questão social e políticas sociais no brasil contemporâneo

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Questo Social e Polticas Sociais no Brasil Contemporneo

Livro Questao Social.indb 1

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Governo FederalMinistro de Estado Extraordinrio de Assuntos Estratgicos Roberto Mangabeira Unger

Secretaria de Assuntos Estratgicos

Fundao pblica vinculada Secretaria de Assuntos Estratgicos, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e de programas de desenvolvimento brasileiro e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

Presidente Marcio PochmannDiretor de Administrao e Finanas

Fernando FerreiraDiretor de Estudos Macroeconmicos

Joo SicsDiretor de Estudos Sociais

Jorge Abraho de CastroDiretora de Estudos Regionais e Urbanos

Liana Maria da Frota CarleialDiretor de Estudos Setoriais

Mrcio Wohlers de AlmeidaDiretor de Cooperao e Desenvolvimento

Mrio Lisboa TheodoroChefe de Gabinete

Persio Marco Antonio DavisonAssessor-Chefe da Assessoria de Imprensa

Estanislau Maria de Freitas JniorAssessor-Chefe da Comunicao Institucional

Daniel Castro Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria URL: http://www.ipea.gov.br

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Luciana JaccoudOrganizadora

Questo Social e Polticas Sociais no Brasil Contemporneo

Reimpresso 2009

Frederico Barbosa da Silva Guilherme C. Delgado Jorge Abraho de Castro Jos Celso Cardoso Jr. Mrio Theodoro Nathalie Beghin

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Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 20051a Impresso 2005 Reimpresso 2009

Questo social e polticas sociais no Brasil contemporneo / Luciana Jaccoud, organizadora ; Frederico Barbosa da Silva ... [et al.]. Braslia : IPEA, 2005. 435 p. : grfs., tabs. Inclui bibliografias 1. Poltica Social. 2. Poltica Agrria. 3. Mercado de Trabalho. 4. Anlise Histrica. 5. Gastos Sociais. 6. Interveno do Estado. 7. Participao Social. I. Jaccoud, Luciana Barros. II. Silva, Frederico Augusto Barbosa da. III. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada. CDD : 361.61

As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e de inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada, do Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto.

A impresso desta publicao contou com o apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), via Programa Rede de Pesquisa e Desenvolvimento de Polticas Pblicas Rede-Ipea, o qual operacionalizado pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), por meio do Projeto BRA/04/052. permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

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SOBRE OS AUTORESFrederico Augusto Barbosa da Silva, antroplogo e doutor em Sociologia pela Universidade de Braslia (UnB), tcnico de planejamento e pesquisa do Ipea e tem trabalhos desenvolvidos nas reas de polticas pblicas sociais e de cultura. E-mail: [email protected] Guilherme Costa Delgado, economista e doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tcnico de planejamento e pesquisa do Ipea, tendo publicado vrios trabalhos sobre polticas pblicas e agricultura no Brasil. Tem-se dedicado ainda ao estudo da poltica previdenciria, em especial da previdncia rural. E-mail: [email protected] Jorge Abraho de Castro, estatstico e doutor em Economia com concentrao em Polticas Sociais pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE-Unicamp), funcionrio do Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto, trabalhando atualmente enquanto pesquisador do Ipea e como professor do Departamento de Contabilidade da Universidade de Braslia (UnB). Em seus trabalhos recentes, tem-se dedicado ao estudo e pesquisa a respeito das polticas sociais, com nfase em seus processos de financiamento e gastos pblicos nos ltimos anos. E-mail: [email protected] Jos Celso Cardoso Jr., economista graduado pela Universidade de So Paulo (USP), mestre em Teoria Econmica pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp) e doutorando em Economia Social e do Trabalho tambm pelo IE/Unicamp, tcnico de planejamento e pesquisa do Ipea e, atualmente, desempenha funes docentes no Centro Universitrio do Distrito Federal (UniDF) e no MBA de Planejamento, Oramento e Gesto Pblica da Fundao Getlio Vargas (FGV). E-mail: [email protected] Luciana de Barros Jaccoud, sociloga e doutora em Sociologia pela Escola de Altos Estudos de Cincias Sociais (EHESS-Paris), tcnica de planejamento e pesquisa do Ipea. Tem realizado pesquisas sobre polticas de proteo social e participao social nas polticas sociais. E-mail: [email protected] Mrio Lisboa Theodoro, doutor em economia pela Universidade de Paris I Sorbonne, foi tcnico de planejamento e pesquisa do Ipea entre 1986 e 2003. Atualmente consultor legislativo do Senado Federal e pesquisador visitante do Mestrado em Polticas Sociais da Universidade de Braslia (UnB). autor de vrios estudos sobre mercado de trabalho. E-mail: [email protected] Nathalie Beghin, economista pela Universidade Livre de Bruxelas, mestre e doutoranda em Polticas Sociais pela Universidade de Braslia (UnB), pesquisadora do Ipea, membro do Conselho Diretor do Instituto de Estudos Socioeconmicos (Inesc) e presidente da Ao Brasileira pela Nutrio e Direitos Humanos (Abrandh). autora de textos e livros sobre polticas pblicas sociais. E-mail: [email protected]

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SUMRIOAPRESENTAO INTRODUO

1a PARTE: QUESTO SOCIAL NO BRASIL: HERANA HISTRICA E SITUAO ATUALCAPTULO 1 O SETOR DE SUBSISTNCIA NA ECONOMIA BRASILEIRA: GNESE HISTRICA E FORMAS DE REPRODUO

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Guilherme C. DelgadoCAPTULO 2 A QUESTO AGRRIA NO BRASIL, 1950-2003

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Guilherme C. DelgadoCAPTULO 3 AS CARACTERSTICAS DO MERCADO DE TRABALHO E AS ORIGENS DO INFORMAL NO BRASIL

51

Mrio TheodoroCAPTULO 4 A QUESTO DO TRABALHO URBANO E O SISTEMA PBLICO DE EMPREGO NO BRASIL CONTEMPORNEO: DCADAS DE 1980 E 1990

91

Jos Celso Cardoso Jr.

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2a PARTE: POLTICAS SOCIAIS: DILEMAS E PERSPECTIVASCAPTULO 5 POLTICAS SOCIAIS NO BRASIL: ORGANIZAO, ABRANGNCIA E TENSES DA AO ESTATAL

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Jos Celso Cardoso Jr. e Luciana JaccoudCAPTULO 6 POLTICAS SOCIAIS NO BRASIL: GASTO SOCIAL DO GOVERNO FEDERAL DE 1988 A 2002

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Jorge Abraho de Castro e Jos Celso Cardoso Jr.

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CAPTULO 7 POLTICAS SOCIAIS NO BRASIL: RESTRIES MACROECONMICAS AO FINANCIAMENTO SOCIAL NO MBITO FEDERAL ENTRE 1995 E 2002

Jorge Abraho de Castro e Jos Celso Cardoso Jr.CAPTULO 8 POLTICAS SOCIAIS NO BRASIL: PARTICIPAO SOCIAL, CONSELHOS E PARCERIAS

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Frederico Barbosa da Silva, Luciana Jaccoud e Nathalie BeghinCAPTULO 9 DESENVOLVIMENTO E POLTICA SOCIAL

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Guilherme C. Delgado e Mrio Theodoro

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APRESENTAO

Esta publicao vem expressar, mais uma vez, o acmulo de conhecimento do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea) no campo social. Somando-se a outras iniciativas similares da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc), este livro divulga os resultados de estudos e pesquisas de tcnicos do Instituto sobre as polticas sociais ao longo da ltima dcada. O leitor remetido, na primeira parte do livro, a um exame atento da formao histrica do mercado de trabalho brasileiro, tanto no campo como nas cidades com a consolidao dos setores de subsistncia e informal. A segunda parte apresenta o quadro geral das polticas sociais no mbito federal implementadas no perodo 1990-2002. So abordados a abrangncia dessas polticas, os instrumentos e os mecanismos de seu financiamento, assim como a trajetria dos gastos sociais. Destaca-se, ainda, o papel que a sociedade vem assumindo na formao, implementao e no controle das polticas pblicas. O conjunto de estudos convida ento o leitor para uma reflexo sobre as interaes entre desenvolvimento e poltica social - tema do captulo que conclui a obra. O livro inova ao alcanar uma descrio analtica que pode subsidiar o debate pblico pela via da apresentao e anlise dos diversos componentes que integram as polticas sociais no Brasil. Para uma instituio como o Ipea, que tem como um de seus objetivos centrais dedicar-se aos temas sociais, esta edio representa mais uma oportunidade para difundir conhecimento e contribuir para o aperfeioamento de aes voltadas para a melhoria das condies de vida da populao. Glauco Arbix Presidente do Ipea

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INTRODUO

Ganhou corpo, a partir da segunda metade dos anos 1990, intenso debate sobre os rumos e os limites da poltica social no Brasil. As discusses tm destacado o tema do formato e potencialidades da ao social, no apenas governamental, mas de todo um complexo sistema que envolve tambm as formas de organizao da sociedade brasileira. De fato, a persistncia da pobreza, o avano dos bolses de misria em torno dos maiores centros urbanos, a perpetuao de imensas desigualdades sociais sobretudo a distribuio perversa da renda nacional , assim como a piora nas condies de trabalho no campo e nas cidades vm ampliando as tenses e impondo novos desafios s polticas sociais. O debate vem, assim, no apenas se ampliando, mas se reorganizando em novos termos. Reafirmam-se, de um lado, as demandas pelo aumento da abrangncia da cobertura das polticas sociais, pelo maior controle social das polticas pblicas e pela efetivao dos direitos sociais. De outro, defende-se o aumento da eficincia das polticas sociais pela maior focalizao dos seus gastos em face das situaes mais extremas de pobreza e de misria com base na crtica da insuficincia e ineficcia da ao pblica estatal, bem como de sua ineficincia alocativa, ganhando fora os apelos por maior participao da sociedade na execuo das aes sociais. Contudo, a despeito da explicitao dos diferentes pontos de vista, o debate no se tornou mais simples nem mais objetivo. Ao contrrio, os desafios se avolumam medida que se mantm inalterados processos econmicos e sociais que esto na origem da persistncia da pobreza e da misria, ao mesmo tempo em que se multiplicam novas fontes de gerao de precariedade econmica e vulnerabilizao social. Nosso processo de modernizao no apenas no tem conseguido enfrentar as razes da misria e da desigualdade, como parece mesmo se alimentar delas. Nesse contexto, a Constituio de 1988 mantem-se como referncia, sustentando a perspectiva de um novo espao pblico, no qual o escopo da interveno do Estado se estende pela via dos direitos sociais, na busca da afirmao de uma cidadania ampla, h muito postergada. Os velhos e recorrentes condicionantes de nossa extrema desigualdade e da reproduo da pobreza e da misria voltam como elementos cruciais do debate. As razes histricas de tais elementos so a chave de seu entendimento. Da abolio aos dias atuais, as questes do trabalho e da terra mantiveram-se intactas. Com efeito, o mundo do trabalho livre que ir estruturar a vida social do Brasil republicano ser profundamente marcado por

