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1 1 QUE PALHAÇADA É ESSA Juliana Arapiraca Natália Siufi jogos e apontamentos

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Que Palhaçadaé essa

Juliana ArapiracaNatália Siufi

jogos e apontamentos

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Aos grandes mestres, por nos ensinarem nas pequenas coisas:Alexandre Mate, Mário Bolognesi e Mariana Martins Monteiro.

Ao avô Afif Siufi, piadista e palhaço de primeira!

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Aos grandes mestres, por nos ensinarem nas pequenas coisas:Alexandre Mate, Mário Bolognesi e Mariana Martins Monteiro.

Ao avô Afif Siufi, piadista e palhaço de primeira!

Aos familiares, base e origem, pelo amor e pela confiança, que nos possibi-litaram concluir essa etapa.

Aos professores, que muito nos ensinaram, pela dedicação e pelo empenho: Anderson, Sueli, Carminda, Luiza, Ikeda, José Manoel, Jéssica, Wagner, Rejane, Palma e Kátia.

Aos colegas, amigos e parceiros, pela amizade, pela compreensão e pela presença tão fundamental: Fernanda Arapiraca, Edson Arapiraca, Palhaço Biri-ba, Palhaço Chukitu (Maikon) , Palhaço Casquinha (Paulo), Cláudia Funchal, Meg Siufi, Luciana Yuri, Marco Antônio, Marcos Francisco, Erich Kos-loski, Pedro D’alessio, Narahiana Neckis, Tatiane Ramos, Pedro Bacellar, João Alves, Júlia Moura, Grupo Teatral Parlendas, Cás-sio Aidar, Cia. de Dois, Joana Piza, Leris Colombaioni, Roberta Siufi, Luís Gustavo, Alício Amaral e Juliana Pardo (Cia. Mundu Rodá), Nathalia Bonilha, Dara Freire, Mário Queiroz Via-na, Silvana Bolognesi (Fuva), Marcelo Bolognesi e Hugo Bolognesi. Em especial: Maria Gabriela D’Ambrozio e Evandro Prioli Duarte, pela paciência, pela parceria, por tudo.

Ao princípio da oposição da dupla Juliana e Natália, pelos tapas e risadas.

agradecimentos

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Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.

Clarice Lispector

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sumário

1. Introdução .................................................................................................................06

2. Capítulo I - Palhaço: a busca individual

O ator-palhaço: a criação da personagem ............................................................ 12

EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS: relatos e descobertas ...............................................19

Da busca pessoal ao conhecimento acumulado - história e conceitos .............. 21

A dupla – o princípio da oposição .........................................................................23

EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS: relatos e descobertas ................................................25

3. Capítulo II – Repertório: o palhaço em relação

Roteiro .................................................................................................................. 28

EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS: relatos e descobertas .............................................. 33

Improvisação......................................................................................................... 34

EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS: relatos e descobertas ............................................... 39

Triangulação ...........................................................................................................41

EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS: relatos e descobertas ............................................... 47

4. Capítulo III – Expressividade: o corpo em cena

Pré-experimentação .............................................................................................. 51

Gestualidade ......................................................................................................... 53

Voz ......................................................................................................................... 62

EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS: relatos e descobertas ............................................... 64

5. Fotos .........................................................................................................................66

6. Conclusão ................................................................................................................. 70

8. Bibliografia ................................................................................................................72

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O palhaço não é uma personagem que se pode construir com algumas técni-cas e um pouco de criatividade. Ele é muito mais, é um pouco da vida do artista, da sua experiência diária. O palhaço improvisa o tempo todo, dando a “cara à tapa” à platéia. São necessários muita experiência e muito repertório para man-ter a platéia atenta. Será que tudo isso se apreende numa sala de ensaio? Por mais ensaio que se faça? Há sentido em buscar essa personagem, sem vivenciar o cotidiano do circo? Será que um ator, que não é parte dessa tradição, que não nasceu no circo, pode chegar ao palhaço?

Perguntas como essas motivaram a elaboração deste trabalho. As famílias de circo estão cada vez em menor número. As crianças dessas famílias são de-sencorajadas a continuar ali pelos próprios pais, desmotivados com o futuro do ofício. Ao mesmo tempo, o teatro abre as portas ao circo, possibilitando uma fusão das linguagens que gera novas linhas de pesquisa, deslocando o palhaço do picadeiro para o palco teatral.

É importante que se deixe claro as diferenças dessas construções, no corpo do ator, na escolha do artista e na relação com a platéia. O cômico popular é frequentemente excluído dos registros da história e se vê muita relevância na tentativa de organizar alguns procedimentos do processo de construção de um palhaço tradicional, para o ator1 .

Analisando a grade curricular de algumas escolas técnicas e cursos acadê-micos de artes cênicas2 do estado de São Paulo, percebeu-se que a linguagem cômica é pouco ou nada estudada e, quando o é, falta o aprofundamento neces-sário. Talvez porque o mercado televisivo exija atores de formação mais realis-ta ou porque a visão hegemônica do drama ainda exerça forte influência sobre estas instituições.

Esse preconceito todo que os intelectuais têm, como a Cleyse Mende fala “da bes-teira”, que “intelectual odeia besteira”; “não gosta de rir à toa”, todo esse precon-ceito é porque não se pensava que havia tanta coisa por trás e tanto estudo por trás e também porque, óbvio, a gente não está falando de nada elitizado e nada aprofundado, a gente está falando do popular mesmo. (VENEZIANO, Neide3 )

O fato é que a linguagem cômica exige um treinamento específico, que re-

1. O fato – inegável e incontestável – é que o ator brasileiro, de João Caetano até hoje, forma-se tendo o palco italiano como referência. (BRITO, Rubens. 2004: 170)2. UNICAMP, UNB, USP, ELT, Fundação das Artes de São Caetano do Sul, Macunaíma, Célia Helena e INDAC.3. Todas as citações com os nomes: Neide Veneziano, são referentes à transcrição de palestra no evento: Persona & Personagem, em doze de novembro de 2008, no Instituto de Artes da UNESP.

introdução

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elabora o corpo cotidiano do ator para criação de um corpo grotesco, deforma-do, de gestos nada habituais, de ações quebradas e de triangulação constante.

Este fichário contém jogos para facilitar e dar maior dinamização ao pro-cesso de treinamento da linguagem cômica, especificamente do palhaço, para o ator. O nome palhaço aparecerá sempre, já que esse é o foco da pesquisa, porém os jogos podem ser usados para outras funções e personagens dentro da tradição cômica. Não houve preocupação em identificar jogos já catalogados ou que possuíssem nomes específicos. Eles foram retirados de aulas, oficinas, cursos e leituras, sendo que a principal fonte foram as aulas de improvisação cô-mica de Mário Fernando Bolognesi, ministradas na UNESP. Outras importantes contribuições foram as de Leris Colombaioni e Cláudia Funchal.

Os jogos são a primeira parte de um longo percurso a ser trilhado para que se chegue próximo ao palhaço. Só atingem seus objetivos se realizados com um razoável grau de freqüência e continuidade. Se é fato que a vivência do picadei-ro traz a técnica de forma empírica, o caminho aqui é o inverso, pois primeiro aprende-se as técnicas e depois vivencia-se o picadeiro (ou platéia). O método busca a retomada do palhaço de picadeiro.

Não há a idéia e nem a pretensão de que seja algo pronto, fechado, como uma metodologia, mas sim um instrumento, que abra caminhos a inúmeras pos-sibilidades de trabalho, que possam ser realizadas de diferentes formas, sempre como um ponto de partida e com um caráter de abertura constante para modi-ficações.

A relevância do registro é documental, histórica e também conceitual. Criar alguns procedimentos para o aprendizado do palhaço, com jogos e apontamen-tos, parece muito útil, pois teorizar e conceituar a prática facilita novas frentes de pesquisa além de ser mais uma forma de preservação e transmissão da tradi-ção popular circense.

A escolha do que relatar foi difícil, pois inúmeras eram as anotações e regis-tros e impossível a compilação de todos. Várias discussões e exercícios, muito ricos para os coletivos observados, mas que não serviriam mais do que como demonstração de processo, foram cortados. Apenas o que se julgou pertinente a novos coletivos de trabalho será registrado aqui.

A platéia, nessa pesquisa, foi a própria equipe de atores, o que é funcional do ponto de vista prático, mas traz pouco resultado do ponto de vista da troca. A platéia não pode ser “viciada” (termo usado para designar a platéia composta por atores ou pessoas do teatro): é bom que seja realmente uma platéia espon-tânea. Se houver a possibilidade de um treinamento em local aberto, ela deve ser aproveitada.

O ambiente de treinamento deve ser rigoroso, todavia sem tensão, com re-ferências a lugares distintos, energias e ânimos diversos. A primeira coisa a se

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fazer é uniformizar e canalizar essas energias para um único ponto: o riso. A função do palhaço é fazer rir, portanto aqueles que o fazem devem se sentir à vontade, buscando a maneira descontraída do riso. Um estado de espontaneida-de é essencial para dar suporte ao artista.

O diretor que lida com a linguagem cômica deve atentar para não dar todas as respostas aos atores. Para não limitar demais as situações e processos com as ideias do que funciona ou não. É preciso ser pontual e objetivo, dizer o que dá ou certo ou não, mas sem podar a criatividade e o processo de cada ator. Ser rígido, mas manter o ambiente leve; Tentar trazer para sala de ensaio a disciplina do circo, que é natural e orgânica, e não algo fechado ou hermético.

O ator, em geral, tem muita dificuldade de se adaptar à linguagem cômica, pois além de não pertencer ao cotidiano circense, chega cheio de referências dramáticas, realistas e de outras linguagens que não trabalham com o corpo expressivo, extra-cotidiano, exigido aqui.

O material contém um estudo histórico e teórico acerca do palhaço e um fichário de jogos cômicos. O estudo, que aborda conceitos necessários à execu-ção dos jogos, é dividido em três capítulos: I - Palhaço: a busca individual; II - Re-pertório: o palhaço em relação; III - Expressividade: o corpo em cena;

O Capítulo I aborda a busca individual do ator na construção da persona-gem palhaço e traça um breve panorama histórico acerca do palhaço e do circo, apenas como ponto de partida de pesquisa para o ator. O Capítulo II trata espe-cificamente da técnica da triangulação, do roteiro, do jogo da improvisação e da relação do palhaço com seus parceiros de cena e com o público. Já no Capítulo III a gestualidade e o treinamento físico são discutidos e conceituados.

Experiências práticas (tópico presente em todos os capítulos) traz parte das experiências vivenciadas durante a pesquisa, já que foram de fundamental im-portância para construção desse material. O relato de algumas aulas ou de par-tes do processo exemplifica e esclarece questões abordadas nos capítulos. Cabe aí uma maior liberdade, uma renúncia aos padrões acadêmicos rígidos, para que se estabeleça um momento maior de troca.

O fichário foi divido em cinco partes: aquecimento, construção do palhaço, improvisação, triangulação e gestualidade. As fichas de aquecimento e gestua-lidade são conceituadas no Capítulo III, pois têm relação direta com o corporal do ator. As fichas de triangulação e improvisação são abordadas no Capítulo II, que trata do repertório, e as fichas de construção do palhaço correspondem ao Capítulo I, que se trabalha a busca individual do ator.

A ordem escolhida pode ser modificada e foi pensada da seguinte forma: primeiro, o ator deve buscar individualmente a construção do seu palhaço; de-pois, colocá-lo em relação, inicialmente com o parceiro de cena e, em seguida, com a platéia, em jogo. Após as etapas, o ator começa a trabalhar a expressivi-

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dade, quando aprimora os gestos das cenas criadas e aumenta a qualidade da improvisação.

Na verdade, é impossível estabelecer essas etapas rígidas ou distintas. Os jogos que focam a construção da personagem possuem também as idéias de expressividade e mesmo de relação com a platéia. Todas as fichas de jogos po-deriam conter técnicas de triangulação e fica a critério do condutor4 acrescentar ou não expedientes da técnica em determinados jogos, dependendo do proces-so do grupo. A divisão, então, é mais uma forma a posteriori de didatizar o pro-cesso.

O objetivo é a busca do palhaço brasileiro, circense, o Augusto, que carre-ga traços da tradição italiana, inglesa, francesa, americana, mas principalmente traços próprios, reinventados constantemente dentro das necessidades de seu público.

Nesses três anos foram usados, como pesquisa de campo e base teórica, diversos materiais que, juntos, possibilitaram a criação do fichário de jogos. Abaixo estão relacionados os que tiveram maior relevância, excluindo diversos cursos e oficinas, espetáculos e palestras, que trouxeram mais reflexões e bases teóricas e práticas à pesquisa, mas que não caberiam aqui.

• Observação e estágio da turma do segundo ano de Licenciatura em Artes Cênicas, da UNESP, na disciplina Improvisação, que trabalha em um per-fil cômico, sob a condução do Professor Doutor Mario Fernando Bolognesi, em 2009; (Natália Siufi)

• Oficina de Movimentos para Cena: princípios expressivos dos estudos biomecânicos, com duração de 15h, ministrada pela professora doutora Maria Thais, em 2009; (Juliana Arapiraca)

• Direção, dramaturgia, atuação e condução de treinamentos de impro-visação na linguagem cômica com o Grupo Teatral Parlendas, em dois espetácu-los, em 2008/2009; (Natália Siufi)

• Integrantes da trupe Estrupiada, grupo de cinco atores, no processo de montagem da peça Ilha dos Escravos, de Marrivaux, com direção de Mario Fernando Bolognesi, em 2008 e 2009; (Natália e Juliana)

• Oficina Palhaçaria, com Leris Colombaioni, em Campinas, com uma se-mana de duração, no espaço semente, em 2009; (Natália e Juliana)

• Festival de Circo de Limeira, em 2009; (Natália e Juliana)

• Organização do encontro Treinamento e Tradição do Ator, sob con-

4. No estudo se usa o termo diretor pois a maioria dos processos observados na pesquisa teve uma direção fixa. No fichário porém, usa-se o termo: “condutor”, que abrange maiores possibilidades, podendo os próprios atores conduzirem o processo.

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dução da professora Marianna Martins Monteiro, em 2008 e 2009; (Juliana Arapiraca)

• Concepção e atuação do espetáculo Trapo e Farrapo, em cartaz na Bie-nal Internacional do livro, com 14 apresentações, em 2008; (Natália e Juliana)

• Equipe de produção do encontro Persona & Personagem: Estudos Tea-trais I, ciclo de palestras e debates sobre o trabalho do ator, realizado na UNESP, de 10 a 12 de novembro de 2008; (Natália e Juliana)

• Anotações das aulas de improvisação do professor Mario Fernando Bo-lognesi, do ano de 2008, cedidas pela aluna Nathalia Bonilha, do terceiro ano de artes Cênicas;

• Oficina Palhaços, ministrada por Mario Fernando Bolognesi, no Circo da Barra da UNESP, com duração de sete dias e com a presença do palhaço Biriba no encerramento, em 2008; (Natália e Juliana)

• Curso de Mímica e Teatro Físico, com Luis Louis, em 2007; (Juliana Arapiraca)

• Um ano da disciplina Improvisação, que trabalha em um perfil cômico, ministrada por Mario Fernando Bolognesi, na UNESP, em 2007; (Natália e Juliana)

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caPÍtulo i

Palhaço: a busca individual

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O atOr-palhaçO: a criaçãO da persOnagem.

Reafirma-se aqui o termo “ator-palhaço” antes de qualquer coisa, porque há uma distância e uma diferença consideráveis entre o palhaço e o ator-palha-ço. Isso precisa estar claro desde o início da busca do ator, para que ele não caia em armadilhas ou se engane a si mesmo.

O palhaço que nasce e se forma no circo tem seu aprendizado calcado no cotidiano circense. A disciplina é vivenciada naturalmente, passada de pai para filho. A criança sobe ao picadeiro cedo, imitando o pai, copiando seus movimen-tos, repetindo e recriando, sem racionalizar. Todo seu corpo vai se formando para e no ofício, de forma orgânica, na vivência prática, dia-a-dia. A força, o tô-nus e o controle corporal são adquiridos na rotina dura do circo, que pede essas características. O fazer rir é um compromisso diário, um trabalho, um ganha-pão. Imagina-se que qualquer outra pessoa, alheia ao cotidiano circense, ator ou não, já inicie essa busca, trazendo tais desvantagens.

