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Número 35 Março / Abril 2015 Publicação bimestral Quem foi Carolina Maria de Jesus? Quando mulheres do povo como eu nos dispomos a escrever, estamos rompendo com o lugar que normalmente nos é reservado. A mulher negra pode cantar, pode dançar, pode cozinhar, pode se prostituir mas escrever não.Frase contemporânea da escritora Conceição Evaristo, que representa bem a vida de Carolina Maria de Jesus. O Plenário do Conselho Na- cional do Ministério Público (CNMP), por unanimidade, julgou improcedente o PCA 1283/2014-11, que requeria a suspensão de concurso público para promotor de Justiça subs- tituto do Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA) e ques- tionava previsão, em regulamen- to do certame, que destina 30% das vagas a candidatos que se au- todeclarem negros ou pardos. A decisão foi tomada durante a 5ª Sessão Ordinária do CNMP, rea- lizada no dia 10 de março. Pág.6 CNMP valida cotas raciais Márcio José Cordeiro Fahel, procurador-geral de Justiça da Bahia, desde março de 2014, fala sobre as cotas raciais no con- curso para promotor de Justiça do Estado da Bahia e a validação do edital pelo Conselho Nacio- nal do MP. Pág. 7 Entrevista com o PGJ da Bahia Audiência pública será no dia 6 de maio A audiência ocorrerá no au- ditório do Ministério Público Federal, na avenida Governador Agamenon Magalhães, 1800, Espinheiro. A coordenação da audiência será do promotor de Justiça de Direitos Humanos Maxwell Vignoli. Pág. 8 Vivenciou e escreveu sobre a vida dos negros nas primeiras décadas da libertação da escravatura, definindo a favela como um quarto de despejo. “Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.” (trecho do livro Quarto de Despejo). Págs. 4 e 5 Sérgio Almeida (Ascom/CNMP) Ascom/MPBA

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Número 35Março / Abril 2015Publicação bimestral

Quem foi Carolina Maria de Jesus?

“Quando mulheres do povo como eu nos dispomos a escrever, estamos rompendo com o lugar que normalmente nos é reservado. A mulher negra pode cantar, pode dançar, pode cozinhar, pode se prostituir mas escrever não.”Frase contemporânea da escritora Conceição Evaristo, que representa bem a vida de Carolina Maria de Jesus.

O Plenário do Conselho Na-cional do Ministério Público (CNMP), por unanimidade, julgou improcedente o PCA 1283/2014-11, que requeria a suspensão de concurso público para promotor de Justiça subs-tituto do Ministério Público do

Estado da Bahia (MPBA) e ques-tionava previsão, em regulamen-to do certame, que destina 30% das vagas a candidatos que se au-todeclarem negros ou pardos. A decisão foi tomada durante a 5ª Sessão Ordinária do CNMP, rea-lizada no dia 10 de março. Pág.6

CNMP valida cotas raciais

Márcio José Cordeiro Fahel, procurador-geral de Justiça da Bahia, desde março de 2014, fala sobre as cotas raciais no con-curso para promotor de Justiça do Estado da Bahia e a validação do edital pelo Conselho Nacio-nal do MP. Pág. 7

Entrevista com o PGJ da Bahia

Audiência pública será no dia 6 de maio

A audiência ocorrerá no au-ditório do Ministério Público Federal, na avenida Governador Agamenon Magalhães, 1800, Espinheiro. A coordenação da audiência será do promotor de Justiça de Direitos Humanos Maxwell Vignoli. Pág. 8

Vivenciou e escreveu sobre a vida dos negros nas primeiras décadas da libertação da escravatura, definindo a favela como um quarto de despejo. “Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.” (trecho do livro Quarto de Despejo). Págs. 4 e 5

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O Ministério Público de Per-nambuco (MPPE), por meio da 8ª Promotoria de Justiça de De-fesa da Cidadania do Recife, jun-tamente com o Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça Criminais e o Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo (GT Racismo), convoca audiência pública para discutir o tema As barreiras de acesso à Jus-tiça aos jovens negros em situação de violência, no dia 6 de maio. A iniciativa conta com a parce-ria dos GTs Racismo das Polícias Civil e Militar de Pernambuco. Todos estão convidados a parti-cipar.

A audiência ocorrerá no au-ditório do Ministério Público Federal, localizado na avenida Governador Agamenon Maga-lhães, 1800, Espinheiro. A co-ordenação da audiência será do promotor de Justiça Maxwell Vignoli (8ª Promotoria).

