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Que papel tem a Didática Geral e as didáticas específicas na construção da identidade profissional docente? Cristina Maria d’Ávila 1 Universidade do Estado da Bahia - UNEB Universidade Federal da Bahia- UFBA [email protected] Resumo O objetivo deste artigo é possibilitar reflexões sobre o problema da identidade profissional docente e o papel da Didática geral e das Didáticas específicas neste processo. Para tal arte, buscamos no nosso argumento compreender o processo de identidade entrecruzado com o conceito de identificação, tomando como principais referências os estudos freudianos e a sociologia do trabalho de Claude Dubar (1991). Compreendemos, como pano de fundo, este processo imiscuído na compreensão da subjetividade humana interligada às condições objetivas de realização do trabalho do professor e de sua formação. Para dar concretude ao trabalho, trazemos à baila resultados de pesquisas realizadas sobre o sujeito, sob a forma de análise de histórias de vida em que modelos e contramodelos de docência são apresentados e compreendidos à luz das teorias mencionadas. Concluímos a favor das disciplinas didáticas no processo de construção identitária docente, compreendendo que, para tal mister, tais disciplinas devem se ocupar tanto de um trabalho voltado à compreensão das subjetividades humanas (escuta e tradução das representações dos alunos sobre a docência), quanto à mediação de saberes necessários à docência. Consideramos que a mobilização de saberes pedagógicos e didáticos são condições fundamentais à construção da identidade profissional docente. Palavras-chave: identidade profissional; identificação profissional; didática; subjetividade; formação. Introdução Primeiramente convém indagarmos sobre o papel das Didáticas, da Didática geral e das específicas, na construção identitária de professores em seus processos formativos. Embora Pós-Doutora pela Universidade de Montréal, Canadá. Professora Titular do Departamento de Educação Universidade do Estado da Bahia. Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00208

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Que papel tem a Didática Geral e as didáticas específicas naconstrução da identidade profissional docente?

Cristina Maria d’Ávila 1

Universidade do Estado da Bahia - UNEB

Universidade Federal da Bahia- UFBA

[email protected]

Resumo

O objetivo deste artigo é possibilitar reflexões sobre o problema da identidadeprofissional docente e o papel da Didática geral e das Didáticas específicas nesteprocesso. Para tal arte, buscamos no nosso argumento compreender o processo deidentidade entrecruzado com o conceito de identificação, tomando como principaisreferências os estudos freudianos e a sociologia do trabalho de Claude Dubar (1991).Compreendemos, como pano de fundo, este processo imiscuído na compreensão dasubjetividade humana interligada às condições objetivas de realização do trabalho doprofessor e de sua formação. Para dar concretude ao trabalho, trazemos à bailaresultados de pesquisas realizadas sobre o sujeito, sob a forma de análise de histórias devida em que modelos e contramodelos de docência são apresentados e compreendidos àluz das teorias mencionadas. Concluímos a favor das disciplinas didáticas no processode construção identitária docente, compreendendo que, para tal mister, tais disciplinasdevem se ocupar tanto de um trabalho voltado à compreensão das subjetividadeshumanas (escuta e tradução das representações dos alunos sobre a docência), quanto àmediação de saberes necessários à docência. Consideramos que a mobilização desaberes pedagógicos e didáticos são condições fundamentais à construção da identidadeprofissional docente.

Palavras-chave: identidade profissional; identificação profissional; didática;subjetividade; formação.

Introdução

Primeiramente convém indagarmos sobre o papel das Didáticas, da Didática geral e das

específicas, na construção identitária de professores em seus processos formativos. Embora

Pós-Doutora pela Universidade de Montréal, Canadá. Professora Titular do Departamento de Educação– Universidade do Estado da Bahia. Professora Associada da Faculdade de Educação da UniversidadeFederal da Bahia.

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não seja foco deste artigo, defendemos a posição em favor da Didática Geral e das Didáticas

específicas, cada uma cumprindo seu papel na formação de professores para a educação

básica. A Didática Geral, como conhecimento de iniciação e de mediação, tem a função de

inaugurar os estudantes no terreno pedagógico, trazendo à luz teorias pedagógicas,

concepções epistemológicas, teorias de ensino e aprendizagem, concepções sobre

planejamento e mediação dos processos formativos. E as didáticas específicas com a função

de, pormenorizando o trabalho inicial da Didática geral, iniciar o estudante no ensino de sua

matéria específica a partir da mobilização de saberes, habilidades hábitos e atitudes

pertinentes e características a cada área de conhecimento. Uma didática não implica a

negação da outra. E ambas devem desenvolver papel preponderante no processo de

identificação dos estudantes com a profissão, constituição de suas identidades e de sua

profissionalidade docente.

Outro ponto do nosso argumento diz respeito à força da subjetividade na constituição do

ser e/ou tornar-se professor, e neste âmago, na construção da identidade profissional

docente. Sem desmerecer a força das condições objetivas no processo de profissionalização

docente – questões salariais, formativas e de condições materiais de funcionamento das

escolas – a subjetividade do professor – sua singularidade, seus sentimentos, saberes

didático e pedagógicos, profissionalidade e sua identidade profissional – é fundante para a

sua constituição como ser profissional. Porque sem reconhecimento de seus saberes não há

como mobilizá-los e sem o desenvolvimento de um sentimento de estima e identificação

com a causa, não há como se constituir identidade com a profissão.

Vamos com este artigo nos ocupar da subjetividade do professor sem desvinculá-la das

condições objetivas de sua existência na sociedade brasileira. Por este motivo,

começaremos a exposição com uma breve explanação sobre o panorama educacional

brasileiro e nele vislumbrar os espaços para compreensão da constituição de sua identidade

profissional.

O recorte que fazemos aqui se dá no âmago de um panorama educacional problemático:

as condições de trabalho, os magros salários, a desvalorização social que concorrem

para a desprofissionalização docente no Brasil, em que pesem os movimentos de

educadores e estudantes, os fortes debates acadêmicos e as mais recentes publicações

sobre a formação de professores e o trabalho docente (Veiga, 2000, 2002; Libâneo,

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2000, 2006; Nóvoa, 2002, Pimenta, 2000; Tardif, 2002; Tardif e Lessard, 2005, dentre

outros). Em reportagem recente publicada pelo blog Ultimo segundo2, no capítulo

Educação, datado de 11 de junho deste ano de 2014:

“a remuneração média dos professores brasileiros é equivalente a 51% do valor

médio obtido, em 2012, pelos demais profissionais com nível superior completo.

Há sete anos, esse porcentual era de 44%. Atualmente, o salário médio do

docente daeducação básica no País é de R$ 1.874,50. Essa quantia é 3 vezes

menor que o valor recebido por profissionais da área de Exatas, como por

exemplo, os engenheiros.” (Disponível

(http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2014-06-11/).

Não obstante, uma das metas previstas no Plano Nacional de Educação (PNE), que

aguarda sanção presidencial, é equiparar o rendimento médio dos profissionais do

magistério das redes públicas com as outras categorias.

O currículo dos cursos de licenciatura reproduz o que historicamente significou a magra

fatia destinada à formação de professores. Com o processo de elaboração das Diretrizes

curriculares nacionais (DCN) para a graduação, conduzido pela SESu/MEC no ano de

2001, a Licenciatura ganhou terminalidade e integralidade própria em relação ao

Bacharelado, constituindo-se em um projeto específico, rompendo com a antiga formação

de professores que ficou caracterizada como modelo “3+1”. A proposta incluiu a discussão

das competências e áreas de desenvolvimento profissional, sendo, assim, flexível para

abrigar diferentes desenhos institucionais. Atualmente a carga-horária de estágio é de 400

horas, o que consideramos ainda uma carga horária pequena como período de exercício da

prática pedagógica. O art. n° 1 da Resolução do CNE 2/2002 regulamenta as dimensões dos

componentes comuns com a seguinte configuração: 400 horas de prática como componente

curricular (mas não estabelece se se trata de prática de ensino); 400 horas de estágio

curricular supervisionado a partir da segunda metade do curso; 1800 horas para o conteúdo

disciplinar específico (científico-cultural); 200 horas para outras formas de atividades

acadêmicas. Bem, cada IES estabelece a carga horária de seu currículo e , portanto, a

2 Disponível em http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2014-06-11/, acesso em 02 de julho de 2014.

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distribuição entre os componentes disciplinares específicos e os pedagógicos.

Comparativamente as disciplinas pedagógicas tem carga horária mínima em relação aos

demais componentes.

Como bem afirmou Nóvoa (2002, p. 22): «os professores nunca viram seu conhecimento

específico devidamente reconhecido. Mesmo quando se insiste na importância da sua

missão, a tendência é sempre considerar que lhes basta dominar bem a matéria que ensinam

e possuírem um certo jeito para comunicar e para lidar com os alunos. O resto é

dispensável.» A problemática mencionada e tomada ao apreço pelo autor, sem dúvida,

conduz ao desprestígio da profissão: «‘semi-ignorantes’, os professores são considerados as

pedras-chave da nova ‘sociedade do conhecimento’» (Idem). Reduz-se assim a nobre

profissão ensinante a um estatuto de profissão sem importância. “Profissão sem saberes

especializados, qualquer um pode ser professor”. Esta realidade tem que mudar. Precisa

mudar.

A discussão em torno da dicotomia teoria-prática nos cursos de licenciatura continua. No

âmbito desses cursos é frequente colocar-se o foco quase que exclusivamente nos

conteúdos específicos das áreas em detrimento de um trabalho sobre os conteúdos que

serão desenvolvidos no ensino fundamental e médio. A relação entre o que o estudante

aprende na licenciatura e o currículo que ensinará no segundo segmento do ensino

fundamental e no ensino médio continua abissal. Concorre para isso também uma visão

simplificadora da prática. E como bem assinalamos anteriormente, o desprestígio que

acomete o conhecimento didático pedagógico nas universidades. Tal visão parece bem

arraigada na no meio acadêmico que compartilha de uma cultura universitária - um conjunto

de significados, representações e comportamentos – um tanto desqualificadora do próprio

meio profissional. Segundo Libâneo em prefácio à obra de Guimarães (2004, p 13), são

traços dessa cultura, a prevalência dos discursos teóricos, a hipervalorização da pesquisa em

detrimento do ensino, desvalorização das práticas profissionais e da licenciatura,

individualismo exacerbado. Infelizmente são traços que nutrem também o imaginário do

estudante de licenciatura que passa «naturalmente» a rejeitar a docência ou a menosprezar a

formação.