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dois vetores-chave que se reproduzem secularmente: relaes de trabalho precarizadas e desprotegidas e relaes fundirias fortemente desiguais. A ausncia de respostas efetivamente republicanas para uma e outra demonstra que a chaga social brasileira no algo circunstancial, mas o resultado de um projeto de nao que se forjou nos ltimos cento e cinqenta anos. E em tal cenrio que se defrontam hoje novas e velhas situaes de pobreza, intervm os atores organizados da sociedade civil e operam estruturas burocrticas encarregadas de dar respostas aos problemas sociais postos na agenda poltica. Este livro fruto de uma srie de discusses que reuniu, em torno destas preocupaes, um grupo de pesquisadores da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc) do Ipea, durante o ano de 2004. No decorrer dos debates, duas ordens de questes acabaram por se impor ao grupo, e com base nessa diviso est organizada esta publicao: i) os processos de criao e recriao de expressivos segmentos da populao alienados de condies dignas de vida e de trabalho; e ii) as questes referentes ao papel do Estado e das polticas sociais, particularmente as impulsionadas pelo governo federal, assim como do projeto de participao social e de desenvolvimento econmico que lhes so subjacentes. Unem os dois conjuntos de questes e as duas partes do livro a perspectiva de que a conexo entre a esfera social e a esfera econmica deve servir de esteio anlise da poltica social. Distribudo em nove captulos, este trabalho contm, alm de um eixo analtico comum, vrias abordagens especializadas da questo social e das polticas sociais implementadas a partir de 1988. Na primeira parte, confronta-se a problemtica histrica da desigualdade social e seu processo de recriao, neste final de sculo XX. Na segunda parte, apresenta-se o todo do padro recente de interveno do Estado na rea social, bem como o conjunto de desafios que esse formato de interveno busca enfrentar. Dessa forma, a primeira parte do livro se estrutura em torno do processo de formao histrica e da configurao contempornea da questo social no Brasil. Na base desta problemtica encontram-se as questes da terra e do mercado de trabalho, que tm sido, historicamente, sinnimos de excluso social e raiz da questo social na perspectiva aqui ensejada. Essa parte inicial composta de quatro captulos, sendo dois dedicados questo agrria e, dois, ao trabalho urbano. Assim, o primeiro captulo, de autoria de Guilherme C. Delgado, resgata a noo da histria colonial de economia de subsistncia no Brasil e acompanha sua evoluo e reproduo ao longo dos dois ltimos sculos. A dimenso social do setor de subsistncia rural e o seu lugar atual na economia moderna so desafios tericos e polticos que esto postos interpretao da questo social brasileira contempornea. Na anlise desenvolvida, o setor de subsistncia en-

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tendido como o conjunto de atividades econmicas e relaes de trabalho que propiciam meios de subsistncia e ocupao a parte expressiva da populao rural. Essas atividades e relaes, em todo o perodo histrico analisado, no esto reguladas pelo contrato monetrio de trabalho, nem visam primordialmente produo de mercadoria ou servios com fins lucrativos. Para o autor, o setor de subsistncia foi, e ainda , importante espao de produo de pobreza e matriz de desigualdade, no qual, a despeito de suas potencialidades, esto enclausurados dois teros dos trabalhadores rurais do pas. Ao avaliar as polticas pblicas em torno da posse e do uso da terra, o segundo captulo, tambm de autoria de Guilherme C. Delgado, reconstitui a trajetria do debate sobre a questo agrria nos ltimos 50 anos. Retomando as respostas apresentadas desde a dcada de 1950 para a questo, o autor mostra que o debate estruturou-se em torno de duas alternativas: a reforma agrria e a implementao do projeto da modernizao tcnica sem mudana da estrutura fundiria. O agronegcio aparece, nesse contexto, como o herdeiro do histrico pacto conservador em torno do projeto da modernizao tcnica, e d continuidade a uma poltica que ratifica e estende a renda fundiria e o processo de especulao de terras, com efeitos perversos poltica de reforma agrria e s condies de ocupao da mo-de-obra no campo, aos empregos agrcolas e ao fortalecimento da economia familiar. Mrio Theodoro escreve o terceiro captulo no qual dedica-se a apresentar os traos gerais da formao do mercado de trabalho urbano no Brasil. Mostra que o processo de criao do trabalho livre foi tambm a origem da excluso de parte importante da mo-de-obra nacional formada de ex-escravos e de outros segmentos excludos. O autor destaca ainda que este processo no se desenvolveu de forma desorganizada ou espontnea, mas que foi, ao contrrio, em larga medida, produto da ao do Estado em face do mercado de trabalho. A gnese do desemprego, do subemprego e da informalidade pode ser identificada nessa histria, e no processo que se reproduz continuamente durante todo o sculo XX, aliando o moderno ao excludente, e o progresso e o desenvolvimento a uma estrutura perversa de ocupao, qual se vincula hoje a maior parte da mo-de-obra urbana do pas. No quarto captulo, Jos Celso Cardoso Jr. trata da situao do mercado de trabalho urbano no Brasil contemporneo, que vem sendo marcado por um amplo processo de desestruturao. O autor analisa os impactos da crise econmica que atingiu o pas a partir de meados da dcada de 1970, assim como descreve os processos de precarizao das relaes de trabalho como o crescimento da informalidade, dos nveis de desemprego e de desocupao, e a piora na qualidade dos postos de trabalho e rendimentos , e a insuficincia das polticas de emprego ento gestadas. O funcionamento atual do mercado de

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trabalho representa, assim, uma nova fonte de tenses que vem se agregar ao difcil quadro social do pas. A segunda parte do livro tem como objeto debater o padro recente de organizao das polticas sociais brasileiras e os desafios que estas polticas vm buscando responder. Estas questes so abordadas nos cinco ltimos captulos do livro, tendo como foco as polticas e os programas implementados pelo governo federal. Os trabalhos ali reunidos tm como eixo comum o reconhecimento do carter diverso e desigual das polticas sociais que compem o nosso sistema de proteo social. A este sistema se associam diferentes princpios, compromissos e desenhos institucionais, com repercusses igualmente diferenciadas no apenas no que se refere aos objetivos, mas, tambm, aos arranjos organizacionais, ao padro de gasto e ao regime de financiamento. O captulo 5, de autoria de Jos Celso Cardoso Jr. e Luciana Jaccoud, apresenta a abrangncia das atuais polticas sociais, identificando quais so elas, os principais programas que as integram, seus princpios de acesso, o perfil de sua cobertura e a trajetria recente de sua expanso. Para alcanar essa meta, prope-se uma grade analtica de leitura para as polticas sociais com base na avaliao das motivaes histricas que as originaram e dos princpios que ainda hoje as organizam. So assim identificados quatro eixos a partir dos quais se estrutura o Sistema Brasileiro de Proteo Social (SBPS): os eixos do trabalho, da assistncia social e combate pobreza, dos direitos incondicionais da cidadania social, e da infra-estrutura social. Verifica-se que em torno desses grupos as polticas articulam-se no somente por meio de movimentos complementares, mas, tambm, de tenses e contradies que marcam o perfil da proteo social no Brasil. No captulo 6, Jorge Abraho de Castro e Jos Celso Cardoso Jr. analisam a evoluo do Gasto Social Federal (GSF) para o perodo de 1988 e 2002. Partindo do mesmo recorte analtico proposto no captulo anterior, buscam examinar ali a participao de cada conjunto de polticas e de cada diferente poltica e programa social no Gasto Social Federal, como tambm avaliar tanto a evoluo geral do GSF quanto sua evoluo por eixo e por poltica no perodo em tela. Os autores destacam um crescimento do GSF entre aqueles anos, embora a anlise das diferentes trajetrias entre os quatro eixos identificados e suas respectivas polticas permita identificar um comportamento no homogneo, possibilitando ampliar a compreenso a respeito das tendncias de evoluo do SBPS. Os mesmos autores do continuidade, no captulo 7, anlise das polticas sociais federais, dedicando-se agora sobre o seu processo de financiamento no perodo 1995-2002. So investigados, em um primeiro momento, os fato-

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res macroeconmicos de constrangimento ao financiamento daquelas polticas. Em seguida, Castro e Cardoso Jr. apresentam a situao das finanas sociais, revelando a estrutura regressiva do financiamento das polticas sociais, que no , contudo, homognea. Na anlise realizada para os quatro eixos das polticas sociais, o quadro se mostra mais complexo, variando entre a distributividade e a regressividade. Observam os autores, ainda, uma mudana na composio da despesa pblica, com tendncia de deslocamento dos recursos reais da rea social para outras reas do gasto federal, relevando um agravamento do quadro de disputa do fundo pblico. Frederico Augusto Barbosa da Silva, Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin apresentam, no captulo 8, um quadro do processo de participao nas polticas sociais hoje. Analisam as duas modalidades de participao social reconhecidas na Constituio de 1988. Assim, no mbito do debate, da deliberao e do controle das polticas pblicas, examinam o caso dos conselhos nacionais de polticas sociais; e no que se refere participao na execuo, analisam a organizao de parcerias entre o governo federal e as entidades privadas sem fins lucrativos. Ao lado da avaliao destas experincias enquanto esforos de democratizao da ao estatal no campo social, os autores destacam as tenses que emergem do processo, no qual a extenso da participao da sociedade nem sempre representa um avano do espao pblico. Guilherme C. Delgado e Mrio Theodoro assinam o fechamento do livro com o captulo 9, apresentando uma reflexo sobre desenvolvimento e poltica social. Para pautar o debate sobre um projeto nacional, os autores propem, a partir de um resgate histrico do sentido atribudo no pas ao termo desenvolvimento, uma mudana de paradigma terico com a adoo de critrios de justia e parmetros de eqidade que permitam incorporar os grupos sociais historicamente excludos dos benefcios do crescimento econmico. Destacando a relevncia, mas reconhecendo os limites da poltica social na ampliao do bemestar social, Delgado e Theodoro recomendam a alterao nos padres de participao e na prpria perspectiva de produtividade associados queles segmentos no circuito econmico por meio de polticas setoriais especficas e de um projeto de desenvolvimento comprometido com os ideais de justia social. Cabe, por fim, agradecer queles que contriburam para que este trabalho chegasse a termo. A relao dos que apoiaram extensa e sempre se corre o risco de injustas omisses. Contudo, necessrio ressaltar os pertinentes comentrios de Srgio Francisco Piola, Roberto Passos Nogueira, Paulo Roberto Corbucci, Herton Ellery Arajo, Andr Gambier Campos e Roberto Henrique S. Gonzles, que em muito ajudaram a aperfeioar os captulos sobre os quais se debruaram. No pode deixar de ser registrada a colaborao dos demais colegas da Disoc