O ator possui talvez ainda mais dificuldades que um não-ator, já que, algu-mas vezes, a preparação e consciência corporal e mental adquiridas em diversos treinamentos podem atrapalhar na criação do palhaço. Acostumados a constru-ções psicológicas de personagem, alguns atores precisam primeiro “desapren-der” para depois aprender. há então, para o ator, esta primeira fase de des-prendimento dos vícios corporais, de um corpo teatral e da hegemônica visão realista que faz com que se busque um sentido, uma história das coisas.

A busca individual é uma etapa fundamental. O indivíduo que examina suas dificuldades, percebe suas características, entende seus limites, descobre suas potencialidades e explora seu ridículo. O começo da criação do palhaço envolve a escolha do corpo, do andar e da voz que melhor se adéquam ao ator. O fazer rir exige inteligência, senso crítico, controle corporal, controle emocional, pers-picácia e, principalmente, a percepção do público.

O foco da pesquisa, inicialmente, é corporal: neutralizar o rosto, que con-centra grande parte das expressões, para dar lugar ao corpo todo; ações que são reveladas por um corpo dilatado5 , pela precisão dos gestos, pelo controle absoluto de cada movimento; experimentar os vários tipos6 - velho, enamorado, vilão, bobo, vaidoso, pantaleão, arlequim etc. – descobrindo, assim, preferên-cias de movimentação, de personalidade e de expressão.

É preciso explorar a expressividade do ator em relação à personagem. As-sim, desenvolve-se um repertório pessoal, com gags7 e ações características da

5. Ver capítulo III – Expressividade: o corpo em cena.6. Enquanto no estereotipo, o ator escolhe uma característica do sujeito para ser ressaltada e caricaturada, no tipo ele faz a síntese de várias características, sendo este último de construção e elaboração mais compl-exas. Ver Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis, para explicação mais elaborada.7. Gag = lazzi. Elemento mímico ou improvisado pelo ator que serve para caracterizar comicamente a personagem (na origem Arlequim). Contorções, rictus, caretas, comportamentos burlescos e clownescos, intermináveis jogos de cena são seus ingredientes básicos. (PAVIS, Patrice, 1999 : 226)

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sua personagem. A parte individual é talvez a mais difícil. O primeiro contato do ator com a linguagem é essencial e envolve, em seu corpo, o reconhecimento do ridículo, do cômico, do grotesco. Há uma grande dificuldade de o ator se olhar e de olhar o outro enquanto explora o ridículo. O segredo está em gozar de si mesmo. a preocupação de ser engraçado só dificulta o processo.

Estranho perceber que a segunda e a terceira etapa, repertório e trabalho corporal, já sejam pedidas aqui, mas o fato é que a construção do palhaço se dá durante todo processo e, como já dito na introdução, não há como separar as etapas, que se entrelaçam e se complementam a todo o momento.

O palhaço não é nem uma personagem completamente psicologizada e nem um tipo com características muito bem definidas. Ele está nesse equilíbrio, nessa linha que vai da individualidade do ator à universalização do arquétipo. A grande dificuldade está em encontrar a linha tênue que liga o treinamento cor-poral e as habilidades técnicas com a subjetividade da personagem. Diferente dos tipos fixos da commedia dell’arte, a construção do palhaço, abre possibili-dade para diferentes construções por parte do artista, pois metade é arquétipo, mas metade é a pessoa que o faz.

Não existe um palhaço igual a outro porque as pessoas que o representam são di-ferentes. Então, cada um vai dar sua visão de mundo. Agora, palhaço é uma coisa só. No entanto os diversos palhaços são diferentes porque cada um representa o arquétipo a sua maneira. (Hugo Possolo8)

Percebe-se um Arlequim desde a ponta dos pés até a curvatura da coluna. A máscara desenha um corpo, uma personalidade, gags próprias e um mesmo jeito de se movimentar. O palhaço não. As roupas desajustadas, a maquiagem, o nariz vermelho, são traços comuns que evidenciam o arquétipo, mas todas as outras características podem ser exploradas de variadas formas pelo artista atrás da máscara.

Na commedia, a máscara é dada a priori e procura “esconder” os traços do rosto do ator; na arte clownesca, a máscara ressalta aqueles traços que enfatizam a subjetividade da personagem. (BOLOGNESI, 2003: 178)

Há que se tomar muito cuidado com o entendimento do termo subjetivi-dade. O ator, acostumado às formas convencionais de construção da persona-gem, tende a buscar uma identidade emocional do palhaço. Pensar no interior, criar uma busca pela criança interna, pela sua subjetividade mais profunda. Não é esse o caminho, aqui. Até porque há uma grande chance de se anular o caráter social, priorizando o individual sobre o arquétipo, nesses casos.

Em nome de uma “originalidade” pessoal, a criação pode virar um movimento fe-chado em si mesmo, sem sentido crítico. (FUNCHAL, 2009: 24)

8. Todas as citações com nome: Hugo Possolo, são referentes à transcrição de palestra no evento: Persona & Personagem, em doze de novembro de 2008, no Instituto de Artes da UNESP.

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Durante o processo de criação de seu próprio palhaço, o ator deve buscar referências externas e ter sempre a consciência das escolhas feitas para inspi-rar e caracterizar a personalidade pessoal do palhaço. É de extrema relevância assistir aos espetáculos circenses, circo-teatro e teatro cômico, para haver uma formação de repertório e, ainda, observar as diferentes vertentes que existem de como criar o palhaço.

Tratar da criação da personagem de uma forma muito subjetivada, muito personalizada, pode aniquilar o aspecto social e político dessa tradição. O Au-gusto, em jogo com o Clown Branco, reflete um conflito de classes.

A dupla Augusto e Clown Branco, então, veio a solidificar as máscaras cômicas da sociedade de classes. O Branco seria a voz da ordem e o Augusto, o marginal, aque-le que não se encaixa no progresso, na máquina e no macacão do operário indus-trial. (BOLOGNESI, 2003: 78)

escolher é ideologia. cada artista é responsável por aquilo que propaga. Saber de suas escolhas é fundamental pois, assim, diminui-se a margem para distorção da figura do palhaço ou para uma desvirtualização do perfil histórico e político desse arquétipo.

O palhaço lida com a transgressão, desobstruindo os impedimentos e as interdições que a realidade coloca, visando libertar o homem de suas amarras e condiciona-mentos. Os números dos palhaços remetem diretamente às ideologias populares, operando com a organização de máscaras determinadas socialmente, principal-mente aquelas referentes às classes menos favorecidas. (MONTEIRO, www.ggpe.prpg.unicamp.br/teia/material/luiz_rodrigues/o_universo_do_palhaco_de_picadei-ro.pdf. Consulta em: 08/09/09)

Independente de quem o faz, é preciso ter consciência de sua força política e de seu potencial crítico dentro de uma sociedade setorizada e capitalista. O ator não pode perder de vista o arquétipo, não pode deixar que suas individua-lidades e características pessoais se sobreponham ao palhaço. Esse equilíbrio é fundamental para que a raiz popular e crítica dessa figura não se perca.

Para entender essa questão, deve-se retomar o sentido de o Augusto ter se firmado tão fortemente, explicitado por BOLOGNESI:

Essas razões só podem ser ponderadas à luz da história, em um momento de profundas transformações na Europa. A Revolução Industrial substituiu a força animal pela máquina; o cavalo perdeu seu posto e seu status para a propulsão mecânica; a cidade e a forma industrial sobrepujaram a economia agrária. Com essas transformações, o campesino procurou um lugar na nova ordem social e econômica, dessa feita sob a condição de proletário. (...) Pelo menos no aspecto ideal, no discurso sobre o real, a sociedade industrial procurou integrar o indiví-duo ao progresso. Não deveria haver mais lugar para a marginalidade. O discurso ideal, contudo, obscurecia o desemprego em massa e a Revolução Industrial não conseguiu superar a superpopulação, a fome e as guerras, motivos que fizeram

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que milhões de europeus abandonassem o Velho Mundo. (BOLOGNESI, 2003: 77)

O marginal, o desempregado... Os desajustados à sociedade se multiplicam dentro da falta de oportunidades, da má distribuição de renda e da educação precária. O Augusto representa, simboliza esse marginal e há um sentido políti-co em se engajar nessa marginalidade, um sentido contrário à lógica do sistema, contrário ao perfeito funcionamento da ordem.

A sociedade da máquina prega a eficiência. Ninguém imagina que o carro pode não andar, o fogão pode não funcionar, a TV não sintonizar. O palhaço lida com isso, com esse erro, com a falha dentro do sistema, mostrando que somos seres-humanos, que somos sujeitos ao erro. Ele mostra a pequenez do homem, sua parte instintiva, animal.

O quê que o comediante trabalha? Exatamente com essa idéia do huma-no, da falha, do erro humano. Se você veio ao mundo pra ser bacaninha, legal, bonitinho, tem tanta outra profissão. O palhaço é torto, desajeitado, ele não é o bonitinho, ele é do universo da bufonaria, ele é tortuoso, ele é feio, é distorcido, ele é grotesco, então o arquétipo, pelo fato de ter essa visão de quem ele representa, ele não se submete às situações, ele não é submisso, ele se rebela contra as situações. (...) O humor está ligado à questão do erro, o palhaço só existe porque existe o erro, se o ser hu-mano fosse perfeito o palhaço não existiria, o palhaço trabalha em cima do erro, ele persegue (...) quem manipula aquele arquétipo, está o tem-po todo buscando onde estará o erro pra gerar o riso, porque nós rimos exatamente disso, da nossa incapacidade de sermos perfeitos. Da nossa incompreensão de sermos apenas uma parte da natureza. (Hugo Possolo)

Em relação à lógica do palhaço, Lecoq afirma que o clown erra e acerta exa-tamente onde não esperamos. Sua lógica opera “ao pé da letra”, em sentido imediato. Portanto, por mais que haja uma busca interior, uma busca do indiví-duo pela personagem - que tem a ver com o artista - há inúmeras coisas comuns, há uma função social, há um motivo pelo qual o Augusto ganhou voz, pelo qual o palhaço se fez tão popular e tão aceito. Para Dario Fo, os palhaços sempre falam da mesma coisa:

Eles falam da fome: fome de comida, fome de sexo, mas também fome de dignidade, fome de identidade, fome de poder... (DARIO FO, 1982: 83)

Nada é obvio. Todas as coisas contêm sua complexidade. A ingenuidade do palhaço perante as situações não deve passar por inferioridade ou ignorância, mas o oposto. Com o desenvolvimento das ações o público percebe que a lógica do palhaço é elementar, simples, mas profunda. Há uma descoberta por parte do espectador de que as questões e trapalhadas que o palhaço faz podem ser feitas por qualquer um.

As proporções para o palhaço não são padrões. O tamanho das coisas é des-proporcional. Subir em uma cadeira, por exemplo, é um obstáculo quase intrans-

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ponível, só alcançado depois de inúmeras tentativas, quando, exemplo, usa sua mão para elevar a própria bunda. A altura, ao descer da cadeira, é tida como algo extremamente maior do que o é e são necessárias inúmeras preparações para que ele crie coragem e desça, sendo que normalmente ele se atrapalha e cai. A intenção demonstra dificuldade extrema, enquanto a execução é banal.

A personagem Macabéa, de Clarice Lispector, em A Hora da estrela, se apro-xima da ingenuidade do palhaço. A nordestina analfabeta, faz perguntas que são elementares, mas de extrema profundidade. A sua inadequação ao sistema9 a torna uma peça fora do lugar. Sem saber como lidar com a situação, as pessoas a excluem, humilham, acham-na ridícula.

Os pensamentos elementares da personagem aproximam-na da lógica do palhaço. Os seus poucos diálogos são sempre curtos, diretos e às vezes sem lógica alguma, como na última frase do trecho abaixo. A transcrição é de uma conversa de Macabéa e Olímpico, seu ”namorado”. Deve-se abstrair a questão emocional, a pobreza da personagem e a carência desta nordestina, para que não haja um compadecimento com seu problema social e sim uma leitura que se atém estritamente à semântica das palavras. Dessa forma, pode-se admitir o trecho como um esquete de palhaços, em que Ele é o Branco e Ela, o Augusto.

Ele- Pois é.

Ela- Pois é o quê?

Ele- Eu só disse pois é!

Ela- Mas “pois é” o quê?

Ele- Melhor mudar de conversa porque você não me entende.

Ela- Entender o que?

Ele- Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!

Ela- Falar então de quê?

Ele- por exemplo, de você.

Ela- Eu?!

(...)

Ela- Acho que não sei dizer.

Ele- Não sabe o quê?

Ela- Hein?

9. Macabéa é totalmente fora dos padrões da sociedade. “Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão _ os maus antecedentes de que falei” (LISPECTOR, Clarice. 1998: 28)

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Ele- Olhe, até estou suspirando de agonia. Vamos não falar em nada está bem?

Ela- Sim, está bem, como você quiser.

Ele- É, você não tem solução. Quanto a mim, de tanto me chamarem , eu virei eu. No sertão da Paraíba não há quem não saiba quem é Olímpico. E um dia o mundo todo vai saber de mim

Ela- É?

Ele- Pois se estou dizendo! Você não acredita?

Ela- Acredito sim, acredito, acredito, não quero lhe ofender. (...) Você sabe onde a gente pode comprar um buraco? (LISPECTOR, Clarice. 1998: 64,65)

Nos vários processos experimentados, com diferentes grupos, nesses três anos de pesquisa, verificou-se a existência de diferenciados comportamentos de atores, perante a dificuldade da linguagem. Cada ator traz consigo uma baga-gem de outras vivências, que pode ajudar ou atrapalhar no aprendizado.

A racionalidade e a inteligência são fatores que facilitam, já que o riso pres-supõe a razão. A rapidez de raciocínio ajuda na tomada de decisão, pois facilita a percepção e assimilação das respostas da platéia para readaptação do roteiro. (Ver cap. II). O riso é inteligente e o racional é imprescindível nesta arte, mas pode atrapalhar se for exageradamente crítico, a ponto de travar a espontanei-dade do ator.

Quando o racional é extremo, o ator não vivencia o palhaço, pois não conse-gue liberar seu ridículo, já que se auto-critica constantemente. Toma as decisões, mas tem insegurança de executá-las. O racional em excesso, além de trazer in-segurança para o artista, fazendo com que não apareça nem o palhaço, nem o ator, pode engessar as ações, numa tentativa racional de decorar movimentos, partituras e até textos, que se tornam marcação e raramente servem ao impro-viso.

É importante manter o racional ligado, mas na medida certa: o ator conduz o palhaço, como uma marionete, sem deixá-la cair. Há o racional que segura a personagem e é consciente das técnicas necessárias e há o impulso da persona-gem que tem a ver com a espontaneidade do palhaço.

A necessidade de psicologizar as ações, de explicar as causas e sentir as in-tenções antes da ação, dificultam o aprendizado. Mirabolantes construções psi-cológicas acabam travando e ralentando a improvisação. A tendência dramática gera necessidade da razão interior para motivação exterior.

Na comédia algumas coisas funcionam ou não funcionam para o público. Se o ator está carregado de necessidades psicológicas de entendimento, não con-seguirá ouvir do diretor: “-isso não funciona”. Precisará de explicações, de sen-

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sações, de motivações e aí, o trabalho não anda. O diretor é parte importante na criação da personagem e também nas outras etapas. Ele é o olhar externo, que diz quando o ator perde a relação com o espectador ou perde a espontaneidade.

Compor a personagem, assumindo um tipo, um corpo e uma voz, é funda-mental. Não se deve nem pensar em excesso, nem psicologizar demais. Uma saída é criar algum tipo cômico (antes de firmar o palhaço) que participa das situações10 . O ator sabe como o tipo reagiria a determinadas situações e isso faz com que tenha segurança pra resolvê-las, ajudando na assimilação das técnicas. No entanto, se não há um racional atento, as respostas se tornam repetitivas, pois sempre pautadas nas mesmas características do tipo, e o ritmo da cena vai se tornando mais dramático do que cômico, porque lento.

Não se firmam as técnicas se não é possível assimilá-las organicamente. Se há só o racional, quando o ator vai tropeçar em cena, pode ser que saia do palhaço e se concentre apenas na técnica, usando-a com tanta seriedade que ela se torna visível e a brincadeira se perde. Se o ator entra demais na persona-gem, quando vai dar o mesmo tropeção, está tão envolvido emocionalmente que deixa de lado as técnicas e se machuca de verdade. Os dois extremos não funcionam.