Assim, com base nos resultados de pesquisas que vimos realizando desde o ano de 2007,

2011, 2013 sobre identidade, profissionalidade e saberes profissionais docentes, apoiados

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em estudos de autores, como, Dubar, 1991; Cattonar, 2005, Gauthier, 2006, podemos

afirmar que o curso de licenciatura tem tido um peso limitado sobre a construção da

identidade profissional docente. E, dentro dele, questionamos o papel das disciplinas

didático-pedagógicas, sobretudo, da disciplina Didática nesse processo.

Em suma, temos um quadro que caracteriza a formação inicial de professores como

problemático diante do qual concebemos como principais hipóteses: a) o peso diminuto da

formação inicial no processo de construção da identidade profissional dos futuros

professores; b) o papel preponderante que devem ter as disciplinas didáticas na constituição

desta identidade. Diante do exposto nos indagamons: Como se constrói a identidade

profissional docente? Que condições, no curso de formação inicial, podem favorecer a

construção dessa identidade? Qual o papel das disciplinas de formação pedagógica,

especificamente, da Didática geral e didáticas específicas, nesse processo?

Identificação e identidades – dois conceitos que se fundem

Antes de entrar no conceito de identidade profissional cabe discutirmos a diferença entre

este conceito e o de identificação.

Como a entendemos, da pesquisa bibliográfica que envidamos a partir de estudiosos da

teoria freudiana e da sociologia do trabalho (a partir de Claude Dubar, 1991), o processo

de identificação antecede a constituição de uma identidade – uma espécie de

personalidade, de singularidade própria que constitui e caracteriza cada ser humano. A

identificação é um processo psicológico através do qual o sujeito assimila um aspecto,

propriedade ou atributo do outro e se transforma. A identidade vai assim se constituindo.

O processo de identificação sustenta os mecanismos de inserção do sujeito em

determinado grupo. É um processo que se constrói a partir de laços emocionais do sujeito

em relação ao objeto (sejam pessoas, coisas ou situações). Freud considera que um grupo

se mantém unido " por um poder de alguma espécie; e a que poder poderia essa façanha

ser mais bem atribuída do que a Eros?" (Freud, 1921/1976, p. 117 apud Guimarães e

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Celes, 2007, p. 2). os laços emocionais, constituem a essência da mente grupal. Conclui

o cientista.

Os três conceitos mais importantes de identificação, como descrito por Freud são: a

identificação primária, identificação (secundária), narcisista e identificação (secundária)

parcial. Um assunto bastante complexo, mas que tentaremos explicitar aqui.

A primeira forma de identificação - identificação primária - desempenha uma função no

complexo edipiano. “Nesse momento, o menino " toma o pai como seu ideal" (Freud,

1921/1976, p. 133), quer ser o pai. Essa atitude, segundo o autor, é tipicamente

masculina e ajuda a preparar o menino para o complexo de Édipo”. (Guimarães e

Celes, 2007, p. 2).

A segunda forma de identificação – secundária narcisista - é compreendida tal como

ocorre na neurose, como processo de formação dos sintomas. Como no caso citado pelo

autor de uma menina que assimila a tosse da mãe (o sintoma). Neste caso, a

identificação pode advir do complexo de Édipo, que significa o desejo em tomar o lugar

da mãe. Por outro lado ainda, o sintoma pode ser o mesmo que o da pessoa amada.

Assim, “essas identificações destinam-se a internalizar um só traço do objeto, por meio

do processo de regressão”. (Idem, p.2)

A terceira forma de identificação – secundária parcial - não contempla uma relação de

objeto com a pessoa que está sendo imitada. Essa terceira modalidade é a responsável

pela formação de coletividades, por ligar entre si os membros de um grupo. Freud

afirmara, a uma certa altura, que a psicologia individual era ao mesmo tempo psicologia

social (Freud, 1921/1976 apud Guimarães e Celes, 2007, p. 3). Não há como se

compreender um processo individual de identificação sem que se lhe articule à

dimensão social que envolve o ser. São pontos em comum como uma pessoa que não é

objeto sexual, mas se a comunhão é significativa vai promover outros laços sociais (a

relação com os pares, com as autoridades, a simpatia compreensão intelectual). “Nesse

sentido, pode-se dizer que a identificação é um processo indispensável para a

constituição do humano, ou seja, é por intermédio da identificação que a relação com o

outro efetiva-se em busca de individuação e de socialização.” (Guimarães e Celes, 2007,

p. 3).

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E nesse ponto podemos começar a falar, então, em identidade.

Identidade é o reconhecimento de que o indivíduo é o próprio. É o conjunto

de caracteres particulares, que identificam uma pessoa. E antes de falarmos de

identidade profissional, devemos compreender o sentido das identidades sociais.

Identidade social designa o sentimento de pertença a determinados grupos (segmentos,

categorias) sociais. O conceito da identidade social parte da constatação de que o

indivíduo enquadra, mais ou menos automaticamente, as outras pessoas e a si próprio

nas mais variadas categorias de classificação – objetivas e manifestas (ser baiano,

brasileira, ser homem brasileiro, ser mulher, ser profissional). O individuo sente-se

como parte dessas categorias. Portanto, o sentimento de pertença é fundante nessa

conceituação.

Identidade profissional : uma identidade socialmente condicionada

A identidade profissional docente deve ser entendida como prática social construída pela

ação de influências e grupos que configuram a existência humana. A prática educativa é

uma prática social; assim sendo, a constituição da identidade docente só acontece no

âmago dessa prática e em relação com outros, com o grupo de pertença. Assim,

compreender esse processo passa pela compreensão do seu próprio caráter intersubjetivo

e relacional.

Segundo Dubar (1991) há dois processos convergentes ou não que concorrem para a

constituição das identidades: um processo biográfico (identité pour soi) e um processo

relacional, sistêmico e comunicacional (identité pour autrui). O primeiro está ligado à

trajetória de cada um (o que inclui múltiplas esferas, seja da família, da formação escolar

e profissional, do trabalho, etc.); o segundo, relacional, está ligado às relações partilhadas

em atividades coletivas, organizações, instituições etc. Neste sentido, não há como se

pensar numa disjunção possível entre identidade individual e identidade coletiva.

No caso da identidade profissional docente, o sujeito do trabalho é o ser humano,

portanto sua característica mais marcante é a interrelação entre as partes (aquele que

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ensina e aquele que aprende). Nesse sentido, é um trabalho interativo, por definição. Um

trabalho que conduz à interação no seio de uma organização. Como tal, os professores

constroem e reconstroem uma identidade profissional pertinente a um grupo, ou ainda, a

subgrupos específicos, a depender do segmento ao qual pertençam (educação infantil,

ensino fundamental, ensino médio) e de suas características específicas. Existe uma

dinâmica identitária significativa nesse contexto (Lessard e Tardif, 2003, p. 15). A

identidade também se constitui de forma relacional Ou seja, refere-se à relação do sujeito

consigo mesmo e também com o outro. É a um só tempo uma relação de identidade e de

alteridade, construída através de um processo contínuo de identificação e de

diferenciação imbricado na experiência com o próximo. Nesse particular é muito

importante o papel conferido ao ambiente de trabalho e a relação entre os professores e

seu meio. É na relação com os pares que a identidade profissional ganha forma:

observando, refletindo, discutindo para se compreender os afazeres do métier e assumir,

assim, um certo perfil singular de ser professor, uma identidade, porém construída na

relação e no contexto do trabalho.

A identidade profissional resulta, portanto, de uma socialização própria ao grupo de

pertença profissional. Significa dizer que as experiências comuns são importantes, assim

como o próprio processo de formação inicial. Tal socialização, portanto, significa, para

os professores em formação, um processo de identificação ligada a tipos identitários

específicos, disponíveis e definidos como ideais (Dubar, 1991).

Uma identidade ao mesmo tempo pessoal

A identidade é também uma construção pessoal, singular e complexa, o que não nega

todas as suas implicações sociais. Ela é ao mesmo tempo estável e provisória, individual

e coletiva, subjetiva e objetiva; multirreferencializada, pois resultante de múltiplas

interfaces; contextualizada e situada pois enraízada em espaços/tempos determinados e

determinantes. O processo de construção identitária é um processo biográfico contínuo “e

a identidade pode ser vista como o resultado de uma transação entre uma identidade

herdada do passado e uma identidade visada pelo indivíduo ou imposta pela situação

presente” (Cattonar, 2005, p. 197).

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Portanto não se pode reduzir as identidades sociais às determinações do campo

profissional e da formação porque, segundo Dubar (1991, p. 119), desde a infância o

indivíduo herda uma identidade de gênero, uma identidade étnica e uma identidade de

classe social – identidades essas ligadas à família. Entretanto, é na escola que a criança

vive a experiência de sua primeira identidade social.

A construção da identidade profissional tem estreita relação com a profissionalidade,

entendendo este conceito como «conjunto de conhecimentos, capacidades,

habilidades, isto é, competências gerais, para além da disciplina que ensina. Corresponde

a um modo de ser, a qualidades que identificam os elementos necessários à profissao. A

profissionalidade está articulada à formação inicial, à experiência que resulta da prática

e à formaçao continuada. Ao identificar-se com a profissão, o sujeito passa a desenvolver

um perfil, um modo de ser, ganha, por assim dizer, uma nova estatura diante da qual se

posta como profissional. Desenvolve a sua profissionalidade.

Etapas do desenvolvimento profissional

A capacidade de refletirmos sobre os desafios apresentados no nosso dia-a-dia e,

particularmente, no dia-a-dia da profissão nos obriga à revisão constante de conceitos.

Assim, a identidade profissional está calcada em superações de problemas de vida. Essas

transformações paradigmáticas, levam, por assim dizer, a mudanças de necessidades e

aspirações dos indivíduos. Portanto as identidades nunca se encontram prontas, estão em

constante construção, o que se exprime pelo seu caráter processual e auto-reflexivo. Em

suma, advogamos aqui que a identidade é um processo construtivo e em permanente

transformação.

Para falarmos deste processo, antes de mais nada, desejamos situar o leitor no terreno em

que o mesmo adquire raiz. Para compreendermos esse contexto, tenhamos em mente,

breve, o ciclo de vida da profissão docente a partir das seguintes etapas que sintetizamos

a partir da literatura consultada: Socialização preprofissional; Socialização profissional :

formação inicial; Inserção no meio profissional (entrada); Estabilidade profissional

(Dubar, 1991; Cattonar, 2005; Riopel 2006).