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que, quando da apresentao dos textos nos Seminrios das Quintas, tanto os enriqueceram com comentrios, crticas e sugestes. preciso agradecer ainda a dedicao especial de Marco Aurlio Dias Pires que, por meio da reviso do texto, tornou-o mais palatvel leitura; a Renata Frassetto de Almeida Rose, que ajudou, com competncia, no processo de reviso. A eficincia e a presteza da Coordenao Editorial do Ipea e, em particular, de Silvnia de Araujo Carvalho e de Iranilde Rego Bezerra da Silva, foram fundamentais para a publicao do livro. Luciana Jaccoud

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1a PARTE QUESTO SOCIAL NO BRASIL: HERANA HISTRICA E SITUAO ATUAL

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CAPTULO 1

O SETOR DE SUBSISTNCIA NA ECONOMIA BRASILEIRA: GNESE HISTRICA E FORMAS DE REPRODUO1Guilherme C. Delgado

1 INTRODUO

A noo a respeito de setor de subsistncia na literatura da histria econmica brasileira no aparece de maneira unvoca, e os autores tampouco preocupam-se em aplicar-lhe rigor conceitual. Na realidade, o setor de subsistncia quase sempre definido negativa ou residualmente, supostamente por no ser ncleo estruturante da economia; no possui dinmica prpria, mas depende da grande lavoura; e situa-se margem da economia dirigida aos mercados e esta inexoravelmente tenderia a absorv-lo e domin-lo. O chamado setor de subsistncia aparece, assim, como uma espcie de contraponto modernidade, ao setor moderno, dinmico, capitalista. Tais alegaes, como se ver, so encontradas em diversas obras que tratam do assunto. Porm, a grande maioria dos pesquisadores sequer aborda o setor de subsistncia como tema digno de anlise. Antes de tratar da gnese do setor de subsistncia na economia brasileira, faz-se necessrio justificar a relevncia de sua abordagem. Devem ser mencionadas rapidamente as abordagens de trs notveis historiadores econmicos e sociais do Brasil (Caio Prado Jr., Celso Furtado e Raimundo Faoro) sobre tal tema. A partir desse enfoque, de seu confronto e sntese, responde-se a indagao sobre a relevncia do objeto pesquisado. A leitura histrica da economia de subsistncia e dos seus distintos processos de reproduo, desde o perodo colonial at o longo ciclo de industrializao brasileiro no sculo XX, recupera um objeto de pesquisa, que para o que aqui importa destacar muito relevante compreenso da nossa economia poltica contempornea. A seguir, sero apresentadas as abordagens para a noo de setor de subsistncia dos trs tericos supracitados. Dessas abordagens recupera-se e reconceitua-se1. A primeira verso deste texto foi publicada originalmente na srie Texto para discusso do Ipea, n. 1025, junho de 2004.

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a economia de subsistncia na atualidade do espao agrrio conjunto de atividades e relaes de trabalho, no assalariadas, que propiciam meios de subsistncia maior parte das famlias rurais, sem gerao de excedente monetrio. A falta de excedente monetrio indica baixo grau da mercantilizao da produo, mas no sua ausncia. Esta economia produz autoconsumo e vende produtos e servios com vistas proviso de suas necessidades bsicas de consumo de subsistncia.2 CAIO PRADO JR.

Caio Prado Jr., em sua obra Formao do Brasil Contemporneo (1979), desenvolveu os captulos Agricultura de Subsistncia e Pecuria do Brasil Colonial, mas adverte antes que tais setores no constituem atividades fundamentais da economia colonial, centrada no trinmio grande propriedade, trabalho escravo e monocultura voltado ao comrcio exterior. Certamente a agricultura de subsistncia e a pecuria no se encaixam neste trinmio, embora j no perodo colonial ocupassem parcela expressiva da populao em extenso territorial muito vasta da colnia.Mas no podemos coloc-las no mesmo plano, pois pertencem a outra categoria, e a categoria de segunda ordem (...). Trata-se de atividades subsidirias destinadas a amparar e tornar possvel a realizao das primeiras. No tm uma vida prpria, autnoma, mas acompanham aquelas, a que se agregam como simples dependncia. Numa palavra, no caracterizam a economia colonial brasileira e lhes servem apenas de acessrios (...) (Caio Prado, 1979, p. 124).

claro, na construo analtica da obra em questo, que o trip grande propriedade/trabalho escravo/monocultura, estrutura a produo da grande lavoura e da minerao na produo de mercadorias para o setor externo. Quando trata da agricultura de subsistncia, da pecuria e mesmo das produes extrativistas naquela obra, o trip no se aplica, e o autor ora recorre ao argumento de setor subsidirio residual, reflexo etc., ora faz uso de uma outra noo do setor de subsistncia, na qual se destaca sua especializao na proviso de gneros de subsistncia para o consumo interno.J apontei acima os motivos principais porque fiz esta distino fundamental numa economia como a nossa, entre a grande lavoura que produz para a exportao e a agricultura que chamei de subsistncia por destinar-se ao consumo e manuteno da prpria colnia (...). H a considerar a natureza econmica intrnseca de cada uma e outra categoria de atividade produtiva, o fundamento, o objetivo primrio, a razo de ser respectiva de cada uma delas. A diferena a essencial, e j me ocupei suficientemente da matria (Caio Prado, 1979, p. 157).

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O Setor de Subsistncia na Economia Brasileira: Gnese Histrica e Formas de Reproduo

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Mais adiante, depois de exemplificar diversos ramos das atividades de subsistncia no Brasil Colonial, o autor conclui indicando um segundo carter especfico do setor de subsistncia:Assim, com maior ou menor independncia do lavrador, e maior ou menor extenso da lavoura respectiva, constituem-se a par das grandes exploraes, as culturas prprias e especializadas que se destinam produo de gneros alimentcios de consumo interno da colnia (grifo nosso). um setor subsidirio da economia colonial, depende exclusivamente do outro, que lhe infunde vida e foras (...). Em geral a sua mo-de-obra no constituda de escravos: o prprio lavrador modesto e mesquinho que trabalha. s vezes conta com o auxlio de um ou outro preto ou mais comumente de algum ndio ou mestio (...) (Caio Prado, 1979, p. 160-161).

Em sntese, a noo de setor de subsistncia, na obra de Caio Prado Jr., apresenta quatro caractersticas a destacar: a) atividade subsidiria que depende ora exclusivamente, ora parcialmente da grande lavoura; b) setor produtor de bens de consumo destinados ao autoconsumo da fazenda e ao consumo interno da economia interna (da colnia), mas no exportao; c) especializao na produo de alimentos um valor de uso, distinto das mercadorias produzidas para o mercado externo; e d) estrutura produtiva distinta da grande lavoura, visto que no setor de subsistncia praticamente no se utiliza o trabalho escravo, a produo do tipo no-monocultivo e o estabelecimento produtivo em geral de dimenses pequenas (familiar), produzindo algum ou alguns produtos com mo-de-obra prpria e/ou participao de inmeras relaes de trabalho (dependendo da atividade), que em geral no so de trabalho escravo, tampouco de trabalho assalariado. Observa-se finalmente que, de acordo com Caio Prado Jr., o setor de subsistncia alberga-se na grande propriedade, geograficamente externa s zonas das grandes lavouras, sujeita s relaes fundirias de dominao impostas pelo sistema de sesmarias. Porm, diferentemente da grande lavoura, os agricultores de subsistncia gozam de certa autonomia, principalmente na pecuria, na qual os contratos de parceria entre proprietrios absentestas e vaqueiros so completamente distintos dos contratos entre grandes proprietrios e os seus moradores de condio na grande lavoura.

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22 3 CELSO FURTADO

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Outra abordagem do setor de subsistncia aparece em Celso Furtado (1970), com semelhanas e algumas diferenas em relao s definies de Caio Prado Jr.:O setor de subsistncia, que se estendia do norte ao extremo sul do pas caracterizava-se por uma grande disperso. Baseando-se na pecuria, era mnima sua densidade econmica. Embora a terra fosse o fator mais abundante, sua propriedade estava altamente concentrada. O sistema de sesmarias concorrera para que a propriedade da terra, antes monoplio real, passasse s mos de nmero limitado de indivduos que tinham acesso aos favores reais (...). Dentro da economia de subsistncia cada indivduo ou unidade familiar deveria encarregar-se de produzir alimentos para si mesmo. A roa era e a base da economia de subsistncia. Entretanto, no se limita a viver da roa o homem da economia de subsistncia. Ele est ligado a um grupo econmico maior, quase sempre pecurio, cujo chefe o proprietrio da terra onde tem a sua roa. Dentro desse grupo desempenha funes de vrios tipos, de natureza econmica ou no, e recebe uma pequena remunerao que lhe permite cobrir gastos moratrios mnimos. Ao nvel da roa o sistema exclusivamente de subsistncia, ao nvel da unidade maior misto, variando a importncia de faixa monetria de regio para regio e de ano para ano numa regio (grifo nosso) (Furtado, 1970, p. 120).