Da mesma forma que é necessário encontrar o equilíbrio entre a subjetivida-de do artista e a universalidade do arquétipo, é necessário equilibrar o racional e o emocional, para que o ator consiga controlar tecnicamente suas movimenta-ções em cena, porém sem perder a personalidade e a espontaneidade da perso-nagem. Esse equilíbrio, no entanto, pende mais para o lado do racional, que na comédia é mais importante. O emocional não é necessário a priori e seria mais um impulso, um estímulo, que pode auxiliar o ator.

hipótese: a ação do palhaço é resultado de um impulso (espontaneidade, libido, prazer, instinto) do palhaço, controlada pelo racional (sensatez, raciocí-nio, lucidez) do ator.

Todos os palhaços com que convivemos, sem exceção, são tomados por profunda emoção antes de entrar em cena. Se emocionam profundamen-te ao fazer uma platéia rir, e a exemplo dos palhaços observados nesta pesquisa, falam de seu trabalho com profunda emoção. No entanto, o jogo não é construído a partir da emoção. Mesmo o prazer pelo jogo cô-mico, por si, não é capaz de torná-lo efetivo. O jogo tem como ponto de partida as ações. Procuramos o que serve ao jogo cômico. O público ri. O público ri se o palhaço leva uma lata na cabeça, se ele cai, se ele chora. (...) se o palhaço nos inspirar piedade não riremos. O inverso também é válido: se assistirmos com indiferença a um drama, ele pode se transformar em uma comédia. (FUNCHAL, 2009: 29).

O diretor tem nesta etapa pontuações claras e objetivas: isso funciona, isso não funciona. Percebe o que faz rir e o que não faz. Não está preocupado em

10. As fichas de construção do palhaço caminham para essa primeira elaboração do tipo.

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ajudar com monólogos interiores ou com motivações internas. Cada ator deve encontrar seu palhaço, a partir do que funciona ou não. Ele pontua deficiências no corporal, como um andar que impede a boa movimentação, movimentos pe-quenos e que sujam a cena, movimentos fluidos e sem qualquer quebra, entre outros.

O mais importante é que o ator tenha senso crítico perante sua criação, for-ça de vontade para a disciplina diária e repetitiva de experimentação, criativida-de para improvisar e alegria para descontrair o ambiente que deve ser propício ao riso.

eXperiÊncias prÁticas: relatos e descobertas

Em seis dias de curso em Campinas, Leris Colombaioni11 ensinou diversas técnicas, códigos e repertórios da tradição italiana da palhaçaria clássica. O mais interessante, no entanto, foram as conversas descontraídas, após o treinamen-to, onde relatava acontecimentos de sua vida no circo, de sua família e imprevis-tos que lhe aconteceram em cena e fora de cena. Leris é um palhaço de família circense que desde os seis anos de idade trabalha no picadeiro com seu pai, Nani.

Numa dessas conversas, Abel Saavedra, do grupo Seres de Luz, contou que, nos dois meses em que atuou no Circo Ercolino12 , conheceu o filho de Leris, de apenas quatro anos. O menino chorava porque queria entrar em cena e quan-do não estava no picadeiro, corria, dando a volta por trás do circo, para assistir o pai, do alto da arquibancada. Era o pequeno que ajudava Abel no camarim, dizendo-lhe a roupa que deveria vestir, o que deveria dizer em cena e qual seu momento exato de entrada. Depois dos espetáculos, em volta da mesa do jan-tar, a família se reunia para avaliar o trabalho. Leris sempre iniciava perguntando primeiro o que o filho tinha achado e o menino prontamente descrevia e reen-cenava, cena a cena, todos os erros e acertos da noite. Só depois disso é que a conversa seguia.

O relato de Abel é importante para entender o quão essencial é a vivência no circo, sua rotina, suas aventuras, seu nomadismo, tudo isso traz repertório à improvisação no picadeiro.

O ator, na maioria das vezes, prefere a cena com o parceiro, pois esse ser-ve de apoio e esconderijo de suas dificuldades, sendo esta etapa individual de extrema dificuldade e constrangimento. Vivenciada algumas vezes nas turmas observadas, as experiências se repetem, no sentido de os atores, mesmo que inconscientemente, fugirem das improvisações individuais, se sentirem nus, sem ação. Esquecem da platéia, do público que é jogador.

Em uma das aulas de improvisação cômica, depois de dois meses trabalhan-

11. Oficina: Palhaçaria Clássica, no período de 7 a 12 de setembro de 2009, com carga de 18 horas aula, no Espaço Cultural Semente, Campinas/SP.12. Circo de Leris Colombaioni, localizado em Roma, que funciona somente nos dois meses de verão, sem lona. Há apenas um picadeiro e as cadeiras (aproximadamente 300 pagantes sentados e mais 200 não pagantes em pé).

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do apenas exercícios individuais (desequilíbrios, andares, fotografias), o pro-fessor pediu que a sala se dividisse em grupos e que esses grupos elaborassem exercícios para os demais, que resumissem o trabalho já vivenciado até então. Todos os grupos exploraram o coletivo, em exercícios relacionais (jogos da Viola Spolin, movimentos em coro, cenas coletivas) fugindo completamente da proposta pedida. Quando questionados sobre o porquê do acontecimento, a maioria disse ser inconsciente a mudança do individual para o coletivo, mas ao mesmo tempo reconheceram a dificuldade de estar só em cena, o medo de não ter com quem jogar e de ter a responsabilidade e a autonomia da cena em suas mãos.

hipótese: o jogo dilui o individual: quando se entra no jogo o individual se dilui e ninguém se explora.

Adriano - Tenho pouco repertório pra essa linha de trabalho. Pensei que poderia fazer sem trabalhar relação e não veio nada na cabeça.

Yvi - Realmente tenho medo de estar sozinha em cena, com o outro é mais fácil.

Isabela - No jogo algo necessariamente nasce.

Beatriz - Quando você está com o outro é mais fácil.

Além disso, as cenas coletivas e jogos realizados caíam quase sempre na lin-guagem realista, com histórias lineares, interpretações distantes da linguagem cômica e muito próximas das que os atores estão acostumados. É importante notar que determinados jogos induzem facilmente ao gesto cotidiano. O cômico busca o extra-cotidiano, o além do cotidiano.

Beatriz - Dificuldade da gente se olhar e de olhar o outro enquanto exploramos o ridículo.

mário - Quer uma dica? Goze de si mesmo.

Bia - comecei com o braço13, mas aí meu quadril e minha perna deram show.

Bruna - É muito rápido, não dá tempo de pensar, terminar.

daniele - aí caio sempre na mesma coisa, porque não dá tempo de pensar.

dani - Você vai me dar solução?

mario - Jamais! Solução quem dá é o presidente do Banco Central. Devemos explo-rar a expressividade de vocês atores, em relação à personagem. É como aprender um instrumento: se você vai aprender flauta, aprende 3 notas, faz música com as 3 notas, é isso. Na semana seguinte 4, depois 4 mais um e assim por diante.

13. Jogo: deslocamento no espaço (partes do corpo), em que o ator escolhe uma parte ridícula de seu corpo para guiar seu caminhar.

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Bruna - Gosto da primeira parte da aula14, mas sinto que na segunda parte, todo trabalho corporal se desespera. Quando quero fazer alguma coisa, me atrapa-lho.

mario - É que há uma distância entre intenção e gesto. Chico15 - é esse o dilema! E, ao mesmo tempo, você tem que criar a intenção passível de ser feita pelo seu corpo.

Outra experiência construtiva que se deu, no espaço do Circo no Instituto de Artes da UNESP, com a trupe Estrupiada16, ocorreu quando foi necessário lavar a lona. A dificuldade de todo processo mostrou quão árdua é a vivência do circo. Quão importante é o condicionamento físico, a superação do medo, a superação da dor. Lavar metros e metros de lona com pequenas esponjinhas transformou-se em metáfora de todo o processo até então percorrido. O percur-so lento e árduo, sem chegar ao palhaço tão pesquisado.

Parecia engraçado, mas a sensação de estar no circo, de fazer parte daquele lugar, de cuidar dele, lavá-lo etc. aproximava os atores da construção do palha-ço. Compreendeu-se que, no circo, o aprendizado se dá o tempo todo, na mora-dia precária, na disciplina diária, na vida nômade e cheia de imprevistos. Como se tudo isso desse estofo e repertório para quando se está no picadeiro.

da Busca pessOal aO cOnhecimentO acumuladO - história e conceitos:

O termo vem do italiano pagliaccio. Seus sinônimos são truão e bufão. O nome sur-giu não porque o artista aparecesse vestido de palha, mas com um tecido de saco de estopa que lembrava os sacos de se carregar e armazenar palha. (GUINSBURG e outros, 2006: 229)

Clown é uma palavra inglesa, cuja origem remonta ao século XVI, derivada de cloy-ne, cloine, clowne. Sua matriz etimológica reporta a colonus e clod, cujo sentido aproximado seria homem rústico do campo. Clod, ou clown, tinha também o senti-do de lout, homem desajeitado, grosseiro, e de boor, camponês, rústico. (BOLOG-NESI, 2003: 62)

O termo augusto tem sua raiz na língua alemã e foi utilizado pela primeira vez em 1869, em Berlim, quando Tom Belling, um cavaleiro, teve uma apresentação desas-trosa no picadeiro. O público, então, gritou: “Augusto!, Augusto!”. August, em dia-

14. A primeira parte da aula é o aquecimento corporal, o alongamento, as acrobacias. A segunda parte da aula é quando se trabalha as cenas, o jogos de improviso, os jogos individuais.15. Referência à música fado tropical de Chico Buarque de Holanda, nos versos: Se trago as mãos distantes do meu peito / É que há distância entre intenção e gesto.16. Trupe de seis atores: Pedro Bacellar, João Alves, Narahiana Neckis, Tatiane Ramos, Juliana Arapiraca e Natália Siufi, dirigida por Mário Fernando Bolognesi, em processo de montagem da peça: Ilha dos escravos, de Marrivaux.

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leto berlinense, designava as pessoas que se encontravam em situação ridícula, ou ainda aquelas que se faziam de ridículas. (BOLOGNESI, 2003: 73)

Clown, palhaço, vermelho, augusto, tony, excêntrico... Diversos nomes explicam o mesmo arquétipo. As etimologias diferem, mas as características se assemelham quanto às roupas desajustadas, à maquiagem exagerada e a conduta dentro de uma lógica muito singular, que põe caos à ordem vigente, dando espaço ao erro, ao grotesco e ao ridículo.

Historicamente, o clown sofreu diversas modificações. Bolognesi, em seu livro Palhaços, traça todo o percurso histórico, desde os primeiros cômicos, que tinham um desempenho exclusivamente físico, parodiando as montarias dos cavaleiros (no circo de Astley), até os palhaços da atualidade, que fazem seus esquetes e entradas e jogam com o público, utilizando as habilidades circenses junto ao uso das formas dialogadas.

Pode-se dizer que a concepção do clown moderno e circense é uma junção do clo-wn inglês, originado nos teatros de moralidades da segunda metade do séc. XVI, com os tipos da commedia dell’arte italiana, que também foram incorporados pela pantomima inglesa. (BOLOGNESI, 2003: 61)

Traçando um breve panorama de como surgiu o clown, deve-se citar o início do circo. O primeiro formato moderno de espetáculo circense surgiu com Phillip Astley (1742-1814), quando, num picadeiro de 13 metros de diâmetro, mesclou exercícios eqüestres com números de feira. O clown teria estreado no picadeiro como uma paródia do cavaleiro, montando de trás pra frente e caindo constan-temente do animal. O clown era uma caricatura do cavaleiro.

Um espetáculo baseado na disciplina militar e na valorização da destreza e do pe-rigo deixava a platéia muito tensa; era preciso criar um momento de relaxamento, provocar a quebra da tensão, deixando o espectador aliviado, preparando-o para as próximas emoções. E é aí que surge o palhaço de circo! (CASTRO, 2005: 54)

Portanto, os primeiros clowns tinham um desempenho exclusivamente físico e necessitavam de grande habilidade corporal para parodiar números de complexidade física, tendo que entender de montaria, doma de animais e acrobacias. Segundo Bolognesi, o clown circense, desde sempre, precisou ser ao mesmo tempo autor, mimo, dançarino, músico etc.

O clown se tornou ponto fundamental do circo, quebrando a monotonia que dominava a apresentação das habilidades, principalmente as eqüestres. As suas entradas eram sempre metalingüísticas, pois tratavam do próprio universo circense e, com isso o espetáculo podia oscilar entre os pólos do sublime (no desempenho dos acrobatas) e do grotesco (com os palhaços).

Quando a forma dialogada entrou no universo da palhaçaria, a partir de 1864 , houve um divisor de águas no circo. Bolognesi explica que a incorpo-ração das formas de manifestação cômica popular para o picadeiro, princi-

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palmente as dos mimos desempregados, ampliou as possibilidades dessa personagem, que ganhou espaço, agora em cenas curtas, não tratando ape-nas o universo circense: a linguagem oral incorporou-se à corporal.

O palhaço que se estudará aqui é o palhaço do circo moderno (a partir do séc. XIX), o palhaço pilhérico, brasileiro. A cultura popular do nosso país atribuiu novos elementos a essa figura, muito mais colorida, de maquiagem mais exagerada e com um repertório próprio, que agrega conteúdos regio-nais aos universais.

Os palhaços brasileiros da atualidade não têm mais as características externas dos primitivos clowns, embora tenham absorvido muitas das proezas por ele desenvol-vidas. (BOLOGNESI, 2003: 91)

a dupla – o princípio da oposição.

Quando se fala clowns, diz-se da dupla de palhaços: Clown Branco e Augus-to. Essas personagens cômicas circenses se definem em um pólo de oposição. O primeiro, de origem aristocrática, apresenta-se como a voz da ordem (e também da opressão). No segundo, o Augusto, tudo é exagero: as calças largas, o sapato enorme, a boca aumentada, o nariz vermelho. Um tipo bobo e ridículo e princi-palmente sem nenhuma intenção de produtividade e eficácia, ou seja, contrário aos moldes necessários a uma sociedade industrial em que se sobrevive pela venda da força de trabalho. O Augusto é o típico marginal, principalmente pela ineficácia e improdutividade.

Tudo no Augusto é exagero, as calças largas, o sapato enorme, a boca aumentada, o nariz vermelho. Um tipo bobo e ridículo e principalmente sem nenhuma intenção de produtividade e eficácia, ou seja, contrário aos moldes necessários a uma sociedade industrial em que se sobrevive pela venda da for-ça de trabalho. O Augusto é o típico marginal, principalmente pela ineficácia e improdutividade.

O sucesso do Augusto deve-se em parte a uma reação popular contra o estilo afe-tado e artificial que vinha sendo aplicado nas pantomimas acrobáticas, como uma espécie de protesto contra o meio elitizado e afetado dos circos do segundo impé-rio. É ele que introduz o risco da improvisação na atuação, arriscando jogos que não sabia se iam funcionar com o público ou não. (RÉMY, 2002: 83)

No jogo com o Clown Branco, símbolo da elegância, polidez e eficácia, ele sempre é o dominado. Esta dupla retrata, portanto, como já dito anteriormente, uma sociedade que é gerida pela luta de classes.

O Clown Branco, refinado, às vezes agressivo, outras melancólico, “tem como ca-racterística a boa educação, refletida na fineza dos gestos e a elegância nos trajes e movimentos. Mantém o rosto coberto por uma maquiagem branca, com poucos traços negros, geralmente evidenciando sobrancelhas, e os lábios totalmente ver-melhos. A cabeça é coberta por uma boina em forma de cone. A roupa traz muito

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brilho. O tipo, assim, recupera, no registro cômico, a elegância da tradição aristo-crática presente na formação do circo contemporâneo. (GUINSBURG, 2006, p. 85)

O Augusto tem suas raízes no camponês que não se adaptou à ordem bur-guesa industrial e está subjugado aos atributos do Branco. (BOLOGNESI, 2003: 57-90) O Augusto porta-se como a oposição ao refinamento do Branco e eviden-cia o ridículo. Seu figurino, maquiagem e maneiras de movimentar-se, eviden-ciam estas características de forma clara. .