Socialização pré-profissional

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O que significa a socialização pré-profissional? Esta é uma socialização, antes de tudo,

subjetiva, complexa e informal. O que significa dizer que diz respeito à trajetória de cada

um, portanto ela se desenvolve de forma particular em cada sujeito. A identidade

profissional docente se encontra ancorada em experiências ancestrais, em grande parte,

na experiência de vida de cada um como estudante em nível primário e/ou secundário.

Esse período portanto, vivido pelas pessoas pode lhes fazer eclodir as primeiras

identificações com a profissão. É nesse momento portanto que se iniciam as primeiras

identificações e que o sujeito pode vir a elaborar seus modelos ideais de ensino e de

como vir a ser professor. É um tipo de identificação antecipada para o grupo dos

professores, porque enquanto estudantes vão adquirir normas, valores, crenças e modelos

comportamentais dos membros do seu “grupo de referência”, ou seja de seus professores.

Muitas vezes essas normas são reproduzidas em jogos infantis, e mais tarde postas em

prática no meio profissional, de modo inconsciente (Cattonar, 2005). Desta forma, a

socialização profissional parece acontecer antes da entrada no ofício. Mesmo os docentes

que escolheram a profissão como segunda opção, contam histórias que remontam à

infância e, nestas, o despertar do gosto pelo ensino.

Os estudantes em formação, assim como professores já na ativa, vão nos contar histórias

em que os modelos de professores vêm à tona como sujeitos que marcaram suas vidas. E

o interessante é que as qualidades que os primeiros atribuem aos seus professores

marcantes são aquelas que eles próprios pretendem ou reproduzem no exercício da

profissão, denotando assim um certo sentimento de filiação. Tem ainda aqueles que são

considerados contramodelos, ou aqueles professores dos quais não se guarda boas

memórias e que não se pretende reproduzir. São exemplos fortes de como não fazer ou

de como não ser. Enfim, são modelos diversos que marcam porque não correspondem

aos ideais da profissão concebidos pelos estudantes.

As histórias de cada um, portanto, se constituem em material nuclear se quisermos

refletir sobre o processo identitário em qualquer profissão; por esta razão e para melhor

compreendermos o processo de construção da identidade profissional docente,

recorremos à análise de escritos autobiográficos dos estudantes. Os relatos

autobiográficos, segundo Catani (et al. 1997, p. 40), ajudam a compreender como os

sujeitos reconfiguram suas identidades. A reconfiguração do passado com os olhos do

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presente, sem dúvida, possibilita uma compreensão mais larga da experiência e uma

inserção mais clara na profissão.

Socialização profissional

O curso de formação inicial inaugura o momento da profissionalização na docência. É

uma fase instituída e também instituinte de uma identidade profissional que se estrutura a

partir de saberes teóricos e práticos da profissão; de modelos didáticos de ensino e de

uma primeira visão sobre o meio profissional docente. É um momento importante na

construção da identidade docente, já que os sujeitos se transformam nas interrelações que

ali se estabelecem. Considerada como uma fase de socialização mais formal, é na

formação inicial que o futuro docente vai se deparar com os chamados conhecimentos

teóricos ou saberes curriculares acadêmicos (Tardif, 2002) e também com modelos ideais

de profissionalidade, advindos muitas vezes das teorias educacionais.

Segundo Pimenta e Lucena (2004, p. 64), os cursos de formação de professores são

fundamentais no fortalecimento da identidade “à medida em que possibilitam a reflexão e

a análise crítica das diversas representações sociais historicamente construídas e

praticadas na profissão”. Então, é no confronto entre o “eu profissional” e “o outro” que

se estabelecem as diferenças e as possibilidades de análise crítica referente às posturas

assumidas nas práticas educativas. É na relação com o outro que o processo de

individuação se consolida – no não querer fazer assim, ou, na melhor das hipóteses, na

admiração do exercício profissional de quem já se encontra na profissão (o olhar sobre as

práticas de professores regentes de disciplinas, seja num passado remoto, seja na própria

formação universitária). É sem dúvida um processo sofrido de decepções, muito esforço

pessoal, solidariedade, abandono, solidão e compartilhamento que o exercício docente

abre brechas para a constituição da identidade profissional. Muito embora os estudantes

de licenciatura possuam críticas quanto a esse processo de formação, não há como negar

que este incida, positiva ou negativamente, sobre a construção da identidade nos futuros

professores.

Dos momentos mais importantes no processo de construção identitária profissional,

encontram-se a saída do sistema escolar e a entrada e confrontação no mercado de

trabalho. A entrada numa especialização disciplinar constitui-se assim em ato

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significativo para a identidade do profissional, mas é na confrontação com o mercado de

trabalho que se localiza o aspecto identitário mais importante; é lá, nessa primeira

confrontação que se vai constituir uma identidade profissional de base, uma projeção de

si para o futuro, enfim, a colocação em prática de uma certa lógica de aprendizagem e

também de formação. A entrada na profissão domina um modelo prático concernente às

tarefas cotidianas, ao trabalho duro que tem pouco a ver com o modelo idealizado

caracterizado pela dignidade da profissão e sua valorização simbólica provinda da

formação inicial (Dubar, 1991, p 146).

Decorre desse processo, as projeções pessoais pela profissão a partir de uma identificação

com os membros que pertencem a um «grupo de referência» (o que inclui a imagem de

si, apreciação de suas próprias capacidades, realizações de desejos, choques, frustrações,

projeções para o futuro profissional etc.). No caso da formação inicial para a docência

são os mestres/professores, essa referência. Uma referência antecipada que pode nascer

desde a mais tenra idade em modelos de professores da infância. Convém assinalar, que

tal processo não se encerra aí - será regularmente confrontado com as transformações

tecnológicas, organizacionais e políticas, implicando sempre em projeções para o futuro.

Assim, essa primeira identidade profissional está marcada pela incerteza e parafraseando

Dubar (Ibid.) podemos mesmo compará-la à passagem da adolescência para a vida adulta

e, portanto, a uma forma de estabilização social.

Neste artigo vamos apresentar, a título de exemplificação, excertos de falas de estudantes

– colaboradores da pesquisa realizada sobre identidade profissional docente em cursos de

licenciatura na Universidade federal da Bahia. Nestes excertos demonstraremos

exemplos de modelo e contramodelos de docência realizados pelos estudantes em suas

histórias de vida. Foram colhidas narrativas de 39 estudantes de 19 cursos de

licenciatura.

O que podemos retirar como lição dessas narrativas? Primeiro, a de que se encontra em

modelos do passado, principalmente no ensino primário (de 1ª à 4ª séries) o principal

referente de identificação com a profissão; segundo, de que os contramodelos de

professores e de docência são mais fortes ou reverberam mais nas suas memórias que os

modelos positivos. Efetivamente, dos 39 memoriais escritos, 28 se referem às

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EdUECE - Livro 400219

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experiências negativas ou contramodelos de ensino, ou seja praticamente 72% do total

contra 28% que se referiram a modelos positivos de docência.

Os modelos fortes do passado estão localizados, a partir da escrita dos estudantes,

sobretudo no nível primário, vejamos alguns extratos:

« [...] Será que essas aulas sempre iguais onde o professor é a autoridade máxima e se

impõe sem se importar em consultar nossas opiniões e necessidades se fixam na nossa

lembrança de forma a nunca se perder ? Com certeza não são essas as recordações que

quero perpetuar quando for atuar em sala de aula, mas sim os passeios pelo

desconhecido, as minhas descobertas pessoais, meus olhos espantados por ver saltar dos

livros didáticos coisas que eu não lembraria se não as tivesse vivenciado. Aliás, essa é a

palavra mágica que guardo da parte boa da escola: vivência»

« Tudo isso faz parte do meu processo educativo e vou guardar isso sempre. Cada dia

que conheço mais a educação percebo como foi importante passar por essas fases...»

« Descrever parece simples, mas para mim marcou toda a minha vida escolar e eu fui

evoluindo à medida que me debatia como novos desafios e obstáculos...»

Os contramodelos têm muita força também na constituição de um perfil profissional. E

no ensino fundamental, é capaz de deixar marcas indeléveis (dos 39 escritos, 28 se

referem a experiências negativas de ensino). Dentre os contramodelos flagrados e

registrados pelos nossos alunos em seus escritos autobiográficos, podemos elencar

como atitude mais marcante, o autoritarismo revelado sob diferentes ângulos, dentre os

quais destacam-se os métodos conservadores da pedagogia tradicional; a

desqualificação (ou violência moral); e a punição (violência física). São, em síntese e

não sem dor, as lições apreendidas pelos estudantes (extratos de seus escritos a seguir):

«Eu me recordo que a professora na ocasião ainda não havia completado a licenciatura e

provavelmente não tinha cursado a disciplina de didática (ou ao menos não parece tê-la

usado quando deveria), posto que mostrou incompetência na direção da sala de aula. [...]

Não se pode crucificá-la por tal ato impensado, mesmo porque isso não era recorrente,

todavia é importante apontá-lo como uma falha no exercício da docência e uma

experiência ímpar que me permite hoje afirmar que me policiarei para não fazer o

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EdUECE - Livro 400220

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mesmo quando lecionar, pois senti as consequências que tais atos podem provocar no

aluno»

« O ponto crucial dessa história reside no fato de que havia outras formas de lidar com a

situação, mas a professora, tradicionalíssima, preferiu não “destruir” sua postura

dominadora [...] escolhendo escorraçar de sua sala, durante um bom tempo, um aluno

que sempre gostou de estar ali»

Certamente essas experiências reverberaram em suas vidas e ainda irão se repercutir em

suas práticas profissionais e, na melhor das hipóteses, surgirão como negação do que foi

vivido ou como uma outra forma de desenvolver-se na profissão.

Dos modelos positivos na universidade (três num total de 39 relatos - ou menos de 10%

do total), os estudantes enalteceram as qualidades: lúdica, sensível (relacional),

comprometida e competente de engajamento dos professores na prática profissional:

«Eu ia tranquilo para as aulas, feliz com minha professora, animado com a idéia dela ter

me enxergado e se preocupado com meu aprendizado no meio de tantos outros alunos.

Ela particularizou o olhar dela, individualizou o ensino, desceu do salto, iniciou um

processo de construção do meu saber e conversou comigo como se fôssemos iguais.