No texto, bem como em diversas outras passagens desse clssico, Furtado caracteriza o setor de subsistncia como um espao em que se exercem funes econmicas e no-econmicas, todas elas ligando o setor de subsistncia grande propriedade territorial. Sua produo e sua reproduo dependem da economia mercantil dominante, mas tal setor conserva elementos de reproduo natural, principalmente na pecuria, que o deixam at certo ponto invulnervel s crises peridicas da economia mercantil. A seguir, apresenta-se, tambm como sntese, aquilo que Furtado parece destacar como principais caractersticas do setor de subsistncia: a) h produo de alimentos e outros recursos para suprir o autoconsumo das fazendas e atender ao mercado consumidor urbano e s demandas da grande lavoura; b) alberga-se uma espcie de reservatrio de fora de trabalho, sob controle do grande proprietrio territorial, a quem os ocupantes devem certa sujeio econmica e principalmente lealdade social; c) caracteriza-se por um nvel tcnico de produo muito baixo, condio que lhe confere reduzida capacidade de produo de excedentes, expressos sob a forma de fluxos monetrios pela venda da produo ou pelo pagamento de rendas econmicas apropriveis pelo grande proprietrio territorial; e d) as unidades econmicas de subsistncia em geral a unidade familiar apresentam-se altamente dispersas pelo interior do pas, seguindo o rastro

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da pecuria, e em geral no contam com o concurso do trabalho escravo ou do trabalho assalariado sistemtico. Celso Furtado identifica o ltimo quartel do sculo XVIII e toda a primeira metade do sculo XIX, quando se exaure o ouro das Minas Gerais e a economia aucareira entra em forte declnio pela concorrncia das Antilhas como o tempo histrico de maior adensamento do setor de subsistncia na economia colonial. A ocupao territorial e a manuteno da populao de homens livres de ento eram feitas basicamente por esse setor, que ocupava espao do prprio setor exportador durante fase de relativa e longa estagnao, at que se encontrasse um novo produto fortemente competitivo no comrcio mundial: o caf.4 RAIMUNDO FAORO

A diminuio do setor exportador da economia colonial ao longo de um perodo de quase cem anos 1750-1850 , conquanto a populao mais que dobrasse nesse espao de tempo,2 somente se explicaria, na interpretao de Faoro, pela mediao de um enorme setor de subsistncia na economia colonial que se remete monarquia e, conforme se ver mais adiante, mantm-se tambm ao longo do sculo XX, chegando atualidade tambm com enorme dimenso. Na fase de economia nacional, ser o embrio daquilo que mais tarde se constituir no mercado interno brasileiro. Segundo Faoro, com a contrao econmica do latifndio, a terra e as conexes econmicas produtoras passam a adquirir maior importncia, com a gravitao de categorias de pessoas sem terra em torno do proprietrio (Faoro, 2000, p. 244). Desde a segunda metade do sculo XVIII at aproximadamente 1850, tem-se quase um sculo de decadncia do comrcio exterior, bem como da importao de escravos negros, fatores que iro mudar o carter do prprio empreendimento colonial:No apenas o contedo poltico do senhor rural mudou, seno que transformao mais profunda alterou-lhe o status. Depois de dois sculos ocupados em produzir acar, lavrar ouro, cultivar cana e tabaco, pastorear gado ao lado das funes pra-militares e pra-burocrticas a prpria estrutura da empresa rural toma outro cunho. De caador de riquezas converte-se em senhor de rendas, a fazenda monocultora toma o carter de latifndio quase fechado (...) o antigo minerador, o senhor de engenho o lavrador e2. Em 1750 para uma populao de 1.750.000 habitantes a exportao alcanou 4,3 milhes de libras esterlinas, enquanto em 1800, numa populao de 3,3 milhes de pessoas, mal chegou a 3,5 milhes de libras esterlinas (Faoro, 2000, p. 245).

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o pastor ampliam enquanto o caf no vier avassalar as terras, as culturas de subsistncia, preocupados em adquirir de fora o mnimo possvel de bens, sal, ferro, chumbo e plvora (...) (Faoro, 2000, pp. 243-245).

Em contrapartida, Faoro identificara no sculo XVII, muito antes do declnio do ouro e da estagnao da economia da cana-de-acar, a formao dos sertes interiores do Nordeste, do Centro e posteriormente do Sul, conquistados por aventureiros paulistas e nordestinos que, penetrando ao longo dos rios Tiet, Paraba do Sul e So Francisco, fincaram marcos de conquista colonial, relativamente independentes do movimento de expanso da economia colonial litornea.Os Sertes do Sul e os Sertes do Norte abriram-se ao imprio e ao furor das armas desses duros conquistadores, onde ombrearam no sculo XVII, paulistas como Domingos Jorge Velho, e baianos como Francisco Dias de vila, j agora embrenhados na meta para alargar a zona de criao, limpando-a do indgena (Faoro, 2000, p. 155).

Abertas as vastas regies sertanejas do Nordeste e do Centro pela conquista das Bandeiras, e no extremo Sul pela presena militar oficial, a ocupao dessas reas interiores dar-se- em geral pelo estabelecimento de alguma atividade econmica de subsistncia agricultura alimentar e pecuria extensiva, sendo esta ltima a que mais marcar a fisionomia das fazendas dos diversos sertes brasileiros. Na verdade, cessada a preao dos ndios e a busca de pedras preciosas como motivao imediata das Entradas e das Bandeiras do sculo XVII, a maior parte das populaes indgenas aculturada, a dos poucos quilombos a formados e a poro de brancos que a penetrou, atravessaro os sculos XVII e XVIII tenuamente articuladas economia colonial dominante.A herana do conquistador o coronel e o capanga, o fazendeiro e o sertanejo, o latifundirio e o matuto, o estancieiro e o peo permanecer estvel, conservadora na vida brasileira, no raro atrasando e retardando a onda modernizadora, mais modernizadora que civilizadora, projetada do Atlntico (Faoro, 2000, p. 156). 5 O SETOR DE SUBSISTNCIA UM CONCEITO RELEVANTE?

As trs abordagens apresentadas nas sees precedentes tratam de um campo comum e de diferentes aspectos das noes sobre setor de subsistncia. Para Caio Prado Jr. seria um setor produtor de valor de uso na economia colonial o alimento para consumo humano, que no entanto assume tambm a condio de mercadoria de segunda ordem, e de cunho circunstancial, subsidiria da economia produtora de mercadorias tpicas a grande lavoura. No entanto, o autor considera que as atividades de subsistncia no se integram ao conceito de economia colonial, cujo trip constitutivo est estruturado no trabalho escravo, na grande propriedade territorial e na monocultura desti-

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nada ao comrcio exterior. Segundo tal abordagem, o conceito de economia de subsistncia dispensvel, tendo em vista que no economia to-somente atividade subsidiria, transitria historicamente, sem dinmica prpria, mas inteiramente dependente do setor mercantil. Esse conjunto de negatividades termina por conferir ao setor de subsistncia certo carter de corpo estranho no mbito da economia colonial e, posteriormente, no da prpria economia nacional. Sua dimenso social e territorial, sua reproduo material e suas relaes econmicas e sociais prprias no so devidamente reconhecidas e/ou conceituadas. Ademais, a persistncia secular do setor de subsistncia na economia rural e urbana ao longo de todo esse perodo analisado teria de afetar a prpria natureza da economia mercantil, interpenetrada dialeticamente, e no apenas de forma subsidiria e tangencial como prope o autor. Em Celso Furtado, a noo de setor de subsistncia adquire carter multifuncional contm dimenso econmica e relaes sociais intrnsecas natureza do latifndio brasileiro. No aspecto econmico, Furtado no associa diretamente a noo de subsistncia proviso de meios de subsistncia, como explicitamente o faz Caio Prado Jr. Na verdade, tal noo, em Furtado, est associada idia do setor produtor de pequeno excedente monetrio, em razo do seu baixo nvel tcnico e conseqente precrio nvel de gerao de fluxos monetrios. Embora reconhea tambm o carter dependente do setor de subsistncia em relao economia mercantil, Furtado no radicaliza o argumento da sua completa subsidiariedade, por duas razes: i) contempla evidentes explicaes no-econmicas para as relaes sociais que se estabelecem com a economia mercantil; e ii) reconhece uma dinmica reprodutiva natural no setor de subsistncia, que independe da economia mercantil. Assim, elege a pecuria, e no a agricultura de subsistncia, como atividade estruturante da economia de subsistncia, calcada em moldes familiares e na dependncia sociopoltica da grande propriedade territorial. O autor considera o setor de subsistncia um plo constitutivo da economia colonial e depois da nacional , com caractersticas estveis, resistente s crises cclicas da economia mercantil, no obstante seu baixo nvel tcnico e sua precria capacidade de gerao de excedente econmico. Mesmo assim, o setor reproduz-se secularmente porque os excessos de trabalhadores que se instalam nos latifndios constituem arranjo tpico de relaes sociais de motivao extra-econmica. E tais relaes continuam hegemnicas na sociedade. A viso de Faoro muito prxima dessa explicao extra-econmica de Furtado. Todavia Faoro acentua a relao do latifndio como setor de subsistncia, visualizando na captura da renda da terra pelo latifundirio uma di-

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menso econmica nova, quando a fazenda transforma-se em autarquia. Furtado no reconhece essa tese, em razo de sua viso a respeito da baixa capacidade de produo de excedentes monetrios desse setor. Finalmente, poder-se-ia captar algum consenso de interpretao histrica nesses trs autores. Todos eles reconhecem a dimenso territorial e demogrfica do setor de subsistncia, utilizando-se de indicadores diretos ou indiretos que mostram a maior parte da populao e do territrio nele albergados, seno em todo o perodo colonial, pelo menos no sculo que media a exausto da economia do ouro (ltimo quartel do sculo XVIII), at a plena constituio de uma economia cafeeira exportadora sucednea (ltimo quarto do sculo XIX). Todos os autores citados reconhecem outras relaes de trabalho na economia de subsistncia que no a do trabalho escravo. Portanto, importante reconhecer a coexistncia de um setor de trabalho no-escravo, abrigando parte expressiva da fora de trabalho em pleno regime colonial. Por fim, a grande propriedade territorial, oriunda do sistema de sesmarias, pea integrante fundamental do setor de subsistncia nas abordagens histricas desses trs autores clssicos. No entanto, ainda se pergunta: como fica a configurao do setor de subsistncia com o novo ciclo econmico que se inicia na economia brasileira com o caf, a imigrao, o fim do trabalho escravo, a Lei de Terras e a formao de um mercado de trabalho assalariado no Brasil? Teria sido esse o perodo histrico de exausto do setor de subsistncia, de liquidao de suas relaes sociais atrasadas e de plena constituio de uma economia mercantil no meio rural e no setor urbano? Tais questes marcam a passagem do regime de trabalho escravo ao trabalho livre bem como, na cronologia histrica, a passagem do sculo XIX ao XX. , portanto, essa a proposta da prxima seo, perseguindo de perto o objeto proposto: avaliar o que ocorre com o imenso setor de subsistncia herdado do perodo colonial quando a economia e o Estado ingressam na nova ordem econmica e em seu novo ciclo, o qual, para efeitos didticos, data de 1850.6 O SETOR DE SUBSISTNCIA NA TRANSIO DO ESCRAVISMO AO REGIME ASSALARIADO

A economia escravista comeou a declinar de direito com a proibio do trfico de escravos em 1850, pela Lei Eusbio de Queiroz, e continuou por todo o fim do sculo, de fato e de direito, tendo sido extinta em 1888 com a Lei urea. No fim do sculo, as informaes do Censo de 1872 revelavam que a populao de escravos (1,5 milho de pessoas) representava apenas 16% da populao total, havendo uma populao livre de 8,4 milhes de pessoas (84%)