Na ocasião, serão discutidos o fortalecimento de mecanismos de controle externo da atividade policial, com foco na subnotifi-cação de homicídios, especial-mente nos casos de confronto com a força policial, a assistência jurídica para jovens negros em situação de violência, em cum-primento de medidas socioedu-cativas ou em regime prisional e

a adoção de medidas, programas e políticas de enfrentamento e de superação das desigualdades decorrentes do preconceito e da discriminação étnico-racial.

A discussão que será promo-vida em Pernambuco é resultado da assinatura do Protocolo de Intenções para a Redução das Barreiras de Acesso à Justiça aos Jovens Negros em Situação de Violência pelo Conselho Na-cional do Ministério Público, Conselho Nacional de Justiça, Ministério de Justiça, Secreta-ria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e Secretaria Na-cional da Juventude, ambas da Secretaria Geral da Presidência da República, Conselho Federal da OAB e o Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais, e publicada no Diário Oficial da União, em 24 de março de 2014. O Protocolo estabelece a orga-nização de atividades conjuntas entre as instituições signatárias.

Consoante a isso, o Estado Brasileiro tem o compromisso de adotar políticas visando à eli-minação da discriminação racial em todas as suas formas, e em-prender medidas concretas para garantir o pleno exercício dos di-reitos humanos e das liberdades fundamentais, em condições de ampla igualdade, como signatá-

rio da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da Organização das Nações Uni-das, e da Declaração de Durban, formulada na III Conferência Mundial de Combate ao Racis-mo, Discriminação Racial, Xe-nofobia e Intolerância correlata, realizada em 2001.

Para a audiência do dia 6 de maio, o MPPE convidou a Se-cretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial do Governo Federal, Tribunal de Justiça de Pernambuco, Ordem dos Advo-gados do Brasil - Seccional Per-nambuco, Defensoria Pública de Pernambuco e Procuradoria da República dos Direitos do Cidadão. Ainda, a Secretaria da Juventude, Secretaria de Defe-sa Social, Secretaria de Direitos Humanos do Estado e da Prefei-tura do Recife e Comissão Esta-dual de Promoção da Igualdade Racial.

Também foram convidados pelo MPPE as lideranças do Mo-vimento Social Negro, coordena-dores dos NEABS - Núcleos de Estudos Afro-brasileiros das Uni-versidades Federal, Rural e parti-culares, conselheiros de Direitos Humanos do Estado de Pernam-buco e do Município de Recife.

02 | Recife, março / abril 2015 - gt racismo - mppe

MP em ação

EditorialColocar-se como escritora,

esse foi o maior legado de Ca-rolina Maria de Jesus. Quem foi Carolina? Escritora? Uma mineira que ao encontrar um caderno e um lápis ao catar lixo decidiu escrever sobre o seu dia a dia, como um diário. E isso virou um hábito. Quando foi descoberta pelo jornalista Audá-lio Dantas apresentou mais de 20 cadernos, um dos quais deu origem ao livro Quarto de Despe-jo, publicado em 1960. Carolina era negra, só tinha estudado dois anos, mãe solteira de três filhos, catadora de papel, morava na fa-velo do Canindé, em São Paulo, e gostava de escrever sobre o seu cotidiano.

Esta edição de n°35 traz a va-lidação pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) das cotas raciais em concurso para promotor de Justiça do Mi-nistério Público da Bahia, o pri-meiro do País a adotar o sistema de cotas para seleção de novos membros. A validação ocorreu no dia 10 de março. Para falar sobre o assunto, esta edição fez uma entrevista com o procura-dor-geral de Justiça da Bahia, Márcio José Cordeiro Fahel.

Por fim, o GT Racismo do MPPE participou de eventos em São Paulo sobre o racismo na in-fância, o primeiro seminário do CEERT para tratar do assunto, serão feitos outros em alguns estados para ampliar nacional-mente a discussão; e sobre Mas-sacre de Maio, audiência pública sobre as providências relaciona-das às mortes de jovens negros ocorridos em maio de 2006, no Estado de São Paulo.

