os Guarani, povo da palavra inspirada;para quem, a “igreja, a escola e a polícia” existempara destruir o modo de ser Guarani mas, também,

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para o povo Kaingang. A resistência dos Kaingang àescola se faz por atos, e um desses atos deresistência é a evasão escolar. E o motivo não éapenas o fato de que a escola não esta, ainda,adequada as suas necessidades, mas a desconfiançade que a escola vai, de alguma forma, atrapalhar aeducação dada pelos pais. Um homem Kaingang daTerra Indígena de Ivaí, no Paraná, questionado pormim sobre os motivos de não mandar seu filho paraa escola, respondeu que o filho dele deveria trabalharajudando o pai. Argumentei que ele poderia vir àescola num período e ajudar o pai no outro período.Ele explicou que isso não era possível, porque suaroça ficava a 3 horas de caminho da escola e que,além disso, as crianças que estudam na escola senegavam a ajudar nas tarefas domésticas, comosocar milho, e realizar trabalhos de roça , passandoa não obedecer aos pais.

Cada cultura tem, portanto, uma pedagogia

para produzir pessoas adequadas: a escola deve

tomar isso em em conta. Os professores devemredescobrir estes aspectos da formação da pessoaem suas sociedades.

Concluímos esta apresentação explicitandoque consideramos esse trabalho com os Kaingangcomo uma experiência não-formal, porque não tempor objetivo titular os professores, mas simacompanhá-los nas suas dificuldades comoeducadores e pensar com eles sobre sua prática,revendo conceitos, registrando e revendo suasexperiências em sala de aula.

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A LÍNGUA INDÍGENA NA ESCOLA: QUESTÕES DEPOLÍTICA LINGÜÍSTICA

Política e planejamento lingüístico nas sociedadesindígenas do Brasil hoje: o espaço e o futuro das

línguas indígenas

Ruth Maria Fonini Monserrat29

“A língua só pode ser salva por si mesma, e issoocorre unicamente quando seus falantes têm odesejo de impedir sua decadência, conseguemos meios institucionais para tomar medidas emprol de sua salvaguarda e tornam tais medidasefetivas. O pré-requisito básico é que elesadquiram o desejo de evitar sua própriadesaparição como comunidade lingüística…”.(Fennel, 1981:39, ap. Chiodi, 1993:201).

Antes de mais nada...

A leitura prévia de materiais necessários àredação do presente trabalho povoou de inquietudeminha mente, trazendo-me à consciência a

Capítulo 4

29 Lingüista, professora do Departamento de Lingüística da Faculdadede Letras da UFRJ.

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avalanche de aspectos, facetas, questões de todaíndole inextricavelmente ligados ao tema específico– pontinho de areia na imensidão do mar – do espaçoe futuro das línguas indígenas no Brasil de hoje.Claro que eu já sabia disso, como sabia também quenão se consegue abordar tudo ao mesmo tempo.Mesmo assim, quero enfatizar aqui que o pano defundo de tudo que vai ser dito é a consciência dalíngua como grão de areia. Não que essa questãoseja secundária. Ao contrário, ela é primordial. Mas,veja-se a epígrafe escolhida: para equacionaradequadamente a questão das línguas indígenas emsua perspectiva de futuro, primeiro é preciso queseus falantes a queiram conservar e desenvolver,ou seja, que desejem continuar utilizando-a. Só que…para que isso aconteça, a língua precisa serrespeitada e prestigiada, ter status mais elevado, eisso tem de ocorrer também de fora para dentro, dasociedade maior para a sociedade minoritária. Sóque… para que isso aconteça, as sociedadesindígenas como um todo, não apenas suas línguas,têm de ser respeitadas e prestigiadas, dispor destatus mais elevado dentro da sociedade maior. Sóque… para que isso aconteça, é preciso haver, maisque uma política pública(da) de reconhecimento erespeito pelos direitos das sociedades indígenas –entre eles o de manter e desenvolver suas línguaspróprias –, a criação de instrumentos políticos emateriais que lhes permitam exercer plenamenteesses direitos. Só que… para que isso aconteça, éimprescindível a pressão organizada, a reivindicaçãodos principais interessados, juntamente com ossegmentos mais conscientes da sociedade maior.

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Vale, para o caso brasileiro, o que diz Chiodi(1993:201) a respeito dos países latino-americanos:“Paradoxo: cabe ao Estado promover social e politicamenteas línguas indígenas, mas somente os grupos étnicospodem reivindicar e realizar as políticas de revitalizaçãolingüística que os projetos de educação bilíngüeintercultural estão implementando limitadamente no âmbitoeducativo”. A diferença é que, no Brasil, os projetosde educação bilíngüe intercultural mal começam asair do papel. E, de qualquer maneira, para poderchegar lá, a teoria e a prática da manutenção edesenvolvimento das línguas indígenas têm de estarcomprometidas ideologicamente com o projeto maiorda autonomia indígena.

Política lingüística

Sabe-se hoje que nenhum Estado podeeximir-se de ter uma política lingüística, na medidaem que a relação entre língua(s) e vida social permeiaobrigatoriamente qualquer sociedade, e diz respeito“a questões de identidades, de cultura, de economia, dedesenvolvimento, problemas dos quais nenhum paísescapa” (Calvet, 1996:9). Isso não significa que apolítica lingüística de um Estado seja sempreexplícita. Por outro lado, embora outras organizações,entidades ou segmentos específicos de umasociedade também possam definir e defender umapolítica lingüística, só o Estado tem Poder paraimplementá-la, colocá-la em prática, através de um

planejamento lingüístico.

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A expressão “planejamento” ou “planificaçãolingüística” (language planning) surge em 1959, comEinar Augen, a propósito de problemas lingüísticosda Noruega. Quase ao mesmo tempo emerge aSociolingüística, e daí por diante as duas disciplinasestarão sempre ligadas. Fishman chega a definirplanejamento lingüístico como SociolingüísticaAplicada.

A partir de Fishman (1970), Ninyoles (1975),Glück (1981), são usadas paralelamente asexpressões “política” e “planejamento” lingüístico,sendo a política considerada como inseparável desua aplicação. Assim, de um modo consensual naárea, situa-se hoje a política lingüística no campodas escolhas gerais em matéria de relações entreas línguas e a sociedade, e a planificação lingüística,no da implementação prática de tais escolhas. Éimportante observar que a planificação/implementação lingüística, por sua vez, para poderser operacional, necessita de um mandado jurídico,a Lei, que é apanágio do Estado.

Outro conceito importante na discussão dotema é o de diglossia, neutro em sua origem (comFerguson, 1959) – quando é entendido de formaestática, como distribuição funcional harmoniosa dosusos de duas variedades de língua, uma alta e outrabaixa –, e socialmente comprometido a partir dosestudos dos sociolingüistas catalães, para os quais“não há uma coexistência harmoniosa entre duasvariedades lingüísticas, mas uma situação conflitante entreuma língua dominante e uma língua dominada” (Calvet,1996:21). A relação diglóssica entre línguas

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existentes num país – em que, por exemplo, uma é aúnica oficial ou a ‘mais oficial’ entre duas ou três, eoutra(s) são línguas subordinadas – está presentepelo mundo afora, mesmo nos países ditos do PrimeiroMundo, e tem presença absoluta nos países dedescolonização recente (como os da África) ou maisantiga (como os da América Latina).

