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www.abdpc.org.br QUESTÃO DE FATO E QUESTÃO DE DIREITO NO PROCESSO CIVIL “QUEBRA DE PARADIGMA E SISTEMATIZAÇÃO” Luciano Fernandes Pós-graduado em Direito Processual Civil pela ABDPC- Academia Brasileira de Direito Processual Civil Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Advogado. Sumário: 1. Introdução – 2. Origem histórica da separação – 3. Questão de fato e direito no processo civil – 3.1. Casos de aplicação – 3.1.1. Revelia – 3.1.2. Artigo 285 –A – 3.1.3. Julgamento Antecipado da lide – 3.1.4. Artigo 515, §3º - 3.1.5. Resp e Rextra – 4. Garantia a efetividade processual - 4.1. Do processo. - 4.1.1. Conceito - 4.1.2. Função do processo e efetividade - 4.1.3. Interesse do estado no processo civil - 4.1.4. Princípio do Devido Processo Legal - 4.1.5. Princípio da Livre Convicção do Juiz – 5. Questão de Fato e Questão de Direito sob uma perspectiva sistemática – 6. Conclusão – 7. Bibliografia. 1. Introdução. “(...) No queremos saber nada de los jueces de Montesquieu, êtres inanimés, hechos de pura lógica. Queremos jueces com alma, jueces engagés, que sepan llevar com humano y vigilante empeño el gran peso que implica la enorme responsabilidad de hacer justicia.” Piero Calamandrei. Na atual formatação do Código de Processo Civil Brasileiro, em numerosos e importantes dispositivos, o legislador entendeu por utilizar expressões abertas, tais como “questão de fato e questão de direito”, em geral, sem fontes interpretativas seguras. O problema se mostra na medida em que, não raro, o Poder Judiciário utiliza-se de critérios “discutíveis” para sustentar uma suposta distinção entre fato e direito, o que por certo, reverte em incalculáveis prejuízos aos jurisdicionados. A utilização destes conceitos indeterminados tem origem histórica, como será analisado, logrando considerável utilidade nos moldes contemporâneos, sobre maneira, ao tratar-se de situações onde se mostra necessário expandir ou limitar a atuação jurisdicional.

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QQUUEESSTTÃÃOO DDEE FFAATTOO EE QQUUEESSTTÃÃOO DDEE DDIIRREEIITTOO NNOO PPRROOCCEESSSSOO CCIIVVIILL “QUEBRA DE PARADIGMA E SISTEMATIZAÇÃO”

Luciano Fernandes Pós-graduado em Direito Processual Civil pela ABDPC-

Academia Brasileira de Direito Processual Civil Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade

Católica do Rio Grande do Sul. Advogado.

Sumário: 1. Introdução – 2. Origem histórica da separação – 3. Questão de fato e direito no processo civil – 3.1. Casos de aplicação – 3.1.1. Revelia – 3.1.2. Artigo 285 –A – 3.1.3. Julgamento Antecipado da lide – 3.1.4. Artigo 515, §3º - 3.1.5. Resp e Rextra – 4. Garantia a efetividade processual - 4.1. Do processo. - 4.1.1. Conceito - 4.1.2. Função do processo e efetividade - 4.1.3. Interesse do estado no processo civil - 4.1.4. Princípio do Devido Processo Legal - 4.1.5. Princípio da Livre Convicção do Juiz – 5. Questão de Fato e Questão de Direito sob uma perspectiva sistemática – 6. Conclusão – 7. Bibliografia.

1. Introdução.

“(...) No queremos saber nada de los jueces de Montesquieu, êtres inanimés, hechos de pura lógica. Queremos jueces com alma, jueces engagés, que sepan llevar com humano y vigilante empeño el gran peso que implica la enorme responsabilidad de hacer justicia.”

Piero Calamandrei.

Na atual formatação do Código de Processo Civil Brasileiro, em numerosos e importantes dispositivos, o legislador entendeu por utilizar expressões abertas, tais como “questão de fato e questão de direito”, em geral, sem fontes interpretativas seguras.

O problema se mostra na medida em que, não raro, o Poder Judiciário

utiliza-se de critérios “discutíveis” para sustentar uma suposta distinção entre fato e direito, o que por certo, reverte em incalculáveis prejuízos aos jurisdicionados.

A utilização destes conceitos indeterminados tem origem histórica,

como será analisado, logrando considerável utilidade nos moldes contemporâneos, sobre maneira, ao tratar-se de situações onde se mostra necessário expandir ou limitar a atuação jurisdicional.

Pensava-se, idéia em termos superada, que limitando o julgador ao sentido irretratável da lei, estar-se-ia garantindo segurança política ao Estado e aos cidadãos. Esta teoria, de que a segurança aos cidadãos dar-se-ia com a partição de poderes e com leis desprovidas de margem interpretativa, origina-se das lições de Montesquieu, para quem as leis, deveriam ser ao mesmo tempo cegas e clarividentes.1

A famigerada diferenciação entre quaestio iuris e quaestio facti,

possivelmente, tenha origem na herdada tendência positivista do Iluminismo Francês, que como regra dos países de civil law, adotou a codificação das normas e a tarefa ao juiz de reproduzir regras positivadas.

O fato é que vivemos em uma sociedade complexa, fluida e imediatista

que, portanto, possui conflitos variados e por isso, em geral, imprevistos. A lei como fonte de direito invariável e sentido unívoco, não logra êxito em acompanhar a vicissitudes da vida hodierna.

Não por outro motivo o magnífico professor Ovídio Baptista da Silva

enuncia que “(...) a Lei, longe das expectativas com que sonharam as filosofias européias dos séculos XVII e XVIII, não é mais – na verdade nunca foi – a garantia de nossas liberdades e nem o remédio contra as incertezas inerentes à condição humana. Nosso angustiado e violento século XX encarregou-se de desfazer essa doce ilusão.”2

O problema acentua-se na medida em que o Estado, por meio da

Constituição de 1988, transformou o codex instrumental, no denominado “Processo Civil Constitucionalizado.” As garantias de um devido processo legal, de motivação das decisões judiciais, de inafastabilidade do Poder Judiciário, bem como de outras constitucionalmente previstas, colaboram para a importância do estudo.

Em uma sociedade com tamanha complexidade e variedade de

conflitos, fundamental que o magistrado tenha plena cognição sobre o problema em concreto, fundamentalmente ante as garantias fundamentais asseguradas pela Carta Magna. Não é esta, entretanto, a tendência que se observa, ao contrário o legislador mais utiliza o citado critério diferenciador, fato e direito, como se possível fosse tal cisão, assim, retirando do magistrado o dever interpretativo.

Institutos como o julgamento antecipado da lide, revelia,

admissibilidade do recurso especial e extraordinário, já utilizavam como critério de cognição, as questões de fato e direito. Com a edição da Lei 11.277/2006, incluiu-se no Código de Processo Civil o artigo 285 – A, onde novamente fora destacada suposta distinção, que acredita-se, insustentável seja.