“A principal característica física do Augusto é o nariz vermelho e o desajuste com sua vestimenta, quase sempre maior que o homem. A maquiagem, por sua vez, não cobre totalmente a face, tal como o Clown Branco, mas procura realçar partes do corpo, a partir das cores básicas primárias, Branco, preto e vermelho. O seu perfil enfatiza a estupidez, o indelicado, o rude, retomando, assim, a original característi-ca do clown, o camponês rústico que não se enquadra na ordem urbana.” (GUINS-BURG, 2006, p. 46)

A dupla inicial cedeu lugar a um trio (um Branco e dois Augustos) ou até a um quarteto. Os Augustos brigam o tempo todo entre si, sofrendo repreensões por parte do Branco, que se aproveita da disputa para fazer os dois ainda mais de bobos. No circo brasileiro da atualidade é raro encontrar algum Clown Bran-co, talvez porque a figura trajada de lanteloujas, elegante e aristocrática não se encaixe em nossas referências culturais. Dessa forma, na maioria das vezes, os jogos se dão entre Augustos, sendo que um sempre faz escada ou partner do outro.

Mesmo assim, a função do Branco não foi extinta, mas assimilada e absorvi-da pelo Mestre de Pista, que sempre exerceu a função de trazer lógica e lucidez às entradas dos clowns, desde o circo de Astley

trajada de lanteloujas, elegante e aristocrática, não se encaixe em nossas referências culturais. Dessa forma, na maioria das vezes, os jogos se dão entre dois augustos, sendo que um sempre faz escada ou partner17 para o outro.

Mesmo assim, a função do Branco não foi extinta, mas assimilada e absor-vida pelo Mestre de Pista, que sempre exerceu essa função de trazer lógica e lucidez às entradas do clown, desde o circo de Astley.

O Mestre de Pista, originalmente, era o domador e o diretor dos números eqües-tres. Em virtude do predomínio do cavalo no espetáculo circense, ele terminou as-sumindo também as funções de mestre de cerimônias, hoje chamado de apresen-tador. O mestre de pista também participava das entradas circenses, quase sempre trazendo a lucidez à cena, característica ausente no palhaço. Antes mesmo de se fi-xar à dupla cômica, o mestre de pista se transformou em uma espécie de soberano do clown. A sua origem induziu o uso de uma indumentária marcada pelo uniforme dos militares. (BOLOGNESI, 2003: 68)

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eXperiÊncias prÁticas: Relatos e descobertas

Houve a etapa de experimentação da teatralidade clownesca em entradas e reprises, realizada em dupla: Juliana – Branco; Natália – Augusto. Essa etapa estendeu-se por toda pesquisa: no primeiro ano de aulas com o Mario Bolognesi; na Trupe Estrupiada, com Zumbá e Daslu; na montagem da peça Trapo e Farra-po; nas saídas para a rua, com os palhaços Palito e Geléia; na Oficina de Palhaços do Circo da Barra; nos ensaios constantes, paralelos à pesquisa.

A dupla fez um levantamento dos esquetes do livro Palhaços, de Mario Bolognesi. Depois, veio a experimentação. Os esquetes eram exaustivamente ensaiados e no momento da apresentação tudo dava errado porque a ence-nação estava presa ao roteiro. O medo de fugir do esquema imperava e, após as apresentações, era inevitável a discussão em torno de quem tinha errado e onde.

Enquanto uma era mais rápida no raciocínio, a outra era mais rápida na construção do palhaço (corpo, voz, personalidade). Isso gerava muitas compli-cações, pois uma não se adaptava ao jeito da outra. Com o tempo, as energias se equilibraram e o jogo aconteceu. O jeito era ceder, ser generoso com o parceiro e não só criar, mas aceitar a criação que chega do outro. Abaixo, uma transcrição de uma conversa com o professor Mario, em que Juliana expõe seu processo.

- Juliana: Inicialmente, a minha dificuldade era entender a lógica do Branco, que arquiteta e arma as situações sem finalizá-las. Essa função de finalizar, quem exerce é o Augusto. Passei por dificuldades até entender que a graça só acontece quando a dupla está trabalhando conjuntamente. De nada adiantava, em alguns momen-tos, eu me desesperar em cena e tomar o foco, por sentir que a minha parceira não estava segurando o ritmo. A piada não acontecia, já que a graça acontece quando um começa e o outro finaliza. esse é o sentido da dupla: parceria e cumplicidade.

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caPÍtulo ii

rePertÓrio:(imProvisação e triangulação)

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“o espetáculo de circo-teatro tem uma finalidade imediata: ele não é feito para ser avaliado pelos entendidos ou pelos críticos em colunas especializadas, nem para ser comentado nas mesas dos bares da moda, nem para ir figurar nos anais da histó-ria do espetáculo. Não: ele é feito para agradar o público, para que este volte no dia seguinte e compre seu ingresso na bilheteria para possibilitar ao artista a compra da comida no dia seguinte. (SOFFREDINI, 1980)

O cômico popular tem a malícia e a esperteza daquele que vive na rua, traba-lhando hoje para comprar o almoço de amanhã. O espetáculo é o seu ganha-pão. Mais do que uma obra artística ou uma expressão de sua necessidade de comu-nicação, o fazer artístico representa sua forma de sustento. Neide Veneziano explica que desde sempre foi assim:

A gente não tem que se iludir (...) a commedia dell´arte era comercial sim, eram pessoas que passavam fome e precisavam fazer teatro para ganhar dinheiro, então eles teriam que agradar a platéia a que preço fosse. (Neide Veneziano)

Essa idéia de agradar o público, de ter que prender a atenção da platéia, é fundamental para entender a concepção do roteiro, da improvisação e da técnica de triangulação. Talvez essa necessidade de que público esteja lá, seja o principal motivo pelo qual a linguagem cômica popular abrange todos es-ses elementos. Além disso, a platéia não está numa caixa, frontalmente em relação ao ator. Essa linguagem é a do picadeiro, da rua, da semi-arena e isso também pede estes elementos específicos.

Existe, portanto, atrás da forma – universo sonoro/visual/ações físicas – uma IN-TENÇÃO VITAL de MANTER A RELAÇÃO COM O PÚBLICO. (BRITO, Rubens. 2004 : 180).

Entender antes das técnicas o porquê das técnicas. A linguagem cômica e principalmente a cômica popular prioriza a interação e o contato com o seu público. Os espectadores são o que mais importam em cena. O roteiro se mo-difica a partir do espectador, o improviso se dá em função dele, a triangulação tem como base o espectador.

Depois de entender a personagem e o porquê dela existir, suas funções, suas características, sua história... É hora de entender o “pra quem?”. A rela-ção do palhaço com os seus espectadores e seus parceiros de cena. A relação do ator em jogo com tudo que está a sua volta. É importante que, até aqui, a personagem já tenha ao menos alguma base de construção, para que o ator possa, a partir dela, se relacionar com o todo.

Essa etapa consiste no aprendizado das técnicas e dos elementos essen-ciais da linguagem: personagem, roteiro, triangulação e improvisação. Aqui, o ator deve se ater à parte teórica também. Há diversos estudos sobre o riso18 e sobre situações que funcionam ou não na comédia popular. Para que o ator chegue ao ponto de criar suas gags, improvisar em cena, ter a segurança de

18. Ver autores; Mikhail Baktin, Bérgson, Dario Fo..

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mudar a situação e criar outra, é necessário que antes passe pelo repertório já conhecido e entenda os mecanismos que são funcionais na linguagem.

Os jogos de triangulação e improvisação tentam dar conta desse reper-tório, mas é fundamental que o ator assista espetáculos circenses, conheça a história de grandes palhaços, pesquise e leia sobre esquetes, entradas e repri-ses já catalogados19, enfim, que acrescente referências ao seu repertório e vá criando seu próprio arsenal de improviso, com as situações que melhor cabem à sua personagem.

RoTEIRo

O repertório circense existe há mais de um século. Ele serve de base para as improvisações. São simples e funcionam - e nisso há muita sofisticação. Piadas, gags, ações que fazem rir, reunidas em esquetes, entradas ou reprises, sempre se ressignificam a partir de cada palhaço, porque fundamentalmente dependem do público a quem se fala.

É importante entender, antes de ler ou fazer, o que são cada um dos três tipos de cenas de palhaço, citados acima. Os esquetes não são exclusividade do circo e são usados pelos cômicos em geral.

Cenas curtas, cômicas em geral, que podem ser agrupadas, perfazendo um espe-táculo inteiro, ou ser inseridas num espetáculo de variedades. Muito comuns no velho teatro de revista, os esquetes também fizeram sucesso em programas humo-rísticos no rádio. Atualmente, é na televisão que são mais aproveitados, embora o teatro não os tenha descartado por completo, como comprovam as comédias dos autores ligados ao gênero besteirol.” (GUINSBURG. 2006: 136)

As reprises são utilizadas no espetáculo circense para preencher os espaços cênicos entre uma atração e outra. Normalmente, são paródias mímicas das pró-prias atrações, bem mais curtas que as entradas.

“Quando os artistas saltimbancos foram incorporados ao espetáculo circense, o clown estendeu as possibilidades das paródias às novas atrações, como prestidigi-tação, atiradores de faca, acrobacias etc. Assim, predominante, as reprises se ca-racterizam por ser uma pantomima em tom de paródia, das atrações circenses.” (GUINSBURG. 2006: 268)

Entradas são improvisações feitas pelos palhaços (Augusto e Branco) que se dão entre as atrações circenses ou no início para recepcionar o público. A entrada tomou forma na segunda metade do século XIX, devido à liberação do monopólio dos teatros e do diálogo para todos os palcos franceses e à se-dimentação da oposição entre o Branco, elegante, e o Augusto, desajeitado.

Do lat. intrãre, <<penetrar em, entrar; comparecer; ultrapassar, penetrando em;

19. O Livro: Palhaços, de Mário Bolognesi, possui mais de 150 esquetes, retirados de uma pesquisa de campo por circos espalhados pelo Brasil.

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atacar>> (MACHADO. 1968: 98)

“Nas entradas, de modo geral, o clown antecipa ao público a realização de uma tarefa extraordinária, ou então se propõe a narrar uma estória fantástica. O seu intento é continuamente perturbado pelo Augusto, que surge como desorgani-zador dos planos do Clown Branco. Dada a agilidade do espetáculo de circo, as entradas tomaram a forma de uma comédia curta, com diálogos reduzidos ao mínimo indispensável, cuja realização depende da capacidade criativa e de impro-visação dos palhaços” (GUINSBURG. 2006: 136)

Segundo Bolognesi, normalmente as reprises são mais curtas, se compara-das com as entradas, essas se assemelham aos canovacci da commedia dell´arte e trazem os roteiros resumidos das intrigas, estabelecendo os principais mo-mentos cômicos dos jogos de cena... ponto de referência para a improvisação. Se a forma de preservação da comédia italiana foram principalmente os roteiros, a forma circense foi a transmissão oral do repertório.

Sendo uma arte de transmissão oral, poucos são os registros escritos de repertórios cômicos20. Dessa maneira, o ator que busca o contato com esse tipo de tradição tão particular deve desdobrar-se para buscar o maior número de referências possíveis, principalmente em pesquisas de campo.

O repertório da tradição do circo é elemento chave para construção de um bom roteiro, criação que está diretamente associada ao tempo de experiência e à intensidade de contato do intérprete com a linguagem cômica. Assim, o tempo de picadeiro do palhaço é o seu maior aprendizado, que possibilita a construção de um vasto repertório, sendo o roteiro nada mais do que uma pequena organi-zação desse repertório para alguma apresentação específica.

a ausência de uma seqüência fixa pré-determinada caracteriza o número de pa-lhaço. há pequenas sequências prontas, ou gags, que podem ser repetidas de ma-neira idêntica a cada espetáculo. elas são como núcleos dramatúrgicos, restritos a uma pequena porção do todo, cujo ritmo e posição na cena também é variável. (Burnier, 2001: 89)

a criação do roteiro é algo que se aperfeiçoa e se entende conforme o aprendizado das técnicas, que com o tempo ficam orgânicas. Os primeiros ro-teiros de atores iniciantes são muito detalhados e cheios de ações, pois mesmo entendendo a teoria de que um roteiro é apenas um norte, um caminho, o ator escreve tudo o que poderá fazer em cena, ainda com receio da improvisação.

Roteiro (ator iniciante): Palhaço entra, escorrega, senta no chão, levanta. O outro entra e pede pra passar, mas o primeiro não deixa. O palhaço vê uma mulher da platéia e tenta cantá-la, depois volta à cena. Ele dá um tapa no outro, que está impedindo a passagem. Quando este vai revidar, ele abaixa. O palhaço senta e lê seu jornal.

20. O Livro: palhaços, de Mário Bolognesi possui mais de 150 esquetes, retirados de uma pesquisa de campo por todos os circos do Brasil.

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Nota-se que toda a seqüência de ações é roteirizada e, assim, resta pouca margem para a improvisação. Mesmo as partes que são tidas como desvio do roteiro, quando o palhaço sai do enredo para ir à platéia, estão como parte do esquema. Até o escorregão do palhaço está anotado, o que é típico de atores que ainda não estão adaptados com a improvisação e transformam o esquete em uma cena marcada e desenhada onde, independente da platéia, o enredo ensaiado acontece.

na medida em que se entende que esse engessamento das ações do roteiro só dificulta o jogo, o ator começa a escrever o roteiro mais sucinto, apenas com a situação essencial e que mesmo sendo essencial pode sofrer modificações. O ator percebe que não é apenas o roteiro que traz o riso, entende que o enredo ou o assunto não são fundamentais, a improvisação sim. Partindo dessa lógica, o mesmo roteiro, elaborado por um ator com mais experiência seria:

Roteiro: Esquete cadeira e jornal.

Esse roteiro representa a mesma seqüência do anterior. O ator lê: esquete cadeira e jornal e já sabe o desenrolar das ações. O mais importante, no entanto, não é que elas aconteçam, mas sim que sejam uma estrutura principal para os desvios e novas ações que serão improvisados. O mais relevante é a improvisa-ção, a forma como se dão os desvios do roteiro é o que identifica cada palhaço, pois tem a ver com a subjetividade da personagem.

Sendo o roteiro um esboço não necessariamente linear e constantemente modificado, a sintonia e o jogo entre os palhaços precisam ser treinados, para não haver vários focos ao mesmo tempo, o que “suja” a cena. Entre cochichos, os palhaços se comunicam durante a cena, facilitando o jogo. Se um dos palha-ços modifica o roteiro, o outro deve comprar a idéia e dar imediatamente foco à nova situação. só funciona se ambos puxarem o foco pra nova situação. a cumplicidade é imprescindível.

No jogo cômico tudo é elemento de jogo. Mesmo que se crie o roteiro mais engraçado e bem escrito, se os atores, ainda acostumados à visão realista, fica-rem presos a ele com medo do erro ou do esquecimento, a cena não acontece, pois o engessamento das ações ou sua execução em tempo dramático e ralen-tado dificultam o riso.

Qualquer situação inesperada pode ser assimilada como nova situação cômica e, portanto, não há a preocupação com o erro. O “erro” ou desvio é positivo para o roteiro se os palhaços souberem transformá-lo em jogo. A preo-cupação deve ser anterior, na assimilação das técnicas e na limpeza dos gestos.

Quando você domina, você brinca. Da bunda que balançou, da barriga caindo. Uma coisa deu errada no enredo, tudo dá sopa. Se te derem limão, bela limonada. Tudo tem que dar. (Mário Bolognesi 21).

21. Anotação das aulas de Improvisação cômica, da turma de 2009, no Instituto de Artes, UNESP.

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Já em uma cena realista tem-se certa linearidade dentro de uma dramatur-gia fechada e o esquecimento do texto ou a fuga da história são tidos como erro e deixam o ator, muitas vezes, sem saber o que fazer. Quantas vezes os atores não se perdem por ter esquecido uma fala, ou por algo que aconteceu: um anel que cai no chão, um tropeço inesperado etc.? Talvez, tendo passado pela forma-ção cômica, o ator tenha mais facilidade em retornar à dramaturgia, aproveitan-do esses desvios para enriquecer a cena.

hipótese: o treinamento cômico é excelente bagagem mesmo ao ator dramático, já que a rapidez de raciocínio e a atenção constante em cena são imprescindíveis em ambas as linguagens. O ator deve desenvolver o trabalho de pensar em cena, de ter o racional ligado e ativo para resolver qualquer impre-visto, ou, no caso da comédia, aproveitar qualquer imprevisto.