“Há dois tipos de gestão das situaçõeslingüísticas: uma procede das práticas sociais e a outrada intervenção sobre essas práticas. A primeira, quechamamos de gestão “in vivo”, diz respeito à maneira comoas pessoas, confrontadas diariamente com problemas decomunicação, os resolvem” (Calvet, id:50). A gestão invitro é a do Poder, da intervenção. Há especialistasque estudam línguas e situações, fazem hipóteses epropõem soluções para os problemas detectados. Osórgãos decisores, então, fazem escolhas e aplicam-nas. Em geral, os processos de decisão são feitosautoritariamente pelo Estado, sem consultademocrática das populações envolvidas, ou semcontrole democrático dos diversos estágios deaplicação de uma política. “Toda a arte da política e doplanejamento lingüístico está na complementaridadenecessária entre os cientistas e os que decidem, noequilíbrio difícil entre as técnicas de intervenção e as

escolhas da sociedade”(id:63).

Política lingüística no Brasil

A justificativa maior (há outras) para aexistência no Brasil de uma política lingüística é a

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necessidade de regular as relações entre o Portuguêse as quase duas centenas de línguas indígenasfaladas em seu território. Trata-se, é óbvio, de umarelação diglóssica, entre uma língua oficial utilizadaamplamente como veículo institucional, jurídico,midiático, interpessoal (inclusive entre etniasindígenas diferentes) e línguas minoritárias, em suaimensa maioria sem tradição escrita, de uso restritoàs comunidades que as têm como língua nativa.Comparativamente à situação análoga dos paíseslatino-americanos ou dos recentementedescolonizados países africanos, a situação daslínguas étnicas no Brasil adquire contornosdramáticos, que dificultam enormemente aimplementação de medidas para sua salvaguarda,devido a seu reduzido número de falantes. Para sócitar um exemplo: a língua Quechua é falada noPeru e no Equador por muitos milhões de pessoas,enquanto as línguas de maior expressão numéricano Brasil, como o Guarani, o Ticuna, o Makuxi, nãosão utilizadas por mais de 30 mil pessoas. E quasecinqüenta por cento das línguas indígenasbrasileiras têm menos de 100 falantes.

Em que pese esta necessidade, não existiano Brasil uma política lingüística institucional claraem relação às línguas indígenas antes daConstituição atual (1988). Mas ela existia e podeser, grosso modo, assim sintetizada: o Português é alíngua nacional e ponto final. Havia, é certo, a Lei6.001 (Estatuto do Índio), que reconhecia, entreoutras coisas, o direito dos índios a suas línguasmaternas, e preconizava a alfabetização deles em

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suas línguas próprias, mas na prática essa lei, comotantas outras no Brasil, não era para ser levada asério e nunca “colou”. Em suma, a política lingüísticareal que vigorava no Brasil era a do apagamento detodas as línguas indígenas minoritárias em benefíciodo Português como única língua “nacional”.

E, hoje, existe no País uma política oficialclara em relação às línguas indígenas?Aparentemente, sim. Na realidade, não.

É verdade que no plano institucional hámenção explícita às línguas indígenas em váriasinstâncias: a) na Constituição (1988), onde um dosartigos do capítulo sobre educação assegura àscomunidades indígenas “também a utilização de suaslínguas maternas e processos próprios de aprendizagem”no Ensino Fundamental regular, que deve serministrado em língua portuguesa; outro artigo, alémdisso, reconhece os direitos indígenas sobre suasorganizações sociais, costumes, línguas, crenças,tradições e terras que tradicionalmente ocupam; b)em uma série de outros documentos oficiais: PortariaInterministerial 559 (1991), opúsculo do MEC“Diretrizes para uma Política Nacional de EducaçãoIndígena” (1994), LDB (1996), Estatuto dasSociedades Indígenas (ainda não votado), orecentíssimo Referencial Curricular Nacional paraas Escolas Indígenas, do MEC (1998), algumasConstituições estaduais, bem como várias normas ediretrizes de Conselhos estaduais ou municipais deeducação. Em todos eles se dedica espaço maior oumenor às línguas indígenas, dentro do âmbito da

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educação escolar a ser oferecida às sociedadesindígenas. Curioso, no contexto discursivo queestamos examinando, é que no recentíssimoquestionário do MEC para efetuar o censo escolarindígena (cujos resultados são apresentados noRelatório do II Encontro Nacional de Coordenadoresde Projetos na Área de Educação Indígena, realizadoem dezembro 1998), nenhum dos itens faz referênciaao uso ou estudo das línguas indígenas na escola…

Em dois desses documentos, daqui por diantemencionados de forma abreviada como “Diretrizes”e “Referencial”, é bem maior o espaço ocupado poressa questão. Também são eles os únicos quedefinem como objetivo da escola indígena “aconquista da autonomia socioeconômica cultural decada povo, contextualizada na recuperação de suamemória histórica, na reafirmação de sua identidadeétnica, no estudo e valorização da própria língua(sublinhado meu) e da própria ciência, bem como noacesso às informações e aos conhecimentoscientíficos e técnicos da sociedade majoritária e dasdemais sociedades indígenas e não indígenas”. OReferencial, ademais, expressa a desejabilidade dedesenvolver a língua escrita indígena comoestratégia de auto-afirmação étnica, emborareconhecendo o papel limitado da escola numainiciativa de revitalização de línguas ameaçadas dedesaparecimento. Deve-se ressaltar que se trata deum documento atípico, na medida em que foielaborado por um número bastante amplo de pessoase entidades da sociedade civil, indígenas e não-indígenas. Mas, mesmo nesse documento, sem

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dúvida o mais avançado em termos do enfrentamentodo problema, pelo menos na escola, há um deslizarimperceptível do enfoque inicial da língua indígenacomo questão fundamental estratégica na luta pelaautonomia para um enfoque em que ela aparece comum papel diluído ou pelo menos enfraquecido, situadaque fica, em paralelo com a língua portuguesa,apenas como uma das disciplinas da área delinguagem.

Ora, mesmo reconhecendo o papel limitadoda escola, se nela a língua indígena não for colocadaem primeiro plano, não apenas como língua dealfabetização ou instrumento transitório deinstrução, mas também, entre outras coisas, comoobjeto de estudo e de intervenção consciente in vitro,com ações concretas e permanentes dirigidas àampliação e desenvolvimento do código oral e escrito,no sentido da criação de habilidades acadêmicas emtodos os conteúdos curriculares etc. (cf.Hamel, 1988,sobre a necessidade de desenvolver todas ashabilidades em L1 para poder chegar ao domínio daL2); e se não se “equipar” (Cf. Calvet, 1996) a línguaindígena para cumprir essa nova função social – delíngua “escolar” – seu espaço se tornará cada vezmais insignificante, até sua extinção pura e simplesno processo escolar de transição – por mais que issoseja negado –, tão antigo quanto a Colônia, para aescola “nacional” desejada e almejada por índios enão-índios, expressa exemplarmente no “direito dosíndios à continuidade dos estudos até chegar àuniversidade”. É bem verdade que o Referencialenfatiza a necessidade do desenvolvimento oral e

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escrito das duas línguas, indígena e portuguesa, sejacomo L1 seja como L2. Mas a atenção reservada nocapítulo ao desenvolvimento do Português oral eescrito é muito mais expressiva. Compreende-se: alíngua indígena escrita é ainda uma utopia, umdesafio, na melhor das hipóteses um processo emconstrução. E um processo que, para ter algumaperspectiva de êxito, não pode ficar confinadoexclusivamente na escola.

Por outro lado, no plano do discurso dasociedade civil – organizações indígenas, associaçõesde professores indígenas, entidades não-governamentais de apoio aos índios que estabelecemparcerias com comunidades e povos indígenas emseus projetos em busca de autonomia sócio-econômico-cultural, grupos de pesquisadores deuniversidades atuando em assessoria especializadajunto a projetos de educação escolar indígena – ébem maior o espaço e relevância concedidos àquestão da língua indígena como valor culturalcentral a ser valorizado e desenvolvido na escola,principalmente na alfabetização, mas também comoparte da estratégia de luta pela auto-afirmaçãoétnica e pela conquista da autonomia indígena.

