escrevivÊncia de carolina maria de jesus: tempo ... · palavras-chave: memória, carolina maria de...

12
ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO, EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA ATRAVÉS DE UMA POÉTICA DE RESÍDUOS. Jonatan Gomes dos Santos e Silva Mestrando em História - Universidade Estadual Paulista (UNESP-Assis) [email protected] Resumo A presente comunicação propõe a análise da relação entre memória, tempo e experiência na escritura de Carolina Maria de Jesus, que pode ser classificada como uma poética de resíduos, tendo como fonte os manuscritos e datiloscritos utilizados na elaboração de sua autobiografia póstuma, Journey de Bitita (Diário de Bitita), publicada primeiramente na França em 1982, e no Brasil apenas em 1984. Esses textos são constituídos pelas memórias da escritora e seguem uma ordem temporal flutuante entre os anos de 1918 e 1940. Estudos nos quais mulheres negras aparecem como sujeitos passam por deficiência de documentos em que elas narram suas próprias experiências, principalmente pelo fato da literatura brasileira ter obstáculos de classe social, raça e gênero que, por um longo período, permitiam que ela fosse gerida quase exclusivamente por homens brancos. Portanto, a obra de Carolina de Jesus, marcada pela sua memória, oralidade e vivência, é um importante suporte para o estudo da literatura feminina negra, pois nos possibilita apreender a imagem da mulher negra sob seu próprio olhar. Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma escritora negra que obteve sucesso em 1960 com a publicação de seu primeiro livro “Quarto de despejo”. Este foi constituído pelos seus diários, que narravam o cotidiano da escritora, a luta quotidiana de uma mulher negra, migrante, pobre e desprovida de favores do Estado, de organismos sociais, de instituições e até de amigos, em um período de grande propaganda de desenvolvimento econômico e de modernização do Brasil. Contudo, as mais de 5.000 folhas presentes nos acervos brasileiros contendo os escritos de diversos gêneros de Carolina de Jesus nos mostram a importância que a escrita tinha para a construção de sua identidade, bem como a riqueza literária e memorialística que ainda foi pouco explorada pela história.

Upload: others

Post on 12-Nov-2020

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO,

EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA ATRAVÉS DE UMA POÉTICA DE RESÍDUOS.

Jonatan Gomes dos Santos e Silva

Mestrando em História - Universidade Estadual Paulista (UNESP-Assis)

[email protected]

Resumo

A presente comunicação propõe a análise da relação entre memória, tempo e experiência

na escritura de Carolina Maria de Jesus, que pode ser classificada como uma poética de

resíduos, tendo como fonte os manuscritos e datiloscritos utilizados na elaboração de sua

autobiografia póstuma, Journey de Bitita (Diário de Bitita), publicada primeiramente na

França em 1982, e no Brasil apenas em 1984. Esses textos são constituídos pelas

memórias da escritora e seguem uma ordem temporal flutuante entre os anos de 1918 e

1940. Estudos nos quais mulheres negras aparecem como sujeitos passam por deficiência

de documentos em que elas narram suas próprias experiências, principalmente pelo fato

da literatura brasileira ter obstáculos de classe social, raça e gênero que, por um longo

período, permitiam que ela fosse gerida quase exclusivamente por homens brancos.

Portanto, a obra de Carolina de Jesus, marcada pela sua memória, oralidade e vivência, é

um importante suporte para o estudo da literatura feminina negra, pois nos possibilita

apreender a imagem da mulher negra sob seu próprio olhar.

Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira.

Introdução

Carolina Maria de Jesus foi uma escritora negra que obteve sucesso em 1960 com

a publicação de seu primeiro livro “Quarto de despejo”. Este foi constituído pelos seus

diários, que narravam o cotidiano da escritora, a luta quotidiana de uma mulher negra,

migrante, pobre e desprovida de favores do Estado, de organismos sociais, de instituições

e até de amigos, em um período de grande propaganda de desenvolvimento econômico e

de modernização do Brasil. Contudo, as mais de 5.000 folhas presentes nos acervos

brasileiros contendo os escritos de diversos gêneros de Carolina de Jesus nos mostram a

importância que a escrita tinha para a construção de sua identidade, bem como a riqueza

literária e memorialística que ainda foi pouco explorada pela história.