GT RACISMO - MPPE

Carlos Augusto Arruda Guerra de HolandaProcurador-geral de Justiça

Maria Bernadete Martins Azevedo Fi-gueiroa (Coordenadora), Helena Capela Gomes (Sub-coordenadora), Janeide Oliveira de Lima, Maria Betânia Silva, Maria Ivana Botelho Vieira da Silva,

Irene Cardoso Sousa, Fernanda Arco-verde C. Nogueira, Roberto Brayner Sampaio, Antônio Fernandes Oliveira Matos Júnior, Marco Aurélio Farias da Silva, Humberto da Silva Graça, André Felipe Barbosa de Menezes, Muirá Belém de Andrade, Ana Karine Ferraz, Emma-nuel Morim, Izabela Cavalcanti Pereira e Maria Eduarda Souza (estagiária).Projeto gráfico: Leonardo Dourado

Texto e edição: Bruno Bastos, Giselly Veras e Izabela Cavalcanti (jornalistas), Geise Araújo, Igor Souza, Vanessa Falcão e Vinícius Maranhão (estagiários de jor-nalismo).

www.mppe.mp.br - [email protected] - (81)3182.7201 - Rua 1º de Março, 100, 3º andar, Stº Antônio Recife-PE - CEP: 50.010-170

Expediente

MPPE discute com instituições e sociedade civil sobre as barreiras de acesso à Justiça aos jovens negros em situação de violência

A coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento à Discriminação Racial (GT Ra-cismo), do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), pro-curadora de Justiça Maria Ber-nadete Figueiroa, participou do I Seminário Regional do Projeto Nacional - O Sistema de Garan-tia de Direitos da Criança e Ado-lescente e a Promoção da Igualda-de Racial, no dia 20 de março, em São Paulo, promovido pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Cerca de 200 pessoas participaram, entre elas, conse-lheiros tutelares, assistentes so-ciais, educadores, psicólogos e operadores do direito.

O projeto visa contribuir para que o Estatuto da Crian-ça e Adolescente e legislação correlata sejam utilizados na promoção da igualdade racial e no enfrentamento ao racismo na infância, especialmente em procedimentos de adoção e no

ambiente escolar, fortalecendo a atuação dos conselheiros tutela-res e demais atores do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes contra esta forma de maus-tratos.

Maria Bernadete dividiu a mesa temática Discriminação Racial - Sinônimo de maus-tratos – Estatuto da Criança e Adoles-cente com o desembargador e membro consultor da Infância e da Juventude, do Tribunal de Justiça de São Paulo, Antônio Carlos Malheiros; e com o dire-tor executivo do CEERT, Hédio Silva Júnior.

A coordenadora do GT Racis-mo do MPPE, na ocasião, res-saltou a necessidade de que os maus-tratos contra as crianças também sejam observados pela ótica do racismo, sobretudo o racismo institucional, uma vez que essa questão não está sen-do considerada nem visualizada com o devido cuidado.

“A visão universalista da so-

ciedade, que inclui a Rede de Atendimento à Criança e Adolescente, de que todas as crianças são iguais, pautada na desigualdade social, (pobre-za), impede a efetividade do princípio da Proteção Integral, que fundamenta o Estatuto da Criança e do Adolescente, refor-çando e reproduzindo o racismo e as desigualdades”, destacou Maria Bernadete.Cabo - Também nesta data, a promotora de Justiça Irene Car-doso, membro do GT Racismo do MPPE, participou da pales-tra Racismo Institucional Cau-sas e Consequências, promovida pelo Grupo de Estudo e Traba-lho Afro Indígena do Cabo de Santo Agostinho. A iniciativa aconteceu na Secretaria de Edu-cação do Cabo, com a participa-ção de diretores de escola, pro-fessores, técnicos de educação e representantes de alunos.

Para Irene Cardoso, o evento foi importante por debater esse

tema com quem faz a educação do Cabo de Santo Agostinho. A promotora de Justiça, na pa-lestra, abordou exemplos de ações que caracterizam o que é racismo institucional, além de cobrar a preparação dos profes-sores para que possam respon-der questionamentos dos alu-nos acerca do racismo. Por fim, também ressaltou a importância dos profissionais da educação se atualizarem quanto às Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabelecem as diretrizes e bases da educação nacional e a obrigatoriedade de se incluir no currículo oficial da rede de ensi-no as temáticas história e cultu-ra afro-brasileira e indígena.

A promotora de Justiça di-vidiu a mesa com Maria da Piedade Marques, membro do Conselho de Igualdade Racial do município do Cabo de Santo Agostinho.