O que há de comum em todo o discursooficial no plano federal e também, em grande medida,no discurso das entidades e organizações indígenase não-indígenas é que a discussão sobre as línguasindígenas fica circunscrita no âmbito da educaçãoescolar. Ora, há que se concordar com Siguán &Mackey (1986:70, ap.Chiodi 1997:197-198) que “emmuitas situações históricas e geográficas a escola se

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converteu no campo de batalha prioritário das disputassobre política lingüística. Esta é a situação da educaçãoindígena também nos países multiétnicos da AméricaLatina. Mas as políticas lingüísticas, ao ficarem encerradasna educação bilíngüe, permanecem essencialmente nonível do discurso oficial, das declarações de princípios,e em tal sentido parece que atrás da implementação deuma política de educação bilíngüe se esconde a falta depolíticas lingüísticas reais”. Ou seja, aparentemente,o fato de haver uma política de educação bilíngüeseria uma prova “pública” do interesse e docompromisso do Estado em relação aoreconhecimento dos direitos das línguas indígenas,mas na verdade ela encobre a ausência de umapolítica real.

Assim, o Estado brasileiro não tem realmenteuma política lingüística específica para as sociedadesindígenas. Ele tem, sim, no nível do discurso, umapolítica de educação escolar indígena, qualificadacomo “bilíngüe, intercultural, específica ediferenciada” (adjetivação que provoca muitasdúvidas e desalento em grande parte dos envolvidos,especialmente os índios, por não se entender bem oque querem dizer, na prática, os adjetivos “bilíngüe”,“intercultural”, “específico” e, principalmente,“diferenciado”). É dentro desse contexto restrito quese tratará das línguas indígenas, como línguas a

serem utilizadas basicamente na “alfabetização

bilíngüe” e, sempre que possível, na elaboração demateriais “bilíngües” a serem utilizados na escola.Entretanto, para poder ter alguma possibilidade deêxito, mesmo essa aparentemente singela ambição

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com respeito às línguas indígenas exigiria oplanejamento e a implementação de ações bastanteamplas, na medida em que implica profundaintervenção no corpus e no status dessas línguas.

Pode-se agir sobre a língua de duas maneirasdiferentes: a) planificando o corpus, ou seja,intervindo sobre a forma da língua (criação de umaescrita, tratamento dos empréstimos, dosneologismos, estandardização, normatização etc.); b)planificando o status, ou seja, intervindo sobre asfunções da língua, seu status social e relações comas outras línguas. No caso das línguas minoritáriasindígenas, elevar o seu status significa, entre outrascoisas, criar condições para introduzi-las de fato naescola, e implementar medidas necessárias para suaefetiva defesa, manutenção, desenvolvimento,revitalização. No entanto, como a comprovar os limitesdo discurso, no Brasil a responsabilidade por taismedidas de implementação é delegada oficialmenteaos sistemas estaduais e municipais de educação,e na prática é jogada como batata quente nas mãosdos professores indígenas e de seus assessoreslingüísticos nos cursos de “formação” ou“capacitação” de professores indígenas…

Ora, como já foi dito antes, só o Estado temo poder, a Lei, para colocar em prática o planejamentolingüístico correspondente a uma dada políticalingüística. No caso, o Estado é o nível federal daeducação, o MEC. Mas seu poder real é bastantelimitado quanto a fazer cumprir certas diretrizesfederais nas instâncias estaduais e principalmente

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municipais. Paralelamente, nem as organizaçõesindígenas e entidades de apoio, e menos ainda osprofessores indígenas, têm poder para mudar asituação.

Ilustração clara dessa dificuldade é odepoimento do professor Joaquim Maná Kaxinawádurante o II Encontro de Coordenadores de Projetosna Área da Educação Indígena, realizado em Brasíliaem fins de 1998 (transcrito no Relatório do Encontro,doravante referido simplesmente como Relatório MEC98): “Mas enquanto faziam essas leis, as comunidadesindígenas, os professores indígenas vinham trabalhandode acordo com o regimento que já existe dentro daEducação, que é a educação dos brancos. E quandochegava essa conversa [dos direitos indígenas na áreada educação escolar] nas Inspetorias e nas Secretarias,talvez as pessoas que estavam lá tinham poucoconhecimento de mostrar para a gente que a educaçãoindígena tem que ser assim. Eles diziam que isto nãoexiste, está só no papel. (…) Para que isso seja realmentecumprido, implementando a Lei, tem que dar uma formaçãopara essas pessoas que estão lá, que estão nadireção…”.(Relatório MEC 98:66-68).

Podem-se citar também as palavras daprofessora Maria de Lurdes Guarani no mesmoencontro: “…tem muitas Secretarias lá que aindacontinuam mandando os calendários, os currículos, osconteúdos para que os professores dêem aula conformeelas querem, conforme está no regimento delas. Então,até agora, na verdade, a escola indígena diferenciada sóestá no papel…” (p.72).

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Por sua vez, os professores Orowari da áreaindígena de Sagarana, situada no município deGuajará-Mirim (RO), relatam um caso atual deinterferência negativa de uma funcionária da FUNAIregional, que se arroga o direito de deslocarprofessores de uma comunidade para outra, ou depassar um professor da série em que estátrabalhando para outra, em qualquer momento doperíodo escolar, sem qualquer consulta a ele ou àcomunidade.

Além da falta de poder real das escolasindígenas, há outro fator complicador nessa questão.Mesmo supondo-se que, por pressão de segmentosconscientes, indígenas e não-indígenas, se chegasserealmente a formular e tentar implementar umapolítica oficial de defesa e promoção social daslínguas indígenas, seria a escola o único ou o melhorespaço para fazê-lo?

A percepção do alcance da educação formal,em contexto bem mais antigo (o da política indigenistamexicana pós-Revolução de 1910) que o atual, masque ainda é válido para o Brasil, e não apenas paraa educação escolar indígena, é assim expressa porAguirre Beltrán (1972:25): “A educação formal (…) époderoso instrumento de mudança, mas não é o úniconem o mais importante. Os que fazem da educação formaluma panacéia capaz de resolver todos os problemassociais e econômicos e clamam por melhor educação e nívelmais alto de educação, expressam uma louvávelconvicção, mas ignoram os alcances do instrumento quepreconizam. Só quando a educação é acoplada a um

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programa de ação múltiplo, que contemple os variadosaspectos da cultura, ela poderá chegar a realizar-se comoefetivo instrumento de mudança. Não se pode esperar quea educação suporte sozinha o peso total de transmissãocultural, de sua estabilidade ou de sua mudança”.Tratando-se de Brasil, o que vale para a escola emgeral, vale para as línguas indígenas dentro dasescolas indígenas em particular.

Dois requisitos são necessários para que umalíngua minoritária tenha possibilidade real desobrevivência: que ela tenha um lugar na sociedademaior e que desempenhe um papel funcional nasociedade que a utiliza como língua vernácula.

Falando sobre o primeiro requisito, Chiodi(1997:197) afirma que “enquanto as línguas vernáculasnão desempenharem nenhum papel na vida pública, serádifícil para elas alcançarem o prestígio e a importância quepermitiriam a seus falantes fomentar seu cultivo ou, paradar outro exemplo, seu uso escrito”. Por isso, argumentaele, “o problema com os projetos de educação bilíngüenão é lingüístico ou pedagógico, ele radica na inutilidadee discriminação social das línguas indígenas”. Por outrolado, embora reconheça que os projetos de educaçãobaseados no modelo de “manutenção” lingüística vêmtentando modificar essa situação, afirma que elestêm pequena possibilidade de êxito, por estaremfazendo isso praticamente sozinhos.

Mas, admitamos por um momento que aslínguas indígenas já tivessem um lugar nasociedade. Ainda assim permaneceria a questão dafunção social da língua indígena no plano interno

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das próprias sociedades. Antes de examinar estesegundo requisito, convém observar qual tem sido aprática real das escolas “indígenas” com relação àslínguas.