Page 2: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

Após a publicação de “Quarto de Despejo”, a escritora passou por um processo de

esquecimento característico dos estudos literários que se estavam fora do que chamamos

de cânone, uma vez que vêm de espaços historicamente silenciados e marcados por

resquícios ainda presentes, na contemporaneidade, do colonialismo e da escravidão. De

acordo com Barossi (2017, p. 22), a reivindicação do direito à escritura – e à escrevivência

– tem sido ouvida aos poucos. Nos últimos anos, a crítica passou a valorizar a obra de

Carolina de Jesus como uma produção digna de ser estudada como literatura. Além disso,

a escritora é fundamental para se pensar diversas questões sobre a mulher negra, racismo,

identidade e escrita periférica.

A tortuosa escritura de Carolina acaba se revelando como fiel expressão da dura

rotina que marca o cotidiano de uma mulher negra, que percorre incessantemente as ruas

de São Paulo a fim de garantir, através dos restos, a sobrevivência de sua família. Dessa

forma, a poética de resíduos é oriunda da condição de marginalidade que ela vivia. Até

mesmo os materiais que utiliza para a escrita e leitura possuem o caráter de retalho, afinal,

os seus cadernos vêm do lixo que vasculha.

Carolina de Jesus como escritora constrói-se de forma constante com o

conhecimento que adquire de forma autodidata. Através de suas narrativas expõe como

adquiriu conhecimento sobre a realidade que à cerca conforme era absorvida pelas

palavras, pela linguagem, pelas leituras, e estando ela própria inserida na linguagem,

sentia-se presa à matriz do conhecimento que precisa ser colocado no papel para sanar as

perturbadoras, mas esclarecedoras, ideias (FERNANDEZ, 2019).

Portanto, o objetivo desse texto é analisar a relação entre memória, tempo e

experiência na escritura de Carolina Maria de Jesus, a partir dos textos que originaram a

sua coletânea de contos e poesias autobiográficos, publicada originalmente na França e

traduzida para o português com o título “Diário de Bitita”.

A poetisa da Favela

Não se saber ao certo a data de nascimento de Carolina Maria de Jesus, mas

estima-se que seja por volta de 1914, numa pequena cidade no sudoeste de Minas Gerais

Page 3: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

chamada Sacramento. Preta, neta de ex-escravos, foi criada somente pela mãe. Carolina

migrou de Sacramento-MG para São Paulo no final da década de 1940, em busca de

melhores condições na moderna e industrializada capital que segundo Rolnick (1988)

passa de cidade/entreposto comercial de pouca importância no país escravocrata para

cidade-vanguarda na produção industrial. São Paulo se transformara na cidade mais

populosa e o mais importante centro financeiro do Brasil. Um novo surto industrial ocorre

acompanhado da abertura das rodovias Anchieta e Presidente Dutra.

Ocorre, portanto, uma erradicação das “casas de cômodos”, tendo como

justificativa o remodelamento do espaço público, o que resulta na expulsão dos pobres do

centro urbano por meio de medidas coercitivas. Restando a população improvisar e

construir barracões com os restos madeiras e outros materiais que encontravam

abandonados na cidade (BONDUKI, 1988).

Nesse ambiente conturbado que Carolina de Jesus sentiu a inspiração para

começar a escrever, mesmo com apenas dois anos de ensino escolar, que foi interrompido

no começo das andanças, da migração interna, que marcaram a vida e obra da escritora.

Os seus textos funcionam, portanto, como uma forma de criar um percurso orientado ao

caos dos eventos cotidianos.

O jovem jornalista Audálio Dantas foi até o Canindé para fazer uma reportagem

sobre a favela e acaba encontrando Carolina brigando com alguns homens que brincavam

em um parque, falando que iria colocá-los no seu diário. Ele se interessa pelos cadernos,

e fica responsável pela edição e publicação que sai após dois anos. O sucesso é enorme.

Em 5 de maio de 1960 foi lançado “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”,

nos três primeiros dias vendeu mais de 10 mil cópias, número muito alto até para os

parâmetros atuais, superando livros de autores consagrados, como Jorge Amado. A

atenção da imprensa nacional é imensa, o que ajuda na visibilidade internacional, assim

o território brasileiro se apequena para as palavras de Carolina de Jesus, pois o livro foi

traduzido em 19 línguas e publicado em mais de 40 países (FERNANDEZ, 2019).

Page 4: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

O diário de Carolina choca a elite brasileira não apenas por revelar as mazelas da

urbanização paulistana, mas também por expor suas práticas e teorias para resistir à

violência de gênero e ao racismo.