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1 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Nesta célebre obra, o referenciado autor busca demonstrar a necessidade de delimitar a atuação jurisdicional, utilizando-se para tanto da argumentação de que o juiz não poderia expressar outra opinião senão o sentido unívoco da lei. Não por outro motivo, Montesquieu definiu o julgador como “la bouche de la loi”, não se admitindo, portanto, que o magistrado buscasse “a melhor interpretação” para a norma, afinal, se assim o fizesse recairia em parcialidade. 2 SILVA, Ovídio Araujo Baptista da. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. Revista de Hermenêutica Jurídica: Direito, Estado e Democracia: entre a (in) efetividade e o imaginário social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.325.

Ante a tendência de agregar ao ordenamento jurídico, critérios de

redução da cognição por parte do magistrado, como se a lei tivesse um único sentido e que possível fosse simplesmente aplicar a lei a determinado fato, de forma matemática, não há como descuidar-se do empolgante tema tratante da possível separação entre fato e direito no processo civil contemporâneo.

2. Origem histórica da separação.

Sempre que se realizar um estudo sobre a história do direito,

necessariamente ter-se-á de visitar a época medieval, fundamentalmente aos séculos IX e X, devido à centralização político-jurídica nas “mãos” da igreja. Por muitos séculos, o direito foi regido pela religião, que utilizando-se de “dogmas” ditava o certo e o errado, em geral, sem explicação lógica.

O fato é que com o passar dos séculos e a ascensão da Burguesia

Européia, nasceu a necessidade de um novo paradigma para o direito, onde as decisões fossem tomadas sob critérios seguros e concretamente estabelecidos. A burguesia necessitava de “segurança” para negociar.

E assim surge o Estado soberano, agora, garantidor dos cidadãos e

representante do povo. Para consolidar o Estado e organizar a sociedade criam-se as regras, em geral, por meio de códigos. “O indivíduo, livre e autônomo, é que constituiria, através de um pacto, o Estado. A filosofia política liberal e contratualista sustenta-se na primazia do indivíduo, como sujeito originário, anterior ao Estado, de resto, concebido para protegê-lo.” 3

A verdade é que a expressão mais clara do racionalismo e do ideário

separatista de poderes teve origem no Iluminismo, fundamentalmente com a teoria da tripartição de poderes proposta por Montesquieu.

A idéia central, seria a separação dos poderes para que se pudesse

haver especialização e fiscalização dos e pelos órgãos entre si. Dessa forma, por meio de um Estado estruturado em regime democrata, a população teria segurança sobre possíveis abusos por parte do Estado, em desvantagem das liberdades individuais.

Com a codificação de normas, o juiz de direito, passou de conhecedor

do direito e titular do ius dicere, para o conhecido juiz passivo de Montesquieu. Agora, o magistrado não mais ocupava-se da cognição exauriente dos fatos e repercussão jurídica, das regras de experiência e costumes da época, mas sim em reproduzir o que o Poder Legislativo havia decidido ser o justo e transposto como lei.

Em conhecida expressão, o juiz do Iluminismo era la bouche de la loi,

que não possuía direito a ampla cognição, sem possibilidade de maiores digressões, resumindo-se a incidência de norma sobre o fato concreto.

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3 SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Processo e Ideologia, o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 310.

O direito passou a sintetizar-se a lei, que ante a efetivação do caso concreto, deveria incidir sobre os fatos narrados e resolver, silogisticamente, a questão. Ao que parece, tal solução não seja de tão simples constatação, a lei, ao contrário do que Montesquieu escrevera, não possui sentido unívoco e interpretação invariável.

O fato é que com a evolução do pensamento jurídico, acabou “tornando-se inevitável a utilização, pelo legislador, de conceitos indeterminados, numa clara transferência ao Poder Judiciário da função originariamente acometida ao Poder Legislativo.” 4

Nesta senda, frente a esta tendência positivista do ordenamento

jurídico contemporâneo, há que se refletir sobre o papel do Poder Legislativo de impor ao cidadão normas e diretrizes de interesse do próprio Poder, que sabe-se há muito, deixaram de representar os interesses do povo.

Cabe ao Poder Judiciário engajar-se em analisar o caso concreto, com

suas peculiaridades, e buscar de forma incessante a melhor interpretação do ordenamento jurídico para a solução mais adequada, não bastando ater-se ao que “imaginou” o legislador, ser a solução mais adequada a determinado conflito, lembre-se, de forma hipotética.

“Ante o exposto, resta dizer que o enunciado de autoria do magnífico Sócrates, ‘Três coisas devem ser feitas por um juiz: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente’, em epígrafe neste trabalho, não mais condiz com a realidade dos deveres inerentes à atividade jurisdicional. Ter um juiz inerte, no atual quadro de constantes injustiças, seria condenar o Poder Judiciário à total ineficiência e inevitável descrédito dos cidadãos. Quer-se crer, que esta não á a realidade esperada pelos usuários do sistema jurisdicional brasileiro, dessa forma, urge a necessidade de abandonar-se conceitos “sucateados” pela evolução do direito contemporâneo, e assim, desvinculando-se de formalismos injustificados, buscar vigorosamente o real motivo da existência do processo, qual seja, a Paz Social.”5

3. Questão de fato e direito no processo civil.

3.1 Casos de aplicação:

3.1.1 Revelia.

Art. 319. Se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor.

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4 SILVA, Ovídio Araújo Baptista da Silva, “Questão de Fato” em recurso extraordinário. In site www.abdpc.org.br.com. 5 FERNANDES, Luciano. Instrução Probatória e Autonomia do Juiz. 2005. 105 f. Monografia (Graduação em Direito) – Pontifícia Universidade Católica. P. 106-107.

“Toda lide tem um suporte fático, repousa sobre um acontecimento da vida que se afirma relevante para o fim de autorizar determinadas conseqüências jurídicas.”6

Pois bem, o instituto da revelia, presente no artigo 319 do Código de

Processo Civil Brasileiro, apresenta como um de seus efeitos, a presunção de que os fatos alegados e não contestados reputam-se verdadeiros.

Dessa forma, em princípio, toda vez que o réu da demanda,

devidamente citado, deixar de contestar a ação, deduzir-se-á, que concorda com os termos da petição inicial, sendo verdadeiros os fatos relatados pelo autor.

Importante salientar, que a presunção de veracidade dar-se-á somente

quanto aos fatos alegados, ficando o direito absolutamente livre para apreciação jurisdicional, afinal iura novit curia7.

Da constatação da revelia, entretanto, não se poderá deduzir que a

demanda será procedente, pois embora os fatos sejam presumivelmente verdadeiros, o autor poderá ser carecedor de direito, o que inevitavelmente recairá na improcedência da ação. Em outras palavras, quer-se dizer que não é verdadeira a idéia de muitos juristas de que sendo o réu revel em determinada demanda, necessariamente, será procedente a ação do autor.

A verdade é que, se os fatos deduzidos na exordial estiverem em

contradição lógica, poderá o magistrado requerer as provas que entender necessárias para a completa convicção sobre a verdade dos fatos, não se convencendo, poderá sim julgar improcedente a ação.

Isto ocorre não apenas por expressão do artigo 130 do Código de

Processo Civil, mas também em virtude do artigo 131 do mesmo diploma legal, livre convencimento motivado. Ora, se ao magistrado cabe a difícil tarefa de julgar e a ele não é dado a possibilidade de esquivar-se de tal função, nada mais natural que havendo dúvida e falta de convencimento, que o julgador requeira as provas suficientes a exaustão de sua cognição.