Quanto ao conteúdo: não há conflito, história ou temática muito desenvol-vida ou aprofundada. A comédia trabalha com os temas relacionados ao instinto humano como sexo, comida etc. o comediante não pode ter pudor ou moral.

Existe um aspecto de crueldade do humor que não é a idéia de bondade e maldade que a gente pode ter na nossa formação judaico-cristã, de culpa e perdão, que a gente carrega. A crueldade é ver o mundo de maneira crua, crua e crua. (HUGO POSSOLO).

Os desvios estão sempre relacionados aos instintos primitivos, às necessi-dades, vontades e desejos da personagem, que não devem ser psicológicos ou elaborados, mas simples, ligados à temática popular. Quando um palhaço foge do roteiro e olha pro seio da outra personagem, isso traz um recheio pra cena, serve de desvio: pode-se mudar a cena completamente ou ela pode voltar ao roteiro depois.

Se há o desejo, ele é corporal e físico, mas não emocional. O desejo nun-ca é pela pessoa, mas pela bunda, pelo seio etc. Os instintos primitivos do ho-mem são resgatados, a sua proximidade com a natureza, com o simples, antes da sociedade das máquinas, antes das lutas políticas, antes das filosofias e das ciências, o resgate do instinto do homem, independente das classes, raças ou ideologias.

Que são os conflitos e os desejos mais fáceis e compreensíveis e mais fáceis de serem compreendidos por alguém, todo mundo tem, é tudo igual. Então ela acaba sendo muito democrática, porque ela não está falando só para uma classe (NEIDE VENEZIANO).

O riso é inteligente. Já dissemos que só ri de algo quem entende a piada, quem tem um referencial e arcabouço anterior para ler o signo colocado em cena.

“O Riso não tem maior inimigo que a emoção (...) Numa sociedade de puras inteli-gências provavelmente não mais se choraria, mas talvez ainda se risse.” (BERGSON, 2007:3)

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Portanto, o palhaço atenta ao que pode ser legível pelo referencial de cada público, além dos conteúdos universais. Quanto maior entendimento do assun-to a platéia tiver, mais estará apta ao riso. O palhaço chega na cidade e procura os nomes de políticos, de lugares, de acontecimentos recentes, elementos que, quando utilizados, terão fácil leitura e entendimento.

Na commedia dell’arte (...) eles chegavam em cada cidade e se preocupavam em saber quem é o dominador da cidade, quem era o governador, quais eram os pro-blemas, se existe gente muito rica ou gente muito pobre, quem é que nós vamos atacar. Isso era muito importante para incorporar no enredo e procuravam incor-porar de uma forma improvisada, mas é um improviso que não é o improviso que a gente conhece, era um improviso estudado já (...) (Neide VENEZIANO)

No início, a tendência dos atores é cair no realismo. A história de início meio e fim, a idéia de naturalizar o gesto, de compor um enredo engraçado, de que o texto traga o humor. Há um receio em tratar desses assuntos grotescos e esca-tológicos. Nas primeiras improvisações é comum o ator suavizar e amenizar os conteúdos.

A história pode até conter certa linearidade, como é o caso dos espetáculos de circo-teatro brasileiros, mas o palhaço atrapalha a linha da estória, fragmenta a cena, sai da dramaturgia. É muito diferente das comédias de texto, como em Molière. O texto não é o mais importante e sim o jogo.

Não adianta pegar essas altas comédias, essas comédias elevadas, cheias de si-tuações arquiteturadas pra ser engraçadas e colocar um comediante popular ali, porque ele vai escapar daquilo ali e vai propor coisas a mais, ele vai querer subverter aquilo, esse ímpeto mais subversivo que tem no comediante popular, no palhaço, é o que me interessa, é o que possibilita uma visão critica. (Hugo Possolo)

O palhaço brinca com a platéia, zomba dela, ele finge o tempo todo. Às ve-zes faz coisas absurdas, sem o menor sentido lógico. Ele brinca com a realidade e a veracidade das situações. Re-configura as proporções, os planos, as sensa-ções. A altura de uma cadeira pode ser vista como a altura de um prédio.

“A comedia tem potencialmente o exercício profundo da mentira pra expor algum tipo de verdade, então filosoficamente a comedia tem uma função social fortíssima, na medida em que ela expõe algumas das nossas incapacidades humanas de nos relacionarmos plenamente no sentido mais profundo da existência (Hugo Possolo)

O ator cômico desconhece uma curva de ação, um clímax ou conceitos es-senciais para o acontecimento teatral. No entanto há inúmeros conceitos embu-tidos no jogo com a platéia e adquiridos na experiência do picadeiro que não po-dem ser desconsiderados. Seria necessário muito estudo para uma catalogação completa de todos os mecanismos e artifícios dessa arte.

Durante muito tempo, o cômico popular foi o seu próprio dramaturgo, mesmo você pensando que poderia haver um roteiro, poderia haver convenções, ele sabe muito

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bem o que é uma situação, ele sabe muito bem o que é o desfecho, sabe muito bem o que é um clímax. Então, independente da própria dramaturgia do corpo, independente do que a gente chama hoje de dramaturgia do ator, existe também uma consciência do percurso. Existe de como levar a platéia. (Neide Veneziano)

conclui-se que o riso vem do jogo e não do texto. O jogo se dá com a platéia. a platéia é parte da improvisação, parte fundante e de extrema importância.

eXperiÊncias prÁticas: relatos e descobertas

Uma das experiências das mais ricas no aprendizado de esquetes deu-se com a trupe Estrupiada, quando da visita do palhaço Biriba, em uma das ofici-nas realizadas. Estava de passagem, sem maquiagem e nem vestimenta, com seu parceiro. A pedido nosso, eles fizeram um esquete e nos explicaram sua dinâmica de trabalho. Foi engraçado perceber a facilidade com que ele faz o palhaço. Ele pára e fala conosco e em segundos volta ao palhaço e sem precisar de nenhum acessório de figurino ou maquiagem, prova de que o palhaço não necessita de um ritual, de uma psicologização para acontecer. Quando seguro e já criado, ele simplesmente está ali, dentro de determinada situação.

O esquete tem um pequeno texto, que o parceiro fala corretamente, e ter-mina com uma pegadinha, quando o enganado (Augusto) toma um tapa. Na continuação, o Augusto tenta enganar alguém com a mesma fala e se confunde todo, encrencando –se outra vez. O texto correto é:

Estava na Rua Marechal Floriano Peixoto, encostado num poste, fumando charu-to, lendo jornal. Chegou a mulher. Toc toc toc. Entrou na cristaleria. Passou um cachorro. Vários meninos correndo, comendo banana e jogando a casca no chão. Ela saiu cheia de pacotes tampando-lhe a visão. Pisou na banana, escorregou. Eu, cavalheiresco, pus um pacote, 2, 3 , 4 pacotes. A carteira. Devolvi tudo e ela es-pantada com tamanha cavalheirice me deu um presente, mas não serviu. Você quer? 1, 2, 3. (tapa).

Biriba diz que prefere - pois já se acostumou assim - trabalhar sempre com o Branco a sua esquerda. Falou sobre o ritmo de cena, que tem que ser rápido para não se perder a piada. Demonstra uma quebra simples e eficiente. Na volta de uma das tentativas do Augusto de enganar alguém, ele apanha e vai reclamar ao Branco que o interroga:

Branco - o que você fez?

Biriba - (Chorando) Eu abaixei!

Branco - E quando levantou?

Biriba - (quebra total do choro) Ele me bateu!

Aqui ele explica que se não houver a quebra no lugar certo e a rapidez da res-posta, a piada se perde. A triangulação e o tempo são fundamentais: o palhaço

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não responde para o Branco, mas para platéia. A graça do esquete está no texto que é todo embaralhado pelo Augusto. Biriba explica que os trocadilhos devem ser corrigidos, mas nunca explicados pelo Branco:

Augusto - Entrou na cristaleira.

Branco - Cristaleria!

Ele nunca explica: na cristaleira tem cristais, mas apenas corrige: cristaleria. É o Branco quem dá ritmo à cena. O Augusto sempre enrola e o Branco puxa o ritmo pra cima. Se o Branco ficar explicando ou psicologizando as situações, a cena perde seu tempo. Ele explica que o palhaço precisa estar sempre ligado, estar sempre atento à platéia, para não perder nenhuma piada. O palhaço deve ser bobo, mas ele também é esperto, deve ser enganado, mas ao mesmo tempo brincar com esta situação com a platéia, com o fato de estar sendo enganado.

Outros esclarecimentos importantes sobre roteiro e improvisação se deram nas conversas com a turma do ano de 2009 em improvisação. Numa delas, sobre a dificuldade de fazer um roteiro, a aluna Bia insiste na questão do conteúdo dos esquetes:

Bia - Mas pra escolher a ação, eu preciso de um problema. Não sei o que fazer em cena.

mario - Esquece o problema, uma velha pisa numa coxinha, tem problema? não! tem cena! Quando você coloca problema na cena cômica, você a limita. Piada tem problema? Não! É uma seqüência de pequenas unidades psíquicas que vão se so-mando e o engraçado não é o roteiro, são os desvios.

a imprOvisaçãO

Improvisação é repertório. A idéia de que improvisar é inventar e criar si-tuações na hora, é infundada. Improvisar é tirar as cartas da manga e na hora certa, mas é preciso ter antes as cartas. O palhaço já deve possuir um razoável repertório de gags, de truques e de técnicas. A arte está em saber utilizá-las no momento ideal e com o público certo.

As personagens já têm o seu arsenal, como no jazz em que você conhece muito bem as músicas, as notas musicais, escalas, conhece muito bem o seu instrumento, então está muito bem dominado o instrumento corpo (...) o instrumento piada, o instrumento chistes, um outro instrumental que é o verbal, (...) o jogo é outro ins-trumento muito bem dominado (...) (Neide Veneziano)

A personagem é fundamental na escolha do repertório. Há diversos tipos de gags a serem apropriadas e re-criadas pelo próprio artista. A escolha desse repertório depende da personalidade subjetiva, individual do palhaço. O ator, até chegar ao ponto de improvisar realmente, de ter seu repertório próprio para conseguir improvisar, deve estudar e observar muitos repertórios de outros pa-lhaços e muitos elementos que já são tidos como certos.

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Tem o humor de situação. Tem o duplo sentido, que é verbal, enfim, está tudo enu-merado. No próprio Prop, Bérgson (...) fala do contraste: você põe duas baixinhas, depois duas baixinhas e uma alta, as semelhanças, a hipérbole, todos os procedi-mentos derrisórios, tudo que pode provocar risos, já está tudo catalogado, é só ti-rar da gaveta e ver. (...) vários procedimentos que a gente fala: pacto com a platéia, improviso, duplo sentido, sotaques (...) e pela brincadeira, pela deformação dos bufões (...) (Neide Veneziano)

Para improvisar o ator deve primeiro criar uma sintonia e uma afinidade de tempo, de jogo, com os seus parceiros de cena. É importante que os atores se dividam em pequenos núcleos nessa etapa, para que haja maior praticidade na criação das cenas, dos esquetes, dos roteiros. O princípio da oposição deve ser levado em conta: o gordo com o magro, o alto com o baixo, o palhaço que é mais Augusto, com aquele que é mais Branco. Aquele que é mais bobo, mais ingênuo, deve se juntar com o outro que é mais esperto, que arquiteta melhor as situações.

Quando se lê os esquetes de palhaços de picadeiro ou algumas gags, não se deve iludir. O riso não vem apenas da piada que é boa ou do roteiro que é bem escrito. É claro que o repertório popular já existente, trazido pela tradição oral, contém em si diversos elementos que ajudam na eficácia do jogo cômico.

Nossa hipótese aponta para o fato de que se o ator utiliza o acervo de gestos “herda-dos” da tradição, se aprende gags tradicionais, ele tem mais chances de estabelecer um jogo cômico efetivo. (FUNCHAL, Cláudia. 2009: 7)

Porém, você pode pegar a gag de algum palhaço e fazer o mesmo texto, a mesma piada e mesmo assim ninguém rir. a principal maneira de fazer rir é sa-ber jogar com o tempo cômico. A preparação de uma gag é o mais importante.

Há uma gradação de tempo que deve ser seguida. Ou do lento para o rápido ou do rápido para o lento. Deve-se criar a idéia, criar a imagem, a situação que está por vir, de forma gradativa. Para o esclarecimento desse item, vamos tomar como exemplo um pequeno esquete feito por Leris Colombaioni:

Branco - Quero água.

augusto (leris) - Sim! (tropeça no meio do caminho e continua, pega água e traz ao branco)

Branco - Com limão!

Augusto - Sim! (tropeça no mesmo lugar e traz o limão)

Branco - Com gelo!

Augusto - Sim! (tropeça no mesmo lugar e traz o gelo)

Branco - Está muito gelada, agora põe mais água.

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Augusto - Sim! (passa pelo ponto e não tropeça, estranha a situação, dá um passo pra trás, tropeça por querer e aí sim continua).

E Não adianta apenas executar o texto e as indicações. O fundamental neste esquete e em todos os esquetes cômicos é o tempo cômico que o co-mediante dá. Leris mostra o esquete duas vezes, uma fazendo e a outra ex-plicando o tempo. Da primeira vez que tropeça, pára assustado, olha para o público confuso durante algum tempo. Da segunda, pára também, mas um pouco mais rápido, olha para a platéia mais rápido, até que no terceiro trope-ção, nem liga, fazendo apenas um pequeno e rápido gesto, como quem diz não estar nem aí e nem triangulando com a platéia.

Isso tudo para que na última vez, quando não tropeça, olhe de novo para platéia, com o tempo do primeiro tropeção, lento e assustado. Toda a gra-dação de tempo, do lento para o rápido vai fazendo a platéia achar que ele sempre tropeçará naquele ponto, e o fato de não tropeçar da quarta vez traz a graça pois é inesperado. É inesperado pois foi feito no tempo certo, com o ritmo, a gradação, a dinâmica toda que levou a platéia até aquele ponto.

Parece que o mais importante é a segurança e a tranqüilidade do ator, para não deixar que a ansiedade atropele o tempo das coisas. O ator insegu-ro, quer fazer logo o final da situação, contar logo o final da piada pra ver a platéia rir, e aí perde as melhores oportunidades.

Para um ator ou palhaço inexperiente, é difícil dar espaço para as pausas, para o silêncio, para o tempo suspenso em cena. O palhaço pode começar a jogar várias piadas, uma atrás da outra pra tentar fazer o espectador rir, mas se não preparar com calma e tranqüilidade a piada inteira, ela não faz efeito. O que é mais engraçado não é o desvio sozinho, mas como o palhaço desvia a ação. Primeiro é preciso fazer o espectador chegar no ponto exato, fazer ele pensar que algo vai acontecer, para que assim o inesperado traga o riso.

O inesperado vem de inúmeras formas, pelo tempo, pelo texto, pelo cor-po, pela inversão, pela repetição etc. O ator descobre aos poucos as formas mais eficientes de se conseguir a atenção da platéia. E se o improviso depende da platéia, é importante buscar elementos que a platéia conheça. Nomes da região, de pessoas, de lugares, conhecidos só por aquele público e que trazem os códigos possíveis de serem lidos por eles. O riso é inteligente: só se ri de alguma piada se ela for compreendida.

prender-se a determinada partitura construída ou ensaiada só prejudica a improvisação. Vários são os momentos em que se prende ao texto já impro-visado, quase que o transformando numa dramaturgia fechada. Engessa-se as ações que tiveram sucesso com o público, o que as tornam cada vez mais sem-graça, pois estão endurecidas, mortas, sem a energia e o tempo necessários para envolver a platéia.

Outra coisa importante é não criar historinhas. O ator, às vezes, necessi-

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ta de alguma linearidade, de ações que tenham sentido. Então não consegue fragmentar ou desassociar ações seguidas. Exemplo claro é quando se toma um tapa em cena. Acostumado a justificativas e reações coerentes, o ator fica com a lembrança do tapa e na primeira oportunidade revida, ou então, parte para a próxima situação carregando a dor do tapa, propositadamente. deve-se enten-der que o palhaço que toma um tapa, olha para o lado e esquece do tapa que tomou: não há interiorização22.

Da mesma maneira, o ator tem que estar muito presente e vivo em cena para quebrar a personagem, comentar as futuras ações com o público e voltar para a personagem (que é sempre manipulada pelo ator). A quebra possibilita este “esquecimento” das ações anteriores. É como se o ator parasse de fazer o palhaço, comentasse a cena com os espectadores, e voltasse a jogar. O palhaço zomba de si mesmo, ao mesmo tempo em que zomba dos outros.