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participação do MPPE

Mais de 560 pessoas foram mortas

Racismo é tema de eventos na cidade de São Paulo e no Cabo de Santo Agostinho

MPPE participa de audiência em SP sobre mortes de jovens negros em maio de 2006

O Conselho Nacional do Mi-nistério Público (CNMP), por meio da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais (CDDF) promoveu, no dia 7 de abril, na sede do Ministério Público do Estado de São Paulo, audiência pública sobre as providências relacionadas às mortes de jovens negros ocorridas em maio de 2006, no Estado de São Paulo, fato conhecido como Massacre de Maio, e a respectiva atividade policial e atuação do MP.

A abertura da audiência públi-ca foi realizada pelo presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais (CDDF/CNMP), Jarbas Soares, que presidiu e co-ordenou os trabalhos. A audiên-cia contou com a participação da coordenadora nacional do Grupo de Trabalho 4 - Enfren-tamento ao Racismo e Respeito

à Diversidade Étnica e Cultural da Comissão, da CDDF/CNMP, Maria Bernadete Figueiroa, que atua também como coordenado-ra do GT Racismo do Ministério Público de Pernambuco.

Entenda o caso - Os atos de violência de maio de 2006 resul-taram na morte de 564 pessoas, quando o Primeiro Comando da Capital iniciou uma série de ata-ques ao patrimônio público e aos policiais no Estado de São Paulo.

Dos assassinatos por arma de fogo naquele mês, apenas 59 eram agentes públicos. Os demais foram executados, se-gundo a polícia, em confronto. Entretanto, muitas das vítimas apresentam marcas de terem sido executadas sumariamente, com tiros no peito e na cabeça. Mais de 70% eram jovens, entre 11 e

31 anos e moradoras de bairros pobres da Grande São Paulo.

Os inquéritos das mais de 500 mortes foram fechados, sem con-clusão satisfatória nos Tribunais do Estado o que levou grupos de direitos humanos e de mães das vítimas a pedirem a federali-zação das investigações, ou seja, a reabertura dos inquéritos pelo Ministério Público Federal, para investigarem os responsáveis pelo que é considerado o maior mas-sacre da história do Estado de São Paulo.

Nova coordenadora do GT Racismo da Polícia Civil

A delegada Cláudia Frei-tas é a nova coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo da Polícia Civil. Cláudia Freitas também é gestora do Departamento da Mu-lher. Antes de se tornar a nova coordenadora do GT Racismo da Polícia Civil, Cláudia Freitas atuava na Delegacia de Polícia de Crimes Contra a Adminis-tração e Serviços Públicos.

AMC

S/M

PPE

Acesse através do QR Code o índice de vulne-rabilidade juvenil à violência e de-sigualdade racial 2014.

Nascida em Sacramento, dez anos (1914) após a morte do pensador alemão Friedrich Ratzel, Carolina Maria de Jesus demonstrou com o desenro-lar de sua vida que a teoria do Determinismo Geográfico não poderia se sustentar por muito tempo. Ratzel defendia que o homem seria produto do meio, ou seja, as condições naturais é que determinam a vida em socie-dade. O homem seria escravo do seu próprio espaço. A teoria do determinismo geográfico via o ser humano a partir do ponto de vista biológico (não social) e que, portanto, não poderia ser visto fora das relações de causa e efeito que determinam as condições de vida no meio ambiente.

Como Carolina Maria de Jesus rompeu com o destino ‘traçado’, conforme a teoria do pensador alemão, a história da literatura brasileira ganhou re-latos sobre a vida das pessoas à margem, residentes da favela do Canindé, de São Paulo, contada

a partir de quem a viveu. Nos textos pesquisados sobre Caro-lina, não se percebe claramente que dispositivo motivou a sua necessidade de escrever, de narrar o seu cotidiano como um livro, um diário, mas uma coisa pode-se perceber através da análise dos seus escritos, a influência do seu avô. As frases do avô foram repe-tidas nos seus textos e absorvidas por Carolina, inclusive a moti-vação para o estudo como uma chance para a próxima geração, já que seus avós foram escravos.

Quando a família passou a morar em Franca, São Paulo, Carolina, então com 13 anos, trabalhava numa fazenda e, como empregada doméstica, na cidade. De volta a Sacramento, aos 19 anos, foi presa junto com a mãe pela acusação de que pelo fato de Carolina saber ler, fazia-o para praticar feitiçaria.

Carolina decide morar em São Paulo após a morte da mãe, em 1937 e, segundo a Folha de

São Paulo (matéria online Es-critora Carolina Maria de Jesus viveu do caos ao caos publicada por Karla Monteiro, na data 20 de novembro de 2014), logo ao se instalar em São Paulo, Caro-lina conseguiu emprego na casa do médico Euryclides de Jesus Zerbini, precursor da cirurgia do coração no Brasil, que a permi-tiu usufruir de sua biblioteca nos dias de folga.