Até este momento maior problema não se apresenta, o que não poder-

se-á dizer quanto a hipótese de aplicação do direito sobre o caso concreto. Já é sabido que separar o fato do direito não é tarefa fácil,

sobremaneira se a discussão circundar as hipóteses de definição de conceitos jurídicos indeterminados.

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6 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. v.3.p.383. 7 Com propriedade o autor Darci Guimarães Ribeiro, em obra irretratável, denominada Provas Atípicas, demonstra que embora a regra geral seja que o magistrado deva conhecer o ordenamento jurídico, alerta quanto a importância de o procurador indicar sim todas as fontes de direito pertinentes ao assunto, “Além do mais, é aconselhável a parte citar, inclusive, a jurisprudência e a doutrina dominantes, tanto como fator de convencimento, quanto como argumento de autoridade, pois pode o juiz conhecer a norma aplicável, mas não conhecer a sua interpretação dominante (...)”

Em outras palavras, ao que parece, o problema não se mostra quando os efeitos da revelia imperam sobre fatos hodiernos, sem influência direta sobre o direito do autor. Um exemplo simples seria o caso onde um motorista, subindo a serra, colide com outro carro, causando grave acidente. Na petição inicial alega o autor que o algoz subia a serra em um veículo ano 1978, em velocidade de aproximadamente 180 quilômetros por hora, e de forma imprudente colidiu no autor.

Nesta situação hipotética, pensemos que ocorrera a revelia, portanto e

em princípio, tais fatos seriam presumivelmente verdadeiros, visto que se tratam de fatos não contraditados.

Será tão óbvio assim? Será tão fácil determinar que os fatos são

verdadeiros e que portanto direito terá o autor a indenização proporcional. Ao que parece não.

Situações como a já relatada, envolvem, sem sombra de dúvida, uma

cognição plena do magistrado sobre os fatos e direito incidente, de forma que, impossibilitar ao réu discutir sobre tais fatos, seria violação direta ao princípio do contraditório e porque não, ao princípio da imparcialidade.

Mesmo o autor afirmando que o condutor/réu subia a ladeira de forma

imprudente, não poderá o magistrado, data vênia, tomar isto como verdade inabalável, afinal, isto seria um fato ou direito?

Percebe-se que grande parte dos “fatos” relatados nas demandas tem

íntima ligação com o direto pleiteado, sendo fundamental a prova cabal sobre o fato para que a norma tenha incidência correta e interpretação regular.

No caso exemplificado, parece um tanto difícil acreditar que um veículo

com tamanho uso e antigüidade, possa alcançar a velocidade afirmada. Também, mostra-se absolutamente complicado dizer-se que a conduta do motorista tenha sido imprudente, sem antes averiguar a velocidade do veículo, as condições da via e a velocidade permitida, dentre outras constantes do caso concreto.

Ao que parece, existe uma gama de fatos que fundamentam a causa

de pedir, em geral, que estão intimamente ligados com o direito pleiteado, estes que não poderão ser alcançados pelos efeitos da revelia.

Reduzir a atuação do magistrado sobre tais fatos, fundamentalmente

sob a luz dos diversos princípios constitucionais, seria negar jurisdição adequada ao cidadão.

Assim, percebendo o magistrado que os fatos estão em contradição,

ou que determinado acontecimento carrega em si grande carga de “direito”, de requisitos e efeitos jurídicos, nada mais natural que, afastando os efeitos da revelia, analise exaustivamente cada um destes fatos.

3.1.2 Artigo 285-A.

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Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.

Em mais uma clara opção do legislador de “empurrar” ao Poder Judiciário a tarefa de complementação do sentido da norma, utilizou-se, mais uma vez, da expressão “questão de direito.” Dessa forma, sempre que o magistrado receber petição inicial que trate sobre matéria “unicamente de direito” e já houver julgado improcedência em outros casos “idênticos”, poderá julgar improcedente a ação, sem sequer ordenar a citação do réu.

Se houve uma opção clara pela utilização de expressões abertas pelo

legislador, com maior evidência percebe-se a preferência da garantia a celeridade processual, sobre a segurança jurídica dos litigantes.

Por louvor a correção, inicialmente deve-se dizer que, certamente,

quando legislador fala em “casos idênticos” em verdade, refere-se tão somente a matéria debatida, a causa de pedir versada nos autos. Pois, se a identidade também ocorresse em relação as partes e pedido, estar-se-ia a falar de coisa julgada, e portanto com trâmite diferenciado.

De qualquer forma, o que nos interessa deste artigo é a idéia, utópica,

de que alguma demanda pudesse versar, ou ser debatida “unicamente em direito” estando os fatos abstraídos da discussão. Situação paradoxal, visto que só poder-se-á determinar se algum indivíduo possui direito, se mediante os fatos comprovados, quando necessário, for possível aplicar o ordenamento jurídico vigente.

Ao que parece, a presente norma limita-se aos casos em que os fatos

trazidos pelo autor não necessitam de prova, de qualquer forma, devido a natureza social e não matemática do direito, prudente será a efetivação do contraditório, para só então, com pleno conhecimento sobre a matéria debatida, se possa proferir sentença sobre o conflito.

A intenção da norma, parece claro, é destinar procedimento célere às

conhecidas “ações em massa”, para que desta forma, se evite o aumento da morosidade jurisdicional. Tal medida, entretanto, deverá pautar-se sobre criteriosa análise do caso concreto, o que evidentemente na ocorrerá se o requisito de julgamento for o expresso pela lei.

Nunca uma ação versará exclusivamente sobre direito e portanto não

há como a controvérsia dar-se apenas sobre direito. O que pode ocorrer, exatamente nos termos do julgamento antecipado da lide, é que os fatos que versam a demanda, estejam todos provados, e assim, reste a interpretação do direito.

3.1.3 Julgamento antecipado da lide.

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Art. 330. O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença: I - quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência; II - quando ocorrer a revelia (art. 319).

O julgamento antecipado da lide é mecanismo processual que visa a celeridade do provimento judicial. Dessa forma, autorizado pelo artigo 330 do Código de Processo Civil, o juiz poderá, preenchidos os requisitos, julgar de pronto a ação, logo após a contestação.

Em demandas onde não há a necessidade de produção de prova8, ou

tratando-se de questão exclusivamente de direito, bem como em casos de revelia, estará o magistrado autorizado ao julgamento antecipado.

Diz-se julgamento antecipado, pois desvia do andamento usual dos

procedimentos ordinários que em geral, passam por exauriente dilação probatória. Novamente, não poder-se-á aplicar tal norma sem antes refletir sobre eventual diferença ontológica entre questão de fato e direito.

Se é verdade que existem inúmeros fundamentos fáticos que estão

crivados de questões de direito, o reverso da medalha também é verdadeiro. Os problemas que poderão se apresentar ante a utilização de tal

instituto, é provável, serão de duas ordens: O primeiro, quando o autor que busca uma demanda célere, tem contra si a decisão de não julgamento antecipado, afinal tratar-se-ia de conflito carente de instrução probatória. O segundo caso seria na hipótese de o autor ou o réu, buscarem um processo, bem instruído, com ampla dilação e cognição, frente a decisão do magistrado optando pelo julgamento antecipado.