O ator que está acostumado a buscar mecanismos psicológicos sente mais dificuldade, pois a improvisação, aqui, não surge apenas de uma personagem bem construída ou preenchida psicologicamente, mas de um ator racional, cien-te das técnicas, do ritmo, da platéia, que percebe o que funciona ou não e rea-dapta sua ação o tempo todo.

A orientação externa é fundamental, principalmente para puxar o ator o tempo todo para fora do personagem. O ator deve estar sempre manipulando o palhaço, com toda sua técnica e racionalidade e o orientador tem esta função primordial de não deixar o ator psicologizar demais a situação. A presença do diretor é fundamental também para pontuar o ritmo de cena, muitas vezes com palmas ou com comandos diversos. O condutor percebe se aquilo está chegan-do ou não à platéia. Como não há platéia, pois os ensaios não são abertos, sem sua presença é muito fácil cair em piadas internas ou ações repetitivas, sem en-tender o que dá certo ou não.

Mudam as referências se o público é outro, mas o esquema de improvisação é o mesmo. Segundo Cláudia Funchal, o público não participa da elaboração do roteiro, mas da sua seleção, e o procedimento de seleção, que é um dos aspec-tos da improvisação, é sempre o mesmo. O palhaço age e percebe as reações da platéia, para que possa escolher as novas ações antes de agir novamente. Essa decisão é que precisa ser treinada, pois o palhaço não pode titubear nas escolhas em cena.

Improvisar é sobretudo um processo rápido de tomada de decisão. Em um brevíssi-mo instante o artista recebe e processa informações diversas - provenientes da pla-téia, de seu corpo, de seu companheiro de cena, do andamento da cena dentro do roteiro pré-estabelecido, da sua localização no espaço e no tempo destinado à cena etc. - acessa seu repertório, cria e projeta mentalmente possíveis ações e suas impli-cações na cena - e age. A improvisação não tem a ver com espontaneidade, mas com preparação e rigor, habilidades físicas e velocidade. (FUNCHAL, Cláudia. 2009: 14)

22. Ver explicação de Biriba em Experiências práticas do tópico: Roteiro.

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É um faz-de-conta, completamente teatral e épico por excelência, já que o ator está em cena juntamente com a personagem, manipulando-a. O público vê as quebras, as intenções sendo construídas, as máscaras sendo montadas, o público é parte da cena.

Ah – vão dizer (...) algumas coisas cheiram a Brecht. E cheiram mesmo. Acho que é porque Brecht estabeleceu as bases de seu método indo pesquisar as formas po-pulares de representação (...) claro que o popular brasileiro é diferente do alemão, mas deve haver pontos de contato. (BRITO, Rubens. 2004 : 184)

E “cheiram a Brecht” mais e mais, na crescente proporção em que se apro-funda no estudo da linguagem. Não à toa, Karl Valentin23 seria a concepção não ideal, mas materialista do modo como Bertolt Brecht concebe o ator. A função do teatro para o teatrólogo alemão pressupõe o binômio: educar e divertir. Va-lentin insere-se nesta preposição na medida em que sua comicidade intenta a reflexão critica, e a temática por ele desenvolvida diz respeito a uma oposição explícita ao nazismo e às formas por meios das quais a barbárie se instaura.

Os conceitos de teatro épico se aplicam diretamente ao palhaço, tanto na questão ideológica, quanto na questão estética. Poderia se trabalhar todo trei-namento cômico do palhaço partindo da metodologia épica, mas isso seria um outro processo de pesquisa e de vivências que não foi experienciado aqui. se houver relação direta de alguma forma teatral com a linguagem do palhaço, essa relação está em Brecht e no teatro épico, devido às semelhanças estéticas e ideológicas.

Tendo em vista que o teatro precisa ater-se a questão da luta de classes, nela, dependendo de que lado se esteja, é preciso apresentar a classe antagôni-ca, de acordo com Brecht, sempre de modo farsesco. Isto pressupõe que tanto na escritura do texto, como na composição da personagem e na criação da cena, o criador já tem um ponto de vista acerca da classe dominante. O distanciamen-to proposto pelo alemão se aproxima grandemente das quebras, em que ator e palhaço trocam de posição no jogo. Gestus; expedientes que quebram a linha narrativa; fragmentação das cenas; comicidade; muitas são as relações possíveis de serem traçadas e difícil seria organizar todas aqui, sem o aprofundamento necessário.

– Como síntese, e de acordo com Walter Benjamin, o teatro épico, pressu-põe, com relação:

a. ao público – a criação de um lugar que deve satisfazer uma assembléia de interessados (não uma massa hipnotizada), cujas exigências, de diferentes naturezas devem ser satisfeitas;

b. à interpretação – a representação não significa virtuosismo, mas um do-mínio rigoroso do fazer teatral;

23. Valentin Ludwig Fey, comediante alemão, considerado por Mark Stevens o Charles Chaplin dos dadaís-tas de Munique.

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c. à representação – o texto já não é fundamento, mas um sistema de coor-denadas no qual se inscreverão, com novas aquisições, os resultados obtidos ao longo do ensaio;

d. aos atores – o encenador não dá indicações a obter um efeito determina-do, mas teses que implicam uma tomada de decisão;

e. ao encenador – o ator não é um comediante cuja função é assumir um determinado papel, mas sim um trabalhador encarregado de fazer o inventário do papel que desempenha. (MATE, Alexandre. ANO: 19)

eXperiÊncias prÁticas: Relatos e descobertas

Ao final do primeiro semestre com a turma de 2009 de improvisação, houve a apresentação de esquetes ensaiados por eles, entre duplas ou trios. A maioria cresceu muito dos ensaios para o dia da apresentação, mas não numa progres-são e sim num salto considerável do último ensaio para o dia da apresentação. Talvez o figurino, maquiagem, a tensão de ter os colegas olhando, de ser o dia das apresentações, algo fez com que as cenas ganhassem grande recheio, não acumulado nos ensaios.

Mesmo com grande salto, as cenas ainda tinham elementos muito dramá-ticos, corpos muito cotidianos, pouca quebra e a maioria ficou presa ao roteiro, fugindo pouquíssimo do enredo e não sofrendo os desvios ou se modificando a partir da platéia. Eles perderam grandes chances de interação. Tinham vergonha de olhar nos olhos dos espectadores, talvez por serem os próprios colegas. A conversa que seguiu depois das apresentações foi profícua pra entender algu-mas dificuldades comuns.

Calu - A gente amarrou muito a cena, ignoramos muitas coisas, fechamos o roteiro.

Bruna - A gente não conseguiu chegar nisso da improvisação.

Alessandro - Legal quando parece que vai acabar, surgem coisas novas.

Calu - As cenas foram muito longas, não sei se é falta de ritmo.

dani - Não acho nada trágico. as dificuldades na cena são as mesmas de todo pro-cesso: ritmo, jogo, lembrar de triangular, saber triangular, colocar no corpo.

mário - Problema de ritmo é recorrente da limpeza da estória, da poluição gestual, do ritmo mesmo da cena (a mudança de uma coisa pra outra é longa, esticada), não. Um pequeno pulinho e pronto. Muda tudo. A triangulação é um problema. o ritmo cômico não é o ritmo natural, se fica natural, pra conseguir uma risadinha é bem di-fícil. Uma cena cômica de tom farsesco: há que se apresentar e demonstrar a coisa mais sintética e expandida e exagerada, em cada situação. A maneira do público24 induza movimentos pequenos. Algumas coisas a se pensar: gesto sintético, idéia

24. Referência a pouca quantidade de alunos assistindo, o espaço pequeno, a relação de cena muito perto do público.

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sintética, expansão, dilatação, exagero. Alguns enredos precisam de limpeza. Caiu do avião, caiu e acabou, ótimo. Banheiro está ocupado? Bato uma vez. Se for uma segunda vez, tem que ter outro motivo, se a dor estava X, agora está X². na mesma situação, outro gesto é redundância, se a incidência for a mesma, uma vez basta.

O mais interessante é a maneira de condução do professor Mario Bolognesi: desde o início da pesquisa até o final, sempre com respostas simples e sem mui-tas justificativas. Ele nunca responde exatamente aquilo que o ator quer ouvir, várias vezes deixando as dúvidas no ar. Isto causa um pouco de estranhamento no início, mas depois o ator começa a buscar as próprias respostas e a pesquisar sozinho muitas soluções.

Algumas das pontuações do diretor Mario Bolognesi, durante a direção das cenas, na Trupe Estrupiada, foram imprescindíveis para o entendimento des-ta arte, que é tão simples e por isso tão sofisticada. Dicas fundamentais para se entrar em uma cena de improvisação e que eram sempre repetidas na execução dos esquetes, pois apesar de fáceis na teoria, são tremendamente difíceis na prática.

– Aja duas vezes, antes de pensar.

– O gesto tem que ser limpo.

– Se pode fazer um gesto só, por que o repete várias vezes?

– Passe a intenção da ação, com todo seu corporal e não com gestos cotidianos ou ilustrativos.

– Decupe o movimento. Cada situação pode ser dividida em várias pequenas situ-ações.

– O menos importante é o roteiro. O mais engraçado é quando se sai dele.

– Não se deixe “entrar numas” (psicologizar), a ação funciona ou não funciona.

– Relaxar é a melhor maneira de não se preocupar.

– Exagere na movimentação. Exagere o movimento como se a platéia estivesse no alto de um prédio, bem longe.

– Faça fotografias de movimento, exagere até o limite máximo e pare para a pla-téia fotografar.

– Quebre o movimento contínuo. Menos fluído e mais quebrado.

– Nada muito sério, não tenha medo do ridículo. Procure situações ridículas.

– Olhe mais para o público. Compartilhe sua ação, conte o que vai fazer.

– Defina melhor os movimentos.

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triangulaçãO

Essa modalidade é a espinha dorsal do esqueleto cômico. Sem ela, não há o que sustente a interpretação cômica. A triangulação está diretamente ligada ao jogo cômico, ao tempo cômico e ao corpo cômico. Mas principalmente, trian-gulação está ligada ao espectador e sua participação no jogo cênico. não basta ser a personagem, é preciso revelá-la ao público.

As duas figuras acima representam as diferenças entre as possibilidades de comunicação e relação das linguagens: cômica e realista. Na comédia o público tem igual importância no fator comunicação, no sentido de que recebe direta-mente a ação e é parte dela a partir do momento em que reage e modifica a cena a partir dessa reação. Na linguagem dramática, o público é ouvinte, apenas rece-be as ações, não diretamente (há uma quarta parede que o separa dos atores) e sem a possibilidade de alteração da cena.

Simplificadamente, numa idéia de comunicação bilateral, as possibilidades do triângulo são infinitamente maiores do que as que a quarta parede abrange:

No entanto, no triângulo, a comunicação pede três lados participantes e ativos. Se A e B são atores e P representa o público, os três podem agir e reagir dentro da situação de inúmeras maneiras. O que se tem é uma sequência de ações e reações em jogo com os três vértices.

-Geléia: (entra, chorando alto, sem parar) AÇÃO1

(a platéia começa a rir) REAÇÃO1

Ator A Ator B

Ator B Ator A

Ator A Ator B

Ator AAtor B

Ator A público

Ator Apúblico

Ator Bpúblico

Ator B público

Relaçoes possíveis: triangulaçao Relaçoes possíveis: quarta parede

público

Ator A Ator B

público

Ator A Ator B

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-Palito: (entra, olha Geléia chorar, vira para platéia com cara de que não está enten-dendo nada) REAÇÃO1 Por que você está chorando, palhaço? AÇÃO2

-Geléia: (quebra o choro REAÇÃO2 e fala para alguém do público) Por que você está chorando, palhaço? AÇÃO3

-Platéia: (a criança do público responde) Você que tava chorando, não eu! REAÇÃO3

Geléia – Ah é! (volta a chorar) AÇÃO4

Do trecho acima, pode-se tirar duas situações, em que se percebe a se-guinte ordem: Geléia/Platéia/Palito; e Geléia/Platéia/Geléia:

Geléia (AÇÃO 1) Platéia (REAÇÃO1) Palito (REAÇÃO1 + AÇÃO 2)

Geléia (REAÇÃO2 + AÇÃO 3) Platéia (REAÇÃO 3) Geléia (AÇÃO 4)

Combinar de três em três as situações, limita o que elas abrangeriam, mas facilita o entendimento inicial da técnica. O esquema Ação-Reação-Ação não é correspondente às três letras da combinação e nem é correto dizer que cada letra corresponde a apenas um movimento. Uma mesma ação pode ter duas ou mais reações, não ter reação, ser seguida de outra ação etc.

No final da primeira combinação, quando Palito reage e age logo em se-qüência, sua ação, mesmo que ao lado, está desligada da REAÇÃO1, que se re-fere à AÇÃO anterior feita por Geléia. Da mesma forma Geléia, na segunda com-binação, faz a AÇÃO3 em seguida de uma reação, mas que se referia a AÇÃO2. Neste caso não é necessário contar Geléia duas vezes: GGPG, pois a primeira reação é um resquício da situação anterior.

Combinando os três vértices do triângulo (levando em conta apenas as le-tras) ter-se-iam ao todo 27 possibilidades de comunicação (ABP25 ; BPA; PBA...). No entanto essas 27 possibilidades abrangem as combinações: AAB BBA BBB PPP AAA ABB e outras em que um mesmo vértice aparece duplicado ou tripli-cado e em sequência. Se definimos que dois movimentos podem estar contidos em uma letra, apenas se o ator agisse e depois reagisse à própria ação já feita, é que estas combinações seriam possíveis.

Restam então doze possibilidades, sendo elas: ABP APB PBA PAB BPA BAP ABA BAB PAP BPB APA BPB. Estas doze possibilidades consideram o público também como agente primeiro da ação. Nesse caso, ele não é provocado pelo ator, mas o provoca26. No jogo do palhaço isso é comum, tamanha a liberdade e participação constante do espectador, que se sente apto a falar e agir, mesmo não sendo estimulado diretamente para determinada ação.

Nota-se que além das combinações ABP BAP ABA e BAB, todas as outras precisam do público para serem treinadas, já que ele é agente ou reagente das

25. A = Ator A (ex: Geléia); B = Ator B (ex: Palito); P = Público.26. Ver em: Experiências Práticas: relatos e descobertas, exemplo da personagem Joãozinho.

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primeiras ou segundas seqüências, sendo modificador da última. Nesses casos, o condutor e os outros atores devem representar o espectador, tentando não jogar como atores cientes das técnicas, mas na tentativa de produzir reações e ações de um público espontâneo. Quando o público finaliza a seqüência, os primeiros movimentos podem ser treinados, pois a sua ação ou reação não mo-difica as anteriores.

Talvez um conceito bem simplificado e precário de triangulação seja o de que a técnica consiste no treinamento e apropriação das 12 diferentes possibi-lidades de comunicação em cena. Simplificado ou precário porque além das se-qüências básicas de combinações, a técnica também abrange o estudo do corpo e da voz nesse triângulo; do tempo de construção das reações e das ações, da tomada de decisão do palhaço, do lócus cênico modificado a partir do triângulo e claro, as 12 combinações se transformam em infinitas já que a cena é uma se-qüência de inúmeras ações e reações combinadas.

Além das combinações e das complicações (tempo/corpo/voz/espaço) há um terceiro elemento que são as quebras. Se o ator segura, ma-nipula a personagem em vez de incorporá-la, ele também pode solta-la a qual-quer momento. Nesse caso, tanto a personagem quanto o ator podem reagir ou agir em cena. Aí entram mais inúmeras possibilidades, pois se o Ator A manda uma ação para o ator B, esse pode receber como palhaço, mas reagir pra platéia como ator27 . Portanto ao invés de A e B, ter-se-ia A1 A2 e B1 B2 em que A1 e B1 são os atores e A2 e B2 são as personagens.

Há muita confusão aqui. O ator não é o individuo cotidiano. É também um corpo teatral28 , alguém que zomba, que joga como o palhaço e ao mesmo tem-po diferente dele. Se o ator segura o palhaço, ele deve estar num estado extra-cotidiano para manipulá-lo, deve entender a lógica do palhaço como ninguém e isso tudo deve ficar claro quando ele dialoga com a platéia. Aqui mais uma rela-ção com o teatro épico, que também exige ator e personagem presentificados e, portanto, como no caso do palhaço, o ofício interfere na vida. O indivíduo aca-ba tendo que se tornar sujeito social que pensa, que age em sociedade dentro de uma coerência com o que representa em cena.