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que obtinham, em grande medida, os seus meios de subsistncia fora dos domnios do escravismo. Dessa populao escrava, estima-se que, no mximo, 1 milho de pessoas (descartados velhos e crianas) estivesse em atividade efetiva (Canabrava, 1995). Observe-se que em 1872 o surto cafeeiro estava se fortalecendo e j comeava a existir um problema de mo-de-obra nessa lavoura, assim como outra demanda forte por mo-de-obra manifestar-se-ia na economia da borracha no norte do pas ao fim da dcada de 1870 (sculo XIX). Entretanto, a imigrao europia ainda no iniciara seu importante fluxo de abastecimento para o caf, principalmente para So Paulo,3 de sorte que a expressiva participao das profisses livres na fora de trabalho que os dados do Censo de 1872 revelam no reflete ainda os assalariados essas profisses livres concentravam-se fortemente no setor rural e nas atividades domsticas do setor urbano, que juntas empregavam ou acolhiam cerca de 90% da fora de trabalho livre em cinco provncias principais (Rio de Janeiro, So Paulo, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul), com uma pequena diferena para o municpio neutro do Rio de Janeiro, que apresentava um contingente aprecivel de funcionrios pblicos e profissionais liberais.4 Essa massa de fora de trabalho livre somente em frao muito pequena pode ser classificada como assalariada. Mais uma vez, considerando-se a classificao por profisses da populao livre em 1872, feita por Fernando Henrique Cardoso (1977), ter-se-ia que os operrios e os funcionrios pblicos ali clas-sificados poderiam aproximar-se dos trabalhadores assalariados. Os primeiros correspondiam a 4,7% da fora de trabalho livre, enquanto os segundos representavam menos de 1% da populao livre das principais provncias. Tal perfil de profisses, e implicitamente de relaes sociais do trabalho, revela uma situao muito peculiar da sociedade brasileira da poca do imprio, prestes a efetivar a extino do trabalho escravo. Esse regime j no era a base econmica da grande lavoura, e a transio para o regime de trabalho livre ocorreria muito antes da abolio, com recurso imigrao europia na lavoura cafeeira paulista e mo-de-obra do setor de subsistncia nas demais economias provinciais. Contudo, as relaes sociais sobre as quais se assentaria o novo regime de trabalho depois da abolio longe estavam de caminhar para o aprofundamento do assalariamento na economia nacional ps-escravista.

3. O nmero de imigrantes europeus que entram nesse estado sobe de 13 mil na dcada de 1870 para 184 mil no decnio seguinte, e 609 mil no ltimo decnio do sculo (Furtado, 1970, p. 128). 4. Ver tabulaes por profisso elaboradas por Cardoso (1977).

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O funcionamento da economia brasileira na Repblica Velha incapaz de incorporar, de maneira sistemtica, o assalariamento. Sua dinmica, puxada pela expanso da lavoura cafeeira e pela incorporao do trabalho semiassalariado dos contratos de colonato, somente potente o suficiente para a incorporao de pequena parcela do trabalho livre, herdado do antigo setor de subsistncia e, evidentemente, dos novos imigrantes. Em contrapartida, toda a massa ex-escrava e toda a grande lavoura de mais baixa produtividade econmica (acar, algodo, cacau e fumo), e at da borracha, no fim do sculo, conduziro suas atividades econmicas de maneira intimamente associada ao setor de subsistncia. Este, na Repblica Velha, no foi absorvido pela expanso cafeeira, mas reproduziu-se de maneira autrquica ou subsidiou inmeros arranjos de relaes de trabalho com a grande lavoura de certa forma, os quais realimentaram a reproduo de ambos. Os diversos censos econmicos dos anos de 1900, 1910 e 1920 continuaram a apresentar a estrutura ocupacional do Censo de 1872 com exceo do colonato na cafeicultura e do assalariamento urbano, no estado de So Paulo , no obstante o fim do regime escravista. Nesse quadro ocupacional, ver-se- que o antigo setor de subsistncia, forjado no perodo colonial e adensado por quase um sculo (1750-1840) de declnio/estagnao da grande lavoura, permaneceu praticamente intacto nessa nova fase da economia nacional, conservadas algumas das suas antigas caractersticas clssicas, embora tambm despontando com novos perfis.6.1 O setor de subsistncia, a Lei de Terras e a abolio

A grande propriedade territorial, fundada no regime colonial das sesmarias, detm simultaneamente domnio sobre a grande lavoura escravista, monocultora e destinada ao comrcio externo, e sobre o setor de subsistncia, operado, nesse ltimo caso, mediante recurso s mltiplas relaes de trabalho no-escravo que vinculam o agricultor familiar ao proprietrio da terra. A produo dessa agricultura familiar, geralmente de gneros de subsistncia, parece ser o aspecto secundrio de tal relao; a dependncia social e pessoal do agricultor de subsistncia em relao ao senhor de terras, por sua vez, caracterstica essencial. Esse setor de subsistncia sobreviveu abolio da escravatura, entre outros fatores, por ser um subsistema independente do escravismo e, de certa forma, tambm autnomo relativamente monocultura exportadora embora no o seja em relao ao regime fundirio vigente. Nota-se, portanto, que a crise da monocultura exportadora na primeira metade do sculo XIX e a crise do escravismo na segunda metade do mesmo sculo no produziram transformao radical no setor de subsistncia, mas, ao

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contrrio, geraram sua reproduo em escala ampliada. Isso na verdade refletiu na substituio do regime das sesmarias, extinto em 1822, por meio de um estatuto ainda mais conservador de relaes fundirias: a Lei no 601/1850 (Lei de Terras), a qual, porm, precedida por um regime transitrio, vigente at 1850, que inovara o direito agrrio com o reconhecimento da posse: da por diante, em lugar dos favores do poder pblico, a terra se adquire por herana, pela doao, pela compra e sobretudo pela ocupao a posse, transmissvel por sucesso e alienvel pela compra e venda (Faoro, 2000, p. 408). Observa-se que a vigncia desse regime de posse transitria e breve na histria econmica, bem como coincide com perodo de forte decadncia da grande lavoura contudo, tal regime foi completamente alterado com a Lei de Terras, de 1850. Esta reconhecia as sesmarias previamente concedidas em cada comarca ou parquia e mesmo as posses obtidas no perodo anterior (18221850), desde que fossem encontradas nos registros cartoriais ou paroquiais ento estabelecidos.Para o futuro punha-se termo ao regime das posses, admitida a transmisso das propriedades apenas pela sucesso e pela compra e venda (...) para o futuro as terras pblicas s seriam adquiridas por meio de compra, com a extino do regime anrquico das ocupaes (...) (Faoro, 2000, p. 408-409).

Tal estatuto fundirio de 1850 corresponde, de certa forma, a um duplo golpe histrico: primeiramente liquida o sistema de posses fundirias que se estabelecera em 1822 e que poderia transformar o setor de subsistncia em regime de propriedade familiar; ademais, acaba com a possibilidade futura de transformao da mo-de-obra escrava liberta em novo contingente de posseiros fundirios, o que inclui ainda a possibilidade de criao de quilombos legais ou de estabelecimentos familiares legalizados. Em lugar dessa transio histrica, que de alguma maneira se desenhara parcialmente a partir de 1822, recompe-se o setor de subsistncia sob a gide da grande propriedade:O lavrador sem terras e o pequeno proprietrio somem na paisagem, apndices passivos do senhor territorial que, em troca da safra, por ele comercializada, lhes fornece em migalhas encarecidas os meios de sustentar o modesto plantio. As precrias choupanas que povoam o latifndio abrigam o peo, o capanga, talvez o inimigo velado, servo da gleba sem estatuto, sem contrato e sem direitos. O sistema das sesmarias deixou, depois de extinto, a herana: o proprietrio com sobras de terras, que nem os cultiva, nem permite que outro as explore. Os lavradores, meeiros e moradores de favor so duas sobras que a grande propriedade projeta, vinculados agricultura de subsistncia, arredados da lavoura que exporta e que lucra (...) (Faoro, 2000, p. 418).

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A transio do escravismo para o regime de trabalho livre no representa propriamente, no fim do sculo, a emergncia de um regime assalariado em bases nacionais. Entretanto, graas ao regime fundirio recalibrado em 1850, a abolio trouxe os ex-escravos para o setor de subsistncia, reforando as relaes de dependncia social que vinculavam os trabalhadores livres grande propriedade territorial. As muitas relaes de trabalho no-assalariado que coexistiam com o trabalho assalariado na grande propriedade concorreram para depreciar o salrio monetrio e o prprio contrato salarial. Nesse perodo, as relaes de trabalho no estavam protegidas por instituio pblica. A dimenso quantitativa desse setor de subsistncia, com as caractersticas que aqui esto em destaque, pode ser identificada nas estatsticas demogrfico-profissionais dos vrios censos, posteriores abolio (de acordo com os censos demogrficos de 1872 a 1920), abordagem qual, por ora, no se dedicar este texto.5 Em contrapartida, a emergncia do setor de grande lavoura, movido a trabalho assalariado, e fortemente abastecido pela imigrao, uma realidade histrica que somente pode ser entendida dinamicamente se interpretada em conexo com a manuteno e a ampliao do setor de subsistncia na economia. A conservao das relaes fundirias e de trabalho, intocveis na transio da abolio, marcaram toda a economia e a sociedade da Repblica Velha com evidentes sinais de atraso social e conservadorismo poltico. Tal pacto na Repblica Velha, de alguma forma, condenou as foras sociais emergentes graas ao desenvolvimento da cafeicultura e do setor urbano a reproduzirem muitos dos traos da vida colonial. So Paulo, apresentando um diferente pacto social, uma exceo, que no generaliza seu projeto de desenvolvimento para o conjunto do pas. Ao contrrio, acomoda-se plenamente regncia de uma ordem conservadora, sem dinamismo prprio, at a derrocada poltica em 1930.7 A QUESTO SOCIAL DEPOIS DA ABOLIO

O sculo XX um perodo histrico privilegiado, mas contraditrio no que tange reflexo sobre a questo social brasileira. O pensamento social sobre a formao do pas diversifica-se e, at certo ponto, a prpria histria acelera-se em decorrncia da emergncia de novos atores aps a abolio da escravatura. Ocorrem ainda diversos surtos de industrializao que iro emergir at a dcada de 1930. Depois desses surtos, o pas experimentar processo intenso de

5. Para o Censo Demogrfico de 1872, o setor de subsistncia pode ser deduzido por excluso das categorias urbanas assalariadas e dos escravos, tomando-se por base a mencionada tabulao de Cardoso (1977).