Em ambos os casos, o cerne da discussão está na possível

diferenciação entre questão de fato e questão de direito. Julgar antecipadamente a lide significa dizer, em última instância que

os fatos inerentes a plena cognição sobre o conflito, estão todos provados e que a correta decisão sobre o feito depende apenas de aplicar o direito sobre os fatos.

Esta visão é, ainda, reflexo do normativismo oriundo da fase iluminista

da Europa Continental, onde prevalecia a idéia, já fracassada, de que um dispositivo poderia, de forma atemporal, prever a solução justa para casos concretos.

Não se pode perder de vista, a utilidade do mecanismo de julgamento

antecipado, principalmente ante a garantia fundamental ao resultado útil das demandas judiciais.

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8 A não necessidade de prova não pode ser entendida de forma irretratável, afinal vige a regra insculpida nos artigos 130 e 131 do Código de Processo Civil, que garante ao magistrado o livre convencimento “motivado” sobre os fatos, além da ampla instrução probatória.

Não poder-se-á esquecer também, que em nada adianta ter uma decisão célere sobre o conflito, se justa não for e umbilicalmente ligada a verdade dos fatos, sob pena desvirtuamento processual.

Este é o eterno conflito entre a segurança jurídica e a celeridade

processual, contrapostos e indissociáveis para o correto desenrolar do procedimento. Mas a questão que se põe não é esta, mas buscar o meio termo e critério seguro para caracterizar a questão de direito que segundo a lei, possibilita do julgamento antecipado.

Para que se possa chegar a tal, seguro critério, antes é necessário

passar por aprofundado estudo relativo aos escopos do processo e sobretudo, com atenção aos princípios processuais e constitucionais.

Para que a análise sobre o direito seja plena e justa, faz-se

fundamental o completo conhecimento sobre os fatos que ensejam a causa. A norma não prevê com exatidão o caso concreto, de modo que não poderá ocorrer a aplicação do direito como se assim fosse.

Em outras palavras, a norma será moldada de acordo com o caso concreto, com os fatos exaustivamente conhecidos, em consonância com todo o ordenamento jurídico. Assim, para dizer-se que determinado processo é exclusivamente de direito, e que enseja julgamento antecipado, antes necessariamente será necessário a análise pontual dos fatos trazidas à demanda, bem como as provas necessárias ou não.

3.1.4 Artigo 515, §3º.

Art. 515. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada. § 3º Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento.

Instituído pela Lei 10.352/01, o presente dispositivo legal, positivou a prerrogativa do Tribunal ad quem de adentrar no mérito e julgar a ação, em sede de apelação, nos casos onde houver extinção sem julgamento de mérito, por certo, atendidos os requisitos legais.

Para que se possa efetivar o julgamento de mérito é necessário que a

questão seja exclusivamente de direito e que esteja em condições de julgamento. Esta é uma mudança que vem ao encontro da tendência das reformas

iniciadas em 1994, todas buscando a celeridade processual. O que fora relatado, entretanto, é no mínimo uma verdade relativa, já que este adiantamento do Tribunal no mérito da causa poderá também gerar grave prejuízo as partes.

Mais uma vez volta-se ao tema que compõe o cerne do presente

trabalho, ou seja, poder-se-á determinar em algum processo que a matéria debatida

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é exclusivamente de direito, ou imperativo será a constatação de que trata-se de questão mista e indissociável.

O requisito legal para que se efetive o julgamento antecipado pelo

Tribunal é que o processo esteja em “condições de imediato julgamento”. Isto quer dizer, a nosso ver, que será despiciendo nova produção de prova para o julgamento da causa.

Ora, não é tarefa simples determinar em uma demanda que todos os

fatos estão provados e que em grau de apelação, o conhecimento poderá dar-se no mérito, pois seria apenas uma questão de direito.

O direito é complexo e temporal, é ciência social que está intimamente

ligada as manifestações sociais e costumes, não há como determinar que o direito, como uma fórmula, incidirá sobre fatos exatamente como previsto pelo legislador.

É inevitável em qualquer ação que na análise do mérito, o magistrado

examine os fatos, provados ou não, para saber se haverá incidência de uma norma ou outra, princípios ou o costume local. Dizer que uma ação versa apenas sobre direito, portanto excluindo os fatos, é no mínimo paradoxal, pois um não existe sem o outro.

Quando o julgador do Tribunal, autorizado pelo dispositivo ora

comentado, adentra no mérito e decide a causa, não o faz por a ação tratar de questão exclusivamente de direito, pois tal possibilidade inexiste. Em verdade, quando em virtude de recurso de apelação, o Tribunal examinar o mérito da demanda, o fará por não mais haver necessidade de prova, tratando-se de questão de direito e questão de fato, porém provados.

Esta autorização existe justamente porque se a decisão fosse outra e o

processo voltasse para o juízo a quo, o mesmo ocorreria, o juízo iria julgar antecipadamente a lide, portanto, sem instrução probatória.

Quanto a esta situação, nenhuma reparação em princípio deve ser

feita, afinal, se todos os fatos estão provados, basta saber se para o caso concreto, de acordo com a legislação, princípios, jurisprudência e outras fontes de direito, terá o autor direito ou não à tutela positiva.

3.1.5 Recurso Especial e Recurso Extraordinário.

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

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Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.

Este é com certeza o tema que maior fervor causa no meio acadêmico,

fundamentalmente em virtude da reiterada negativa de jurisdição emanada pelos Tribunais Superiores.

É conhecida a “regra” de que aos citados Tribunais, não cabe a análise

das questões de fato que versam causa. Ao Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal caberá a análise das questões de direito, federal no primeiro caso e constitucional do segundo.

A idéia é que não se tenha uma terceira instância, que busque

reavaliar os julgados e fazer “justiça”. Em verdade, a finalidade destes órgãos é de resguardar a correta aplicação da lei, buscando uniformizar a jurisprudência e garantir segurança jurídica aos cidadãos.

Esta não é, entretanto, a realidade. O que se percebe é que os Superiores Tribunais não possuem critério transparente quanto a admissibilidade dos recursos especial e extraordinário, demonstrando-se uma clara tendência política nesta seleção.

Sempre que o Tribunal entender que o recurso versa exclusivamente

sobre questão de fato ou que versa sobre a avaliação de prova produzida nos autos, em princípio, negará seguimento. A admissibilidade, porém, não segue critério de fácil compreensão, fundamentalmente porque em geral existem decisões sobre matérias muito parecidas em sentido diametralmente opostos.

Talvez um bom exemplo seja a previsão de multa para o ato

atentatório a dignidade da justiça (artigo 600 do CPC), onde sua aplicação, quando questionada em recurso especial, por vezes é admitida, em outras, não.

Afinal, o ato atentatório a dignidade da justiça é uma questão de fato

ou de direito? A resposta, máxima vênia ao entendimento em contrário, é de que tal

ato trata-se de fato e direito, pois é classicamente a incidência de norma sobre determinado suporte fático. Ora, se o ato é atentatório ou não, se ocorrera e como ocorrera, se existe justificativa para o ato, todas estas questões, merecem apreciação dos Tribunais Superiores.