Contudo, a queda é tão grande quanto o sucesso. Já na publicação do seu livro

posterior em 1961, “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada”, as vendas

despencam. Nesse livro, Carolina descreve seu cotidiano a partir do dia de lançamento do

“Quarto de Despejo”, relatando sua saída da favela após realizar o grande sonho de residir

em uma casa de alvenaria.

Passada a agitação em torno do lançamento de Quarto de Despejo, Carolina de

Jesus passa por um processo de esquecimento. Ela queria publicar outros gêneros

literários:

Ela tentava se firmar como escritora ficcional, leitora de clássicos e criadora

de histórias que falavam, entre outros temas, de amor, traição, injustiça,

vingança, remorso e verdade, o que estava longe de interessar a um meio

desacostumado a dar voz aqueles que desafiavam a ordem estabelecida e

procuravam ocupar espaços antes reservados a determinados grupos. (PERES,

2016 p. 91)

Carolina de Jesus ainda conseguiu publicar com recursos próprios mais dois

livros, o romance Pedaços da Fome em 1963 e Provérbios em 1965. Contudo, esses livros

são vistos com indiferença, a “poetisa da favela”, como era chamada, que deixara a favela

do Canindé, já não tinha mais espaço na literatura.

A escritora acaba mudando para um sítio em Parelheiros, zona sul de São de Paulo.

Isolada, Carolina de Jesus passa a escrever a maior parte de seus contos e poesias

autobiográficos, nesse contexto ela reconstrói suas reminiscências de infância. Em 1972

foram entregues dois cadernos para a jornalista Clélia Pisa que continham uma coleção

dessas memórias (FERNANDEZ, 2014). Esses cadernos apenas doze anos mais tarde

Page 5: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

resultariam na obra póstuma “Diário de Bitita”. Ela volta a catar papel esporadicamente

e morre em 1977, esquecida por todos, num sítio em Parelheiros.

Poética de Resíduos e Escrevivência Caroliniana

Analisar a obra de Carolina de Jesus é um desafio singular na associação da

Literatura com a História, pois os modelos tradicionais dos cânones literários não podem

suportá-la, afinal, ela desenvolveu sua escritura de maneira autônoma com apenas dois

anos de ensino escolar. De acordo com Fernandez (2019), a obra de Carolina de Jesus é

marcada por um hibridismo que mescla: influências da literatura do século XIX;

romances; melodramas; teatro, crônicas dos jornais; radionovelas; e, sobretudo, a

oralidade que é essencial na sua formação cultural e para sua apreensão do mundo. Mas

Carolina de Jesus não se limitou aos textos, também tinha forte ligação com a música,

tocava violão e produziu dois Long-plays (LP’s) com variados gêneros musicais. Além

disso, ela gostava de produzir suas fantasias para o carnaval, tendo registro da criação de

um “vestido elétrico”, ou seja, Carolina de Jesus excursiona pelas artes em geral.

Portanto, o que muitas vezes é definido como estética da fome, literatura marginal

ou literatura periférica, pode ser entendido como uma poética de resíduos:

uma reciclagem literária ao modo de um bricoleur que vai colando no seu texto

pedaços de discursos alheios. Procurando uma aproximação com a literatura

‘ilustrada’, linguagem entendida como “arma” crítica, ela vai colando retalhos

ou restos de ideias e de formas em seus experimentos de escrita.

(FERNANDEZ, 2019, p. 26).

A Vida e a obra de Carolina de Jesus se misturam não apenas no conteúdo, mas

também na sua forma não linear e cheia de descontinuidades. Os seus textos seguem uma

estruturação ligada ao seu ofício de catadora, pois os seus materiais de escrita e leitura

eram retirados do lixo.

Page 6: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

Essa poética de resíduos contém a bagagem da cultural que a escritora adquiriu

em suas migrações e vivência nas favelas, onde pessoas de diferentes lugares, culturas e

costumes foram amontoadas às margens do desenvolvimento urbano. Os seus textos são

marcados pela mescla de vozes sotaques e acentuações que revelam “esse agrupamento

de discursos nos quais sua escrita se equilibra ao recriar aproximações das unidades de

origem e de suas significações ao rebocá-las em seus textos” (FERNANDEZ, 2019, p.

64).

Ao mesmo tempo, Carolina de Jesus é uma beletrista que busca na linguagem

clássica uma referência para seus textos. Com essa aproximação da literatura tradicional,

a escritora também procura legitimar o seu texto, contudo, isso não pode ser visto como

uma mera imitação subalterna, afinal, a partir da bricolagem, da mescla de estilos, ela cria

um estilo inusitado que compreende a arte como conhecimento e beleza (FERNANDEZ,

2019, p. 37).