Só no ano de 1948, Carolina chega à favela do Canindé, local onde foi descoberta. Nesse ano nasce o primeiro filho, João José de Jesus, fruto do relacionamen-to com um marinheiro portu-guês. Dois anos depois nasce o segundo filho, José Carlos de Je-sus, de um relacionamento com um estrangeiro de nacionalidade espanhola. Em 17 de junho de 1950, foi publicado um poema de Carolina Maria de Jesus, em louvor ao presidente Getúlio Vargas, no jornal O Defensor. Em 1953, nasce a terceira filha, Vera Eunice de Jesus, após rela-

cionamento com o dono de uma fábrica e comerciante, cuja iden-tidade nunca foi revelada por Carolina. Dois anos depois, em 1955, Carolina inicia os registros de suas escrituras, em diário, so-bre a vida na favela do Canindé.

É em 1958 que Carolina Ma-ria de Jesus é descoberta pelo fotógrafo e repórter Audálio Dantas, na favela do Canindé, quando uma praça próxima à comunidade foi inaugurada e o repórter estava na cobertura do evento. Logo após a inaugura-ção, uma gangue de jovens ex-pulsou as crianças da pracinha e a ocupou. Segundo relato de Audálio, de repente, uma mu-lher chegou e avisou aos garotos da gangue que se eles não saíssem da praça ela ia colocar os nomes deles ‘no livro’. Os garotos real-mente saíram da praça após essa ameaça. Curioso quanto ao que se tratava esse livro, o repórter se aproximou da mulher e pergun-tou sobre qual livro ela estava tratando. Carolina levou o jorna-lista até o seu barraco, na favela do Canidé, e apresentou os seus cadernos de anotações que fazia sobre a vida e o seu cotidiano na comunidade. Nesse mesmo ano, trechos do diário de Carolina fo-ram publicados no jornal Folha da Noite.

Em 1959, a revista O Cruzei-ro, onde Audálio Dantas passa-ra a trabalhar, também publica trechos dos diários. E em 1960, o livro, contendo os diários de Carolina, chamado Quarto de Despejo: diário de uma favelada, é lançado com sucesso, tendo sua primeira edição com tiragem de dez mil exemplares e na noite de autógrafos foram vendidos 600 exemplares; no primeiro ano,

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Quem foi Carolina Maria de Jesus?

Apesar de ter cursado apenas as duas séries iniciais do primá-rio, Carolina reunia em casa mais de 20 cadernos com relatos sobre o cotidiano da favela, um dos quais deu origem ao livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada, publicado em 1960. Após o lançamento, seguiram-se três edições, com um total de 100 mil exemplares vendidos, tradução para 13 idiomas e vendas em mais de 40 países.

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Livros publicadosQuarto de despejo (1960) Casa de Alvenaria (1961) Pedaços de fome (1963) Provérbios (1963)

Publicação PóstumasDiário de Bitita (1982) Meu estranho diário (1996) Antologia pessoal (1996) Onde Estaes Felicidade (2014)

Publicações

com várias reedições, mais de 100 mil exemplares vendidos.

O lançamento do livro Quar-to de Despejo veio ao encontro dos movimentos sociais crescen-tes no Brasil, com o fortaleci-mento da luta de classes, tendo como pano de fundo global a divisão do mundo entre os sis-temas econômicos capitalismo e socialismo, e nacionalmente, a luta ideológica do governo mais democrático, a ‘ameaça’ do co-munismo, e a articulação da ala mais conservadora do País. É nesse clima que Carolina é vista, enxergada e até exaltada como uma figura pensante e complexa no meio de um ‘quarto de des-pejo’, comprovando que o meio onde vivia não a tinha sufocado o suficiente, pois com o parco tempo de escolaridade foi sufi-ciente para fazer a diferença na sua própria vida e na dos seus filhos, o que contrariamente pre-gava o determinismo geográfico, do alemão Friedrich Ratzel.

Em 1960, Carolina deixa a favela do Canindé e muda-se inicialmente para os fundos da casa de um amigo, em Osasco, São Paulo. Nesse ano, é home-nageada pelas Academia Paulista de Letras e Academia de Letras da Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1961, lança Casa de Alvenaria: diário de uma ex-fave-lada, a obra não agrada os críti-cos, nem a elite da época.