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industrializao, at o incio da dcada de 1980. Posteriormente, a economia passa por um longo perodo de relativa estagnao. Todavia, a questo social brasileira clssica do sculo anterior, que desembocara na abolio, aparentemente esgotou-se em um ato formal a Lei urea , e a sociedade que se estruturou a partir de ento j no era vista como em dvida profunda com as necessidades do mundo moderno em termos de mudana das relaes sociais. Ao mesmo tempo, a reflexo sobre a questo social extrapola o campo da poltica para outras esferas da vida em sociedade, a exemplo da literatura social e regional, do banditismo rural, do conflito religioso e dos problemas decorrentes das secas etc., englobando muitas outras situaes dentro do contexto brasileiro, mas sem um eixo geral de cunho poltico e sem abrangncia nacional. A partir da questo social focalizada provisoriamente na transio do regime de trabalho escravo para o regime de trabalho livre (no-escravo), ver-se- que se perde o prprio objeto as relaes sociais estruturantes, que tinham mobilizado a sociedade e a poltica em nvel nacional poca do escravismo. Com a abolio do regime de trabalho escravo, emergem e exacerbam-se vrios problemas de iniqidade nas condies de vida da maioria da populao ex-escravos, homens pobres brancos, pretos e pardos libertos antes da Lei urea. Tais problemas, conquanto graves e at explosivos para citar o exemplo clssico que Canudos , no assumem o carter poltico e social que tivera a questo social da escravatura. So interpretados de diferentes maneiras pela sociedade convivente: so enfocados de modo restrito como questes regionais, problemas tnicos, movimentos messinicos, problemas sociais resultantes das secas, banditismo rural etc. Somente mais tarde na dcada de 1960 iro se configurar na agenda dos setores de oposio poltica de esquerda a chamada questo agrria. A sociedade que se forja no Brasil depois da abolio carrega no seu mago duas questes mal resolvidas do sculo anterior: as relaes agrrias arbitradas pelo patriciado rural, mediante a Lei de Terras (1850), profundamente restritiva ao desenvolvimento da chamada agricultura familiar; e uma lei de libertao dos escravos que nada regula sobre as condies de insero dos exescravos na economia e na sociedade ps-abolio. Tal sociedade de grandes proprietrios de terra e de poucos homens assimilados ao chamado mercado de trabalho inaugurou o sculo XX impregnada pela desigualdade de oportunidades e pelas condies de reproduo humana impostas esmagadora maioria dos agricultores no-proprietrios e trabalhadores urbanos no inseridos na economia mercantil da poca. No que se refere a esse enorme contingente, no pas continental que o Brasil, v-se que, no sculo XX, a histria social, a literatura social e a histria econmica, com seus diferentes olhares metodolgicos sobre a sociedade, con-

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tam diversas verses sobre a grande dramaticidade das condies de vida da base da pirmide social. Falta, surpreendentemente, nesses olhares, uma leitura poltica sobre as razes desse mal-estar social, que no ganha sua converso em problema poltico social nacional, diferentemente do que ocorrera no sculo XIX. Na verdade, a terra e o homem que se configuram no Brasil na primeira metade do sculo XX constituem um mundo de excluso e violncia, contido precariamente nos mundos dos vrios sertes abordados pela literatura social e regional, sob a gide de um patriciado agrrio, respaldado pelos direitos absolutos da Lei de Terras.7.1 O setor de subsistncia e a rebeldia social na Repblica Velha

A histria social das populaes no includas no bloco do poder na Primeira Repblica cheia de campos vazios. Uma parte das classes sociais subalternas o proletariado urbano, por exemplo ingressa na histria, ainda que de maneira clandestina, protagonizada pelo Partido Comunista,6 e objeto de pesquisa sistemtica meio sculo depois, nos institutos de pesquisa e nas academias fortemente influenciados pelo marxismo. No entanto, a populao selecionada para essa investigao de alguma maneira escapa da curiosidade intelectual-acadmica com exceo da leitura episdica que daria conta das rebelies que ocorreram na Repblica Velha, a maior parte delas tendo por cenrio aquilo a que se est chamando de setor de subsistncia nacional. Uma pesquisa bibliogrfica sobre esse pedao esquecido do Brasil provavelmente encontraria maior destaque na literatura social-regional, que pode-se dizer inaugurada pela obra clssica Os Sertes, de Euclides da Cunha, que influenciou no Brasil vrias geraes literrias, as quais, de alguma forma, retomariam o tema dos sertes na literatura regional, conforme se ver adiante. Na Repblica Velha, conquanto no se trabalhe com o conceito da questo social, a exemplo da questo do trabalho escravo no sculo XIX, experimenta-se um quadro difuso de rebelio social urbana e rural, que se traduz em eventos muito diferenciados de conflito em praticamente todo o serto brasileiro. Canudos (1895-1998), Contestado (1912-1916), Juazeiro (1889-1934), e Caldeiro (1936-1938) so episdios muitos diversos, com conotaes ora de messianismo puro, ora da luta pela terra, violentamente combatida pelas armas da Repblica. Todos eles surgem no territrio dos sertes e no espao social daquilo que tem sido definido como setor de subsistncia da economia brasileira.6. Para uma abordagem de pesquisa sobre as classes mdias e o proletariado na Primeira Repblica, ver Pinheiro (1978).

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Nessas cinco dcadas da Repblica Velha, bem como na dcada de 1930, os sertes foram o campo de conflito aberto entre vrios tipos sociais forjados no setor de subsistncia: coronis e jagunos, cangaceiros, msticos e at grupos armados de procedncia urbana, como o foi a Coluna Prestes, que percorreu e descobriu, para sua enorme surpresa, o Brasil real dos sertes completamente desintegrado do Brasil urbano ou litorneo. Canudos, Contestado e Caldeiro Juazeiro em menor grau apresentam alguns elementos comuns, no obstante a relativa distncia geogrfica, e mesmo histrica, que os separa: so movimentos sociais organizados no interior do setor de subsistncia da economia; apresentam e recuperam elementos do catolicismo popular algo impregnados na memria e resgatados na mobilizao popular; ignoram ou explicitamente denunciam a estrutura da propriedade latifundiria preexistente; e, finalmente, so combatidos e dizimados militarmente pelas foras da ordem da Repblica, o que resultou em sua eliminao fsica com exceo de Juazeiro. Seus lderes e seus seguidores constituem uma populao pobre, mestia e desintegrada da economia agrrio-exportadora e urbana, que ento constitua o chamado plo dinmico da economia brasileira. Tais caractersticas comuns so, provavelmente, um eixo fatal que condena esses movimentos a uma espcie de pacto do esquecimento nacional. O gnio literrio Euclides da Cunha salvou a maior dessas rebelies do destino comum a que todas elas vinham sendo condenadas ao longo da histria: de serem tratadas como conflitos locais, particulares, produto de fatores pr-polticos e/ou fanatismo religiosos sem muita importncia para a formao da sociedade e da histria nacional, e interpretadas pelo establisment formador das idias e das agendas da pesquisa acadmica. Os Sertes, a juzo de muitos a maior obra da literatura brasileira do sculo XX, tendo completado em dezembro de 2002 cem anos de sua primeira edio, props um desafio intelectual novo, qual seja o da interpretao do Brasil incorporando os seus sertes, at ento esquecidos ou desvalorizados. Tal desafio intelectual, ao qual provavelmente o autor propusera- se com muita fora e convico, teve repercusses profundas na histria da literatura brasileira,7 e influncia muito precria na histria econmica e na pesquisa sociolgica esta ltima, na segunda metade do sculo XX, feita basicamente nas instituies universitrias. A diviso de Os sertes a terra, o homem, a luta paradigmal no apenas pelo seu aspecto formal; ela principalmente substantiva. uma ten7. A literatura regional brasileira, a partir de A bagaceira, de Jos Amrico de Almeida, tematiza os sertes e o sertanejo brasileiros em vrias outras obras clssicas.

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tativa de compreender e interpretar o Brasil profundamente, trazendo baila o setor de subsistncia da economia, no qual se d essa luta desigual do homem despossudo na terra inspita, sob o jugo de senhores proprietrios absentestas. Sem tais elementos, a sociedade e a economia brasileiras ficam carentes de traos essenciais de sua formao. E, sem essa recuperao histrica, os problemas contemporneos de desigualdade, marginalidade e pobreza parecem insondveis, aparentemente efeitos sem causa.7.2 Rupturas com o modelo de economia de subsistncia: as experincias do serto

A constituio de experincias sociais e econmicas de comunidades que superaram os limites e as barreiras sociais da economia de subsistncia e desenvolveram importantes estratgias de desenvolvimento, integradas ao mercado interno regional, talvez seja a grande novidade, a ser investigada pela constatao e pela comparao do que teria ocorrido em comum no Arraial de Bom Jesus, em Juazeiro, e na Comunidade do Caldeiro. Contestado no foge a esse enfoque, mas merece anlise parte, em razo de peculiaridades regionais que no sero destacadas neste texto. O movimento que impeliu constituio dessas comunidades apresentou claramente uma ruptura com o padro de hegemonia da economia poltica dominante. Agricultores, artesos, pequenos comerciantes, beatos, romeiros etc., que se aglutinaram nessas localidades e formaram assentamento humano, fizeram-no fora dos domnios fsicos e patrimoniais do latifndio; criaram novas relaes econmicas entre si e com o mercado exterior s aglomeraes microurbanas a formadas; e produziram individual ou coletivamente amplo excedente que permitia expanso, at mesmo acelerada, do estoque de bens sob controle da comunidade e/ou de sua direo religiosa. A construo ou a reconstruo de igrejas, cemitrios, audes, casas, cercas, e uma lista varivel de empreendimentos, em curto perodo, possibilitou e foi possibilitada pela cooperao interprofissional do povo simples. Tal processo de mobilizao estranho ao regime de economia de subsistncia, uma vez que todo ele subordinado a relaes de lealdade e dependncia das famlias a um proprietrio absentesta ou no.7.2.1 Canudos

O local onde se ergueu Canudos fora sede de uma velha fazenda de gado beira de Vaza Barris e era, at 1890, uma tapera de cerca de cinqenta capuabas de Pau-a-Pique (Cunha, 2000, p. 184). De 1893, data em que ali chegou Conselheiro, at 5 de outubro de 1898, quando completamente derrotada e arrasada pelo Exrcito, edificara-se uma cidade de aproximadamente 30 mil pessoas. Restaram ainda, depois de longo cerco e destruio pela artilharia,

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5.200 casas cuidadosamente contadas, segundo Euclides. No dia 6, acabaram de destru-las, no deixando no Arraial pedra sobre pedra. Da leitura atenta das descries de Euclides da Cunha percebe-se na trajetria do Conselheiro um movimento de organizao no apenas religiosa, mas da prpria economia popular, por meio das mais variadas iniciativas:Antonio Conselheiro h vinte e dois anos, desde 1874, era famoso em todo o interior do Norte e mesmo nas cidades do litoral (...). Vinha de uma peregrinao incomparvel de um quarto de sculo, por todos os recantos do serto, onde deixara como enormes marcos, demarcando-lhe a passagem, as torres das dezenas de igrejas que construra; fundara o arraial do Bom Jesus, quase uma cidade; de Xorrox Vila do Conde, de Itapecuru a Jeremoabo, no havia uma s vila ou lugarejo obscuro, em que no contasse adeptos fervorosos, e no lhe devesse a reconstruo de um cemitrio, a posse de um templo ou a ddiva providencial de um aude (...) (Cunha, 2000, p. 227).