Como se fôssemos... [...] Pedagogias à parte, a relação professor-aluno é uma relação de

poder assimétrica, mas não pode ser marcada por uma distância abissal. Diminuir a

assimetria é objetivo das mais variadas abordagens, independente do conteúdo e da

instituição. Estamos lutando contra séculos de tradição (ainda em vigor) e sinais de

mudança aparecem tímida e esporadicamente. A professora não tinha um discurso

democrático,... e talvez nem conhecesse as abordagens pedagógicas a fundo, mas ela

estava se tornando menos tradicional do que podia perceber. Tudo bem, ela não foi

intencionalmente construtivista, mas a experiência serviu para a reconstrução de um

novo esquema em mim. Não sobre a teoria, mas sobre o professor» (T.).

«Foi proposta como uma das formas de avaliação seminários em grupo. [...] Observei

que nesses momentos a professora apresentava uma atitude muito atenta: circulava

pelos grupos, esclarecia dúvidas e observava... [...] Apesar das primeiras avaliações

seguirem os moldes tradicionais ... a última abria espaço para a pesquisa em grupo e o

desenvolvimento da expressão oral. [...] Acredito que a professora teve uma postura

muito sensível as minhas necessidades naquele momento... » (S.).

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EdUECE - Livro 400221

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Dos contramodelos de docência em nível superior revelados nas narrativas dos alunos

(cinco num total de 39 relatos), temos como marcas preponderantes, o autoritarismo, a

displicência e a indiferença:

« Durante meu curso de história na universidade tive alguns professores que atuaram

apenas como palestrante, simples fornecedores de informações. Eram displicentes e

indiferentes aos alunos em suas diversas necessidades. Irresponsáveis na execução de sua

função, negligenciavam o papel de educador na formação de novos educadores. Foi para

mim marcante o Doutor (como ele mesmo gostava de lembrar) em história. Trago-o

como exemplo de uma catástrofe na sala de aula a partir de um fato acontecido que

demonstra perfeitamente a sua falta de preparo e sua postura tradicionalista-ditatorial».

(Estudante I.).

« Foi em época de final de semestre em um seminário e minha equipe estava

conversando com a tal professora. Ela adotou um método em que todas as pessoas da sala

tinham que julgar as equipes, dando seu ponto de vista de como a equipe apresentada se

saíra, mas eu não concordava de jeito nenhum, pelo fato de que na minha opinião, uma

pessoa no ‘mesmo barco’ que você te julgando seria antiético, o mesmo que um atrista

plástico falar para outro que sua obra é uma porcaria, ou seja, colegas, futuros

educadores, falarem para a equipe que sua apresentação foi o máximo ou até mesmo um

lixo (na maioria!). [...] Ela não concordou comigo, tentou de todas as formas mudar

minha opinião e disse ironicasarcasticamente: Coitadinha, tão nova e já é do sistema...

[...] Moral da história: tenha opinião própria, não se intimidando por achar o que você

acha ir contra o que seu professor acha» (L.).

As idéias herdadas e provindas do seu meio e sua história pessoal refletem um retrato

idealizado da organização escolar e da profissão docente. Constituem-se assim em

referência importante situada no coração da motivação para tornar-se docente (Tardif e

Lessard, 1999). Formam, por assim dizer, um quadro de referência de identidade

profissional idealizada pelo futuro docente. Esssas visões, trazidas pelo estudante podem

tanto facilitar a aprendizagem do meio profissional - quando estes compreendem os

saberes da ação, o reconhecimento de situações típicas, etc - como podem também não

estar bem ajustadas à realidade onde se encontram os estudantes, tornando-se assim um

obstáculo à aprendizagem (Riopel, 2006). É no seio da formação inicial, sobretudo no

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EdUECE - Livro 400222

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ensino das didáticas (geral e específicas) que se encontra o momento adequado para se

identificar essas representações, compreendê-las e, também, transformá-las.

Em prol da Didática no processo de construção das identidades profissionais

docnetes

É preciso que repensemos os programas de formação de professores em termos de seus

objetivos, conteúdos e formatos de aplicação didático-pedagógicas. No processo de

construção da identidade e profissionalidade docentes é inegável a importância de uma

Didática geral – sem que se destitua do terreno as didáticas específicas com suas

singularidades epistemológicas e pedagógico-didáticas - erigida enquanto conhecimento

de iniciação e de mediação. Longe de se constituir em disciplina prescritiva, a didática

tem um papel na iniciação desses sujeitos no seu processo de construção identitária e,

como conhecimento de mediação, tem o papel de tradução das representações, desejos e

crenças dos futuros professores em outras e novas competências profissionais. Nessa

abordagem o trabalho formativo voltado à construção da identidade profissional é

objetivo precípuo.

Ouvir os alunos, futuros mestres, suas representações sobre o ato de ensinar e de

aprender, sobre prática de ensino, ser professor, planejamento, disciplina, etc., é uma

maneira de nos aproximarmos da classe e de conhecermos mais de perto essas pessoas.

Além disto, a didática como conhecimento de mediação deve propiciar a necessária

passagem dos saberes trazidos pelos alunos, ainda em formação, em saberes

pedagógicos necessários à profissão.

Um trabalho voltado à construção da identidade docente não pode estar somente

assentado sobre modelos teóricos, tem que se voltar para o desenvolvimento dos saberes

específicos da profissão. Identidade e profissionalidade docentes são dois conceitos que

aí se encontram. Na mobilização dos saberes didáticos e pedagógicos é que os futuros

professores poderão desenvolver o processo de identificação e futura identidade

profissional. A identidade só se consolida no exercício da profissão. Mas, não temos

duvidas, que é no seio da Didática geral que encontraremos seu gene fundamental.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400223

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Os saberes pedagógicos são aqueles voltados às competências do ser professor, do pensar

largamente a educação e a escola na sociedade, suas teorias, concepções epistemológicas

e metodológicas. Os saberes didáticos são aqueles voltados ao exercício das

competências do ensino. São exemplos de saberes didáticos: o saber planejar, mediar,

avaliar, gerir a classe, etc. E esses saberes só poderão ser vicejados no curso

primeiramente no seio da Didática Geral. Em qual outro componente curricular os alunos

irão conhecer as principais teorias pedagógicas, concepções epistemológicas, teorias de

aprendizagem e princípios metodológicos - numa visão de conjunto - a reger a docência

como profissão?

Mas não bastam conteúdos do como fazer, é necessário aplicação, reinvenção. Neste

sentido é que apostamos no caminho da pesquisa-ação que, no seio dessas disciplinas –

da Didática geral e das específicas – poderão os alunos mobilizar, experimentar, aplicar

tais saberes por meio de pequenas intervenções na escola.

Concluindo

Cremos ter respondido às nossas principais indagações presentes no começo deste trabalho:

Como se constrói a identidade profissional docente? Que condições, no curso de formação

inicial, podem favorecer a construção dessa identidade? Qual o papel das disciplinas de

formação pedagógica, especificamente, da Didática geral e didáticas específicas, nesse

processo?

Como afirmado na problemática deste artigo, os licenciandos passam nos seus cursos por

uma formação demasiado fragmentária e isso reverbera fortemente na constituição de

suas identidades: de um lado, a ênfase dos bacharelados nos programas de pesquisa e um

certo ar de superioridade desta formação em detrimento do conhecimento didático-

pedagógico. De inicio parecem sentir-se mais especialistas em suas áreas disciplinares do

que propriamente professores. E de outro lado, a formação que passam a adquirir nas

faculdades e institutos de educação a partir das disciplinas pedagógicas que lhes colocam

diante do inevitável abismo: como sentir-se preparado para a hora do estágio e entrada na

profissão com uma formação assim dicotomizada?

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400224

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O tempo destinado às matérias pedagógicas e estágios (as decantadas 400 horas de

estágio) a partir da metade do curso, não parece ainda suficiente para a preparação dos

futuros professores para o enfrentamento de problemáticas complexas que se assomam

no cenário educacional atual: a violência, bulling, a baixa qualidade do ensino, a precária

formação dos alunos, o desânimo e a desestrutura física da escola pública. Claro que há

exceções. Mas o que vemos grassar, mormente no Nordeste brasileiro, é uma educação

pública de baixa qualidade que apela por transformações estruturais e por professores

bem formados. Isso amplia o choque no momento da entrada na profissão. E para se

atenuar este choque, os professores precisam se sentir identificados e comprometidos

com a profissão docente.

Bem, diante disso é normal que os alunos se queixem da formação que adquirem na

universidade. Em recente pesquisa realizada sobre constituição da profissionalidade

docente, no ano de 2011-2012, atestamos que os alunos criticam sobremaneira a

dicotomia ressaltada anteriormente e a ambiguidade na constituição de suas identidades:

o curso é excessivamente teórico e há pouco mergulho nas práticas de ensino. Além

disso, nos próprios institutos ou faculdades de educação as disciplinas didáticas são

excessivamente teóricas. Há que se pensar então na diminuição destas dificuldades

mediante o oferecimento de Didáticas e outros componente curriculares mais assentados

sobre o terreno pedagógico e mais aliados das escolas básicas.

Defendemos diante desta realidade o ensino de uma Didática transversalizada pelo saber

sensível e pela ludicidade e atravessada pelo método da pesquisa. Professores e alunos

juntos pensando a problemática escolar à luz das teorias pedagógicas mais significativas,

em busca de respostas para os desafios de ordem pedagógica e didática que atravessam a

escola pública na atualidade.

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Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400225

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Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400226

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Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400227

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Mulheres Professoras a Busca dos seus Processos de Subjetivação a Luz da Teoriade João dos Santos

Patrícia Helena Carvalho Holanda-UFC1

[email protected]

A verdadeira higiene mental diz respeitoà educação, à introdução duma nova pedagogia.

A Higiene Mental é um mito, a Pedagogia é o futuro.João dos Santos – ensaios sobre educação II, 1983

O trabalho trata de percursos de mulheres professoras, para entender algumas

mudanças, em curso quanto ao papel da mulher na sociedade brasileira, em face dos

diversos desafios postos pelo mundo atual. Parte da problemática histórica da função e

redefinição da família e da escola como nos mostram João dos Santos (2010), Del

Priore (2006), Roudinesco (2003), Tedesco (2008), entre outros, em face da crise social

do sistema tradicional de educação, ante a oferta ampliada de escolarização, as novas

tecnologias de comunicação, os conflitos de identidade de gênero, reformas educativas

ditadas pelo poder estatal e redefinição dos papéis de pais e professores.

