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Nº 2 - 5 de Julho de 2012 folha informativa Fotos © Rui Carlos Mateus Quem tramou o judeu rico de Veneza? T udo neste O Mercador de Veneza convoca a intemporalidade den- sa de significados do teatro de William Shakespeare: a luz, a obscuridade sombria, a música, os espelhos – tal- vez sobretudo os espelhos, em que cada um pode re- ver-se na sua humanidade, e recordar que «barcos são apenas tábuas e marinhei- ros apenas homens», como bem lembra o judeu Shylock cheio de sageza, mas tam- bém cheio do ódio que a anula. E é ele, o que não se dispõe a comer com os cristãos, aquele a quem a tentação da vingança transformará no carrasco de si próprio, na vítima do ódio secular, teimosamente obstinado no cumprimento do vínculo contratual celebrado com os cristãos – acreditando, para além de toda a razoabi- lidade, estar em posição de subverter os sistemas e sub- sistemas de poder naquela Veneza regida pelos princi- pios gerais das oligarquias universais: as leis feitas pe- los homens, a manipulação oculta das mulheres. Não haverá compaixão para Shylock, e o seu lamento fi- cará a ecoar no coração de cada um como a prova do fracasso a que se conde- nam os que não se dispõem ao compromisso virtuoso – e muito embora também António carregue um pesa- do ónus de culpa, de resto magistralmente explorado nesta versão heterodoxa de Ricardo Pais, que reequa- ciona a leitura antisemita da peça, baralhando e voltan- do a dar uma dramaturgia em que ousou mexer com demiúrgica maestria. Sarah Adamopoulos A noite de abertura do 29º Festival de Almada jun- tou ontem na Escola D. António da Costa mais de 600 pessoas que quiseram assis- tir ao primeiro espectáculo do Festival. Assim, pelas 21h30, enquanto uns acabavam de jan- tar ao som da música espanhola que a soprano Sara Carneiro e Bruno Ribeiro (guitarra clássica) homenageavam na esplanada, muitos mais foram os que pre- senciaram a abertura oficial das duas grandes exposições deste ano: 1971-2011 – 40 anos de Teatro, patente na Sala Poli- valente da Escola, e a mostra que homenageia a actriz Cecília Guimarães, visitável no átrio da escola, junto ao Palco Grande. Entre os notáveis que compa- receram à chamada dos organi- zadores do Festival, destaque para o encenador alemão Peter Stein – uma presença históri- ca em Almada, de um homem cuja vida cruzou a História do teatro do século XX, sobretudo enquanto director (entre 1970 e 1985) da mítica companhia Schaubühne, de Berlim. Foi para ele, justamente, a primeira salva de palmas da noite. Mas o grande momento da noite de abertura do Festival de 2012 seria indubitavelmen- te o espectáculo de Israel Gal- ván, que, numa quarta-feira, a meio de uma semana de tra- balho, encheu o Palco Grande de aficionados e curiosos. Um espectáculo que Joaquim Be- nite (a quem o público presente ontem dedicou a sua segunda salva de palmas) viu no Festival de Avignon há três anos atrás e que finalmente conseguiu trazer a Almada. Intérprete virtuoso, contesta- do renovador da arte do Fla- menco, Galván tem o mérito de ser capaz “de não entrar em ruptura com a tradição, antes relacionando [o seu Flamenco] ALMADA CAPITAL DO TEATRO DESDE ONTEM Público acorreu em massa à noite de arranque do Festival com influências tão diferentes como Kafka ou Nijinski”, como fez questão de notar Rodrigo Francisco, o director-adjunto da CTA no primeiro discurso infor- mal de abertura do Festival que antecedeu o grande espectácu- lo da noite. Palavras de boas-vindas às quais se juntaram as de António Matos, o vereador da Cultura da Câmara Municipal de Alma- da, que cumprimentou com ale- gria e gratidão (et pour cause) aquele que lembrou ser “o me- lhor público de Portugal”. Um público militante, ano após ano mobilizado por Joaquim Benite para o teatro, e que faz de Al- mada desde há largo tempo “a terra-capital do teatro durante estas duas semanas”, como bem lembrou o vereador. Ao final da noite, marcada, também, por uma magnífica lua cheia, o beberete que se seguiu ao espectáculo mágico de Israel Galván juntou público, os artis- tas andaluzes e vários amigos do Festival. Chloé Siganos, directora do IFP, Peter Stein e Vasco Graça-Moura António Mega Ferreira, Gabriela Cerqueira, Rodrigo Francisco e Joaquim Benite Joaquim Benite com o Dr. João Bosco Mota Amaral Israel Galván: um arranque mágico desta 29.º edição Maria Emília Neto de Sousa e a actriz homenageada deste ano Cecília Guimarães A presidente da CMA, Maria Emília Neto de Sousa, o Embaixador do Chile Fernando Ayala e André Gomes

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Page 1: Quem tramou o judeu rico à noite de arranque do Festival T A · mais conhecida por Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, estreia amanhã no Maria Matos Teatro Municipal, sendo a pri-meira

Nº 2 - 5 de Julho de 2012 folhainformativa

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Quem tramouo judeu ricode Veneza?