Conquanto pouco se saiba das relaes econmicas concretas da Comunidade de Canudos, no h dvida de que esta superou de longe o estgio pretrito da economia de subsistncia pecuria da regio do Vaza Barris e estabeleceu relaes comerciais mltiplas com as cidades vizinhas. Tambm certo que tais atividades eram constitudas pela cooperao interprofissional carpinteiros, pedreiros, artesos, jagunos, agricultores, prestadores de servios etc., todos cooperando em nome da f, mas muito fortemente envolvidos com o comrcio. Sabe-se, ainda, que a atividade econmica que exerciam atendia-lhes necessidades bsicas e gerava excedentes, os quais a comunidade, sob a direo de Conselheiro, se apropriava, sob a forma dos muitos investimentos comunitrios descritos, bem como de tantos outros de carter familiar, sobre os quais no h muita informao. Tal projeto de economia escapa completamente aos limites da economia poltica dominada pelos coronis da Repblica Velha, no domnio dos quais o semi-rido nordestino constitura um dos mais atrasados rinces do setor de subsistncia nacional.7.2.2 Juazeiro

Quase mesma poca em que Conselheiro inaugurava seu arraial em Canudos, surgia no interior do Cear um movimento religioso, de forte apelo popular, sob a liderana do Padre Ccero Romo Batista. Os milagres atribudos Beata Maria de Arajo durante vrios meses, em 1889, provocaram intenso movimento de romarias com destino a Juazeiro, que tradicionalmente j era muito intenso nos anos de secas, e tornaram-se mais regulares nos demais anos, at 1934, quando morreu o Padre Ccero. Esse movimento religioso-popular e sua liderana constituem em Juazeiro o exemplo mais notvel de ruptura com a economia poltica do

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setor de subsistncia, inaugurando um importante assentamento humano nos sertes, com algumas relaes de trabalho e fundirias novas, embora no tenham rompido politicamente com a ordem republicana e com o jogo do poder dos coronis do serto. A zona rural e a comunidade urbana de Juazeiro convertem-se em plo aglutinador de trabalhadores sem terra, romeiros, artesos-industriais, comerciantes, prestadores de servios etc., de sorte que, entre 1889 e 1909, a vida antes precria evoluiu para novo patamar:A atividade econmica principal de Juazeiro, entretanto, provinha de suas florescentes indstrias artesanais. Desenvolveram-se para atender s necessidades do consumo do povoado em ascenso e como uma resposta oportuna incapacidade das reas rurais limitadas de Juazeiro para absorver os imigrantes nas reas agrcolas, de imediato aps a [sua] chegada (...). A princpio dedicavam-se tais atividades construo de casas, assim como manufatura de vrios artigos de uso domstico, confeccionados com matriaprima local: louas de barro, vasos, paredes, cutelaria, sapatos, objetos de couro, esteiras de fibras vegetais, cordas, barbante, sacos e outros receptculos para estocar e expelir gneros alimentcios (Della Cava, 1976, p. 125).

Juazeiro experimento vivo, embora politicamente limitado, de superao do regime de economia de subsistncia, situado em regio onde essa economia fortemente afetada, entre 1877 e 1915, por quatro secas de grandes propores (1878, 1888, 1898 e 1915), tendo a primeira matado 57 mil pessoas. De albergue para retirantes e ponto de encontro de romeiros, a cidade converte-se naquilo que ainda hoje ostenta: uma experincia de desenvolvimento econmico-religioso, fora dos domnios do latifndio rural e dos coronis da regio. Todavia, o prprio Padre Ccero tornou-se novo coronel e patriarca do vale, grande proprietrio de terras e imveis urbanos, tendo exercido, porm, um controle social distinto sobre os seus adeptos, mesmo sem ultrapassar os limites da ordem estabelecida.7.2.3 Caldeiro

A Comunidade do Caldeiro (1931-1938), liderada pelo Beato Jos Loureno, amigo de Padre Ccero, instalou-se em terras cedidas por este ltimo, considerado um patriarca, para serem cultivadas pelo Beato e sua gente, e de fato transformou todas as relaes de poder na regio at ser liquidada pelas armas da Polcia Militar do Cear. A proposta comunitarista do Caldeiro, diferentemente do Juazeiro, mudara por completo as relaes econmicas e sociais no lugarejo, introduzindo ali um projeto popular e religioso de vida em sociedade, ao mesmo tempo em que instalara uma forma de cooperao econmica altamente desenvolvida.

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H evidncias de que no local se tenha formado no apenas um assentamento precoce da reforma agrria popular, como tambm um distrito rural de produo artesanal e industrial de carter multifuncional:Existiam oficinas de carpintaria, funilaria, curtume, ferraria etc. Tudo fabricado no Caldeiro: as canecas dgua, chaleiras, cuscuzeiras, litros de medio, candeeiros etc. No curtume tratavam o couro para a fabrico de selas para os cavalos, arreios, gibes, alforges, sapatos, alpargatas, chinelos de rabicho. Na carpintaria, alm dos mveis simples das casas fizeram tambm as portas da capela. Alm disso, o mais importante foi a construo do engenho de rapadura, todo ele feito artesanalmente (...) (Maia, 1992).

A experincia do Caldeiro transcende os limites sociais do Juazeiro e, ainda que menos conhecida que aquele, contm elementos internos de muita relevncia no que concerne ao foco desta seo: propostas de ruptura com o setor de subsistncia. H tambm forte evidncia, pela quantidade e pela qualidade de bens saqueados pela polcia militar por ocasio da invaso perpetrada em 1938, da ocorrncia de um nvel de produo e de excedente relativamente elevado no Caldeiro; e, ainda mais, de que tal excedente tenha sido produzido e desfrutado pela comunidade em bases no-capitalistas, em plena Repblica Velha. Tudo indica, na Comunidade do Caldeiro, que o projeto de produo comunitria tenha alcanado alto grau de integrao de todos os seus indivduos; que tenha realizado formas multifuncionais agrcolas e no-agrcolas de incorporao de atividades, profisses e funes; e que o excedente econmico tenha sido suficiente para desenvolver e atender a muitos outros projetos comunitrios (igrejas, cemitrios, audes, engenhos etc.), alm da existncia de apreciveis excedentes pecurios e agrcolas. No entanto, a propriedade da terra terminou por se constituir em um tendo de Aquiles do movimento, visto que veio a ser reclamada pelos herdeiros legais de Padre Ccero a Ordem Salesiana , iniciando-se a o processo de demolio fsica e social da experincia em pleno perodo do Estado Novo. As rebelies agrrias e as religiosas durante o perodo da Repblica Velha e do Estado Novo podem ser lidas de muitas maneiras pelos diversos olhares das cincias sociais. Para o que ora interessa destacar, revelam enorme potencial econmico de setor de subsistncia, abafado pelo jugo do latifndio e da economia poltica dos coronis, herdada do sculo XIX. Tais rebelies no configuram uma questo poltica, tampouco representam ameaa ordem econmica preexistente, mas ajudam a entender e a interpretar o pas que ainda caminharia por todo um longo ciclo econmico de 1930 a 1980, sem mudanas sociais significativas que permitissem incorporar o potencial produtivo do seu setor de subsistncia.

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Ainda que no logrando mudar o status quo, merece destaque nas experincias de Canudos, Juazeiro e Caldeiro a capacidade de mobilizao e desenvolvimento dessas comunidades, quando romperam seus laos de dependncia ao latifndio e economia poltica da grande propriedade fundiria que as albergava anteriormente, no que se denominou, aqui, de setor de subsistncia. Isso instiga releitura e interpretao dessas experincias, at porque os desafios sociais por elas enfrentados so reapresentados historicamente, conforme se ver adiante.8 O LONGO CICLO DA INDUSTRIALIZAO (1930-1980) E O SETOR DE SUBSISTNCIA

A Revoluo de 1930 demarca um outro momento de inflexo da histria econmica e social brasileira, to importante quanto foram a Abolio e a Independncia poltica no sculo XIX. Por isso, nesse contexto de nova transio poltica e econmica, relevante conceituar ou reconceituar a categoria colonial setor de subsistncia. Questiona-se, ainda, se faz sentido utiliz-la como noo ou conceito relevante para compreender e interpretar a economia e a sociedade atuais. Novamente, cabe a pergunta feita na seo anterior, relativamente ao escravismo: a emergncia de novo ciclo econmico e de novo padro de acumulao de capital na economia brasileira a partir de 1930 mudana econmica e social capaz de eliminar o setor de subsistncia da economia? Ou tal setor ser t ambm reproduzido nesse processo? Observa-se que o setor de subsistncia aqui considerado compreende o conjunto de atividades econmicas e relaes de trabalho que propiciam meios de subsistncia e/ou ocupao para uma parte expressiva da populao, mas que no so reguladas pelo contrato monetrio de trabalho assalariado, nem visam primordialmente produo de mercadorias ou de servios mercantis com fins lucrativos. Tais atividades e relaes sociais so uma herana da economia colonial, as quais se mantm com o fim do escravismo e a revivescncia de economia primrio-exportadora nas trs primeiras dcadas do sculo XX. A crise do modelo primrio exportador a partir de 1929 e a mudana do comando da elite poltica com a Revoluo de 1930 demarcam na histria econmica o incio de um perodo de industrializao, ainda restringido no Pr-Guerra, mas claramente fomentado no Ps-Guerra. Nesse contexto histrico, seria previsvel que fosse vista teoricamente como irrelevante a persistncia de um largo setor de subsistncia na economia que se industrializava e se urbanizava. Pelo menos, esta tese a prevalecente nos diversos campos tericos tanto da esquer-

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da quanto da direita (ver subseo 8.3) que analisam o desenvolvimento econmico ou o desenvolvimento capitalista no Brasil durante o meio sculo de crescimento acelerado (1930-1980). A histria econmica e social do Brasil posterior a 1930 praticamente ignora o setor de subsistncia como categoria digna de se constituir em objeto de estudo especializado. Isso no significa a assuno de sua inexistncia, mas o pressuposto de sua irrelevncia terica. Contudo, para a pesquisa ora empreendida, o setor de subsistncia uma noo da histria econmica relevante e, pelo menos por hiptese, tem de ser investigado. H que dimension-lo, por um lado, nos diversos censos demogrficos e agropecurios realizados a partir de 1930 at o presente; mas importante tambm refletir, por outro lado, sobre a configurao terica contempornea dessa massa de informaes que se coleta nos censos. Os enfoques empricos (ver subseo 8.1) e tericos (ver subseo 8.3) so a ponte entre o perodo desta anlise (1930-1980) e aquele abordado nas sees precedentes perseguindo sempre a categoria setor de subsistncia.8.1 Dimenso rural do setor de subsistncia