Com base na literatura consultada, examina vários aspectos relacionados: 1) ao

papel atribuído à mulher na família e na escola; 2) aos novos arranjos familiares, onde

figuram distintas dinâmicas afetivas, funções sociais e regras de autoridade, que

envolvem crianças e adolescentes; 3) à transferência do papel educativo da família para

a escola; 4) ao crescente número de mulheres como chefe de família.

O texto é um recorte de uma pesquisa que se encontra vinculada a um projeto

maior de investigação, que configura-se mais claramente como um conjunto integrado

de estudos, que procura associar as investigações da Linha de História da Educação

Comparada (LHEC). Esta constituída por pesquisadores-orientadores e orientandos do

Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da UFC e pesquisadores

colaboradores de uma rede interinstitucional articulada e em processo de expansão. O

referido conjunto é composto por vários subprojetos, que têm como propósito dar

continuidade ao trabalho iniciado em 2011 e também ampliar suas possibilidades de

1 Professora Associada da Faculdade de Educação da UFC e do Programa de Pós-Graduação emEducação.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400228

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investigação, ao adotar como temática de estudo Família, Educação, Mulher e

Sexualidade.

O nosso interesse em desenvolver uma investigação como professoras e

pesquisadoras da Linha História da Educação Comparada, especificamente, no eixo

Família, Sexualidade e Educação, contemplando a temática acima descrita, resulta de

um acúmulo de experiências que tivemos, quando da elaboração das nossas pesquisas

de mestrado, doutorado e pós-doutorado, assim como da nossa história de vida e prática

docente, as quais explicitaram a necessidade de, como intelectuais, estudarmos o

desenvolvimento de novos perfis da profissional do magistério, consciente do seu papel

e da exigência crescente, de que seja um agente capaz de desenvolver uma educação de

qualidade.

As discussões aqui desenvolvidas, tiveram início em nossa dissertação de

mestrado (HOLANDA, 1996)2, quando fizemos uma análise da aprendizagem da leitura

e da escrita, levando em conta, tanto os aspectos cognitivos inerentes a ela, mas também

considerando a aprendizagem como uma atividade inscrita, para além da esfera

cognitiva, no campo da afetividade, que pode ser alvo de distúrbios, no transcorrer do

seu desenvolvimento. Nesta pesquisa são levantados aspectos de ordem cognitiva e

subjetiva da aprendizagem, discutindo se os professores da escola se encontravam

preparados para lidar com questões afetas ao âmbito da Psicologia. Busca-se, ainda, a

necessidade de refletir sobre a relação entre a educação e a família, no sentido de

compreender algumas mudanças assinaladas pela literatura, nos anos 1990 e buscar uma

articulação entre economia e sociedade, em face dos desafios postos para a educação no

terceiro milênio.

A preocupação com as questões relacionadas ao papel educativo da família e

aos papéis assumidos pelas mulheres, na sociedade atual, tem permeado algumas

discussões realizadas no âmbito das instituições escolares, como nos mostra TEDESCO

(2008), em face da “crise do sistema tradicional” de educação, ante a necessidade de

2 Esta dissertação de mestrado foi publicada, em 1998, pela editora Unijuí no livro intitulado,Alfabetização: uma visão construtivista e psicanalítica.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400229

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oferta de acesso e educação de qualidade ampliada, as novas tecnologias, os conflitos de

identidade, reformas educativas e redefinição dos papéis de pais e professores.

No Brasil, com a expansão das “políticas de inclusão”, por parte do Ministério

da Educação, que veicula um discurso em defesa da “educação como direito de todos” e

do processo de inclusão educacional, numa perspectiva coletiva3, as instituições de

ensino ficaram em evidência. Tal situação coloca em xeque, se os procedimentos dos

professores em sala de aula, por terem uma formação pedagógica deficitária, tendem a

repetir as práticas pedagógicas dos seus antigos mestres. Essa avaliação negativa teve

repercussão na teoria, na metodologia, na prática educativa, na relação professor-aluno

e, em última instância, na sala de aula, gerando novos sentidos e significados que estão

intrinsecamente relacionados à história de vidas de seus atores, ou seja, na relação entre

objetividade e subjetividade.

Destarte, retomamos o enfoque psicossocial desenvolvido na nossa dissertação

de mestrado e o ampliamos, no sentido de compreender como as mulheres professoras

estão lidando com as questões relativas à sexualidade e às políticas de inclusão social,

em face da problemática das diferentes origens sociais e configurações familiares,

refletidas nos seus discursos de construção de identidade.

Adicione-se a isso a indagação sobre o tipo de sujeito feminino e sexuado

enfocado na constituição de discursos socialmente produzidos sobre o papel das

mulheres e delas próprias sobre si mesmas. E por último, intencionamos responder

como essas representações sociais produzem efeitos nos próprios discursos produzidos

por mulheres professoras nos seus processos de construção de sua subjetivação no

âmbito de sua sexualidade e profissão.

Essa opção deve-se, ao fato, do papel da mulher na família ser considerado,

ainda hoje, parte fundamental. Essa situação se repete no debate sobre a educação

escolar nas sociedades atuais, em face dos novos arranjos familiares que envolvem

crianças e adolescentes, da transferência do papel educativo da família para a escola e

do crescente número de mulheres como chefe de família. Isso tem despertado a queixa

por parte do professorado, de que este estaria assumindo certas tarefas de socialização,

antes creditada à família e, em última instância, à mãe. Trata-se de um fenômeno que

3 Consulta Documento subsidiário à política de inclusão do MEC

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400230

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parece evidenciar que, apesar das mulheres nos dias atuais terem ampliado a sua

inserção no mercado de trabalho, tal fato não representa uma mudança ideológica

significativa, ao ponto de incidir sobre conquistas de direitos e valorização social

efetiva.

Para tanto, fizemos uma opção preferencial pelo referencial psicanalítico

privilegiando a teoria do psicanalista, médico e educador João dos Santos (1913-1987)4,

que pertence à segunda geração de psicanalistas ligados a Freud, considerado hoje um

dos introdutores da Psicanálise e um dos fundadores do Grupo de Estudos Português de

Psicanálise. Sua obra nos coloca diante de uma visão integrada de desenvolvimento

humano, que envolve a educação na família, na escola e na comunidade, ao propor uma

pedagogia terapêutica. Nossa fonte de consulta foi à tese de doutoramento de Maria

Eugenia Carvalho e Branco e a obra de sua autoria intitulada, João dos Santos: a saúde

mental em Portugal – uma revolução de futuro. Nesse trabalho, a autora dá continuidade

de forma primorosa à divulgação da obra do psicanalista e humanista português que foi

o responsável pelo “enraizamento da Psiquiatria Infantil na Psicanálise” em Portugal

(Branco 2013, p. 13). O autor aludido adota uma posição de vanguarda, ao defender um

“avanço para a Psicologia e a Educação, quando propõe uma teoria do indivíduo e uma

Pedagogia que abrange as dimensões cognitiva e afetiva” (Holanda e Cavalcante, 2013,

p.166).

Ao adotar tal referencial fizemos uma opção pela pesquisa qualitativa, o que se

deve ao fato de nossa abordagem incidir sobre o universo psicossocial, fenomenológico

e multidisciplinar, na qual serão tratados de forma articulada: Laços Familiares,

Inserção no Trabalho, Constituição do Sujeito e Processo Educacional. O enfoque

interdisciplinar envolve a Sociologia, a Psicologia, a Educação, a Demografia e a

História. Sem esquecer, da preocupação de buscar os significados atribuídos pelos

sujeitos da investigação sobre família, trabalho, educação e sexualidade.

Por se tratar de um estudo sobre mudança social, envolve ainda uma dimensão

de historicidade, o que exige alguma incursão no campo da História, no que se refere ao

4No exílio em Paris, durante o regime salazarista, terá convivido com psicanalistas franceses importantes

e se aproximado dos estudos de Piaget (1896-1980) e Wallon (1879-1963).

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traçado genealógico da instituição familiar e ao entendimento do sentido da

transformação e diferenciação do significado social da família contemporânea.

No momento, apresentamos conclusões parciais da nossa investigação, que tem

como objetivo compreender a constituição de sujeitos, no âmbito de uma família que

parece ter deixado de ser patriarcal, para ingressar numa configuração de ascensão do

papel do feminino em sua regulação.

O Referencial Santiano

A teoria de João dos Santos aborda a relação entre a subjetividade e a

objetividade. Para ele, a subjetividade é o processo que constitui o indivíduo de modo

singular. É a trama psicológica de cada ser humano, como se dão as relações internas

destes, demonstrado que o educador tem que estar atento tanto nos alunos quanto em si

mesmo não só ao consciente, mas também, e principalmente, ao inconsciente, onde está

a sua maior força psíquica. A dimensão objetiva foi estudada por ele em autores como

Piaget por possibilita a compreensão biológica da gênese do conhecimento oferecendo

ao professor ferramentas para lidar com as particularidades de cada fase de

aprendizagem que o educando passa, explorando as possibilidades e respeitando os

limites de cada uma delas. Em seus estudos no laboratório de Psicobiologia criado por

Wallon, compreendeu que a formação da subjetividade do ser possui fortes e

determinantes influências dos meios sociais a que estes estejam inseridos. Dessa forma,

esses estudiosos despertaram o educador para o aspecto de que as diferenças sociais

podem vir a interferir no processo de aprendizagem de seus educandos, oferecendo

suporte teórico para lidar com elas, buscando mecanismos de superá-la. Para ele, “os

melhores educadores são os que actuam espontaneamente no plano que é social, porque

a educação não pode fazer-se somente na escola mas na comunidade integrada”

(Branco, 2010, p. 108).

João dos Santos critica essa pedagogia que apregoa um distanciamento da

família demonstrando a articulação da cognição com a subjetividade no registro que

Branco (2010) faz do seu pensamento quando escreveu, ao demonstrar a importância do

conhecimento psicanalítico para a educação, sobretudo, na ênfase que faz sobre a

importância da infância.

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O preconceito escolar que fez da educação uma técnica pedagógica levoua esquecer que a criança aprende com a mãe, antes dos três anos, tudo oque há de essencial ao homem: a dominar-se, a andar, a manipular, a falare a pensar. O desconhecimento de que não se aprende com a mãe, não ésusceptível de ser aprendido didacticamente, leva muitos a considerar eânimo leve as relações amorosas, o casamento, o divórcio e o destino dosfilhos (p. 456)

Como diz Branco (2010) o ser humano para João dos Santos tem uma dívida

impagável para com a mãe, no que é importante destacar que nesse aspecto ele vai ao

encontro do pensamento de Winnicott (1896 -1971). Para ele as bases da saúde mental

estavam na primeira infância. Ele é conhecido pela famosa frase “não há uma coisa

chamada bebê” ao intencionar dizer não há criança sem a mãe (que não precisa

necessariamente ser a biológica).