As línguas indígenas na prática das escolas

Há 3.127 professores indígenas e 1.673escolas em áreas indígenas (dados do MEC, 1998).Outros dados: a maioria das escolas oferece ensinoaté, no máximo, a quarta série do EnsinoFundamental. Assim, os alunos índios que desejamcontinuar seus estudos são obrigados a fazê-lo forade suas aldeias, em escolas rurais ou de sedesmunicipais, em geral na modalidade do ensinosupletivo. Raros são os alunos que completam aquarta série nas áreas indígenas, raríssimos os quechegam à oitava série dentro ou fora delas.

Segundo o levantamento promovido pelo MEC,apresentado no Relatório MEC 1998, não há nasescolas em área indígena, com raríssimas exceções,a utilização da língua indígena nem como língua deinstrução de outras disciplinas, nem como disciplinaespecífica de estudos, nem como língua dealfabetização. Há, freqüentemente, dado que namaioria das situações os alunos têm conhecimentoprecário do Português, a explicação na língua dascrianças de determinado conteúdo enunciadoinicialmente em Português. Assim, “alfabetiza-se”em Português, com palavras e sintaxe vertidas paraa língua indígena.

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Não é de estranhar, pois, entre tantas outrasdo mesmo teor, a constatação registrada no Planopara 98 da escola Tengatuí – que funciona deprimeira a quarta série do Ensino Fundamental, naTerra Indígena Dourados/MS – referente ao “altoíndice de repetência escolar e número relativamentegrande de evasão escolar”, cujas causas decorrem da“falta de domínio da fala, devido às culturas étnicas”. Porisso há a decisão de realizar, a partir de 99, sessõesde estudos na escola, entre elas uma de NoçõesBásicas sobre Língua Indígena, com o objetivo de“entender e atender melhor o aluno que apresentadificuldades de compreensão por causa da língua”.

É bom registrar também que o objetivo geraldessa escola, na qual estão matriculadas 1024crianças Terena e Guarani, é o seguinte:“Proporcionar um ensino que contribua para a formaçãointegral do aluno, preparando-o para que possa agir nasociedade de forma crítica e autônoma”.

Nem sempre são tão explícitos os objetivosfinais da escola como instrumento a serviço da“assimilação” das sociedades indígenas à sociedadedita nacional. Em certos projetos escolares se afirmaa escola como ‘espaço de afirmação e revitalizaçãoda cultura’, e, portanto, da língua. Mas, como lembraD’Angelis (1997), na verdade “falta uma análiseverdadeiramente crítica do papel efetivamentedesempenhado pelas escolas indígenas que, em muitoscasos, parece estar em total descompasso com seus‘objetivos’”. Ou seja, a maioria das escolas “indígenas”atualmente existentes contribuem fortemente parao processo de deslocamento das línguas indígenas.

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O papel dos professores indígenas éfundamental nesse processo de deslocamento, namedida em que eles transmitem inconscientementeaos alunos o esquema de relações assimétricas entreas línguas em conflito diglóssico na sociedade,reafirmando o papel da escola como agência doaportuguesamento. Como enfatiza Hamel, referindo-se à situação do México, “à margem dos programasespecíficos se impõem, então, as concepções que osprofessores têm do conflito diglóssico; estas determinamas possibilidades de castelhanização escolar e dedesenvolvimento da língua materna”(id: 348).

A situação se agrava ainda mais pelo fato deque, mesmo nos raros casos em que são, em algumamedida, utilizadas as línguas vernáculas naeducação escolar, normalmente não hácompatibilidade semântica entre essa educação e aeducação interna das culturas indígenas; isto é, aslínguas indígenas, quando utilizadas na escola, emgeral veiculam conteúdos curriculares que são outotalmente alheios às culturas, ou modificados eadaptados ao contexto indígena de uma maneiraapenas superficial, confirmando, mais uma vez, opapel subordinado das línguas indígenas frente aoPortuguês.

O que pensam de fato as comunidades indígenas?

As populações indígenas – consideradas emsua composição concreta de homens, mulheres ecrianças, como comunidades nas quais a diferença

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de gerações estrutura o sistema educativotradicional –, não fazem ouvir sua voz sobre assuntosescolares em geral e lingüísticos em particular nosfóruns públicos oficiais, nos quais participamrepresentantes indígenas. Isso não ocorre nemmesmo nos encontros e assembléias de organizaçõesindígenas, a não ser quando eles se realizamlocalmente, no espaço da aldeia. Sempre se podeadmitir, é claro, que a representação indígena eminstâncias mais amplas de discussão (reuniões,encontros, assembléias em nível regional ounacional, fora da ou das aldeias de um dado povo)traduza realmente as opiniões e posiçõesmajoritárias dos representados, mas sabemos bemque a representação é questão política maior, queaflige não apenas os índios, mas qualquer sociedadeque se pretenda democrática.

O mais importante é que a não-explicitaçãoda verdadeira posição das comunidades frente à“escola indígena” e à “língua” não impede que venhaà tona, através de certas afirmações ambíguas depais de alunos ou do desalento e queixas expressospelos mais velhos, a angústia, a perplexidade, asdúvidas das pessoas sobre escola e língua indígenanuma perspectiva de futuro, sobre sua própriapossibilidade de sobrevivência como povo etnicamentediferente, com língua e cultura próprias.

O professor Euclides Makuxi, por exemplo,relata o que lhe disse um membro da comunidade:“Olha, Euclides, eu não tenho, não sei mais com quemfalar, meus filhos já não querem mais me ouvir, não têmtempo para história, para conversar, para conversar sobre

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a língua…”. E acrescenta sua própria reflexão sobre oassunto: “É interessante parar para pensar que a gentepode continuar vivendo como povo, mas que de fato agente vai ser obrigado a sair, a trabalhar, e vai ter quefalar o Português”. O que está implícito nessa últimafrase é, no mínimo, uma perplexa interrogação sobrea funcionalidade da língua indígena no contexto atualda vida social das comunidades, em contraste coma certeza da importância do Português para suasobrevivência em melhores condições. Euclidesmenciona ainda o que dizem os pais: “Ó, meu filho,você vai ter que ir para a escola para ser alguém na vida,para melhorar tua vida, para você não ir para o cabo daenxada, para você não ficar aí a noite toda esperando oveado ou a paca lá na mata” (Relatório MEC 1998:57-58). Ele poderia acrescentar, coerentemente:mantendo uma cultura e falando uma língua quenão têm mais utilidade no mundo de hoje…

Hamel sintetiza tal quadro de maneiraexemplar: “As conseqüências da histórica subordinaçãodas línguas indígenas se transformam assim, no planoda consciência lingüística, em explicação das causas doconflito diglóssico… Podemos observar que, nasrepresentações do conflito lingüístico, existe umaapreciação relativamente exata e realista da distribuiçãoregional e funcional das línguas e do seu valorcomunicativo. Frente aos fenômenos muito palpáveis dodeslocamento, contudo, os falantes indígenas interpõemum bloqueio ideológico que sustenta a persistência dalíngua indígena como língua natural da região,contradizendo abertamente os fatos observáveis” (Hamel1988: 341).