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Se é tarefa a uniformização de jurisprudência e harmonização de entendimento das normas, nada mais natural que seja analisado caso a caso, com suas peculiaridades fáticas, para só então buscar a melhor interpretação da “lei”.

Parece evidente, que se o julgador analisar o direito debatido, em suas

peculiaridades, necessariamente terá de passar pelos fatos descritos na petição inicial, afinal, sem isto não poderá ter idéia sobre a existência ou não do an debeatur.

Dessa forma, ao que parece, sempre que o Tribunal for requisitado a

pronunciar-se sobre a aplicação de determinada norma, obviamente passando pelos fatos da controvérsia, terá de fazê-lo, sob pena de incorrer em negativa de jurisdição.

Com isto não se está a dizer que a via extraordinária deve ficar

reduzida a análise pormenorizada que cada um dos processos, determinando os fatos provados ou não e a necessidade de instrução. Ao contrário, apenas quando a demanda estiver plenamente instruída e a discussão tratar da aplicação da norma, conforme a natureza, então terá sim que pronunciar-se o Tribunal, e determinar qual a melhor interpretação.

4. Garantia a efetividade processual.

4.1 Do Processo

4.1.1 Conceito “A atividade com o qual se desenvolve em concreto a função

jurisdicional se chama processo.”9 Quando o direito material é violado ou um interessado pretende algum bem da vida, devido a regra da proibição da auto tutela, salvo exceções, o cidadão deverá buscar auxílio no poder judiciário, que por meio da relação processual, buscará entregar o objeto ao interessado.

O autor, dotado do direito constitucional de ação, provoca a jurisdição,

para que tutele seu direito e deste modo possa compor o conflito existente. Instaurado o processo, as partes e o magistrado deverão respeitar uma série de preceitos legais, pelos quais se desenvolverá o procedimento.

Será por meio do processo que a hetero composição será efetivada,

com todas suas regras, mas, sobretudo, regido por princípios constitucionais referentes a justa composição do conflito.

Quer-se dizer, é que segundo Humberto Theodoro Júnior, o processo:

Não se resume apenas na materialidade da seqüência de atos praticados em juízo; importa, também e principalmente, no estabelecimento de uma relação jurídica de direito público geradora

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9 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Tocantins: Intelectos, 2003. v.1. p. 45.

de direitos e obrigações entre o juiz e as partes, cujo objetivo é obter a declaração ou a atuação da vontade concreta da lei, de maneira a vincular, a esse provimento, em caráter definitivo, todos os sujeitos da relação processual.10

Sabendo-se que o processo é uma relação jurídica que se dá entre as

partes e o juiz, em tudo regido pelo contraditório, não poder-se-á imaginar outro fim que não a obtenção de um resultado justo para o conflito. Aliás, bem mencionou José Roberto dos Santos Bedaque, dizendo que “O processo é concebido como uma relação jurídica pois seus sujeitos, investidos de poderes determinados pela lei, atuam em vista da obtenção de um fim.”11

Na idéia de bem definir qual de fato é o conceito de processo, não se

pose esquecer do fundamento de sua existência, qual seja, possibilitar a atividade jurisdicional. Nesse sentido, importante referir que “(...) a atividade jurisdicional, portanto, visa à pacificação social, mediante atuação das regras de direito material para aquele determinado caso concreto.”12

De forma incontestável, está o entendimento de Moacyr Amaral do

Santos que entende o “processo como complexo de atos coordenados, tendentes a atuação da vontade da lei às lides ocorrentes, por meio dos órgãos jurisdicionais.”13

A correta definição de processo, no entanto, só será alcançada após a

análise de seu objetivo, leia-se escopo do processo civil. Nesse sentido cabe reproduzir parágrafo tratante da matéria, de autoria de Sidney da Silva Braga, disse:

Dada a já satisfatória evolução do processo como ciência autônoma, superou-se a fase técnica, voltando-se os estudiosos da matéria para a busca, fundamentalmente, da definição de seus escopos e da aferição de sua efetividade como instrumento destinado, em última análise, a, fazendo justiça, colaborar com a consecução da finalidade última do estado, que é proporcionar as condições necessárias para a evolução, material, moral e espiritual de sua sociedade.14

Entendo-se, portanto, o conceito de processo como a ferramenta pelo

qual a jurisdição atua sobre os conflitos da sociedade, importante agora que se demonstre quais são as funções do processo e de que forma poder-se-á alcançar certa efetividade judicial.

Percebendo-se os reais escopos processuais, poder-se-á delimitar a

razão pela qual a diferenciação entre “questão de fato” e “questão de direito”, e conseqüente negativa de jurisdição, contraria a garantia fundamental ao devido processo legal.

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10 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento.Rio de Janeiro: Forense, 2005. v.1 p. 49. 11 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. 3.ed. São Paulo: RT, 2001. p. 65. 12 BRAGA, Sidney da Silva. Iniciativa Probatória do Juiz no Processo Civil.. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 129. 13 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 1984. v.1. 14 BRAGA, Sidney da Silva. Iniciativa Probatória do Juiz no Processo Civil.. São Paulo: Saraiva, 2004.

O fato é que a idéia “iluminista” de que a lei tem vontade própria e sentido unívoco, está impregnada no atual ordenamento jurídico, tendo inclusive, alguns juristas, entendido que o processo terá alcançado sua razão de ser se ao seu final encontrar a vontade da lei, o entendimento do legislador sobre determinada situação hipotética.

Não por outro motivo, refere Afrânio Silva Jardim que “o estado, por

meio do processo, prestigia a ordem legal vigente, fazendo atual a vontade da lei nos casos concretos, resolvendo o juiz a lide tal qual o faria o legislador.”15

Não, o legislador cria leis em sentido abstrato buscando representar a

expressão mais clara dos anseios do povo, mas esta tarefa não é de tão fácil realização, o legislador, mesmo o mais engajado, não consegue prever as mais diversas situações hodiernas, a complementação de entendimento caberá ao magistrado, ante o caso concreto. 4.1.2 Função do processo e efetividade

Quanto aos escopos processuais, é de Cândido Rangel Dinamarco o mais célebre estudo, que divide as finalidades do processo em três planos diversos, social, político e jurídico.

O primeiro dos escopos, o social, tem por principal característica,

entregar ao processo a função de promover a pacificação social. Tal função processual tem distinta relevância para a evolução humana

e manutenção do ente estatal, já que “ignorar as insatisfações pessoais importaria criar um clima para possíveis explosões generalizadas de violência(...) ”16

Ora, ao tentar-se dividir, e portanto diferenciar, a “questão de fato” e a

“questão de direito”, o aplicador acaba limitando a cognição realizada pelo magistrado sobre a demanda, e burlando muitas das garantias fundamentais do jurisdicionado.

No entanto, segundo o autor já mencionado, não bastaria que ao final

do processo se alcança-se a pacificação, para que estivesse satisfeito o escopo social do processo.

Necessário ainda, destacar o conteúdo educativo do processo, quando

em reiteradas decisões, que compuseram os conflitos com a justeza esperada, refletem na sociedade, que passa a contar com maior segurança jurídica.