O que resulta num bucolismo de tom idílico expresso nas constantes descrições

das belezas da natureza, como se pode presenciar na segunda versão do “Prólogo” de seu

livro de poesias, texto em que a escritora reflete sobre o nascimento de sua aptidão

literária. Para isso, ela realiza uma pequena autobiografia, cuja a mudança na infância

para uma fazenda é um evento importante, pois a partida da cidade é triste inicialmente

porque significava em abandonar a escola. Contudo, em pouco tempo Carolina de Jesus

passa a gostar da sua nova vida:

Dias depois eu comecei a apreciar a vida no campo. Mamãe deixava o leito

antes do astro rei surgir. Ia preparar a nossa refeição. Eu permanecia no leito

ouvindo os gorjeios das aves. Eu era sempre a última a deixar o leito. Ia abluir-

me no regato. A brisa perpassava suavemente. Eu aspirava o perfume que

exalava das flores. Comecei a apreciar aquela vida tranquila e silenciosa. Eu

tinha impressão de que tínhamos nos transportado de um mundo para o outro.

(JESUS, 2018, p. 21).

Page 7: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

A partir dessa mudança para a fazenda iniciam, ainda muito jovem, as andanças

de Carolina de Jesus, a migração interna em busca de melhores condições vida com a mãe

e o padrasto. Mais tarde caminharia sozinha até chegar em São Paulo, onde a solidão e a

frustração com o grande conglomerado urbano formaram as condições para emergir a

vontade de escrever:

Percebi que o meu pensamento se modificava. Não era o mesmo lá do interior.

Sentia ideias que eu desconhecia. As ideias surgiam initerruptamente. No meu

cérebro parecia que havia alguém me ditando algo. Eu pensava, pensava, mas

não sabia definir. Senti-me tão só nesta grande metrópole. Um dia, apoderou-

se de mim um desejo de escrever. Escrevi: Adeus, dias de ventura!/ Adeus,

dias de ilusão!/ Vou morar na sepultura/ Debaixo do frio, no chão/Vou

satisfeita, risonha/ Contente por não voltar/ Minha vida é tristonha/

Morrendo... Vou descansar (JESUS, 2019, p. 24).

Em muitos textos Carolina de Jesus trata esses infortúnios da vida com uma

linguagem jocosa, representando-os com hilaridade, muitas vezes promovendo um auto-

escárnio:

Quando eu cheguei aqui em São Paulo, eu não sabia tomar o bonde. Pensava:

‘Deve ser bom andar naquilo’. Parava em qualquer lugar, fazia sinal e o bonde

passava. Eu exaltava e bradava:\ - Eu vou pagar! Eu tenho dinheiro, olha o

dinheiro aqui. Vocês não param o bonde por que eu sou preta? (JESUS, 2018,

p. 76).

A escritora, inclusive, organiza uma coleção desses textos e os nomeia como

“Humorísmos”. Mas esse escárnio de Carolina de Jesus está em toda sua obra, um dos

cadernos que originaram a publicação do livro “Journal de Bitita” na França em 1982,

nos serve de exemplos, pois evidencia essa característica logo no seu título. A escritora

Page 8: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

nomeou um dos cadernos como “Um Brasil para os brasileiros”, que seria uma referência

irônica às ideias políticas de Rui Barbosa, uma vez que suas poesias e contos

autobiográficos expõem as mazelas da população negra no começo do século XX , ou

seja, um Brasil que não serve aos brasileiros (FERNANDEZ, 2019, p. 218).

As ideias de Rui Barbosa eram transmitidas para Carolina de Jesus através das

leituras de um oficial de justiça de Sacramento que lia para a população negra que não

fora alfabetizada as notícias dos jornais, sempre ressaltando a importância da

alfabetização. Os discursos e histórias do avô Benedito José da Silva, ou o Sócrates

Africano, como ela gostava de chamá-lo, que era muito reconhecido na cidade por sua

sabedoria que era disseminada em seus discursos.

Esses cadernos também exemplificam a intensa interferência editorial nas obras

de Carolina de Jesus. Em 1984 foi publicado no Brasil “Diário de Bitita”, que seria uma

tradução de “Journal de Bitita”. Além da alteração no próprio título, uma estratégia de

marketing, por ter sido publicado na França diversas intervenções foram feitas no texto

para se adaptar ao público francês, seja na sua estrutura, seja no conteúdo. Portanto, a

organização dos textos feita pela escritora, que marcadamente contavam a sua história

através da linguagem poética ou da autobiográfica, procurando dar conta de episódios

significativos de sua vida, não foi respeitada.