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Ao descrever a visão que as comunidadesindígenas têm sobre a linguagem, Chiodi, por suavez, salienta outro aspecto do conflito diglóssico: “paraas famílias indígenas a linguagem tem um valorexclusivamente pragmático como meio de comunicação. Elanão é assumida como um objeto cultural autônomo, masao contrário como um instrumento de interação social (…)ela é, antes de mais nada, um ato comunicativo em umcontexto real e funcional. Para as famílias indígenas, então,objetivos como “desenvolvimento da linguagem” ou“elaboração estilística” não têm nenhuma importância”.Assim, quando os pais dos alunos reivindicam oensino da língua oficial, eles não estão tantomanifestando uma preferência lingüística, masantes reiterando “a preeminência de seu critériopragmático e funcional, desta vez em relação a suasnecessidades comunicativas na outra língua (já que nalíngua materna estas necessidades estão obviamentesatisfeitas). Daí que, segundo eles, o papel da escola nãopode ser o desenvolvimento da linguagem (…) mas sim ode ensinar a falar e a ler e escrever em espanhol.”(Chiodi:185). É por isso que “a maioria das famíliasindígenas aprova a educação bilíngüe somente se ficaefetivamente demonstrado que ela pode ajudar a criançaa desenvolver-se melhor no plano escolar e, mais ainda,a aprender a língua dominante. E também por isso háresistência quando os professores bilíngües pretendemensinar a ler e escrever em língua indígena, pois issoparece aos pais algo inútil ou mesmo contraproducente”(id.:198). São generalizadas também no Brasil, entreas comunidades indígenas, tais posições e atitudesem relação ao papel das línguas na escola.

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Podemos concluir, assim, que os propósitos“bilíngues” do discurso dos projetos de educaçãoescolar estão de fato desligados dos interesses,opiniões e necessidades das comunidades. A verdadeé que “fora do espaço restrito da comunidade, a línguaindígena carece de ressonância, de valor funcional”(Chiodi, id.:200). E esse espaço restrito dacomunidade a que se refere o autor fica ainda maisrestrito se pensarmos que, de fato, não inclui a escola– cria recente das demandas atuais do contato coma sociedade dominante. Tal situação torna aindamais complexo o equacionamento da questão dalíngua, pois, “na medida em que as comunidades nãose solidarizarem com o pensamento dos projetos deeducação bilíngüe intercultural sobre a função da escolano desenvolvimento da língua indígena, não se respaldao trabalho do professor bilíngüe, que vê anuladas pelaindiferença suas solicitações aos alunos” (Chiodi,id:185). Como indaga e se indaga Euclides Makuxi(Relatório MEC 1998:60), “qual é verdadeiramente opapel da nossa educação escolar indígena hoje? Comoque os índios vêem a escola dentro da sua comunidade?E como que participam dessas escolas e das atividadesda escola? Porque normalmente deixam isso a cargo doprofessor – porque o professor é contratado para isso,que cuide de nossos filhos durante quatro horas. Mas quala participação da comunidade efetivamente nisso?”.

Voltando, pois, ao papel da língua indígenadentro das próprias comunidades, pode-se afirmarque a questão da manutenção, recuperação,desenvolvimento, revitalização das línguas indígenasnão está no horizonte de preocupações prioritáriasdas sociedades indígenas no Brasil, apesar da

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referência constante a ela, com a reivindicaçãoconcreta – no discurso dos documentos eposicionamentos públicos de representantes domovimento indígena – de utilização da línguaindígena na escola, principalmente na alfabetização.(cf, entre outros, os documentos finais dos inúmerosencontros de professores indígenas que sesucederam a partir de 1988).

Como conseqüência disso, em vários casos oabandono da língua vernácula pela geração atual decrianças e adolescentes se encontra em um estadotão avançado que para se poder reverter esse quadro,seria necessário desenvolver um programa derestauração que ensinasse a língua indígena como

L2 (cf. Munoz, 1986 a, b).

O futuro das línguas indígenas

Considerando-se todas as constatações ereflexões feitas no decorrer do trabalho, e ainda osinúmeros alertas que vêm sendo emitidosinsistentemente nos últimos anos por estudiososespecialistas ou observadores argutos, sobre aameaça de extinção que paira sobre no mínimo 90%das cerca de 6 mil línguas hoje ainda faladas nomundo, é assustadora a perspectiva de futuro paraas línguas indígenas brasileiras no cenário destefim de milênio – no nível local, da comunidade,incluindo a escola, ou no nacional. Dito de formamais brutal, não há futuro visível para as línguasindígenas brasileiras.

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No entanto, sempre há um outro lado. É claroque, num contexto como o do Brasil de hoje, serefletirmos em termos do modelo cibernético de auto-regulação aplicado às línguas em presença numEstado, podemos ser levados, com Calvet, “aconsiderar a situação difícil das línguas minoritárias (…)como resultado de uma ausência de demanda social: taislínguas existem mas não têm utilidade social e estão,portanto, condenadas a desaparecer”. Mas ele acredita,apesar disso, e nós com ele, que seja possível e viávela intervenção humana sobre a demanda social parajustificar a oferta lingüística e tentar deter o processode enfraquecimento e desaparição total das línguasminoritárias, com base no argumento de que “se hágrupos que reclamam, por questões identitárias porexemplo, o direito a suas línguas, essas línguas têm ipsofacto um papel e um lugar na sociedade” (Calvet, id:22).Sabemos que, pelo menos discursivamente, existetal reivindicação no Brasil.

Então, dá para reverter o quadro?

Parece que sim, mas sob a condição de quetodos os atores tenham a clara consciência de que“a preservação ou inclusive revitalização da língua ecultura indígena não se resolverá, em última instância, naescola, embora esta possa coadjuvar tais processos.Dependerá da capacidade de resistência étnicadesenvolvida pelo povo indígena… Pressupõe redefinir opapel dos grupos aborígenes como etnias específicas nointerior da sociedade…em todos os seus aspectos sócio-econômicos, políticos e lingüísticos”(Hamel, id:369).

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Nesse sentido, podemos dizer, com Hamel,que “o maior desafio de um projeto de manutençãoconsiste em demonstrar às comunidades indígenas, comotambém às autoridades políticas… que, dentro de uma lutapelo pluralismo cultural, os grupos étnicos são capazesde defender e inclusive reconquistar espaços vitais parasuas culturas e línguas. Uma ampla gama de experiênciasem nível internacional demonstrou que o êxito de umprograma de defesa lingüística depende mais… dascondições socioculturais e políticas em que se desenvolvea educação… É necessário que haja uma mudança nafunção da escola em suas relações de poder, tanto emsala de aula como na comunidade. Quer dizer, acomunidade em seu conjunto terá que intervir e participarativamente na formulação de planos e objetivos,apropriando-se assim da escola como espaço próprioligado a seus interesses e necessidades…Somente assima escola poderá cumprir um papel ativo na coesão internada comunidade indígena, além de proporcionarconhecimentos lingüísticos, culturais e técnicos que vêmda sociedade nacional” (id: 366-67).

Caso exista realmente uma determinaçãopolítica de enfrentar a questão da sobrevivência daslínguas indígenas, dentro de um projeto demanutenção lingüística, a implementação de umapolítica nessa direção deve considerarseparadamente, por questões metodológicas epragmáticas, dois aspectos distintos da língua: ocódigo oral e o código escrito.

a) Para que haja a possibilidade demanutenção e pujança da língua indígena oral, nascondições atuais em que vivem as populações

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indígenas, é imprescindível que exista o desejo, adeterminação e o esforço consciente das geraçõesindígenas adultas de continuar utilizando-as na vidaquotidiana, transmitindo-as às gerações mais novas,e utilizando-as também na escola. A resistênciapassiva ao abandono da própria língua, que prescindede consciência e de esforço ativo, só existe emsituações de pequeno ou nulo contato com asociedade dominante e, portanto, de não-necessidade premente do Português, embora mesmodentro de comunidades com contato mais ou menosintenso com a sociedade “de fora” haja pessoas, comoos velhos e as mulheres, e em certos contextostambém a maioria das crianças, que conservamplenamente a língua própria e têm precário ounenhum domínio do Português.

b) Para que seja possível a criação e odesenvolvimento da língua indígena escrita, éimprescindível que haja, como no caso da línguafalada, o desejo e o esforço da comunidade dirigidoà consecução desse fim. Mas, paralelamente, éindispensável também uma política oficial deelevação do status das línguas indígenas (aqui, nãoapenas no nível escrito, mas também no oral). Cabeà instância institucional, portanto, a tarefa de colocarà disposição das comunidades e das escolasindígenas os meios e instrumentos necessários paraque elas possam tornar efetiva tal política, atravésda intervenção no corpus e no status das línguas.