A Segunda finalidade do processo é a política, que em suma, reflete

três funções desempenhadas pelo instrumento público ora analisado, a saber: o poder de decidir imperativamente, as liberdades públicas e a participação política.

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15JARDIM, Afranio Silva. Da publicização do processo civil. Rio de Janeiro: Editora Liber Juris Ltda, 1982. p.66 16 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 127.

Quer-se dizer, que o processo vem reforçar o estado democrático de

direito, trazendo a possibilidade não só de o estado atuar no direito de modo contencioso, mas também de alcançar aos cidadãos poderes e ferramentas para defenderem-se contra abusos estatais.

O terceiro e último escopo é o jurídico, que em última analise prenuncia

que a intenção última do processo é a atuação da vontade concreta do direito. Nesse sentido, se partíssemos tão somente do entendimento simplista

do escopo jurídico, diríamos que em um processo onde o autor embora de fato tenha o direito, não logrou êxito em provar os fatos que alegou, neste caso, deveria o magistrado utilizar-se das regras previstas no artigo 333 do CPC, e julgar improcedente a ação.

Parece certo, que tal situação não está de acordo com os preceitos

constitucionais refletidos no princípio do devido processo legal, ademais, intuitivo perceber que frente a tal decisão, embora a demanda tenha chegado ao fim, o conflito permanece latente.

A verdade é que no processo civil contemporâneo a idéia de fato e direito como

questões separadas, está absolutamente difundida, não por outro motivo referiu o ilustre Celso Agrícola Barbi que:

“Em sistema de separação de poderes, como o que vigora em nosso país, a função dos órgãos do Poder Judiciário é, precipuamente, aplicar as leis feitas pelo Poder Legislativo”. E continua, “Por isto, a primeira e mais importante fonte de direito entre nós é a lei escrita. Pelo seu caráter, de imperatividade, ela deve ser aplicada pelo juiz, mesmo quando ele não considere como a melhor tese por ele esposada.”17

A função do processo é, indubitavelmente, resolver o conflito, posto em juízo, de forma justa, com o escopo final de promover a pacificação social. Portanto, não interessa apenas a vontade da lei, pois sabe-se a lei não possui vontade, o sentido da norma é dado ante o caso concreto, por aplicação do julgador.

Para tanto, inúmeras medidas devem ser observadas,

buscando-se que ao final possam os cidadãos dizer que o resultado de tal demanda foi efetivo. Para melhor entender do que se está a falar, cabe informar que efetivo será o processo que ao seu final tenho resultado em um provimento justo e célere.

A garantia de celeridade foi introduzida recentemente pela emenda

constitucional n°45/2004, no artigo 5º, LXXVIII da Constituição Federal, transcrevo: “(...) a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

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17 BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. 3.ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1983.V.1.p.518.

Dessa forma, deve ficar presente a idéia de que na cognição das ações, deve o magistrado analisar os fatos relatados sob a luz do ordenamento jurídico vigente, sem descuidar-se dos diversos escopos processuais.

4.1.3 Interesse do estado no processo civil O instrumento pelo qual se efetiva a jurisdição é o processo, que

pretende em suma, possibilitar a parte interessada um posicionamento do magistrado, representado o estado, sobre o caso posto em juízo.

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Ocorre que, além desta finalidade de cunho privatista, também possui o processo, outros escopos de cunho social e político.

A relação processual é, em geral, triangular, ou seja, trata-se de

relação jurídica que se desenvolve entre o autor, réu e o juiz. Nesse sentido, importante ressaltar que não basta que o juiz dirija o processo e sentencie de acordo com os preceitos contidos no código de processo civil, deverá sobretudo proferir a decisão mais justa possível.

Ao tratar da matéria, Liebman refere que o direito processual civil “é

direito instrumental e dinâmico e pertence ao direito público.”18 Este seria o escopo jurídico do processo, compor a lide de forma justa

e célere. No entanto, partindo de uma visão publicista, cresce de importância a função educativa e social da atuação do Poder Judiciário.

Não mais basta que a decisão simplesmente ponha termo a lide,

deverá também fazer a justiça substancial ao caso concreto, além de promover a pacificação social.

É evidente que sempre uma parte, ao final da demanda, não estará de

pleno acordo com a decisão proferida, pois sabe-se, a irresignação faz parte da natureza humana a idéia de nunca carecer de direito.

Pois justo neste âmbito que ganha relevo a função educativa do

processo, pois desta forma, em havendo reiteradas decisões justas e céleres, a tendência é que as pessoas reconheçam a justiça do provimento com conseqüente conformação.

Assim, fundamental que em situações onde o legislador entendeu por

utilizar expressões abertas, que o Poder Judiciário estabeleça critérios seguros para determinar a aplicação da cognição jurisdicional, sobre questões de fato e questões de direito.

4.1.4 Princípio do Devido Processo Legal Este é sem dúvida a matriz de diversos princípios que figuram hoje no

corpo da Constituição Federal. A garantia do due process of law emana do art. 5º, LIV da CF, que está

redigido da seguinte forma: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O que parecia inicialmente uma ratificação do conteúdo do princípio da legalidade já conhecido, em verdade tornou-se um dos principais vetores que atualmente orientam a pesquisa científica em torno do processo civil.

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18 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Tocantins: Intelectos, 2003. v.3. p. 46.

Para falar-se em devido processo legal atual, é necessário que o pensador afaste-se da vencida idéia de simples ordenação dos atos processuais civis. Além disto, deverá estar presente, a idéia de que o processo, referido pelo princípio, tem interesses muito mais relevantes que os originalmente pensados.

Adaptado à instrumentalidade, o processo é constitucionalizado

quando se preocupa com a adequação substantiva do direito em debate, com a dignidade das partes com preocupações não só individualistas e particulares, mas coletivas e difusas, enfim, buscando a efetiva igualização das partes no debate judicial.19

Em tudo oportuna a citação das iluminadas palavras no autor Rui

Portanova, já que bem definiu qual o atual significado daquele princípio. Cabe salientar, que o processo, como já dito, não busca mais a igualdade ou justiça formal, ao contrário, quando um jurisdicionado leva a lide ao Poder Judiciário, em verdade, o que pretende não se resume a mera formalidade assegurada por algum dispositivo legal, quer a verdade substancial, de modo a elucidar a questão e aplicar o justo resultado ao caso.

Em irretratável parágrafo, Humberto Theodoro Júnior sintetiza o

princípio, dizendo:

Nesse âmbito de comprometimento com o ‘justo’, com a ‘correção’, com a ‘efetividade’ e a ‘presteza’ da prestação jurisdicional, o due process of law realiza, entre outras a função de um superprincípio, coordenando e delimitando todos os demais princípios que informam tanto o processo como o procedimento. Inspira e torna realizável a proporcionalidade e razoabilidade que deve prevalecer na vigência e harmonização de todos os princípios do direito processual de nosso tempo20

Dessa forma, ressalta-se a importância do instituto ora estudado, afinal

“o princípio é tão amplo e tão significativo que legitima a jurisdição e se confunde com o próprio Estado de Direito”21.

Este é justamente o cerne da análise neste ato realizada sobre o

devido processo legal, afinal, é esta a idéia que se defende por todo discorrer deste arrazoado, definir o escopo principal do processo, analisando o interesse estatal na pacificação social, e enumerando as vantagens de ter-se um processo civil constitucional.