Tudo neste O Mercador de Veneza convoca a intemporalidade den-

sa de significados do teatro de William Shakespeare: a luz, a obscuridade sombria, a música, os espelhos – tal-vez sobretudo os espelhos, em que cada um pode re-ver-se na sua humanidade, e recordar que «barcos são apenas tábuas e marinhei-ros apenas homens», como bem lembra o judeu Shylock cheio de sageza, mas tam-bém cheio do ódio que a anula. E é ele, o que não se dispõe a comer com os cristãos, aquele a quem a tentação da vingança transformará no carrasco de si próprio, na vítima do ódio secular, teimosamente obstinado no cumprimento do vínculo contratual celebrado com os cristãos – acreditando, para além de toda a razoabi-lidade, estar em posição de subverter os sistemas e sub-sistemas de poder naquela Veneza regida pelos princi-pios gerais das oligarquias universais: as leis feitas pe-los homens, a manipulação oculta das mulheres. Não haverá compaixão para Shylock, e o seu lamento fi-cará a ecoar no coração de cada um como a prova do fracasso a que se conde-nam os que não se dispõem ao compromisso virtuoso – e muito embora também António carregue um pesa-do ónus de culpa, de resto magistralmente explorado nesta versão heterodoxa de Ricardo Pais, que reequa-ciona a leitura antisemita da peça, baralhando e voltan-do a dar uma dramaturgia em que ousou mexer com demiúrgica maestria.

Sarah Adamopoulos

A noite de abertura do 29º Festival de Almada jun-tou ontem na Escola D.

António da Costa mais de 600 pessoas que quiseram assis-tir ao primeiro espectáculo do Festival. Assim, pelas 21h30, enquanto uns acabavam de jan-tar ao som da música espanhola que a soprano Sara Carneiro e Bruno Ribeiro (guitarra clássica) homenageavam na esplanada, muitos mais foram os que pre-senciaram a abertura oficial das duas grandes exposições deste ano: 1971-2011 – 40 anos de Teatro, patente na Sala Poli-valente da Escola, e a mostra que homenageia a actriz Cecília Guimarães, visitável no átrio da escola, junto ao Palco Grande.

Entre os notáveis que compa-receram à chamada dos organi-zadores do Festival, destaque para o encenador alemão Peter Stein – uma presença históri-ca em Almada, de um homem cuja vida cruzou a História do teatro do século XX, sobretudo enquanto director (entre 1970 e 1985) da mítica companhia Schaubühne, de Berlim. Foi para ele, justamente, a primeira salva de palmas da noite.

Mas o grande momento da noite de abertura do Festival de 2012 seria indubitavelmen-te o espectáculo de Israel Gal-ván, que, numa quarta-feira, a meio de uma semana de tra-balho, encheu o Palco Grande de aficionados e curiosos. Um espectáculo que Joaquim Be-nite (a quem o público presente ontem dedicou a sua segunda salva de palmas) viu no Festival de Avignon há três anos atrás e que finalmente conseguiu trazer a Almada.

Intérprete virtuoso, contesta-do renovador da arte do Fla-menco, Galván tem o mérito de ser capaz “de não entrar em ruptura com a tradição, antes relacionando [o seu Flamenco]

ALMADA CAPITAL DO TEATRO DESDE ONTEM

Público acorreu em massaà noite de arranque do Festival

com influências tão diferentes como Kafka ou Nijinski”, como fez questão de notar Rodrigo Francisco, o director-adjunto da CTA no primeiro discurso infor-mal de abertura do Festival que antecedeu o grande espectácu-lo da noite.

Palavras de boas-vindas às quais se juntaram as de António Matos, o vereador da Cultura da Câmara Municipal de Alma-da, que cumprimentou com ale-gria e gratidão (et pour cause) aquele que lembrou ser “o me-lhor público de Portugal”. Um público militante, ano após ano mobilizado por Joaquim Benite para o teatro, e que faz de Al-mada desde há largo tempo “a terra-capital do teatro durante estas duas semanas”, como bem lembrou o vereador.

Ao final da noite, marcada,

também, por uma magnífica lua cheia, o beberete que se seguiu ao espectáculo mágico de Israel Galván juntou público, os artis-tas andaluzes e vários amigos do Festival.