Também, em 1961, é con-vidada a viajar ao Uruguai, ao Chile e a Argentina. Neste últi-mo país recebe a Orden Caballe-ro Del Tornillo. Em 1963, lança o livro Provérbios, com edição da própria Carolina, mas sem reper-cussão. Publica também no mes-mo ano Pedaços da Fome, com apresentação do escritor negro Eduardo Oliveira, mas foi rece-bido com indiferença

Em 1969, consegue se mu-dar para o sítio em Parelheiros, bairro da periferia de São Pau-lo, juntamente com os filhos. Em 1975, o curta-metragem Despertar de um Sonho (sobre a vida de Carolina Maria de Jesus), produção alemã com direção de Gerson Tavares é proibido de ser

exibido no Brasil. As imagens de uma mulher favelada e a vida da comunidade não eram com-patíveis com a imagem que o governo militar queria exibir do Brasil, o cenário tinha mudado com a Ditadura, assim como as ideias. Mesmo assim, em 1976, há o relançamento do livro Quarto de Despejo, pela editora Ediouro.

Carolina Maria de Jesus, já não era mais notícia no Brasil; no entanto ainda era reconhe-cida no estrangeiro, como acon-teceu quando um grupo de pro-fessores e jornalistas da França a visitaram em sua chácara, e ela entregou os manuscritos de seu diário chamado Diário de Bitita. Os direitos autorais do Diário de Bitita é da Éditions A. M. Méta-ilié, e só foi publicado no Brasil pela Editora Nova Fronteira, em 1986, publicação póstuma. Inte-ressante é que a obra foi classi-ficada como ficção na sua apre-sentação, quando, na verdade, trata-se de uma relato da vida de Carolina, nascida 26 anos após a abolição da escravatura (Lei Áu-rea, 1888). Vivenciou e narrou a vida dos negros nas primeiras décadas da libertação.

Em 13 de fevereiro de 1977, Carolina Maria de Jesus morre aos 63 anos de insuficiência res-piratória, no seu sítio em Pare-lheiros, São Paulo.

Em 1982, a Rede Globo de Televisão produz o documentá-rio Caso Verdade: De catadora de papel a escritora famosa. Os pro-fessores José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine escre-vem o livro Cinderela Negra: A Saga de Carolina Maria de Jesus, despertando a mídia novamente para a vida e obra de Carolina, em 1994. E em 1995, os mes-mos professores lançam The Life and Death of Carolina Maria de Jesus, nos Estados Unidos.

*Matéria fundamentada na referência biobibliográfica do projeto Vida por Escrito - Orga-nização, classificação e preparação do inventário da obra de Caroli-na Maria de Jesus, contemplado pelo Edital Prêmio Funarte de Arte Negra, em 2013.

Escreveu sobre a vida dos negros nas primeiras décadas da libertação da escravatura, definindo a favela como um quarto de despejo. “Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.” (Quarto de Despejo)

Da esquerda para direita: Carolina, Audálio Dantas e Ruth Souza (atriz)

Conceição Evaristo, es-critora mineira, falou em entrevista no programa Espaço Público, da TV Cultura, exibido no dia 26 de maio deste ano, so-bre a deferência que tem por Carolina Maria de Jesus, pela coragem dela de se colocar como escri-tora, numa época em que escreviam Jorge Amado, Clarice Lispector. “Para mim, Carolina é o símbolo da insubordinação. Ela foi insubordinada tanto como mulher negra que escreve como pela linguagem, uma vez que ela fere com a nor-ma culta, usando a norma oculta, como gosto de fa-lar. Ela tenta se apropriar da linguagem, ela tinha consciência disso, porque a língua é de todos, não é da Academia”.

A entrevista pode ser vista pelo QRcode acima.

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30% das vagas para candidatos que se autodeclarem negros ou pardos

Plenário do CNMP valida cotas raciais em concurso para promotor de Justiça do MP da Bahia

O Plenário do Conselho Na-cional do Ministério Público (CNMP), por unanimidade, julgou improcedente o PCA 1283/2014-11, que requeria a suspensão de concurso público para promotor de Justiça subs-tituto do Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA) e ques-tionava previsão, em regulamen-to do certame, que destina 30% das vagas a candidatos que se autodeclarem negros ou pardos. A decisão foi tomada durante a 5ª Sessão Ordinária do CNMP, realizada no dia 10 de março.