Por isso a triangulação é quase a última etapa do processo. O ator primeiro constrói a personagem, depois aprende o jogo de relação com parceiro e públi-co, cria seu repertório e só aí começa a treinar especificamente a triangulação, que já vinha sendo trabalhada sem tanto enfoque nos itens anteriores. Só de-pois da triangulação assimilada, o ator parte para expressividade, onde limpa o gestual e finalmente pode experienciar o picadeiro ou a rua.

Como se vê, combinar matematicamente todos os elementos desse triângu-lo, colocando tempo, quebra, corpo, voz e espaço, dar-nos-ia uma interminável combinação de seqüências e de possibilidades. A decisão de qual escolher, na

27. É o caso do jogo da caixinha, nas fichas de triangulação, em que o personagem entra pra pegar a caixa, quando ele tenta e não consegue, quem reclama pra platéia não é a personagem, mas o ator.28. Ver conceito em cap. III: Expressividade- o corpo em cena.

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hora da cena, já que é uma técnica dentro da linguagem da improvisação, tem muita relação com a tomada de decisão, explicitada na questão do roteiro. Da mesma maneira que o palhaço escolhe as ações e situações, tomando as deci-sões conforme o público, ele também triangula conforme as relações aconte-cem. Aí temos o mesmo processo de tomada de decisão.

Talvez o tempo cômico seja mais fundamental na construção da reação do que na ação. A construção da reação é que normalmente causa o desvio, pois é na reação que surge o inesperado. Toda ação, gera no público a construção imaginária de uma reação lógica àquela ação. O inesperado é justamente na des-construção da expectativa em função de uma reação e de uma ação posterior que rompem com o sentido da primeira ação.

A técnica que a princípio é de interpretação, re-configura o espaço cênico, o tempo da cena, a personagem, o ator e o próprio roteiro, na medida em que as relações com o público determinam a improvisação e as mudanças de enredo. Se a forma é conteúdo sedimentado (Adorno, Teoria Estética) também se pode dizer que o caráter político é determinado pela triangulação. Já que a técnica iguala, no mesmo patamar, público e atores, pode-se falar em um teatro demo-crático.

Aqui entra a questão da escolha do artista. O porquê escolheu a linguagem. O “pra quem?” desenvolve sua arte. O caráter popular, democrático e participa-tivo, o espaço que possibilita um maior acesso. Muitas são as questões acopla-das ao estudo da forma e da técnica, que não podem ser ignorados, pois devem estar presentes ideologicamente na forma e conteúdo das cenas.

Ignorar a função e condição social deste tipo de arte corresponde a ignorar uma das bases de seu processo criativo e uma das razões de sua continuidade como manifestação estética. (FUNCHAL, Cláudia. 2009: 13)

Em sua tese: Teatro de Rua: Princípios, elementos e procedimentos – a contribuição do Grupo de Teatro Mambembe (SP), Rubens José de Souza Brito aborda muitos aspectos da interpretação cômica popular, focado no teatro de rua e não no palhaço. Ao falar da triangulação, esquematiza o sistema elaborado por Soffredini que pode ser útil para o aprendizado aqui. Não é a única forma e nem deve ser engessada ou decorada, mas o treinamento contínuo dos oito movimentos, assim como das tantas sequências possíveis, auxilia na assimilação da técnica para um posterior uso orgânico e personalizado.

A triangulação29 - Os oito movimentos de uma ação completa:30

29. Esquema retirado da tese de mestrado: Teatro de Rua: Princípios, elementos e procedimentos – a contribuição do Grupo de Teatro Mambembe (SP), Rubens José de Souza Brito.30. A triangulação considera os oito movimentos como constituintes de uma ÚNICA ação dramática. Essa ÚNICA ação corresponde, por sua vez, a uma UNIDADE MÍNIMA do jogo cênico em triangulação. (BRITO, Rubens. 2004 : 184)

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açãO

reaçãO

Tempo cômico

Tomada de decisão

Ator A Ator B

1º Movimento A B Ação (de A)

2º Movimento A B Recepção (de B)

3º Movimento A B Construção da Reação

4º Movimento A BIncorporação da Reação (preparação da ação)

5º Movimento A B Ação (de B)

6º Movimento A B Recepção (de A)

7º Movimento A B Construção da Reação

8º Movimento A BIncorporação da Reação (preparação da ação)

9º Movimento = 1º Movimento

No esquema, há um detalhamento da tríade: ação – reação – ação, que se amplia para: ação – recepção da ação – construção da reação – incorporação da reação – ação, em que construção da reação e reação tem a mesma função. Portanto a diferença está no acréscimo dos pontos: recepção da ação e incor-poração da reação. Ambos os pontos refletem o momento em que o ator se prepara para uma ação (ou reação) e, a partir dos estudos até agora realizados, pensa-se que esse momento pode ser a soma de tempo cômico (tc) + tomada de decisão (td).

Assim, a junção dos esquemas seria:

Importante lembrar que quando um ator está agindo, o outro espera, fazen-

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do a escada, não desperdiçando energia e nem roubando foco do jogo, que já possui múltiplos elementos conjuntos que dificultam a comunicação, como no caso da rua (barulho, espaço). Há a construção de uma espécie de fotografia, que é o gesto congelado, em estado suspenso, na espera do parceiro e determi-nando a direção do olhar do público.

A noção de direção fundamenta a triangulação. (...) QUEM NÃO ESTÁ COM A AÇÃO FOCA QUEM ESTÁ COM A AÇÃO. ESSE PROCEDIMENTO DIRECIONA O OLHAR DO PÚBLICO. (BRITO, Rubens. 2004 : 191)

Para Soffredini, o público é o vértice mais importante do triângulo, às vezes conhecendo partes do enredo que as personagens desconhecem. No entanto, no esquema que propõe, não se vê partes em que o público seja agente da ação, mas sempre um receptor. Para Soffredini o ator tem a função de ponte: um ele-mento de ligação, conexão, entre a platéia e o jogo cênico..

A ponte estabelece a cumplicidade entre PALCO e PLATÉIA (...) Se um persona-gem diz um absurdo, o outro personagem reage a esse absurdo na PONTE, o que di-mensiona o absurdo dito. Se o personagem que diz o absurdo tem consciência dele, ele próprio pode comentar isso (não necessariamente com palavras) na PONTE, antes ou depois ou ao mesmo tempo em que fala. E se não tem certeza do que está dizendo, também na PONTE pode revelar sua dúvida. (BRITO, Rubens. 2004 : 184)

Os movimentos são sempre quebrados, isso faz com que a ação anterior não seja carregada para a próxima. Se o palhaço ouve um xingamento, deve esquecê-lo logo em seguida, sem que isso interfira nas próximas ações do jogo. Além de dar uma fragmentação às cenas, esse procedimento tem a ver com a ingenuidade do palhaço e sua forma de agir no mundo, já explicitadas no cap. I.

Ao terminar de receber a ação, o Ator B corta completamente a relação olho-no-olho, virando-se em direção ao público. (...) ao final desse movimento (2° movimen-to), o Ator B introduz a descontinuidade na ação; essa já faz parte do passado re-cente. Já não se trata mais de ação e sim da reação. Essa reação deve ser construída pelo Ator B através de um único gesto corporal. Esse gesto corresponde a uma máscara. Essa máscara tem a função primária de revelar, com extremo rigor, e de uma só vez, a verdade da personagem interpretada pelo ator B; (BRITO, Rubens. 2004 : 192)

O processo teatral é revelado ao espectador, assim como no teatro épico. O ator constrói a reação na frente do público, entra e sai da personagem dentro da cena, as intenções da personagem interiorizadas no drama, são exteriores e sempre reveladas aqui. A platéia pode inclusive resolver alguma confusão ou tomar decisões junto com a personagem.

O ator não faz nada “escondido” do público; ao contrário, o ator revela sua criação, incorpora a reação do público em seu jogo e direciona a platéia para o jogo do outro ator; é dessa fora que a triangulação incorpora o público no jogo cênico. (BRITO, Rubens. 2004: 195)

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Os conceitos de construção de gesto e limpeza corporal serão tratados no próximo capítulo e são a parte final do processo, onde, depois de incorpo-rar o jogo completo, o ator passa a estudar as estruturas corpo e voz deta-lhadamente.

eXperiÊncias prÁticas: Relatos e descobertas

No espetáculo Carolina, que menina! Só não sabia voar..., do Grupo Teatral Parlendas, a personagem Joãozinho, mesmo sem maquiagem ou nariz, carrega os traços de interpretação do palhaço e constrói muitos jogos com as crianças, durante as suas entradas. O público infantil é por si espontâneo e participativo e a linguagem cômica só potencializa essa participação. Na cena final, depois de várias tentativas de vencer o desafio lançado por Carolina, Joãozinho deve ficar triste e falar: - Poxa Carol, eu queria tanto sua amizade, fico aqui às vezes pensando, o que é que você não sabe?!

Em uma apresentação dentro do espaço infantil de uma livraria em Campi-nas, quando a personagem falou a primeira frase: “Poxa Carol! Queria tanto a sua amizade”, um menino de nove anos se levantou e disse: “Então pergunta o que ela não sabe”. A atriz que fazia o Joãozinho teve que mudar a situação final em que ganhava o desafio e na mesma hora, chamou o menino à cena e, junto com ele, fez toda a parte final da peça, como se o menino é que tivesse ganhado o desafio, o que de fato ocorreu. Essa é uma prova de que o público pode ser agente da ação. Nesse caso a combinação seria: PAB, em que P é o menino, A é Carolina reagindo ao menino, percebendo que perdeu o desafio, e B é Joãozi-nho, chamando-o ao jogo.

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caPÍtulo iii

a eXPressividade : o corpo em cena

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Até aqui foi possível notar os diferentes processos e seus desdobramentos na cultura e na formação do palhaço, além das técnicas específicas de triangulação, do jogo da improvisação, da construção da personagem e do roteiro. Agora inicia a fase de estudo corporal: decupar, limpar e trabalhar o movimento, o gesto.

Expressar-se com o corpo exige certa destreza e habilidade corporal, um ator que trabalhe conjuntamente diferentes percepções e olhares. Enxergar o outro, ver-se em situação em relação ao outro e em relação ao seu próprio corpo.

No circo, a linguagem do palhaço aponta para o desenvolvimento da postura cor-poral, da sensibilidade, da agilidade, da desenvoltura cênica no espaço do picadei-ro, calcada nas relações onde o coletivismo e o autoconhecimento humano são a compreensões desejadas. (MONTEIRO, www.ggpe.prpg.unicamp.br/teia/material/luiz_rodrigues/o_universo_do_palhaco_de_picadeiro.pdf. Consulta em: 08/09/09)

Esse trabalho de estudo corporal é criado para dar formação especialmente às pessoas que estão fora da vida dos picadeiros. Diz-se isso porque viver sobre a lona já é um processo do desenvolvimento do artista. O circense vive integral-mente a sua arte, a vida é entrelaçada ao ofício e, geralmente, ambos: vida e ofício, são vivenciados com todos os familiares. Portanto, a família e a tradição (história da família) têm grande importância.

As famílias que se dedicaram à atividade circense no Brasil envolveram todos os seus membros na realização do espetáculo. Mais ainda: se o espetáculo era familiar, também o eram as formas de ensino e aprendizagem... A educação no interior do circo buscava a totalidade, desde o montar e o desmontar da lona, até as proezas dos números artísticos. (BOLOGNESI, 2003: 47)

Seria ineficiente iniciar uma formação corporal para o ator utilizando os mesmos procedimentos e metodologias do circo, pois fora do contexto circense essas metodologias perderiam o sentido. O trabalho de estudo corpóreo deve ser um processo permanente de experimentos que se adequam a cada indiví-duo, incorporando os referenciais já contidos naquele corpo. Se o artista circen-se tem como referência de base a tradição familiar, o ator que tomará contato com a tradição do circo após ter escolhido a linguagem, tem como base seu próprio arcabouço artístico. A experimentação dentro do treinamento é o ponto de encontro e aprofundamento com seu próprio arcabouço artístico, ou seja, sua tradição. O treinamento, na etapa de experimentação, é a tradição do ator.

O treinamento não ensina a interpretar, a se tornar hábil, não prepara para a criação. O treinamento é um processo de autodefinição, de autodisciplina que se manifesta através de reações físicas. Não é o exercício em si mesmo que conta – por exem-plo, fazer flexões ou saltos mortais – mas a motivação dada por cada um ao próprio trabalho, uma motivação que, ainda que banal ou difícil de se explicar por palavras, é fisiologicamente perceptível, evidente para o observador. Essa abordagem, essa motivação pessoal decide o sentido do treinamento, da superação dos exercícios particulares, na verdade exercícios ginásticos estereotipados. (BARBA: 1991, p. 59)

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Durante o processo de experimentação novos materiais são produzidos e outros que já existiam são fixados. Assim, a maneira de expressão do ator vai ganhando forma e, consequentemente, há o aprofundamento na criação da per-sonagem.

Os jogos apresentados nas fichas: gestualidade e aquecimento, darão subsí-dio não apenas ao preparo técnico ou de condicionamento corporais, mas tam-bém à espontaneidade, trabalhando o lúdico da movimentação corpórea. O cor-po é o principal instrumento do palhaço.

A base da comicidade está em seu corpo – um corpo “em jogo” e minuciosamente construído – e não no enredo ou no roteiro. Não nos surpreendemos, em geral, com a dramaturgia da cena, mas com as ações (que incluem suas falas). Podemos até mesmo rir de uma ação ou gesto isoladamente, independente de sua relação com o contexto, com a história, com a circunstância. Neste caso, rimos da ação ou gesto em si. (FUNCHAL, 2009: 21)

O foco de todo o processo de experimentação está não somente na execu-ção adequada dos movimentos, mas também no despertar da linguagem cômica, do tempo cômico e da dinâmica com a platéia. Se assim não fosse, a preparação do corpo seria a repetição de um esquema fechado e, para o palhaço, isso não in-teressa, já que precisa abrir espaço para relação. Assim, o estudo é memorizado, mas não há uma ordem certa a ser seguida. O corpo é também repertório, assim como as gags. Da mesma forma, há a fase mecânica de reprodução e repetição, para uma posterior apropriação e ressignificação.

Às vezes, faz-se um juízo errôneo sobre a repetição ou a imitação. Alguns vêem a imitação como algo inferior ou simplório, sem autoria ou originalidade.

Certa vez um crítico teatral abordou Ariano Suassuna e o inquiriu a respeito de alguns episódios do Auto da Compadecida. Disse ele: “Como foi que o senhor teve aquela idéia do gato que defecava dinheiro?” Ariano respondeu: “Eu achei no folheto de cordel.” O crítico: “E a história da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita as pessoas?” Ariano: “Tirei de outro folheto.” O outro: “E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro?” Ariano: “Aquilo ali é do folheto também.” O su-jeito impacientou-se e disse: “Agora danou-se mesmo! Então, o que foi que o senhor escreveu?” e Ariano: “ Oxente! Escrevi foi a peça!” (TAVAREZ, 2005: 175).

Esse julgamento é típico dos que negam a influência social no indivíduo, defendendo uma espécie de essência, que é original ou única. No entanto, para Marx e Engels, a essência do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo mas um conjunto das relações sociais.

O corpo é o que somos a partir de nossas vivências e a partir do que observa-mos a nossa volta e repetimos. A imitação é processo de aprendizagem em mui-tas fases de nossa vida, algumas mais que outras. A repetição nunca é, por mais perfeita que seja, uma cópia, pois a (re)criação é inerente ao imitador. Na cultura popular a imitação não é vista como cópia, mas sim como arte.

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Jornalista - De onde tirou aquela idéia do gato?

suassuna - De um folheto de cordel.

Jornalista - E a idéia da gaita?

suassuna - De outro folheto de cordel.

Jornalista - Mas e a história do enterro do cachorro?

suassuna - Ah! Essa foi de outro folheto de cordel.

Jornalista - E o que é que você então??

suassuna - Eu fiz a peça, ué!