Chloé Siganos, directora do IFP, Peter Stein e Vasco Graça-Moura

António Mega Ferreira, Gabriela Cerqueira,Rodrigo Francisco e Joaquim Benite

Joaquim Benite com o Dr. João Bosco Mota Amaral

Israel Galván: um arranque mágico desta 29.º edição

Maria Emília Neto de Sousa e a actriz homenageada deste ano Cecília Guimarães

A presidente da CMA, Maria Emília Neto de Sousa, o Embaixador do Chile Fernando Ayala e André Gomes

Page 2: Quem tramou o judeu rico à noite de arranque do Festival T A · mais conhecida por Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, estreia amanhã no Maria Matos Teatro Municipal, sendo a pri-meira

AGENDA DE AmANhã

18h00 - Ricardo Pais: Recriar O mercador de VenezaEsplanada da Esc. D. António da Costa

Charlot evadido, Charlot na ruada paz e Charlot nas termasEsplanada da Esc. D. António da Costa

19h00 - herodíadesTeatro da Politécnica21h00 - O sonho da razãoTeatro da Cornucópia21h00 - Para Louis de FunèsInstitut Français de Portugal21h30 - O mercador de Veneza Teatro Municipal de Almada21h30 - Enquanto vivermosCulturgest21h30 - NoraMaria Matos Teatro Municipal

ReStAURANte dA eSPlANAdA

PRATOS

- Coelho com vinagre balsâmico

- Filetes com arrozde grelos

-Panados- Carne assada- Arroz e várias saladas

SOBREMESA

- Fruta da época- Mousse de pêssego

hoje

Philippe Durand

Ricardo Pais, encenador que recria com a Compa-nhia de Teatro de Almada

a peça O mercador de Veneza – espectáculo que estreou em 2008 no Teatro Nacional São João, no Porto – estará na es-planada da Escola D. António da Costa (Almada) para um colóquio que decorre amanhã, às 18h00. Neste encontro com o público o encenador irá abordar a experi-

A SOLIDÃO EM “O MERCADOR DE VENEZA”

Ricardo Pais em colóquio em Almada

Nora, a versão da com-panhia tg STAN da peça mais conhecida por Casa

de Bonecas, de Henrik Ibsen, estreia amanhã no Maria Matos Teatro Municipal, sendo a pri-meira vez que o colectivo apre-senta este espectáculo em todo o mundo.

Nora, ou Casa de bonecas, é a peça mais representada em todo o mundo de Henrik Ibsen, escritor norueguês do séc. XIX. O texto é “sobre uma mulher que descobre que vive aprisio-nada no seu casamento e na estrutura social em que está inserida, e escapa disso, o que foi uma completa revolução num tempo em que o casamento era completamente sagrado”, expli-ca Damiaan de Schriiver, um dos membros dos tg STAN.

ESTREIA DE “NORA” AMANHÃ PELOS Tg STAN

As formas da opressãosocial no séc. XXI

Para este encenador/actor – os membros desta companhia são ao mesmo tempo encenado-res e intérpretes das peças que criam – “questionar esta supre-macia e a dimensão completa-mente sagrada do casamento foi uma séria revolução”. “Para nós, é muito entusiasmante questionarmo-nos se esta peça tem alguma relevância hoje em dia, e qual poderá ser: se é so-bre consumismo, sobre auto-realização, sobre a opressão das mulheres”, diz damiaan de Schriiver, acrescentando que estas são as questões para as quais querem encontrar respos-ta “com o público”.

ência de recriar esta peça que, segundo o próprio “trata da am-bivalência de relações, inclusive e sobretudo, das relações entre o poder financeiro e as chama-das religiões, onde é certo que judeus e cristãos se digladiam violentamente, numa espécie de exercício de consanguinidade que chega quase ao assassi-nato que cria uma tensão muito curiosa”.

Ricardo Pais adianta ainda que O mercador de Veneza aborda também “a raridade da natureza humana”. “Incluindo, natural-mente, a relação que cada um estabelece entre si próprio, os seus desejos mais ou menos es-condidos – mais ou menos legí-timos –, e os seus amores, sen-do também muito, e sobretudo, uma peça sobre as solidões”, conclui o encenador.

Amanhã, dia 6 de Julho pelas 21h00, estreia Para Louis de Funès

no Institut Français de Portu-gal. A encenação é assinada por Philip Boulay, um velho amigo do Festival, que chegou ontem mesmo a Almada, jun-tamente com Philippe Durand, o actor que dirigiu neste traba-lho, e que constitui para Bou-lay uma declaração de afecto aos actores: “Gosto dos ac-tores! Estou ao lado deles, ao serviço do que se passa em cena”, afirmou o encenador em entrevista ao +TMA.

Para Louis de Funès é um longo poema centrado no ofício e no lugar do Actor no Mundo. Um texto-programa e um manifesto, ou, nas pala-vras de Philippe Durand, que a

NOVARINA CELEBRA O ACTOR

“Todas as ideias e todas as palavras de que um actor precisa”, a partir de amanhã no IFP

partir de amanhã o interpreta: “uma aventura linguística que contém em si todas as ideias e todas as palavras de que um actor precisa”. O espectáculo repete no sábado dia 7 pelas 19h00.

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Ricardo Pais