De acordo com o requerente, a previsão em regulamento mos-tra-se indevida porque somente lei complementar, de iniciativa do procurador-geral de Justiça daquele estado, poderia alterar critérios para ingresso na carreira do MP baiano, não sendo devido que a fixação de cotas utilizasse como base apenas a Lei Estadual nº 13.182/2014, seja porque se trata de lei ordinária, seja porque de iniciativa do Poder Executivo

e apenas a ele aplicável, por ex-pressa determinação de um de seus dispositivos.

De acordo com o relator, conselheiro Fábio George, é importante levar em conta que a adoção de política afirmativa, antes de mera autorização cons-titucional, resulta de imperativo, implicando que até mesmo a edi-ção de lei formal seja dispensada para tanto. Inclusive, foi essa a conclusão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) Nº 186, “entendendo que a pro-vidência adotada pela Universi-dade de Brasília (UnB) encontra-va amparo na própria autonomia universitária, que tem sede cons-titucional”.

Em seu voto, o relator enfa-tizou que o fato de o MPBA se valer de critério utilizado pelo Poder Executivo pode apenas ter representado o uso de um “parâ-metro” já válido para o Estado da Bahia, mas, não uma subordina-ção àquele Poder, como sugere

o requerente. “Pelo contrário, é indicativo do fortalecimento e aprimoramento da instituição, na exata medida em que reforça o seu comprometimento com o Estado democrático”.

Segundo o conselheiro Fábio George, a atitude questionada é, na verdade, decorrência do compromisso do MP baiano com a ordem jurídica e a defesa dos vulneráveis, missões institu-cionais que lhe foram confiadas, como a todo o MP brasileiro, pela Constituição Federal.

A coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Discrimina-ção Racial (GT Racismo) do MPPE, procuradora de Justiça Maria Bernadete de Azevedo Figueirôa, saudou como avan-ço da democracia a decisão do CNMP de julgar improcedente o PCA. De acordo com ela, a medida do Conselho Nacional abre precedente para que os Mi-nistérios Públicos de todo o País possam instituir cotas raciais nos seus concursos para membros e

servidores. Bernadete Azevedo lembrou, ainda, que “tudo isso só está sendo possível em fun-ção das discussões em torno do tema”.

Suspensão - Em 16 de setem-bro de 2014, ao indeferir liminar para suspender concurso públi-co, o conselheiro Fábio George, relator da matéria, destacou que, diante da definição de cotas nas universidades, o Supremo Tri-bunal Federal (STF) já decidiu, por unanimidade, pela cons-titucionalidade dessa medida. Além disso, apontou que já há diversas leis prevendo tal meca-nismo, como a Lei Federal nº. 12.990/2014, que reserva aos negros 20% das vagas ofereci-das nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública fede-ral, como ainda a Lei Estadual nº. 13.182/2014, do Estado da Bahia.

*Matéria adaptada do CNMP.

A decisão foi tomada durante a 5ª sessão ordinária do CNMP, no dia 10 de março

Sérgio Almeida (Ascom/CNMP)

Recife, março / abril 2015 - gt racismo - mppe | 07

Entrevista

Márcio José Cordeiro Fahel é o procurador-geral de Justiça da Bahia desde março de 2014. Na-tural de Itabuna, sul da Bahia, tem 44 anos e iniciou a carreira em 1993, atuando nas Promoto-rias de Justiça de Mucuri, Aure-lino Leal, Ibicaraí e de Itabuna. Em 2009, foi promovido para Salvador, onde atuou na 1ª Pro-motoria de Justiça Criminal e na 6ª Promotoria de Justiça da Ci-dadania. Ele ocupou os cargos de assessor especial, coordenador do Centro de Estudos e Aperfeiço-amento Funcional (Ceaf ), secre-tário-geral e chefe de Gabinete do Ministério Público da Bahia.

Ao seu ver, essa decisão do CNMP para o Ministério Pú-blico da Bahia abre preceden-tes para os outros MPEs, bem como para o Ministério Públi-co Brasileiro? Há o pedido de providência n°000543.2013-50, que tramita perante o CNMP por provoca-ção da organização não gover-namental Educafro, requerendo o sistema de cotas em todos os concursos para provimento de cargos de promotor de Justiça.

A decisão do CNMP em ver-dade confirmou, em boa hora, a iniciativa do MPBA de reservar 30% do total das vagas do Con-curso às pessoas que se autodecla-rarem pretos ou pardos, no mo-mento da inscrição preliminar. Espera-se que o precedente abra caminho para que o Estado bra-sileiro, em todos os níveis, insti-tucionalize a política em questão, para futuramente existir isonô-mico acesso aos cargos públicos

a todos os cidadãos, de maneira indiscriminada, como determina a Constituição Federal.