Nesse ciclo de crescimento industrial de meio sculo, houve uma bem-configurada estratgia de industrializao, claramente planejada no Ps-Guerra, e um movimento de urbanizao do conjunto da sociedade, que aparentemente absorveu nas metrpoles e nas cidades de mdio porte o imenso contingente demogrfico componente do chamado setor de subsistncia. No entanto, tal absoro esteve longe de eliminar esse setor. Em primeiro lugar, porque a transposio demogrfica da populao agrcola no est associada ao crescimento tosomente de uma massa assalariada no mercado urbano, mas tambm do enorme contingente de trabalhadores sem vnculo com economia formal. Em segundo lugar, porque permanece no setor agrcola um contingente expressivo de agricultores de subsistncia, sem insero no mercado de trabalho. Em contrapartida, ainda nesse ciclo expansivo da economia brasileira, os problemas agrrios no resolvidos na Repblica Velha retornaram metamorfoseados pela configurao de uma questo agrria na dcada de 1960, resolvida pelo regime militar mediante a equao conservadora da modernizao tcnica, sem reformas.8 O fim do regime militar e do longo ciclo de expanso da economia brasileira no incio dos anos 1980 ps fim ao modelo de transferncia dos excedentes de mo-de-obra do setor rural para a economia urbana, considerado,

8. Para anlise mais especfica, ver Delgado (2004).

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poca, funcional ao desenvolvimento econmico (ver subseo 8.2). Na verdade, a dimenso do setor de subsistncia rural, que j era muito expressiva no incio dessa dcada, experimentou alargamento com os mais de vinte anos de relativa estagnao urbano-industrial, seguida por um processo de ajustamento da economia rural estratgia do agronegcio, que em nada favoreceu a absoro do setor de subsistncia.9 As estatsticas demogrficas e as agropecurias dos dois ltimos censos (Censo Demogrfico 2000 e Censo Agropecurio 1996) so as fontes empricas mais gerais de que se dispe para quantificar na atualidade a noo de setor de subsistncia na forma em que aqui se prope (ver tabelas 1 e 2). A medio emprica do setor de subsistncia rural na atualidade apropria-se de noo j utilizada na histrica econmica por Celso Furtado, na qual reconhecido pelo fato de no gerar excedentes de renda monetria, ou faz-lo em propores reduzidas. Furtado atribua tal caracterstica ao fato desse setor produzir sob condies tcnicas to precrias, sob o enfoque mercantil, muito embora adequadas s relaes sociais e fundirias prevalecentes na economia da grande propriedade colonial. Cremos que essa noo de agricultura familiar de subsistncia, no conceito de agricultura sem excedentes monetrios ou com baixos excedentes, perfeitamente aplicvel parcela majoritria da contempornea agricultura familiar brasileira. Isto pode ser medido, conforme o confronto dos dados de estabelecimentos da agricultura familiar, apurados no Censo Demogrfico de 1996, e seu respectivo valor de produo (no entorno de um salrio mnimo/ms por estabelecimento), que praticamente a caracteriza como atividade sem excedentes monetrios. Muito recentemente (2001), o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA) quantificou e qualificou o que oficialmente se define como agricultor familiar, classificao vlida para acesso s polticas especficas da agricultura familiar. Tal classificao muito til para os propsitos analticos do presente trabalho, pois permite aplicar o conceito predefinido de economia de subsistncia a uma dada base emprica. Partindo do conceito estatstico de estabelecimento agropecurio, o estudo do MDA definiu agricultor familiar10 com base em um conjunto de variveis: direo do processo produtivo, uso predominante de mo-de-obra familiar9. Ver Delgado (2004).

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e limite fsico regional do tamanho do estabelecimento. Com esses critrios, realizou vrias estratificaes; entre elas, a que importa diretamente a este estudo a do valor bruto de produo do estabelecimento familiar, como segue:TABELA 1

Estratificao de agricultores familiares, segundo valor de produo medido em salrios mnimos-ms (1996)Estratos (em s.m.) Zero De zero a 2,1 De 2,1 a 5,6 De 5,6 a 8,5 De 8,5 a 19,4 Maior que 19,4 TotalFonte: FAO/Incra/MDA (2000, p. 36). Elaborao do autor.

Ponto mdio (em s.m.) 0 1,0 3,85 7,0 13,95

% de estabelecimento 8,2 68,9 15,7 4,6 1,7 0,8

% acumulado 8,2 77,1 92,8 97,1 98,8 99,6 99,6

Nmero de estabelecimentos (em mil) 339,4 2.852,0 649,9 190,4 70,4 33,1 4.139,4

Observa-se que, dos cerca de 4,14 milhes de estabelecimentos familiares, 77% geraram um valor bruto de produo de at dois salrios mnimos, com o ponto mdio da classe modal situado em um salrio mnimo. Esse tipo de estabelecimento, por seu carter familiar e pelo fato de no produzir excedentes (valor de produo familiar abaixo de um salrio mnimo per capita), configura-se plenamente na condio de economia de subsistncia. Contudo, h outras fontes de renda familiar que o conceito estatstico de estabelecimento agropecurio no capta. Recorrendo-se a outro conceito do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) o da renda monetria total do domiclio rural , tem-se situao menos dramtica dos nmeros da economia de subsistncia, mas no menos significativa, conforme demonstra a segunda estratificao apresentada na tabela 2.

10. Um caminho alternativo para dimensionar o tamanho da fora de trabalho rural integrante da economia familiar o da desagregao da Populao Economicamente Ativa (PEA) rural por atividades e relaes de trabalho, conforme classificao das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domiclios (Pnads). Por esse critrio temos da PEA rural em 2002 (ltima Pnad) que cerca de 71,9% esto ocupados em relaes no assalariadas. Essa proporo de 70,4 % na Pnad de 1993.

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TABELA 2 Estratificao de renda domiciliar total no Censo Demogrfico de 2000 (em salrios mnimos)Classes de rendimento domiciliar total (em s.m.) At 1 De 1 a 2 De 2 a 5 De 5 a 10 Mais de 10 Ponto mdio (em s.m) 0,536 1,644 3,17 6,83 14,23 % familiar 37,45 25,62 25,34 7,97 3,61 % acumulado 37,46 64,07 89,41 97,38 100,0 No de famlias (em mil) 2.955,8 2.021,3 1.999,6 628,9 285,0 No de famlias acumuladas 2.955,8 4.977,1 6.976,7 7.605,6 7.890,5

Fonte: IBGE (Censo Demogrfico de 2000). Elaborao do autor.

Pela medida da renda domiciliar (familiar) rural apresentada na tabela 2, observa-se que 64% dos domiclios no ano censitrio obtm renda monetria aqum de dois salrios mnimos o ponto mdio e o mediano do estrato de renda mais alto (de um a dois salrios mnimos) praticamente coincidem em 1,64 salrio mnimo. Por seu turno a renda familiar per capita desses domiclios igual ou menor a meio salrio mnimo per capita, assumindo-se a mdia de quatro pessoas por domiclio. Essa linha (um quarto de salrio mnimo per capita) tambm conhecida como linha de extrema pobreza ou linha de indigncia. As caractersticas dessa estratificao de renda familiar rural at dois salrios mnimos praticamente incluiriam toda a populao a representada (cerca de 5 milhes de domiclios) na mesma condio dos estabelecimentos familiares da tabela 1, que geram valor de produo de at dois salrios mnimos. Ambas as populaes situam-se estatisticamente muito prximas da noo de economia de subsistncia aqui utilizada. Grosso modo, pode-se dizer que trs quartos dos estabelecimentos segundo os dados de produo familiar rural situam-se no setor de subsistncia da economia rural, ou so tambm definidos estatisticamente como abaixo da linha de pobreza (renda per capita familiar abaixo de um quarto do salrio mnimo).8.2 Dimenso conjunta de setor de subsistncia e trabalho informal urbano

Conquanto distinto do setor de subsistncia rural, o trabalho informal urbano, objeto de estudo de Theodoro (2004), somado ao setor de subsistncia rural, alarga sua dimenso ocupacional medida que a economia entra em relativo declnio aps 1981. Uma informao pontual, a comparao entre os Censos de 1980 e 2000 dos setores formal e informal dos mercados de trabalho brasileiros (ver tabela 3), corrobora essa linha de argumentao. Em 1980, ao fim do ciclo de expanso de cerca de cinqenta anos de industrializao e urbanizao intensivas, o setor formal do mercado de trabalho (empregados com carteira e autnomos contri-

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buintes, mais funcionrios pblicos e empregadores) atingiu o pico de absoro da PEA (55,6%), enquanto no mesmo ano o setor de subsistncia, acrescido do emprego informal e dos desempregados, correspondia a 43,4% da PEA.TABELA 3Comparao entre os setores formal e informal entre os Censos de 1980 e 2000% da PEA Censo de 1980I Setor Formal = (1+2)

% da PEA Censo de 1990 43,1 40,7 31,8 4,1 4,8 2,4 54,4 14,9 3,3 2,5 15,0 18,7

1 Subtotal trabalhadores 1.1 Empregados contribuintes Previdncia 1.2 Conta Prpria contribuintes (idem) 1.3 Funcionrios pblicos contribuintes 2 Empregadores contribuintes PrevidnciaII Setor de Subsistncia (+) Informalidade Desprotegida (3+4+5+6+7)

3 Conta Prpria sem contribuio Previdncia1 4 No-remunerados em apoio produo 5 Produo para autoconsumo 6 Desempregados involuntrios 7 Empregados assalariados sem carteira e sem contribuio

55,6 53,8 43,8 6,6 3,4 1,8 43,4 16,9 4,6 2,1 19,8

Fonte: IBGE Censo Demogrfico (mo-de-obra) Brasil, 1980; e Tabulaes Avanadas, 2000. Elaborao do autor. Nota: 1Esta varivel utilizada como componente do setor informal, mas sabe-se que est superestimada em vista de haver longa proporo de segurados da Previdncia Rural no-contribuintes (em torno de 10 a 12% da PEA), a qual deveria ser elevada ao setor formal. Este ltimo aqui definido pelo critrio de proteo previdenciria e no pelo critrio estatstico da contribuio financeira.

Passados vinte anos de relativa estagnao econmica e certamente de desativao de amplos segmentos industriais, a Populao Economicamente Ativa cresceu 76%, incorporando cerca de 33 milhes de novos indivduos. No ano 2000, o perfil ocupacional dessa nova PEA era completamente distinto. Apenas 43,1% mantiveram-se no setor formal (contra 55,6%, em 1980), enquanto 54,4% estavam albergados nesse setor de subsistncia mesclado pela informalidade urbana. A dimenso do fenmeno e sua significao socioeconmica clamam por um novo olh