Dessa forma, as análises dos manuscritos, datiloscritos e de obras que mantêm a

estrutura original dos textos da escritora sãos fundamentais para evitar distorções no texto

de Carolina de Jesus. O que não significa desconsiderar a interferência do “Outro” em

suas páginas, uma vez que “é importante determinar quem é o interlocutor imaginário ao

qual o relato se dirige, e que tipo de relação o narrador estabelece com ele” (PEREIRA,

2000, p. 124).

A escritora Conceição Evaristo cunhou o conceito escrevivência para dar conta de

sua escrita que mistura memórias transmutadas em experiência, oralidade e ficção. O livro

“Becos da Memória” inaugura esse experimento que não teme inventar: “As histórias são

inventadas, mesmo as reais, quando são contadas. Entre o acontecimento e a narração do

fato, há um espaço em profundidade, é ali que explode a invenção” (EVARISTO, 2017,

p. 11). A oralidade é uma das bases desse conceito, pois suas memórias foram construídas

Page 9: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

coletivamente pelas narrações das diversas histórias acompanhadas das pessoas que

cruzavam os becos da favela em que morava na infância.

Evaristo tinha um objetivo claro em sua obra: contar a história “dos seus”, e

Carolina de Jesus compartilha desse sentimento em seus textos, ela queria contar a

história do “povo que faltava”. Bem como compartilha a cor da pele, o gênero e as

memórias advindas dos becos das favelas. Aspectos esses que refletem na hora de pôr a

tinta no papel e de legitimar o seu texto como relevante de ser lido.

Dessa forma, o conceito de escrevivência pode ser aplicado à obra de Carolina de

Jesus, pois a escritora estrutura seus textos com elementos da sua história, a escrita

memorialística acompanha todo o percurso da obra. Sua escritura “ganha força porque

Carolina de Jesus consegue mediar as relações entre vida e obra, isto é, ela usa memórias

como experiência para transmutá-las em literatura” (FERNANDEZ, 2019, p. 35).

No texto “A Empregada” fica nítido os traços biográficos da escritora

transmutados em literatura híbrida:

Uma jovem deixou o interior e veio empregar-se em São Paulo para ganhar

mais. Não apreciou o São Paulo com seu bulício diário e o seu clima

enigmático. Enfim, ela estava descontente e regressou ao interior. As amigas

foram cumprimentá-la e foram saber que tal é São Paulo. Ela respondeu-lhes

assim: / Quando eu era empregada / Sofri tanta humilhação / Às vezes eu tinha

vontade / De dar uma surra no meu patrão / Era um patrão malcriado / Não

deixava eu parar um segundo / E o diabo ainda falava / De mim para todo

mundo. / Obrigava eu levantar / A uma da madrugada. / E ainda andava

dizendo / ‘Esta malandra não faz nada’ / Se a gente dá um passo, / O diabo está

sempre atrás / Vive Sempre pondo defeito / Em todo serviço que a gente faz /

Não gostei de trabalhar, / Foi para as donas de pensão, que quer tudo muito

limpo / Mas não quer comprar sabão / Se a gente dá um passo / A diaba está

sempre junto. / Vive sempre observando, / Se a Empregada come muito / Vive

sempre pondo defeito / Em todo serviço que a gente faz (JESUS, 2018, p. 84-

5).

Page 10: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

As dicotomias entre empregada/patrão, campo/cidade, negro/branco são temas

constantes na obra da escritora. Nesse texto estão presentes as memórias dos primeiros

trabalhos de Carolina de Jesus quando ela inicia a sua migração em São Paulo, na primeira

metade do século XX. Tudo indica que não lhe faltava serviço em casas de famílias

brancas e economicamente bem colocadas, contudo, “segundo suas próprias palavras, ela

era independente demais para ficar limpando bagunças alheias” (MEIHY, 1994, p. 21).

Com a gravidez de João, seu primeiro filho, as portas dessas famílias abastadas se

fecharam, bem como a moradia se tornara um problema, uma vez que residia nas casas

onde trabalhava. Sem nenhuma perspectiva, Carolina de Jesus começa a catar papel para

sobreviver e com tabuas que encontra nas ruas constrói um barraco, ainda grávida, na

favela do Canindé, local que ela vai chamar de quarto de despejo da cidade de São Paulo.