Para ele, o processo de subjetivação da criança depende de múltiplos fatores, tais

como, a relação mãe-bebê- pai, a família alargada, o meio, a educação, a

hereditariedade, os casos da vida. Tal processo vai constituir sua forma de pensar, se

comportar, sentir, reagir, ou seja, seu modo de ser que em última instância é a

subjetividade. Branco (2010) ilustra essa apropriação do material do mundo cultural e

social, ao referir-se como espaços que vão ser usado pela a criança para a construção de

si próprio. Para tanto, destaca a evocação autobiográfica de João dos Santos sobre a

importância do apoio da família alargada na constituição da subjetividade da criança e

do seu mundo subjetivo em movimento:

São as pessoas que nos permitem o deslocamento dos afetos mais diretos queactuámos, primeiro, para com os pais, depois, para com os outros personagensprivilegiados, como os avós e os tios (...). Que os homens da família, os meusinúmeros tios, tiveram uma importância grande na minha formação, é um factopara mim ausente. Com a tia Elvira aprendi a comunicar na espiritualidade poética.Com a tia Virgínia, a apreciar a inteligência dos homens cultos e a cultura que vemnos livros. Com a tia Virgínia Farpelinha aprendi o catecismo. Com a tia Cecília, oamor pelos animais. Com a tia Ermelinda aprendi a apreciar os petiscos; faziafilhós, na véspera de Natal, quando eu ia almoçar com ela. Com a tia Auroraaprendi a ler, como já contei, e outras coisas da vida, que talvez venha a contar.Com a prima Amélia, que era como se fosse minha tia, aprendi a povoar o meuespaço e a minha imaginação com aquilo que eu próprio crio e com as obras decriação que me oferecem aqueles que estimo ( p. 104-105).

A convicção de que deveria trabalhar para a saúde mental e educação da criança

coloca João dos Santos sintonizado com a multiplicidade das maneiras de abordar a

criança e se debruça na compreensão da família. Para ele, não existia receita miraculosa

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para compreender a criança, pois sua formação psicanalítica estava ali para demonstrar

que essa compreensão viria, por vias que se recortam e se complementam. Desenvolve o

conceito de Pedagogia Terapêutica na mesma linha de pensamento que solicitava aos

psiquiatras e pedopsiquitaras, que tivessem uma intencionalidade pedagógica, por

considerar suas intervenções terem tanta importância que se localizavam antes como

condição possibilitante da ajuda terapêutica. Branco (2013) revela que nessa tônica ele

pede aos pedagogos que partindo da observação e estabelecendo com elauma relação de empatia e interesse pela pessoa que ela é, antes de seinteressarem pelas suas dificuldades, se apoiem em conhecimentosteóricos, técnicos e em práticas de psicologia desenvolvimental, a quechama <<Pedagogia Terapêutica>>. Conceito através do qual mostra queesta Pedagogia, investida com espontaneidade e autenticidade no sucessoda aprendizagem e no interesse pelo bem-estar e alegria dos educandos,tem igualmente efeitos terapêuticos podendo mesmo, se necessário<<voltar atrás e retomar o fio da meada>>, para ajudar a reparar as falhasprecoces que dificultam o seu desenvolvimento. (p. 84)

Como se pode observar a visão integrada de desenvolvimento da criança de João

dos Santos, coloca para os psiquiatras, pedopsiquiatras, psicólogos, a importância de

trabalharem em equipe, com o intuito de promover a criança. Em sua orientação

recomenda que os profissionais que lidam com a criança adotem uma postura de

humildade, lucidez, humanismo e colaboração científica e faz a seguinte afirmação no

Seminário Introdução à Clínica Pedopsiquiátrica. Motivação e Seguimento de Caso,

1976,

A psicologia deve enriquecer-se coma experiência pedagógica, como apedagogia com a psicologia. O trabalho que se propõe à criança não éfecundo se não corresponder a uma necessidade de seu desenvolvimento.A pedagogia terapêutica deve ser integrada na “arte de curar” o quecorresponde a um certo regresso às origens, visto que medicina,compreensão psicológica e educação familiar estiveram sempre ligadasdesde a antiguidade. A pedagogia terapêutica é uma orientação que, nabase dos grandes inovadores da psicologia e da pedagogia fornece umaorientação metodológica susceptível de abrir novos caminhos para umapsicologia ao serviço de todas as crianças. Assim, a partir de uma ‘arte decurar’ bloqueios no processo de aprendizagem de certas crianças,conseguem-se afinar métodos capazes de prevenir as dificuldadesescolares. A pedagogia terapêutica averigua e aprecia o ponto de fracturaque entrava o processo de aprendizagem e intervém a esse nível. Inspira-se numa concepção genética e dinâmica do desenvolvimento para sedecidir por onde se pode pegar no caso (João dos Santos apud Branco,2013, p. 86)

Desse modo, João dos Santos demonstra que a Pedagogia pode ser reconhecidacomo uma área de conhecimento abrangente que pode atuar em diversos âmbitos da

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vida, a partir do momento que compreendemos a que a educação é um fenômenoinerente a vida humana. Portanto, ela ocorre na vida e não apenas na escola.

Vele destacar, ainda, que o psicanalista português compreendeu que o arcabouçoteórico da psicanálise responsável para explicar a subjetividade, continua atual adespeito do quadro cultural contemporâneo. Fundamentalmente, há uma recusa radicalem identificá-la com a consciência, ao situar a psicanálise no eixo descentramentocopernicano e darwiniano. Sintonizada com essas ideias vamos encontrar o pensamentode Garcia-Roza (1983), que ao afirma que a psicanálise,

....não vai colocar a questão do sujeito da verdade mas a questão daverdade do sujeito. Ela vai perguntar exatamente por esse sujeito dodesejo que o racionalismo recusou. (...) Paralelamente à clivagem dasubjetividade em Consciente e Inconsciente, dá-se uma ruptura entreenunciado e enunciação, o que implica admitir-se uma duplicidade desujeitos numa mesma pessoa (p. 23).

Ao usar tal tipo de argumento, o autor demonstra, que Freud rompe com a

concepção de subjetividade identificada com a consciência submetida à razão, na qual a

verdade residia no cogito cartesiano – penso, logo sou – para ser o lugar do ocultamento

de acordo com o cogito freudiano, como nos diz Lacan (apud Garcia-Roza, 1983, p. 23):

penso, onde não sou, portanto sou onde não penso. Ao deixar de privilegiar o Eu, Freud

faz uma ruptura com a filosofia moderna.

O referencial santiano evidência a convergência de suas ideias com o

pensamento de Freud e Garcia-Roza ao defender que para ensinar ou ser psicoterapeuta

é preciso que o profissional reflita sobre a sua história de vida e sobre sua infância.

Nos seus escritos o leitor pode perceber que o autor anteviu um dos grandes

debates da atualidade sobre as novas configurações familiares, isto é, novas formas de

estabelecimento de parentalidade que não correspondem ao tradicional. Pois, como

psicanalista tinha consciência do debate que vinha ocorrendo desde o século XIX acerca

do lugar do lugar dos homens e das mulheres nas relações sociais, no trabalho e na

reprodução, nas questões demográficas que para Ceccarelli, (2007) “uma das

consequências desse reposicionamento social foi à emergência de um discurso, sem

dúvida revolucionário, a respeito do sexual cujo um dos expoentes é a psicanálise: Os

Três ensaios”. Nos três ensaios Freud defende a tese de que a sexualidade humana não

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é natural. A observação permitiu a Freud mostrar que a vida sexual da criança tem um

relevante papel na constituição da sua subjetivação.

No entanto, João dos Santos não se deixa aprisionar pela dificuldade de assimilar

as mudanças que não vão de encontro do modelo da família patriarcal estudada por

Freud. Nos seus escritos deixa transparecer que as dificuldades das pessoas de lidar com

as mudanças, nas relações interpessoais na família, sobretudo, ao relembrar seu passado

através das memórias da infância, se encontram relacionadas às questões narcísicas. Na

obra de Freud (1939) existe uma alusão sobre o “encantamento de [nossa] infância, que

nos é apresentada por [nossa] memória não imparcial como uma época de interrupta

felicidade” (p. 89). Em outras palavras, isso pode ser relacionado à dificuldade que as

pessoas possuem de lidar com a mudança, o novo, que está acontecendo e com

limitações de avaliar a violência do passado. Por esse motivo, Ceccarelli (2007) nos

adverte que as novas configurações familiares são consideradas ameaçadoras, devido

trazer o diferente, que por sua vez provoca o estranhamento. Por via de consequência,

podemos deduzir que esse estranhamento também chega na escola, nos seus gestores,

professores indo repercutir nos alunos.

Por enfoque genealógico

Ao traçarmos uma breve genealogia da família ocidental, vemos, com a ajuda de

GIDDENS (2005), que esta passou de um formato patriarcal, herdado de séculos

passados, alcançou em espaços urbano-industriais um delineamento nuclear e esteve

inserida num contexto de mudanças lentas. Nesse momento a família se caracterizava

por uma prole numerosa e a mulher estava submetida ao poder masculino, com a vida

econômica ocorrendo fora do espaço doméstico, mas, ainda, sendo possível ocorrer uma

convivência em tempos bastante significativos entre pais e filhos.

A família contemporânea, sob o impacto de diferentes fases da industrialização,

vem atravessando grande transformação, face ao crescimento da urbanização, do êxodo

rural, do consumo, do ingresso da mulher no mercado, dos meios de informação e

comunicação e da mobilidade geográfica. Tais processos, formam um conjunto de

fatores que têm contribuído para a quebra dos padrões tradicionais no modo de

organização das famílias, que resultam, por exemplo, na diminuição da autoridade

paterna, na expectativa de aumento da responsabilidade do Estado como poder

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disciplinador das relações sociais básicas e, no âmbito jurídico-social, a

responsabilidade da família vem sofrendo um movimento de transferência para

instituições como a escola, os institutos de previdência social, o juizado de menores,

dentre outros.