A medida em questão é fru-to de diretriz institucional do MPBA, que se fortaleceu com o advento do Decreto Estadual nº 15.353, de 08 de agosto de 2014, que, finalmente, regulamentou o art. 49 da Lei Estadual nº 13.182, de 06 de junho de 2014. Desde então, foram empreendidas reu-niões no âmbito da Procuradoria Geral de Justiça, com a participa-ção de assessores especiais, Pro-curadores de Justiça e do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento funcional do MPBA (CEAF), a partir das quais se decidiu propor ao Egrégio Conselho Superior do MPBA a alteração da Resolução nº 016/2014- que aprova o vi-gente regulamento e o programa do Concurso para ingresso na carreira do MPBA - para incluir a reserva de vagas a pretos e pardos. A proposta felizmente foi feste-jada e aprovada à unanimidade pelo colegiado, passando a orien-tar, inclusive, o concurso público recentemente deflagrado. Qual a repercussão no âmbito do MPBA dessa decisão, dado o elevado percentual de negros (pretos e pardos) no Estado? No âmbito do MPBA, a con-solidação da reserva de vagas no concurso para pretos e pardos foi objeto de positiva repercussão entre os integrantes das carreiras - membros e servidores.

De fato é de conhecimento público que o estado da Bahia abriga um percentual majoritá-rio de cidadãos afrodescenden-

tes, porquanto iniciativas como esta se revelam de singular im-portância para que o Estado re-flita em suas fileiras de agentes políticos exatamente os cidadãos aqui albergados. Vive-se atual-mente um favorável momento de consolidação dos direitos hu-manos em nível internacional, que não se coaduna com um modelo de acesso a cargos públi-cos permissivo apenas a grupos historicamente dominantes, em desfavor da maior parte dos ci-dadãos baianos, estes obrigados a enfrentar ao longo de cincos sé-culos significativo aparato refra-tário à sua inclusão nos centros decisórios institucionalizados.

Com efeito, a medida se ali-nha a outras iniciativas do MP/BA, tais como a pioneira criação da Promotoria de Justiça Com-bate ao Racismo, ainda nos me-ados da década de 1990, dentre outras mais recentes, como o Programa de Promoção da Igual-dade Racial e Combate ao Racis-mo, instituído no ano de 2014.

Considera a iniciativa das cotas para cargos de promotores de Justiça um aprimoramento da instituição e comprometimen-to com o Estado Democrático?As políticas afirmativas e de re-paração são ferramentas para correção de distorções históricas da dinâmica participativa dos pretos e pardos nas instituições estatais, decorrentes dos longos períodos de marginalização, em diversos vieses, absurda e inacei-tavelmente imposta aos brasilei-ros afrodescendentes.

O Ministério Público do Es-

tado da Bahia, por sua vocação constitucional, aliada ao seu histórico combativo a esta pro-blemática, não poderia passar ao largo das ações desencadeadas em todos os níveis de poder para efetivação das políticas inclu-sivas, uma vez que a heteroge-neidade dos cidadãos brasileiros reclama a participação de todos os grupos sociais, étnicos e regio-nais no aparato estatal.

Espera-se doravante que os concursos públicos, assim como já acontecem nos processos se-letivos de grande parcela das instituições públicas de ensino superior, contemplem a hipótese de reserva de vagas para negros e pardos, haja vista a importância de oportunizar hoje, em nível isonômico, o acesso às carreiras públicas aos cidadãos histori-camente relegados pelo Estado apenas pela sua origem étnico--racial.

Ao se reconhecer a existência nacional de um único povo, o brasileiro, tem que adotar todas quantas forem as providências até que se alcance entre a tota-lidade de brasileiros um nível de participação democrática iguali-tária. Espera-se, com isto, que, em médio e longo prazo, tais ações revelem-se absolutamente

desnecessárias, quando o aces-so à educação e demais recursos garantidos constitucionalmente aos cidadãos sejam suficientes para que todos, indistintamen-te, estejam aptos à participação social sem discriminações de qualquer natureza, como reza a Constituição da República.

“Vive-se atualmente um favorável momento de consolidação dos direitos humanos, que não se coaduna com um modelo de acesso a cargos públicos permissivo apenas a grupos historicamente dominantes”

Ascom/MPPA

08 | Recife, março / abril 2015 - gt racismo - mppe

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