É preciso, pois, para que possa haver línguaescrita indígena, uma prática concreta de ambos os

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atores: o Poder institucional, intervindo sobre ostatus social das línguas indígenas, e ascomunidades que as têm como línguas próprias,intervindo na escola e fora dela em seu corpus e emseu uso contínuo, criando para elas funções sociaisainda não existentes. Deve-se porém advertir que aalfabetização escolar na língua própria indígena sóserá viável e eficiente se o exercício da linguagemfor desvinculado de sua “função como meio decomunicação interpessoal” e a língua for transformada“em objeto suscetível de manipulação abstrata, derepresentação gráfica, de manejo visual” (Chiodi, id:187).

Quanto à função social da escrita no planointerno, se ela for desejada pela comunidade comoum todo, uma das estratégias para criar tal funçãoé a de promover o uso da língua escrita, por umlado, na coesão dos grupos étnicos e, por outro, nabusca de finalidades expressivas e recreativas,através da vinculação da educação escolar comatividades educativas e culturais dirigidas às famíliasindígenas, para que participem concretamente naaprendizagem, uso e desenvolvimento da línguaindígena no nível escrito (e também no oral). Épreciso promover a educação bilíngüe entre asfamílias indígenas e os professores. Para isso, éfundamental “estreitar um vínculo estratégico entre aeducação primária e a educação de adultos” (Chiodi,id:102). Deve-se fazer da comunicação escrita emlíngua indígena uma prática social difundida e uminstrumento intencionalmente usado para asalvaguarda e o desenvolvimento da autonomiasociocultural.

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Paralelamente, para a elevação do statuscultural das sociedades indígenas e de suas línguas,uma série de medidas podem ser sugeridas, como adivulgação, na mídia falada e escrita (rádio, jornaise outros periódicos, televisão, cinema, exposições,eventos públicos), da música, língua e outrasmanifestações culturais e artísticas indígenas; ou apublicação de materiais escritos em línguasindígenas expressando opiniões e posicionamentosdas comunidades em relação a assuntos da maisvariada natureza. Outra forma de elevar o statusdas línguas e culturas é promover a vinda derepresentantes indígenas das etnias locais a escolasnão-indígenas, possibilitando-lhes que se expressemem suas línguas próprias. Poderia haver também areivindicação, em determinadas situaçõesinstitucionais, de utilização das línguas indígenas,com a presença de um intérprete (cf. ANE/CIMI1997). A renomeação dos nomes próprios pessoais etribais junto aos órgãos oficiais atende àrevalorização simbólica das formas lingüísticas e dasdimensões identitárias (cf. Calvet, op.cit.). Avalorização das línguas pode dar-se também atravésda presença e circulação nas escolas indígenas enão-indígenas de materiais escritos produzidos em

diferentes línguas indígenas.

Para não dizer que não falei de flores�

Certas iniciativas, depoimentos emanifestações de escolas e de professores indígenas

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apontam para uma paulatina conscientização - paraalém do discurso estereotipado corrente - de setoresindígenas em relação ao papel-chave das línguasindígenas na escola e desta na possibilidade desobrevivência autônoma de seus povos. Eis algumasdessas pistas:

· É cada vez mais freqüente a solicitação feitapor professores indígenas de cursos específicos paraa aprendizagem da escrita, bem como de capacitaçãopara a alfabetização e elaboração de materiais deleitura em suas línguas indígenas próprias. Em

algumas situações já estão sendo realizados estudos

gramaticais de certas línguas, levando à elaboraçãode dicionários, enciclopédias, gramáticas, emtrabalho de parceria entre índios e assessoreslingüísticos. É pouco ainda, mas como começo épromissor.

· Recentemente, os índios Guarani de quatroaldeias de São Paulo e Rio de Janeiro gravaram umCD com cânticos tradicionais executados por um corode 90 crianças. Eis o que dizem no folheto queacompanha o CD: “Deus fez os seres humanos. Só quecada um diferente do outro. Principalmente a língua. NoBrasil nós temos 180 nações indígenas. Cada um temetnia, fala sua própria língua, mesmo sendo índio. Então,cada etnia é um universo. Assim diz nossa religião. Cadatradição, cada costume, seja dos Guarani ou de outrospovos, seja dos brancos, ela tem valor”.

· Existe na aldeia dos índios Karitiana, emRondônia, uma Casa da Língua, construída em 1995para funcionar como laboratório da língua escrita e

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do resgate da cultura indígena, visando tambémsubsidiar a escola “bilíngüe” com materiaisproduzidos principalmente por adultos queaprenderam a escrever em Karitiana, incluindoalguns professores. Embora na prática isso aindanão esteja ocorrendo, devido principalmente àinsegurança dos sujeitos no manejo da línguaescrita, trata-se de algo muito promissor em termosde inserção da escrita na comunidade, de maneiraindependente da escola.

· Entre os Yanomami próximos do Catrimani,“o processo de alfabetização acontece na roça, naspescarias, na mata etc. Em 1990 é construída a escola,mas esta dinâmica de alfabetização é mantida… Ler eescrever para os Yanomami é motivo de orgulho. Ointeresse maior parte dos homens mais jovens. Asmulheres se interessam mais pelas discussões. Comoresultado do trabalho, os Yanomami produzem um jornalescrito na língua que circula entre as malocas” (ANE/CIMI,1997:7).

· “Nós vimos que o direito da diferença muitasvezes ela nega a qualidade do ensino para a escolaindígena, mas por outro lado nós temos a condição deensinar os nossos filhos na nossa própria língua. Osnossos filhos não são silenciados na sala de aula comoeram antigamente…” (Depoimento de Darlene Taukane,Relatório MEC, 1998:75)

· “Tem alguns professores, alguns povosindígenas que não querem mais se identificar, mas atéporque não tem uma pessoa para esclarecer, dizer queeles são autônomos, que são capazes de resgatar a sua

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cultura mesmo dentro da sociedade. Só agora que estamostendo essa oportunidade. Nós não fizemos isso antesporque nós nunca tivemos oportunidade para fazer essetipo de trabalho. (…) Dentro desse caminho [daeducação diferenciada] a gente percebeu que cada povotem uma cultura, tem uma língua, mesmo tendo as mesmasdificuldades – somos massacrados, tem uma história quea gente foi tutelado –, mesmo assim a gente conseguiuchegar no momento de começar a elaborar algunsdocumentos, livros que sejam uma mostra para asSecretarias estaduais e municipais, e mesmo para o

Governo federal, que nós somos capazes de fazer isso”

(Depoimento de Joaquim Maná Kaxinawá, id:66).

· “… e hoje nós estamos batalhando por umaescola em que a gente quer valorizar ao mesmo tempo ascoisas boas que os brancos nos ensinaram, e que a nossacultura a gente não se perca no vazio, que nós possamostambém um dia construir a nossa história, a nossaverdadeira história. Porque a história que está nos livrosnão fala tudo”. (Depoimento de Maria de LourdesGuarani, id: 71).

· Cresce significativamente, no âmbito dosvários projetos de educação escolar indígena emandamento, a consciência da importância decisiva -para a consecução do objetivo por ora existente “sóno papel” de uma escola de fato indígena - de umaação continuada e eficiente do movimento dosprofessores indígenas, da mobilização efetiva de todaa comunidade, da criação e implantação de um cursoespecífico de Magistério Indígena, doreconhecimento, apoio e respaldo oficial, em nível

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federal, dos projetos durante todo seu percurso.Nesse contexto, o Referencial é percebido comoaliado dos projetos de educação que têm como umde seus objetivos específicos a manutenção,fortalecimento e desenvolvimento das línguas

indígenas.