Na contemporaneidade, portanto, a família surge com novas configurações,

levando estudiosos, como Carvalho (2003), a discutir o significado da família atual,

adotando como uma de suas premissas que

As expectativas em relação à família estão, no imaginário coletivo, aindaimpregnadas de idealizações, das quais a chamada família nuclear é um dossímbolos. A maior expectativa é de que ela produza cuidados, proteção,aprendizados dos afetos, construção de identidades e vínculos relacionais depertencimento, capazes de promover melhor qualidade de vida a seus membros eefetiva inclusão social na comunidade e sociedade em que vivem. No entanto,estas expectativas são possiblidades e não garantias. A família vive num dadocontexto que pode ser fortalecedor ou esfacelador de suas possibilidades epotencialidades (p. 15).

Araújo (2003), ao elaborar sua dissertação de mestrado, contribui para o debate,

apresentando sua compreensão de família, começando por defini-la como uma

instituição que possui processos e práticas sociais, que delimitam sua dinâmica e

organização. Para ele, a família encontra-se em crise devido à mudança de seu modelo,

antes patriarcal, ocorrida mais fortemente nas últimas décadas, apontando como causa

dessas mudanças os processos sociais, econômicos, culturais, inerentes a uma

instituição que sofre constantes mutações em sua função social. Para o autor, esses

fatores vão interferir na dinâmica familiar, provocando alterações na sua organização,

em especial, à medida que tenta assimilar o novo papel social da mulher, a

representação dos papéis, que os diversos membros da família vão assumindo,

relacionados ao perpassar de gerações e estabelecimento dos valores veiculados no seu

âmbito.

As mudanças supracitadas convergem para basear a formulação da questão

principal desta pesquisa, nos seguintes termos: como as instituições de educação estão

lidando com as novas configurações familiares, sabendo-se que estas estão refletidas,

por sua vez, na subjetividade dos seus atores sociais, bem como implicadas, de alguma

maneira, nas políticas de inclusão, em curso no Brasil?

A modernidade, sobretudo, entre o século XVIII e XIX, na Europa, se

caracteriza pelo surgimento do feminino na cena social, que vai crescendo, com o passar

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do tempo e atinge hoje uma dimensão mais considerável, o que nos leva a refletir sobre

as mudanças que vem ocorrendo na sociedade atual. Estas influenciam diretamente o

significado da família como instituição social, de modo que não podemos alimentar a

ilusão de que haja famílias passam à margem disso; ou seja, vivam sem interação com

essas mudanças, ao considerar que a tradicional configuração da família burguesa -

constituída pelo pai provedor, a mãe infatigável, carinhosa, dedicada aos trabalhos

domésticos e à educação dos filhos; sejam crianças ou adolescentes que, por sua vez,

entre o aconchego do lar e a escola, brincam e aprendem, felizes e despreocupadas - vai

deixando rapidamente de fazer parte do cenário atual da nossa sociedade. Como fica a

educação nesse novo contexto social? A elucidação do seu rumo e dinâmica social

necessita seguramente estabelecer pontos de conexão entre Família – Escola e Estado,

para que possamos entender hoje o seu significado social.

Alguns elementos do referencial teórico

Laços Familiares

Estudos investigativos já realizados no âmbito da temática que relaciona família

e educação revelam a necessidade das investigações levarem em conta o caráter

histórico e social da família, uma vez que o seu surgimento e ordenamento é fruto de

certas condições tipicamente culturais, que caracterizam as coletividades humanas.

Portanto, é sensato ao nos referirmos à família, adjetivá-la e/ou, situá-la no tempo e no

espaço.

Diante disso, a presente pesquisa toma como ponto de partida de sua

retrospectiva histórica a família burguesa do século passado, vendo o seu processo de

mudança até os dias atuais, no sentido de compreender como novas configurações

familiares afetam os indivíduos na construção da sua subjetividade. Para tanto, se busca

um aprofundamento do conhecimento sobre as principais propostas teóricas no âmbito

da sociologia e psicologia da família, que se produziram, desde a viragem do século

XIX para o século XX, até às teorias mais marcantes do século XX e aos recentes

contributos teóricos do século XXI. Ressalte-se a necessidade de dar atenção aos

núcleos e dilemas do debate contemporâneo, no âmbito da regulação jurídica das

relações familiares, e veiculado nos meios de comunicação social.

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Para compreender, as relações interpessoais no âmbito familiar adotamos aqui o

conceito de laço social, que foi desenvolvido a partir da tradição sociológica iniciada

por Durkheim, para explicar um tipo de família, como uma instituição definida pela

existência de um laço entre a mãe e o pai, e destes com sua prole, firmado por meio de

um sentido social de vida comum e em valores morais partilhados. Esse conceito tem

sido atualizado por BAUMAN (2004), quando discute a fragilidade das relações sociais

e afetivas no mundo atual.

No campo da Psicologia, tomamos a vertente da Psicanálise como referencial a

ser utilizado para um confronto com o surgimento das novas configurações familiares,

que envolvem, por exemplo: segundo casamento de pais e mães separadas,

homossexuais, pais idosos com filhos produtos de inseminação artificial, pai ou mãe

celibatário, com filho adotado, etc. Isso, sem falar na situação de inúmeras famílias

cuidadas pelas mães, ordenadas sem a presença da figura do pai e vice-versa.

No âmbito psicológico, consideramos o fato de que o fundamento teórico

freudiano, a sustentar a constituição do inconsciente por meio do complexo de Édipo,

traça um drama que se desenrola necessariamente no seio de um triângulo que é

familiar: no inter-jogo dos papéis encenados por indivíduos que ocupam as funções de

pai, mãe e filho, onde um indivíduo aprende a articular seu desejo com uma lei que opõe

a esse desejo, um freio, constitui-se num importante referencial, por destacar a

importância do Édipo, o que leva Freud (1905) a afirmar a sua universalidade: “a todo

ser humano é imposta a tarefa de dominar o complexo de Édipo”. Antes de saber o

alcance desse fundamento hoje, quando a família burguesa estudada por Freud está

dando lugar a outros arranjos e configurações familiares, pretendo usá-lo para entender

o alcance da mudança vivida hoje pela instituição familiar.

Constituição do Sujeito

Para a elucidação deste aspecto, usamos o referencial psicanalítico, clássico e

atualizado, no sentido de tentar efetuar uma integração das instituições escolares e da

família, e assim descobrir caminhos da subjetivação de professores e alunos,

respeitando as suas singularidades. Com o intuito de que alunos e professores não sejam

vistos apenas como seres produtivos ou portadores de cidadania, com base numa ideia

restrita de utilidade social.

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Com referência à teoria Psicanalítica, relacionamos, ainda, os tempos do Édipo,

eixo central e arcabouço teórico da Psicanálise. Este complexo é aqui retomado, para

mostrar que, em tese, ele pode servir de paradigma para a análise de toda estrutura e

dinâmica da sociedade, tanto em relação ao nível pessoal, como grupal, conforme a

literatura mais atual sobre o assunto.

No entanto, cabe aqui uma ressalva, que nos recomenda lembrar a posição de

Freud a respeito do tema Educação. Pois embora Freud tenha se preocupado com essa

dimensão da vida social no decorrer da sua obra, o número de páginas por ele escritas

em torno desse assunto não ultrapassa a marca de duas centenas. No início de sua obra,

Freud defendia a importância da Psicanálise para a Educação, e transmitia a crença de

que os ensinamentos psicanalíticos, transmitidos aos educadores, poderiam se constituir

em valioso instrumento de profilaxia das neuroses. Entretanto, no final da sua obra,

Freud já não defende mais esse pressuposto, ao concluir que não havia como prevenir o

aparecimento da neurose, através de boas orientações educacionais. Nesse sentido, a

educação existiria socialmente para normalizar as relações sociais, ou seja, para

imprimir-lhes direção e significação. Uma vez que o processo educacional, ao trabalhar

a construção do tipo psicológico padrão, não estará fazendo outra coisa, além de

reproduzir as normas sociais vigentes, abrindo assim, como nos ensina Foucault (2002)

o horizonte de instalação da anormalidade.

Da Normalista à Comerciária

Apesar das previsões alvissareiras divulgadas no livro Megatrends 2000,

defendendo os anos 90 como a “década das mulheres na liderança”, ao afirmar que, “a

medida que a década de 90 progredir, o senso comum admitirá que mulheres e homens

atuam igualmente bem como líderes no trabalho, e as mulheres alcançaram as posições

de liderança que lhes forma negadas no passado (Naisbitt e Aburdene 1990, p. 255),

parece ser necessário contextualizar essa constatação.

No caso do Brasil, em especial, a ocupação de cargos de poder ainda não se

mostra alterada de tal maneira, na proporção apresentada por seus autores, se

restringindo, quantitativamente, a um segmento minoritário de mulheres altamente

qualificadas profissionalmente ou pertencentes a estruturas familiares de poder. Isso

vem sendo perpetuado na nossa sociedade, colocando a mulher na inferioridade

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econômica. Isso contribui para a conservação e/ou perpetuação de atitudes

preconceituosas e de cunho machista e sexista. Tal situação, dificulta sobremaneira a

possibilidade da mulher concorrer em pé de igualdade, situação que é por vezes

justificada por meio da alegação de que seu lugar é no lar cuidando dos filhos.

Por outro lado, não podemos esquecer - como defende a famosa tese

antropológica de Mead (2000), concebida há mais de meio século, que a essas

diferenças entre homem e mulher se devem em quase sua totalidade a condicionamentos

sociais e culturais. Em outras palavras, a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia

parecem concordar que cada ser humano é produto de uma transmissão genética e de

uma influência social, sendo que a herança genética não impõe um padrão de conduta

cultural, nem exclui outros.

Ao que podemos acrescentar que as características atribuídas tradicionalmente às

mulheres não são naturais e sim impostas. Portanto, a imagem da mulher vai depender

da cultura. Podemos apoiar tal assertiva no estudo da autora acima referida, publicada

em 1949 sob o título, Male and Female, que afirma ter encontrado diferenças

impressionantes nos papéis de homem e mulher em três povos da Nova Guiné: os

Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli.5

(...) Cada uma dessas tribos dispunha, como toda sociedade humana, do ponto dediferença de sexo para empregar como tema na trama da vida social, que cada umdesses povos desenvolveu de forma diferente. Comparando o modo comodramatizaram a diferença de sexo, é possível perceber melhor que elementos sãoconstruções sociais, originalmente irrelevantes aos fatos biológico do gênerohumano. (Idem, ibidem, p. 22)

Se fizermos, então, um recorte de classe social, com base em dados

demográficos, encontraremos, que as profissões mais procuradas pelas mulheres das

classes populares é o de comerciárias e professoras, contribuindo essa tendência para a

preservação de uma estrutura de poder, onde aquelas mulheres permanecem sem ter

acesso aos bens econômicos e aos cargos de liderança, sobretudo, devido aos baixos

salários, mesmo quando comparadas aos homens de sua classe social.