Não basta que na legislação processual e constitucional existam

garantias de um processo justo, igualitário e célere, para que a demandas da sociedade sejam atendidas, os princípios inerentes ao devido processo legal, devem ter massiva aplicação.

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19 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 147. 20 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do processo e processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v.1. p. 27. 21 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. pg. 146.

Ademais, de distinta relevância é a necessidade de abandonar-se a idéia de processo voltado para o ideal privatista, já que tal atitude acaba por engessar o Poder Judiciário, tornando não raro, insatisfatório e desacreditado.

Quer-se com isto dizer, que a garantia do devido processo legal

extrapola a simples existência de formalidades processuais, em verdade, tal princípio em toda sua amplitude, quer alcançar ao cidadão um meio justo, idôneo, célere e, sobretudo efetivo de resolver os conflitos havidos em sociedade.

Segundo Nelson Nery Junior, em análise aprofundada sobre este

princípio, afirma que, “bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa”22.

Não resta dúvida, no entanto, que transformar o processo civil

brasileiro em um devido processo legal é tarefa, sob muitos aspectos, árdua. Entretanto, uma grande passo seria vencer o paradigma da separação entre fato e direito no ordenamento contemporâneo.

“Ao superarmos a idéia de separação entre a questão de fato e a questão de direito, para assim considera-las a partir de sua diferença ontológica, é tirar o direito e a realização e a realização do processo civil, de um estado de covardia e inércia do mundo conceitual, que não corresponde mais as anseios sociais do século XXI; é permitir a realização de um processo civil mais hermenêutico, mais democrático, fazendo com que o direto alcance a vida, a humanidade na sua compreensão histórica.”23

4.1.5 Princípio da Livre Convicção do Juiz “Se alguma parte sustentou certeza de algum fato, tanto pode o juiz

tirar daí conclusão a favor quanto contrária à manifestamente, sem que essa se possa opor”24, referiu com propriedade Pontes de Miranda em Comentários ao Código de Processo Civil – Tomo IV.

Em análise sintética sobre o tema, o cerne do princípio do livre

convencimento, mostra que o magistrado poderá tirar as conclusões que bem entender das provas trazidas aos autos. Provas estas, que busca trazer “certezas” para o julgador quando da cognição sobre a demanda.

A regra que alcança ao julgador a livre apreciação das provas

encontra-se especificado no Código de Processo Civil no Artigo 131, o qual vale transcrever:

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22 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 6.ed. São Paulo: RT, 2000.p. 32. 23 SANTOS, Karinne Emanoela Goettems dos. A questão de fato e a questão de direito a partir de uma perspectiva hermenêutica. 2006. 233 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo.p.233. 24 MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo IV. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.252.

“O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram convencimento.”

“Na apreciação da prova, que é livre, pode o julgador chegar a

conseqüências que não foram tiradas pelas partes.”25 Importante salientar, que embora possa o magistrado ter liberdade no

entendimento da base probatória, impreterivelmente deverá motivar suas decisões, regra está que além do artigo mencionado, encontra-se, sobretudo, no artigo 93, IX da Constituição Federal.

Analisando os dispositivos mencionados, percebe-se o motivo pelo

qual foi institucionalizada tal regra, afinal segundo Cândido Rangel Dinamarco em Instituições do Direito Processual Civil sabe-se que:

“(...)ela tem por premissas a necessidade de julgar segundo as imposições da justiça em cada caso e a consciência da inaptidão do legislador a prever tão minuciosamente todas as situações possíveis, que lhe fosse factível editar tabelas tarifárias indicando o valor probatória de cada fonte ou meio de prova, em cada situação imaginável.”26

Cresce a importância do princípio de livre convencimento, afinal se há

obrigatoriedade ao magistrado de motivar suas decisões e se o direito transcrito em é apenas umas das fontes do direito, nada mais natural que o magistrado tenha pleno conhecimento sobre os fatos, os quais emanam, ou não, direitos ao autor.

Deverá, em qualquer caso, motivar sobre seu convencimento e elencar

quais fatos e provas formaram seu convencimento, e fundamentalmente demonstrar a incidência da norma lato sensu, sobre os fatos.

Referir que o magistrado pode conhecer os fatos e direitos livremente,

também demonstrada tarefa inafastável de motivar sistematicamente os pontos de sua convicção, demonstrando os fatos provados ou não, os princípios, leis, regras de experiência e costumes incidentes ou não ao caso, e as razões pelo qual entendeu por julgar a ação procedente ou não.

Com isto quer-se dizer que, não mais se pode admitir, em um processo

civil constitucionalizado, decisões silogísticas, matemáticas, de aplicação abstrata e sentido invariável, não. Vivemos em uma realidade heterogenia e fluida, onde o dever de fazer justiça passa muito longe de um raciocínio matemático. 5. Questão de Fato e Questão de direito sob uma perspectiva sistemática

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25 MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo IV. Rio de Janeiro: Forense, 2001.p.252. 26 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2002. v.3. p. 112.

Ao autor de demanda judicial cabe levar os fatos que ensejam seu direito ao conhecimento do Poder Judiciário, que por sua vez, deverá julgar a ação e declarar quem possui o direito.

Respeitadas as teorias monista e dualista, o direito é conhecido por

quem tem o ius dicere, e portanto, em princípio não há necessidade de fundamentação jurídica, narra mihi factum, dabo tibi ius.

Sabe-se também, que o direito é transcendente a decisão judicial, pré–

existe à sentença, é empírico e não fícto. É necessário, entretanto, que a aplicação da norma, princípios, regras de experiência, ocorram ante o caso concreto, com suas peculiaridades.

Não há, mesmo que o poder Legislativo fosse composto por cidadãos

de extremada capacitação, como prever a resposta adequada para cada conflito de possível constatação. A norma, é evidente, não preenche todas as possibilidades de conflitos, se assim fosse, o magistrado seria despiciendo, não seria necessário julgar, bastaria aplicar “mecanicamente”.

O direito não é exato, não existem, em princípio, afirmações sem

sombra de dúvidas, mas sim entendimentos. Não existe direito sem fato, nem fato sem direito em um Estado Democrático de Direito. O fato mais trivial só ocorrerá, no mínimo, porque o agente do fato possui direitos fundamentais, dentre eles à liberdade.

Com mais razão poder-se-á sustentar a impossibilidade de separar

questão de fato e questão de direito, quando os fatos analisados tratarem-se de fatos presentes em uma petição inicial, que possui como objetivo o reconhecimento de um direito. Mostra-se claro que se o fato está presente entre as razões do autor, ali está para embasar o seu direito.

Dizer que existe distinção entre fato e direito, seja para julgamento

antecipado, julgamento pelo tribunal (Art. 515, §3º), revelia, artigo 285 – A, recurso especial ou extraordinário, em qualquer caso, será relegar toda evolução do ordenamento jurídico e filosófico do estudo contemporâneo. Assim, dir-se-á que o direito por ser separado do fato tem vontade própria e que o legislador tem condições de antever possíveis conflitos, que poderão ocorrer inclusive após sua existência.