Bibliografia

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A língua indígena na escola indígena:quando, para que e como?

Angel Corbera Mori30

Introdução

Uma visão simplista supõe o Brasil como umasociedade homogênea, tanto no aspecto lingüísticocomo no cultural. Sabemos que isso não é verdade.O Brasil é um país multilíngue e pluricultural, poisjunto à língua oficial, o Português, falam-se 170línguas, correspondentes a 200 povos indígenas.Calcula-se que, à chegada dos portugueses, eramfaladas no atual território brasileiro 1.175 línguas,mas, nos 500 anos de contato das culturas indígenascom a sociedade nacional, 85% dessas línguas, ouseja, 1000 línguas, desapareceram. No Brasil falam-se também línguas alienígenas, que foram trazidaspelos imigrantes europeus, como o Italiano, Alemão,Holandês. Quando japoneses, coreanos e chinesesvieram para o Brasil, trouxeram, também, as suaslínguas respectivas: Japonês, Coreano e Chinês. Aslínguas faladas pelos escravos negros no PeríodoColonial, todas elas foram desaparecendo. Em suma,no Brasil falam-se o Português, considerado como alíngua oficial, as línguas indígenas, e um númerodeterminado de línguas européias e orientais. Essa

30 Lingüista, professor do Departamento de Lingüística do Instituto deEstudos da Linguagem da Unicamp.

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realidade demonstra que o Brasil é uma sociedademultilíngue e pluricultural.

Política lingüística

Diante dessa realidade, pode-se levantar aseguinte questão: por que, então, às vezes se escutaou se vê escrito em livros e revistas que o Brasil éum país monolíngüe? A resposta está no conceito depolítica lingüística de dominação do Português sobreas línguas indígenas. Por exemplo, a Constituiçãobrasileira (1988), em seu Artigo 13, diz:

“A língua portuguesa é o idioma oficial daRepública Federativa do Brasil”

O Português, como língua oficial, tem aprioridade de ser usada em todas as atividadesoficiais de comunicação: escrever documentos paraos ministérios, solicitar documentos, enfrentar umjulgamento; é a língua que deve ser usada na escola.Na Constituição Federal de 1988, o Capítulo III “DAEDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO” contémos artigos 210 e 215, que falam do uso das línguasindígenas no Ensino Fundamental; o Capítulo VIIItrata dos índios. Esses artigos da ConstituiçãoBrasileira representam um avanço em relação àslegislações anteriores que tratavam dos povosindígenas. Contudo, as línguas e culturas dasdiversas nações indígenas continuam relegadas aum segundo plano. Elas não são oficiais: os artigoscitados apenas reconhecem a organização social, os

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costumes, as línguas, as crenças e tradições dosíndios. Nota-se aqui, na verdade, uma hierarquizaçãodos direitos socioculturais e lingüísticos dos povosindígenas que habitam o território brasileiro. Dessemodo, o Português, associado à cultura não-índia,tem prioridade de ser oficial; já outras línguas eculturas, aquelas dos povos índios, são reconhecidas,mas não têm o direito de serem oficiais. Aqui, surgeoutra pergunta: por que o Português é consideradocomo língua oficial? As línguas indígenas não podemser também oficiais?

Para a ciência lingüística não há línguassuperiores nem inferiores, línguas primitivas oulínguas de civilização. Para a lingüística todas aslínguas são iguais, todas elas têm uma estruturalingüística, e todas servem para a comunicação deseus falantes. Se isso é verdade, por que, então, oPortuguês é tratado como língua oficial? Deve-seprocurar a explicação nos processos históricos deconformação das sociedades. De fato, quando povosdiferentes encontram-se num mesmo território, sejade forma pacífica ou por motivos de conquista, ocorreque a língua falada pela sociedade que tem o domíniosócio-político e militar impõe a sua língua comooficial, de forma que todas as atividades regularesdo Estado são feitas através dessa língua oficial,enquanto que as línguas faladas pelos outros povossão relegadas a usos secundários ou de comunicaçãoapenas local.

No caso específico do Brasil, a línguaportuguesa foi inicialmente imposta como oficial pelosportugueses. Quando o Brasil deixou de ser colônia

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de Portugal, essa imposição foi mantida pelo grupo

de brasileiros que possuem o poder sócio-político.

O problema da língua

Os povos indígenas focalizaram inicialmentea suas lutas no problema do território, noreconhecimento de suas terras por parte do Estado.Nos últimos anos, paralelamente a suasreivindicações territoriais, os povos indígenas, e suasorganizações políticas, vêm lutando peloreconhecimento de suas línguas e de uma educaçãoque corresponda aos seus padrões socioculturais.

O Brasil, como acontece com outros paísesda América Latina, enfrenta uma problemáticalingüística de permanente conflito entre as línguasfaladas pelos diversos povos indígenas e a línguaoficial, o Português. As línguas indígenas, nos 500anos de contato, transformaram-se em línguasoprimidas, relegadas a línguas de comunicaçãoinformal e de funções expressivas, enquanto oPortuguês é a língua de uso formal e de funçõesintelectivas. Vê-se que existe uma dicotomiaconflitante entre as línguas oprimidas, faladas pelospovos indígenas, e a língua opressora, falada pelasociedade nacional. Diante disso, surge uma opçãoradical com relação ao tratamento das línguasoprimidas: acelerar a sua extinção ou, pelo contrário,procurar a sua manutenção, revitalização edesenvolvimento.

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Penso que manter o monolingüismo indígenaconstitui, nos momentos atuais, uma forma dediscriminação e marginalização. Embora o Portuguêstenha se convertido num instrumento de exploraçãoeconômica e de coação sócio-política, reconhece-seque as sociedades indígenas serão, no futuro,socialmente bilíngües. Como afirma Lênin “asnecessidades do intercâmbio econômico obrigarãoàs nacionalidades que se localizam dentro de ummesmo Estado aprender a língua da maioria”.Também o sociolingüista Xavier Albó, ao discutir asituação das línguas andinas Quíchua e Aimara,adverte que “dadas as condições sociais eeconômicas vigentes e muito dificilmentemodificáveis, o espanhol será o meio viável para queos povos autóctones possam adquirir a capacidadetécnica e acadêmica necessária para dialogar com ogrupo dominante e para não seguir sendomarginalizados e oprimidos nos inumeráveisprocessos de integração nacional e continental”.

De fato, na era da globalização, é impossívelpensar que o Português não seja introduzido nassociedades indígenas. O processo de contato doPortuguês com as línguas indígenas iniciou-se coma chegada dos europeus, contato que se vemintensificando nos últimos anos, de tal modo que hásociedades indígenas em que as crianças possuemo Português como língua materna. Reconhecer essarealidade não implica que se tenha que deixar delado as línguas indígenas; pelo contrário, elas devemser mantidas procurando sua codificação escrita eseu desenvolvimento intelectivo mediante

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publicações de livros, gramáticas, dicionários,literatura indígena. As línguas indígenas devem serusadas na educação formal, na tecnologia, naagricultura, na ciência.

A alfabetização na língua indígena e o ensinopara a aquisição da segunda língua deverão sercríticos e desalienantes, pois do contrário ambosesses processos servirão de base para adesvalorização das línguas indígenas, servindo comofontes para a dominação. A alfabetização na línguaindígena e o ensino da segunda língua devem serinstrumentos básicos para que os indígenas sejameles mesmos, mantenham a sua identidade étnicae adquiram autoconfiança para sua próprialibertação.

Por outro lado, não se deve esquecer que aconservação e desenvolvimento das línguas eculturas indígenas não serão possíveis se esses povosnão contarem com a garantia e respeito de seusterritórios e com o apoio do Estado para o seudesenvolvimento econômico.