5 Tanto os homens quanto as mulheres Arapesh são seres pacíficos e segunda a antropóloga não existianenhuma distinção entre o comportamento masculino e feminino como se designa na cultura ocidental,enquanto os Mundugumor os homens e as mulheres se desenvolviam como indivíduos agressivos. E porúltimo, os Tchambuli Margaret Mead se deparou com o inverso das características sexuais concernente auma cultura ocidental, pois as mulher exercia o papel de dominadora e responsável enquanto o homemencarna o papel da submissão emocional.

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Tais aspectos são retratados na pesquisa do DIEESE realizada em 20096, ao

divulgar que 60% das mulheres comerciárias eram assalariadas, forma de inserção que

registra menor proporção na Região Metropolitana de Fortaleza (41,4%) e maior na de

Belo Horizonte (71,3%). Os dados da referida pesquisa revelaram que quase metade dos

assalariados no comércio são mulheres, o que corresponde a cerca de 840 mil

comerciárias nas regiões analisadas. Porto Alegre apresenta a maior proporção de mão

de obra feminina (45,6%) e Fortaleza, a menor (38,2%). Vale destacar, que 15% dessas

mulheres exercem o papel de chefe de família nas regiões pesquisadas e a maioria é mãe

independentemente da configuração familiar que ela integra.

Outro aspecto relevante, este divulgado pela Pesquisa Nacional por Amostra de

Domícilio (Pnad) 2011, incide sobre a mudança da predominância do trabalho

doméstico como ocupação da mulher, que sai dele para o comércio, uma vez que, no

período de 2009 a 2011, o percentual de domésticas caiu de 17% para 15,7% das

trabalhadoras. Enquanto isso, o de mulheres no varejo subiu de 16,5% para 17,6%7

A tendência do predomínio do segmento feminino na docência pode ser

constatada nos dados da Sinopse do Professor da Educação Básica divulgados pelo

Ministério da Educação, no final de 2010, ao revelar que as mulheres compõem 81,5%

do total de professores da Educação Básica no Brasil. E acrescentou, ainda, que nesse

período existem quase 2 milhões de professores, onde mais de 1,6 milhão são do sexo

feminino8.

No que toca às professoras, vamos perceber, que apesar das novas propostas

políticas apresentarem um discurso de capacitação e a valorização salarial9 proposto na

LDB e FUNDESP, em favor de novas políticas de formação de professor, ainda não é

6 Boletim Trabalho no Comércio intitulado, Mulher Comerciária: Trabalho e Família, nº 5, DepartamentoIntersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, 2010, que apresentou como objetivo analisar asdesigualdades entre homens e mulheres no espaço de trabalho e ao exame das diferentes faces datrabalhadora e seus arranjos familiares. O referido boletim foi elaborado utilizando os dados da Pesquisade Emprego e Desemprego - PED, resultante do convênio DIEESE/Seade/MTE – FAT e de parceriasregionais no Distrito Federal e nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife,Salvador, Fortaleza e São Paulo.

7 http://www.sinprocampinas.org.br. Consultado em 06/11/2012.

8 http://educacao.uol.com.br/noticias/2011/03/03/brasil-8-em-10-professores-da-educacao-basica-sao-mulheres.htm. Site consultado em 06/11/2012.

9 Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB

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palpável essa valorização social da mulher professora, especialmente, da que lida com

crianças e adolescentes.

Reporto às reflexões de Libâneo (2008) para auxiliar a compreensão da atual

circunstância do trabalho docente implementada pelas ultimas políticas educacionais,

que contribui para a sua precarização, ao afirmar em seu artigo intitulado alguns

aspectos da política educacional do governo lula e sua repercussão no funcionamento

das escolas

Estamos, efetivamente, frente a uma pedagogia de resultados: põem-se asmetas, e as escolas que se virem para atingi-las. Mas se virar com quemeios? Onde estão as instalações físicas? O material didático? Oatendimento à saúde das crianças? Os salários e as condições de trabalhodos professores? Onde estão as professoras que dominam os conteúdos,que sabem pensar, raciocinar, argumentar e têm uma visão critica dascoisas? Não contamos, para isso, com um sistema nacional de educação, naforma de um sistema único de educação pública, com metas pedagógicasconsequentes. O que temos são metas econômicas, burocráticas (p. 175 e176)

Sobre essa questão há de se considerar o peso da tradição, já que temos o

testemunho de uma tendência inscrita na nossa história educacional, onde sempre houve

uma desvalorização da profissão docente, notadamente, quando o ensino primário, antes

atividade entregue aos homens, foi passando para a esfera do trabalho feminino. A

historiografia mostra que, a partir das décadas de 1920 e 30, pode-se perceber, como

predomina ainda hoje, que a opção de mulheres professoras pela docência deveu-se ao

fato de eles viverem excluídos e não contarem com outras opções de emprego, que não

aquelas ligadas, na família e na escola, com os cuidados com a educação de crianças.

Daí serem mulheres em sua maioria, as professoras do ensino básico, em virtude

também de pertencerem a famílias de classes desfavorecidas, o que provoca uma

desigualdade permanente, responsável por quem vai ter acesso à instrução, que por sua

vez constitui uma hierarquia de acesso às profissões.

A expressiva e coincidente presença feminina no magistério e no comércio

chama sobremaneira a nossa atenção, recomenda um estudo comparado e exige algumas

formulações prévias. Uma explicação possível seria a necessidade de compor a renda

familiar, ao lado da busca da independência profissional e financeira dessas mulheres, o

que coloca a necessidade de se discutir mais profundamente o papel da mulher, sua

sexualidade, a família e as estruturas de poder.

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Uma rápida e esparsa alusão sobre o papel da mulher, ao longo do tempo e em

diversas sociedades, conforme a literatura aqui referida, nos leva-nos a destacar que

cada cultura ou momento histórico encara a sexualidade de forma diferenciada, devido

uma variação de contorno da função institucional da família e educação. Na Grécia

Clássica, por exemplo, que trazia como uma de suas características culturais a

predominância da razão, do pensamento crítico defendendo a personalidade livre,

vamos encontrar uma aceitação social da bissexualidade e homossexualidade. Já para os

Indus e os Arianos, à mulher pertencia o lugar do chefe da família, devido sua

capacidade de gerar a vida. Na modernidade, o papel da mulher no Ocidente aparece

vinculado a estruturas patriarcais de poder, que disseminadas pelo domínio europeu,

permanecem sólidas pelo menos, até final do século XIX e ao longo do século XX. Pois

a partir desse momento, movimentos feministas em prol de direitos políticos e liberdade

profissional começam a colocar esse poder em questão de forma crescente.

Sem esquecer, que a família, sob o regime patriarcal, desenvolve a função de

reprodução social, influencia na constituição da personalidade dos filhos, à medida que

os educa, sendo responsável pela transmissão de valores tais como, o da convivência

civil e de uma moralidade a ser cultivada, pautada na dignidade, no bom uso da

liberdade, no diálogo, na obediência e respeito às regras de solidariedade social. Exerce

ainda influência nas opções dos seus membros, no que se refere à carreira profissional,

círculo de amizades, uso do tempo livre e nas relações sociais, em geral.

Considerações Finais

A presente pesquisa nos mostra que a opção pela investigação do complexo

“família, trabalho, sexualidade, educação e cidadania” justifica-se por se constituírem

tais contextos institucionais, instâncias primordiais e inter-relacionadas para a

compreensão da subjetividade dos sujeitos da educação, que são mulheres professoras,

em sua maioria. Tal opção, é dada a sua importância nos mecanismos de socialização e

profissionalização, que estão inscritos nas transformações econômicas, políticas,

sociais, culturais e tecnológicas em curso, as quais, se por um lado têm causado grande

impacto no ordenamento simbólico dos diversos agentes e instituições educativas, nas

sociedades do conhecimento e da comunicação acelerada da atualidade, por outro,

alteram as relações de autoridade entre pais e filhos, professores e alunos.

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Para João dos Santos, cabe a Pedagogia se definir em relação à sociedade na

qual se encontra, tal como ele fez, permanecendo como psicanalista. Sua ação foi

desconstruir um sistema de valores que permanecia em Portugal fruto do governo

salazarista, realizando uma crítica radical em relação ao modelo de educação português.

Ele desconstruiu todo o sistema pedagógico português, denunciando através de uma

prática pedagógica preconceitos que impediam o crescimento de seres livres.

Ao contemplar a dimensão subjetiva e objetiva na formação docente transparece um

avanço na formação dos professores, e na visão da sala de aula, no que se diz respeito

ao relacionamento professor-aluno, e, também, como uma semente que se desenvolveu

para que atualmente a subjetividade do professor e aluno sejam exploradas nos cursos

de Pedagogia em todos os seus aspectos constituintes, tais como, o social, o psicológico

e biológico. Esses são aspectos importantes para a reflexão sobre a constituição da nossa

identidade de docente, para além do que afeta cada professor individualmente, porque

possibilita compreender que a questão posta é uma questão bem maior do que as

angústias pessoais possam indicar, quando se examina no âmbito do conjunto da

categoria.

Destarte, a pesquisa se dedica, no momento, à escuta dos discursos das mulheres

comerciárias e professoras acerca das mudanças em curso. Afinal, as crescentes

transformações pelas quais a família e em particular a mulher vem passando, em meio à

busca da construção de sua identidade pessoal e profissional, parecem questionar os

padrões tradicionais de casamento, pautados em funções fixas para o homem provedor e

a mulher cuidadora da casa e das crianças. Há tempos, a exemplo de Carl Rogers10, o

casamento tradicional é visto na perspectiva da psicologia social como uma forma de

viver que decaiu. Por esse motivo, propõe como forma de solução que as pessoas

aceitem experiências novas em termo de vida conjugal e relacionamento, para se evitar

a repetição de erros passados.

A mulher que emerge nesta pesquisa tem sua subjetividade marcada pela busca

de um lugar social de maior autonomia profissional e de provedora da família. Ao lado

disso, já não aceita ser alvo de sujeição ao autoritarismo de homens educados na cultura

10 http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=188 Consultado em 10/06/2013.

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herdada de um patriarcalismo decadente, mas que mesmo assim ainda é capaz de

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