Dizer que o magistrado deve ficar adstrito a lei, é negar o princípio do

livre convencimento, é negar em última instância o poder de dizer o direito que seria conferido ao Poder Judiciário, segundo a estruturação estatal.

Para que tenhamos um processo civil cumpridor do devido processo

legal, os aplicadores do direito precisam abandonar “vícios” há muito “ sucateados”, precisam entender que, de acordo com a própria nomenclatura, o processo deve servir de instrumento efetivo a realização dos direitos.

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Não há como alcançar-se a efetivação de direitos se o juiz está adstrito a letra fria da lei, se as vicissitudes do caso concreto não influem no julgamento, em última instância, se a lei trata desiguais de forma igual.

Não por outro motivo, referiu o eminente professor Dinamarco que “o

mal do pensamento puramente positivista reside justamente no curto alcance de suas soluções”27 e adverte que é indispensável relativizar o binômio direito-processo para a liberação de velhos preconceitos formalistas para que do processo se possa extrair maiores proveitos.

Não é possível dizer, que determinada ação trata tão somente sobre

fato ou de direito, e que por isso a análise do conflito será estendida ou sumarizada, não. Poder-se-á sim dizer, se o caso for, que em determinada lide, em certa fase do procedimento, encontra fatos provados ou não.

Em outras palavras, não se poderá deixar de admitir recurso especial e

extraordinário porque trata sobre fatos e sobre sua configuração. Ao contrário, só não se poderá admitir a irresignação do recorrente se, cumpridas as regras dos artigos 105 e 102 da Constituição Federal, a ação ainda necessitar de instrução probatória.

“(...) os juízes estão constrangidos a ser criadores do direito, “law-makers”. Efetivamente, eles são chamados a interpretar e, por isso, inevitavelmente a esclarecer, integrar, plasmar e transformar, e não raro a criar um ex novo direito.”28

Não existe justificativa, quando houver plena instrução probatória, para

a não admissibilidade, ao que parece, afinal os Tribunais Superiores só poderão avaliar os fatos e a conseqüente realização de direito, com suas peculiaridades, se os fatos estiverem provados. Não há como dizer que alguém possui direito sem saber se existiu o fato.

A verdade, quer-se crer, é que a cisão entre o fato e o direito, quando

ventilada em determinado processo, acaba por desvirtuar a essência de cada um deles.

Contrariamente à dicotomia tradicional – Da mihi factum tibi dabo ius -, nem o juiz, nem qualquer outro profissional é predisposto a um intercâmbio entre o fato e o direito, concebidos ambos como entidades reificadas, a primeira com sua brutalidade de dada pré-jurídico, a segunda em sua reluzente pureza de norma. A prática contradiz semelhante divisão entre ‘o’ fato e ‘o’ direito, pois o primeiro elemento que tinham em comum, quando deixados a si mesmo, era a opacidade deles, enquanto postos um diante do outro, esclarecem-se mutuamente.29

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27 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.p. 231-233. 28 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Fabris, 1993.p.74. 29 RIGAUX, François. A lei dos juízes. São Paulo: Martins Fontes, 2000.p.46.

Não por outro motivo, o renomado processualista Danilo Knijnik, entendeu que, “portanto, diante de questões que tendem a potencializar a margem de decisão, não há como perseguir-se a única decisão correta de uma ponto de vista abstrato.” E segue, “nestes casos portanto, a sua atuação não só é legítima, como é necessária, porque a não uniformização, onde ele é reclamada, é também uma forma de descumprir o art. 105, III da Constituição Federal.”30

Não há como persistir em uma suposta distinção entre as questões de

fato e direito, não apenas pela evidente inexistência de lógica neste entendimento, mas fundamentalmente pelo prejuízo que tal postura gera a sociedade, ante a insegurança jurídica que repercute na sociedade.

“Via de conseqüência na há como persistir na ‘desclassificação’ de

uma determinada questão, reconduzindo-a ou ao “direito”, ou ao “fato”, pura e simplesmente”.

“Mais correto será trabalhar com uma categoria própria, que encerre,

em si, uma realidade e um regime jurídico unitários. Tais questões são chamadas “questões mistas”(de fato e de direito).”31

A solução apresentada pelo ilustre autor, nos parece, está em perfeita

consonância com as idéias aqui expostas, talvez valendo uma sumária retificação, de que, a nosso ver, todo e qualquer fato, obviamente, que pertença ao mérito da demanda, é uma questão mista, de fato e de direito, e como tal, deve ser apreciada. 6. Conclusão

Em tempo onde descobertas e revoluções tecnológicas se acumulam

diariamente, não se pode imaginar que o direito, ciência social, fique adstrito a conceitos retrógrados e superados.

Que um dos maiores problemas enfrentados hoje pelo Poder Judiciário

seja o distanciamento entre as decisões judicias e a realidade social, dúvidas não existem. Mais evidente é que um dos principais causadores deste problema, seja a infundada e renitente busca pela diferenciação entre questão de fato e questão de direito.

A herança do Iluminismo, ainda assombra o sistema jurisdicional

contemporâneo, com o entendimento ineficiente de que dever-se-ia ter juízos neutros e adstritos ao suposto sentido unívoco das leis.

É sabido que a lei não tem sentido próprio, que sua aplicação dar-se-á

ante o caso concreto, mediante interpretação do jurista. Dessa forma, o aplicador do direito deve conhecer os fatos trazidos e aplicar a “norma”, mas não de forma silogística, e sim de forma dialética.

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30 KNIJNIK, Danilo.O Recurso Especial e a revisão da questão de fato pelo Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2005.p.266. 31 KNIJNIK, Danilo.O Recurso Especial e a revisão da questão de fato pelo Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2005.p.268.

O corolário lógico e pré-requisito desta situação será a plena motivação das decisões judiciais, afinal o magistrado deverá apontar cada detalhe que houvera contribuído para a formação de seu convencimento, e a partir de quais pressupostos entendeu por aplicar a “norma.”

Embora a tendência seja de sumarização e talvez valorização

exacerbada á celeridade, há que se perceber a necessidade de voltar-se a atenção, também, para a segurança jurídica. Precisamos de mais comprometimento dos aplicadores do direito no dia-a-dia forense, precisamos que cada processo instaurado seja entendido e conhecido à exaustão, com diálogo entre as partes e juiz e plena cognição sobre os fatos, sem descuidar-se da aplicação do direito em seu sentido mais amplo.

Não é dado ao Poder Judiciário esquivar-se da apreciação dos

conflitos levados ao conhecimento pelas partes interessadas, utilizando-se para tanto de regras como as anteriormente analisadas. Sumarizar a cognição sobre os conflitos, sob a “desculpa” da diferenciação entre “questão de fato” e “questão de direito”, é negar jurisdição, é negar a garantia do devido processo legal, em suma, é violação direta a direito fundamental do jurisdicionado.

Resta dizer, que outra diferença não há entre questão de fato e

questão de direito, senão ontologicamente. Uma vez instaurado o processo, instrumento público de pacificação social, regido por diversas garantias fundamentais, deverá ser instruído e conhecido à exaustão, seu fatos e direito, pois um dependente do outro, na busca incessante pela melhor solução possível ao conflito.

6. Bibliografia.

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