O problema da educação

Desde o século XVI até a metade do séculoXX, a educação formal indígena desenvolvida peloEstado brasileiro esteve pautada na catequização eassimilação dos índios à sociedade nacional.Cristianizar, civilizar e modernizar eram os objetivosda educação formal dos séculos XVI-XX. Mesmo no

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período em que foram criadas as escolas bilíngües,o objetivo delas foi assimilar os índios à sociedadenacional. Nessas escolas, a língua indígena eraapenas um meio para transmitir os conteúdosculturais da sociedade dominante. Nesse sentido,os programas de educação bilíngüe, tal como foramconcebidos, representam uma versão modernista daeducação tradicional, ou seja, aquela em que oensino da língua oficial era ministrada diretamenteaos falantes das línguas indígenas. Essas escolasbilíngües foram, na verdade, instrumentos poderososde imposição de valores alheios, que negavam asidentidades culturais dos povos indígenas.

Os primeiros debates sobre uma educaçãoque respondesse aos interesses dos povos indígenasocorreram a partir do final da década de 1970, comoparte dos movimentos das próprias organizaçõesindígenas. O resultado mais concreto dessesmovimentos foi a introdução de artigos referentesaos povos indígenas na nova Constituição brasileirade 1988. Esses artigos, considerados na nova CartaMagna, reconhecem, pela primeira vez, o direito dospovos indígenas de continuarem sendo o que são.Menciona-se também que é dever do Estado protegere garantir o direito à diferença.

Aos artigos da Constituição Federal do 88somam-se outros dispositivos legais que garantem aeducação indígena diferenciada: o Decreto 26/91, aPortaria Interministerial 559/91, o Decreto queinstituiu o Programa Nacional dos Direitos Humanos,a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

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(Lei 9.394/96) ou Lei Darcy Ribeiro e, finalmente, apublicação, em 1998, do Referencial CurricularNacional para as Escolas Indígenas (MEC, 1998). Essedocumento, segundo a Secretaria de EnsinoFundamental, visa “oferecer subsídios e orientaçõespara a elaboração de programas de educação escolarindígena que atendam aos anseios e aos interessesdas comunidades indígenas, considerando osprincípios da pluralidade cultural e da eqüidade entretodos os brasileiros, bem como para a elaboração eprodução de materiais didáticos e para a formaçãode professores indígenas”.

Todos esses documentos citados especificamque a educação escolar indígena deve serintercultural e bilíngüe, específica e diferenciada.De fato, o sistema da educação formal das sociedadesindígenas deve ser bilíngüe, mas definido dentro deuma política educativa libertadora. A educaçãobilíngüe não deve ser apenas uma ponte para chegarà sociedade nacional. A educação bilíngüe deveconsiderar as culturas dos povos indígenas para,posteriormente, gerar um diálogo crítico e criativocom outras culturas. Nesse aspecto, uma educaçãobilíngüe bem entendida deve estar orientada parauma interculturalização regional, nacional einternacional.

O processo da educação bilíngüe eintercultural deve focalizar a manutenção edesenvolvimento das línguas indígenas, comoinstrumentos de afirmação étnica. Uma educaçãobilíngüe intercultural relaciona-se com a

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necessidade dos povos indígenas terem umaeducação entrosada na sua realidade lingüística ecultural. Por outro lado, a sociedade brasileiraprecisa estar informada sobre a realidade dos povosindígenas, como aporte à construção de umasociedade que respeite o diálogo intercultural. Paraos povos indígenas a educação bilíngüe e interculturalconstitui uma estratégia política de manutenção dalíngua e cultura, e uma procura de participação ativana vida econômica, social, política e cultural dasociedade nacional.

Fundamentos da educação bilíngüe e intercultural

Existem pelos menos três fundamentosbásicos para se considerar uma educação bilíngüe eintercultural para os povos indígenas:

· O desenvolvimento cognitivo das criançasdá-se na língua materna, a mesma que joga um papeldecisivo no processo de socialização edesenvolvimento do pensamento. A aprendizagem daleitura e escritura dá-se igualmente na língua quea criança fala e entende. Considerando esse fato,justifica-se que a alfabetização das criançasindígenas deve ser nas próprias línguas que elasfalam.

· Uma educação intercultural bem sucedidapossibilita o bilingüismo individual e social,estabelecendo redes e instâncias de intercâmbiocultural e lingüístico.

· Uma educação bilíngüe e intercultural devefomentar a identidade nacional de um país unido

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na diversidade lingüística e cultural.

Formação de recursos humanos

Na educação bilíngüe e interculturalinteragem línguas de valorizações sociais diferentes:a língua dominante e de prestígio, neste caso oPortuguês, e a língua dominada e discriminada, istoé, as línguas indígenas. Daí que todo programa deeducação intercultural deve considerarminimamente:

A formação de recursos humanos, ou seja,professores indígenas especialistas em educaçãobilíngüe e intercultural.

Elaboração de materiais didáticos para oensino da língua materna e da segunda língua

O desenvolvimento de um currículodiversificado que contemple matérias relacionadascom a problemática regional, nacional einternacional. Em outras palavras, um currículo queleve em conta a realidade sociocultural de cada povoindígena.

O futuro dos povos indígenas

O futuro dos povos indígenas, como tambémde suas línguas e culturas, depende essencialmenteda organização deles mesmos, pois, na medida emque consigam lutar por seus direitos, terão melhoresmeios de sobrevivência.

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Uma condição básica para a sobrevivênciadas sociedades indígenas é a garantia de seusterritórios. Enquanto os territórios indígenas sejamdemarcados e o uso de seus recursos naturais sejamgarantidos e protegidos pelo Estado, os povosindígenas se manterão demograficamente estáveise poderão crescer. Em outras palavras, o futuro daslínguas e culturas indígenas relaciona-se àexistência dos povos como sociedades dinâmicas.Esse futuro não depende apenas de medidaslingüísticas e culturais, mas especificamente demudanças estruturais nos planos social, econômicoe político.

Quanto ao papel da escola nas sociedadesindígenas, cito as palavras do professor GuaraniValentim Pires31: “no mundo de hoje a escola setornou importante também para nós [...] com a ajudada escola, com uma educação que realmenteresponda às nossas necessidades, queremosreconquistar a autonomia sócio-econômica e cultural,e sermos reconhecidos como cidadãos etnicamentediferentes. Não queremos mais que a escola sirvapara desestruturar nossa cultura e nosso jeito deviver, que não passe mais para nossas crianças aidéia de que somos inferiores e que, por isso,precisamos seguir o modelo dos brancos para sermos

respeitados”.

31 1° Encontro de Educação Indígena da América Latina, UFMS, Dourados,23-27/03/1998

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Referências

ALBÓ, Xavier. El futuro de los idiomas oprimidos. InOrlandi, Eni Pulcinelli (org.). Política Lingüística naAmérica Latina, Campinas: Pontes 1988. p. 75-104.

BRASIL Constituição (1988). Constituição: RepúblicaFederativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988

HEISE, María. et al. Interculturalidade un desafío.Lima: CAAAP, 1994.

INSTITUTO CENTRAL DE NACIONALIDADES. Todaslas nacionalidades tienen la libertad de usar suspropias lenguas orales y escritas. Pekin Informa, n.37,p. 20-23,1975.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO.Diretrizes para a Política nacional de educação escolarindígena. Cadernos Educação Básica. Brasília: MEC,1993.

______. Lei de diretrizes e bases da educação. Brasília:Congresso Nacional.1996.

______. Referencial curricular nacional para as escolasindígenas. Brasília: MEC, 1998.

MOSONYI, Esteban Emilio. Responsabilidad dellingüista frente a los pueblos indígenas americanos.América Indígena, México, v.42, n.2, p.289-300, abr./jun.1982.

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