O ofício de empregada doméstica era uma das poucas opções para as mulheres

negras, e continha muitos resquícios do regime escravocrata, algumas patroas no começo

do século XX ainda utilizavam chicote para punir suas empregadas. Na contingência da

miséria, mesmo com a impossibilidade da existência de uma vida privada, trabalhar como

empregada dava a essas mulheres o local onde dormir e o alimento pra continuar vivendo

(BERNARDO, 1998, p. 56).

De acordo com Gullestad (2005), a maior parte das narrativas de vida atuais são,

de alguma maneira, testemunhos dos processos históricos, econômicos, sociais e culturais

da modernidade capitalista. Atualmente, a modernização tornou-se um fenômeno

mundial, que não se limita a suas formas ocidentais. As narrativas expõem possibilidades

de reações, adaptações e resistências específicas à modernidade.

A obra de Carolina de Jesus não se encaixa nos moldes tradicionais da literatura,

mas o gênero autobiográfico está se concretizando e se transformando por estender-se a

novos grupos, novos contextos e novas regiões do mundo como parte das presentes

mudanças. Essa extensão pode ser considerada uma luta contemporânea por constelações

fundamentadas de significação dentro de processos cada vez mais globais.

(GULLESTAD, 2005).

Page 11: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

Considerações Finais

Os contos autobiográficos de Carolina de Jesus não deixam de ser uma

ficcionalização, uma escrevivência, de fatos e acontecimentos absolutamente reais.

Desorganizar o tempo por meio da narrativa possibilita a organização de um tempo

próprio, a identidade narrativa “construída por esse novo tempo, realizado pela reescrita

de si, pode emergir como chave para criação de uma autoficção, visto que viabiliza novas

possibilidade de reconhecimento de uma existência” (FERNANDEZ, 2019, p. 288).

Portanto, a obra de Carolina de Jesus vai muito além da denúncia e do testemunho.

A escritora “criar a si mesmo” a partir de seus textos, assumindo o lugar de fala com o

propósito de construir uma história em que ela também tenha o direito de registrar o seu

lugar de sujeito.

Referências bibliográficas

Bonduki, Nabil. Crise de habitação e a luta política no pós-guerra. In: Lúcio Kowarick.

(Org.). As Lutas Sociais e a Cidade. São Paulo: Paz e Terra, 1988.

BERNARDO, Terezinha. Memória em branco e negro: olhares sobre São Paulo. São

Paulo: Editora UNESP, 1998.

COSTA, Renata Jesus da. Subjetividades femininas: mulheres negras sobre o olhar de

Carolina Maria de Jesus, Maria Conceição Evaristo e Paulina Chiziane. 2007.

Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade Católica de São Paulo, São

Paulo.

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

FERNANDEZ, Raffaella. Entrevista Clélia Pisa. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 18, n.

35, p. 297-304, 2014.

FERNANDEZ, Raffaella. A poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus. São

Paulo: Aetia Editorial, 2019.

GULLESTAD, Marianne. Infâncias imaginadas: construções do eu e da sociedade nas

histórias de vida. Educação & Sociedade, Campinas, v.26, n. 91, 509-534. 2005.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo:

Paulo de Azevedo, 1960.

JESUS, Carolina Maria de. Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo:

Paulo de Azevedo, 1961.

JESUS, Carolina Maria de. Pedaços da Fome. São Paulo: Áquila, 1963.

Page 12: ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO ... · Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira. Introdução Carolina Maria de Jesus foi uma

JESUS, Carolina Maria de. Provérbios. São Paulo: Edição da Autora, 1965.

JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. São Paulo: Sesi-SP editora, 2014.

JESUS, Carolina Maria de. Meu sonho é escrever...:contos inéditos e outros escritos.

Raffaella Fernandez (Org.). São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

PEREIRA, L. M. L. Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e

autobiografias. HISTÓRIA ORAL, 3, 2000, p. 124.

PERES, Elena Pajaro. Carolina Maria de Jesus: insubordinação e ética numa literatura

feminina de diáspora. In: Assis, Maria Elisabete Arruda de; Santos, Taís Valente dos.

(Org.). Memória Feminina: mulheres na história, história de mulheres. 1ed. Recife:

Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2016, v., p. 89-97.

ROLNIK, R. São Paulo, início da industrialização: o espaço é a política. In: Lúcio

Kowarick. (Org.). As Lutas Sociais e a Cidade. São Paulo: Paz e Terra, 1988.