Quando se imita algo corporalmente, há uma busca pelos elementos chaves e pontuais que levam à leitura de certo objeto ou imagem. Portanto, há uma reorganização corporal do imitador, que se aproxima da imagem ou do objeto, mas que vai apenas até o limite de suas possibilidades, já que todo corpo, em si, carrega elementos já determinados pelas características biológicas e sociais. Um magro pode imitar um gordo, pois buscará elementos chaves que darão a leitura do aumento de peso: a lentidão, o peso no caminhar etc., mas nunca fica-rá gordo realmente, a não ser que use artifícios exteriores.

No circo, um determinado grupo familiar, geralmente, segue a tradição de uma modalidade específica. Numa família de trapezistas, malabaristas, acroba-tas ou palhaços, os ensinamentos são passados de pai para filho. A criança imita o pai, a mãe, a irmã etc. Essa é a sua escola, essa é a sua forma de aprender: vendo e repetindo. Independente da modalidade ou da família, o processo é o mesmo e é ele que garante a perpetuação da tradição circense.

A imitação, mais do que um mecanismo no processo de ensino e aprendizagem é um dos principais determinantes na manutenção e na continuação da cultura. O que garante a manutenção da existência humana é a sua capacidade de re-produzir a cultura que o constitui e não de reproduzir somente a sua espécie. (FERNANDES, www.anped.org.br/reunioes/30ra/grupo_estudos/GE01-3527--Res.pdf. Consulta em 13/10/09)

pré-eXperimentO

A preparação física é de fundamental importância para que o artista cum-pra adequadamente às necessidades da criação do corpo do palhaço. A rotina de trabalho é pautada em exercícios de condicionamento físico, alongamento, coordenação motora e agilidade. Esse serão os quatro pilares de base do pré-treinamento corpóreo que trarão sustentabilidade e disponibilidade para a cria-ção corporal. Esse pré-treinamento consiste no preparo físico de manutenção e desenvolvimento das capacidades mecânicas do corpo.

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O teatro cômico pede fundamentalmente a presença do corpo do ator. Por isso, são necessários um bom condicionamento físico e um alongamento e aquecimento, antes e depois dos ensaios, um pouco mais cuidadosos. O condi-cionamento influencia no ritmo e na qualidade da cena. Na medida em que se avança na parte física, percebem-se melhorias relevantes nas improvisações. Com um corpo apto para executar movimentos ágeis e precisos, o processo de experimentação da criação do corpo do palhaço é mais abrangente.

Para dar início ao trabalho de expressão é importante iniciar pelo caminho inverso: o da não expressão. O trabalho da musculatura corporal deve sempre buscar um tônus de equilíbrio entre o tenso e o relaxado. A intenção é limpar o corpo e chegar a um estado de aparente neutralidade. Vale ressaltar que a neu-tralidade aparente é uma busca constante e não um fim, já que o conceito de neutralidade é abstrato, pois depende de um referencial, seja ele sócio-cultural ou subjetivo. Há diferenças entre a neutralidade de um bailarino indiano e de um atleta olímpico.

A neutralidade como se costuma dizer, revela o referencial material do corpo, ou seja, suas experiências biológicas e sócio-culturais. Já a neutralidade aparente busca eliminar o referencial material do corpo para finalmente com-por um novo corpo, livre de qualquer referencial anterior. Caso haja alguma semelhança entre ambos, deve ser por escolha e não por falta de consciência corporal.

A busca do estado de neutralidade aparente, do tônus muscular, é impor-tante para a limpeza corporal, já que é esse corpo, livre de vícios de tensões musculares, que vai compor novas maneiras de expressão. dentro da neutra-lidade aparente, o estado de prontidão deve ser mantido como alavanca das ações. Estar pronto para qualquer coisa. O estado de prontidão gera um corpo vivo, atento, ativo, obtendo uma presença significativa no palco.

é de fundamental importância para o ator o estudo dos diferentes esta-dos de gradação corporal: trata-se de uma pré–experimentação. É o momento de conscientização corporal, ou seja, de preparação para uma nova linguagem corpórea.

Esquema de gradação corpórea:

Corpo cotidiano Corpo de neutralidade aparente/ TEATRAL Corpo Extra-cotidiano

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O corpo cotidiano trabalha de maneira a poupar o gasto energético, dentro da lógica da funcionalidade (o mais prático, o mais rápido). O tônus muscular, geralmente, é mais relaxado e sem grandes tensões. Os vetores corporais estão em oposição simples (ex: a cabeça aponta para cima e a bacia para baixo), ou seja, não há dilatação..

O corpo de neutralidade aparente trabalha com o tônus muscular mais ten-so e elimina qualquer característica pessoal do cotidiano, ou seja, o referencial material do corpo. Ele está em estado de prontidão e o corpo como um todo aponta para os princípios de dilatação do movimento. Os vetores do corpo estão em oposição de maneira mais destacada e valorizada do que o anterior. Um leve desequilíbrio é gerado no corpo. A energia corpórea aumenta.

O corpo teatral é muito próximo ao corpo de neutralidade aparente, já que os vetores também estão dilatados, porém não se elimina o referencial material do corpo.

O corpo extra-cotidiano trabalha essencialmente com gasto energético. O movimento é totalmente dilatado e em equilíbrio precário. Os vetores estão em oposição no grau máximo do movimento. A energia é intensa e canalizada, sem dispersão ou descontrole. O gasto energético é premeditado, ou seja, o artista tem pleno domínio dos movimentos. As energias são em excesso, porém con-centradas..

Após o trabalho de pré-experimentação pode-se seguir para a próxima eta-pa: a expressão da linguagem corporal do palhaço.

gestualidade

Um palhaço em cena. Retiram-lhe a roupa, limpam-lhe a maquiagem, o ca-belo, todos os artifícios exteriores que caracterizam o arquétipo. Sobra-lhe um corpo, um corpo que age em determinada situação. Ainda há personagem? De-finitivamente, sim. O riso não está na forma estética do palhaço e sim em sua característica de personalidade: o constante desvio do padrão. Essa atitude é expressa por meio das ações físicas.

Um palhaço em cena. Retiram-lhe a roupa, limpam-lhe a maquiagem, o ca-belo, todos os artifícios exteriores que caracterizam o arquétipo. Sobra-lhe um corpo, um corpo que age em determinada situação. Ainda há personagem? De-finitivamente, sim. O riso não está na forma estética do palhaço e sim em sua característica de personalidade: o constante desvio do padrão. Essa atitude é expressa por meio das ações físicas.

Essa definição vai de encontro à idéia de que o que faz rir nessa figura é a sua máscara ou vestimenta. Se assim fosse, bastaria vestir o nariz vermelho, mas a realidade é outra. Muitos atores têm a ingenuidade de pensar que para fazer um corpo cômico basta ser bobo e atrapalhado, usando as roupas e maquia-gens típicas do arquétipo. Hugo Possolo fala dos atores que vestem o nariz e

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se transformam, como se “encarnassem” a personagem, como se o nariz fosse algo especial, algo sagrado que trouxesse a personagem. Ele diz que costuma perguntar a esses “palhaços”: “O que foi? O plástico te tomou?”

“O que o ator-bailarino está procurando (...) é um corpo fictício, não uma personali-dade fictícia. Para quebrar as respostas automáticas do comportamento cotidiano, nas tradições orientais, no balé e na mímica de Decroux, cada uma das ações do cor-po é dramatizada (...) Esta é uma psicotécnica que não tenta influenciar o estado psí-quico do ator-bailarino, mas sim seu estado físico. (BARBA & SAVARESE, 1995 : 19).

Fazer o público rir não é tarefa fácil e só quem faz sabe o quanto é delicado, porém, a graça não está em um único indivíduo, seja ele quem for, palhaço ou não. O riso está na relação que se estabelece entre artista e público, que é co-autor das situações do espetáculo. Relação que necessita fundamentalmente do corpo para se firmar.

O ator precisa ter em mente que ele conduz o público, ele jamais deve se desligar da realidade, estando atento a tudo que o cerca. Ele arquiteta e articula em tom de seriedade o que no fundo não passa de uma grande brincadeira. Pa-radoxalmente, para rir, o público tem que levar a sério a brincadeira.

O fato é que o palhaço nunca se perde da realidade, nunca adere completamente à ficção – e paradoxalmente, colado à realidade, ele é capaz das ações mais absurdas, dos gestos mais estilizados e inverossímeis. (FUNCHAL, 2008: 1)

No corpo do palhaço tudo tem que ser legível, já que esta é a sua maior fon-te de comunicação. A seguir, definir-se-ão alguns conceitos específicos dentro do corpo do palhaço.

I. dilataçãO

Nas ações do palhaço todos os movimentos têm que ser perceptíveis. E como ser notado em um espaço tão grande, cheio de competição visual e sono-ra, como a rua ou o picadeiro? O movimento deve ser valorizado, amplificado. A dilatação será sempre ponto fundamental das ações do movimento. Ela é a lente de aumento no olhar do espectador sobre o corpo do palhaço. Ela é a ponte de comunicação. Um gesto dilatado pode ser pequeno ou grande, mas é quente. Barba e Savarese definem a dilatação, cientificamente, como um corpo quente, incandescente.

“...as partículas que compõe o comportamento cotidiano foram excitadas e pro-duzem mais energia, sofreram um incremento de movimento, separam-se mais, atraem-se e opõe-se com mais força, num espaço mais amplo ou reduzido.” (BAR-BA & SAVARESE, 1995: 54)

A dilatação propaga no movimento um sinal visual de reverberação. É como uma pequena pedra que cai na água e não está mais presente ao alcance dos olhos, mas a sua ação ainda está viva. Na linguagem do palhaço, a dilatação ganha

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tons grotescos em sua execução. A dilatação no palhaço, portanto, é bufonesca31 por natureza. Conclui-se então: DILATAÇÃO = PRECISÃO + FOCO => ENERGIA.

II. pOntuaçãO

O destaque do gesto - isso é a pontuação. É acentuar uma quebra de mo-vimento. Na pontuação os gestos ganham tempo de suspensão para causar tensão e distensão. Mais do que qualquer outro procedimento, aqui o controle corporal é essência para uma execução bem sucedida.

Na dança, assim como na performance do palhaço, os movimentos corpo-rais estão em pleno domínio do artista. Durante a pontuação do gesto, há uma pausa do movimento, mas o corpo permanece preenchido sem esvaziamento de sua potência artística. Os movimentos são contínuos dentro de uma partitura de quebra, ou seja, as ações de movimentos são entrecortadas por pequenas pontuações gestuais que quebram os movimentos em pausas dilatadas, seguin-do seqüencialmente as ações. Portanto: PONTUAÇÃO = PAUSA DILATADA.

As ações (do palhaço) são construídas a partir de motivações externas: o ges-tual é estilizado e não busca o realismo ou verossimilhança. Sua interpretação está mais próxima da performance e do teatro épico, do que do dramático. (FUN-CHAL, 2009: 23)

Nas ações corpóreas do palhaço o gesto deve ser sempre único, um por vez, para que haja o entendimento do que ele comunica corporalmente. Se os gestos forem seguidos, fluentes e rápidos, a comunicação com a platéia fica deficiente. No picadeiro ou na rua, o corpo do artista é pequeno em relação ao ambiente. Para que a comunicação se dê de maneira adequada o tempo de execução do movimento é maior em suspensão do que o natural/cotidiano, portanto, a pre-cisão e limpeza serão elementos chaves para a sua execução. Walter Benjamin observa:

O ator deve espaçar seus gestos como um tipógrafo faz com suas palavras. Ele deve trabalhar de tal maneira que seus gestos possam ser citados” (in: BARBA E SAVA-RESE, 1995: 54)

Não se pode confundir o tempo de suspensão da pontuação com parada ou lentidão. O tempo das ações do palhaço é sempre ágil e rápido. A velocidade está diretamente ligada ao tempo cômico.

Utilizando os princípios de movimento de Laban para a definição do que é a pontuação, focando o corpo do palhaço, temos:

31. É o princípio orgiástico da vitalidade transbordante, da palavra inesgotável, da desforra do corpo sobre o espírito (Falstaff), da derrisão carnavalesca do pequeno ante o poder dos grandes (Arlequim), da cultura popular ante a cultura erudita (os pícaro espanhóis). O bufão, como o louco, é um marginal. (PAVIS, Patrice. 1999 : 35)

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Tempo Espaço Força Fluênciadinâmica do movimento

Pausado Direto Independe Controlada Independe

III. QueBra

Pontuação e quebra não são a mesma coisa. Na realidade, uma quebra com-pleta depende de uma pontuação. Para melhor entendimento, o momento em que Biriba quebra o choro e fala: “ele me bateu”, narrado no tópico experiências práticas, dentro do roteiro, exemplifica esta questão.

A quebra é abrupta tanto no corpo como na ação. Ela rompe com a seqüên-cia que até então é estabelecida, criando uma outra forma corporal e de ação. É uma mudança súbita, que não é premeditada (para quem assiste) e sim pre-sentificada.

Fisicamente, a quebra envolve a mudança de todos ou quase todos os prin-cípios de movimento. Se o tempo era rápido, ele passa a ser lento, se a fluência era controlada, ela passa a ser não-controlada etc. A composição das quebras, depende da criação de cada artista.

Para a execução da quebra, a precisão do movimento é mais uma vez ponto de intersecção entre o pensar e o fazer propriamente dito. Percebe-se que estas ações físicas funcionam como lente de aumento para aquela ação es-pecífica. Se o palhaço começa chorando e o seu corpo toma proporções maio-res é porque ele valoriza aquela ação, primeiro dilatando o movimento e depois pontuando, para somente em seguida quebrar.

A quebra é impactante porque ela “puxa o tapete” do espectador, por-que ele não estava esperando essa ação repentina, porém, esse impacto não é caótico, ele segue uma seqüência gradativa que pode ser tanto ascendente como decrescente32

iv. cOntra-gestO

Segundo Barba e Savarese, o contra-gesto é o princípio de oposição do mo-vimento. Para Meyerhold, o conceito é o mesmo, mas recebe um novo nome: atkaz (recusa). É fazer o gesto oposto antes de executar a ação propriamente dita. O contra-gesto dá amplitude ao movimento, ele realiza um gesto oposto ao que quer realizar para dar tempo de leitura a quem está assistindo, acentuando a expressão. O resultado do contra-gesto é um aumento do tempo da ação a ser realizada, por isso é que o tempo de ação na representação é maior do que o tempo do cotidiano.

No picadeiro, geralmente a disposição física da platéia é distante do espaço

32. Ver explicação de Leris Colombaioni sobre o tempo cômico e a preparação de uma gag, no tópico: roteiro, dentro do cap. II.

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de representação. A visibilidade, portanto, é limitada no âmbito geral do palco. O público vê apenas movimentações que se destaquem do restante. Se o pa-lhaço quer pular, para deixar amplo esse movimento, ele deve primeiramente abaixar, para depois pular. Se ele simplesmente pula, o movimento será mais curto, portanto menor de se ver.

O contra-gesto aumenta o tamanho e proporções do movimento, como também o tempo de execução, já que a ação se prolonga. Um pulo sem abaixar para pular é mais rápido do que quando se abaixa. Esse tempo é determinante para dar a leitura da ação propriamente dita, e assim o entendimento do público e a diversão.

v. FragmentaçãO

Na fragmentação, o corpo é trabalhado na interdependência do movimento e a coordenação motora é o que possibilita essa mobilidade do corpo. Também neste tópico, abordam-se as funções específicas das partes do corpo: cabeça, tronco e base33.

Nas apresentações de palhaços, o corpo é a sua maior fonte de comunica-ção. Para estabelecer um diálogo direto e abundante, é importante que se tenha inúmeras possibilidades de movimento. Um movimento deve ser a significação de uma palavra que não precisa ser dita. Por isso, quanto maior são as possibi-lidades de organização do corpo, fragmentando-o, dinamizando-o, maiores são as possibilidades de comunicação com o público.

• Cabeça

A cabeça é a única parte do corpo que concentra todos os sentidos: visão, audição, paladar, tato e olfato. Ela estabelece o raciocínio, o olhar e percepção do exterior. Perceber o espaço físico de trabalho: o seu tamanho, proporções, dimensões e o próprio corpo dentro dele e em relação a ele. Um mapeamento do ambiente: Quais as possibilidades de jogo naquele espaço? Qual à disposição da platéia? Como chegar até ela? O artista deve ter um amplo ângulo de visão, o olhar periférico, ou seja, ter conhecimento da ação que ocorre a sua volta, em no mínimo, 180°. Trabalhar a percepção do “olho nas costas”, que neste caso abrange não somente a visão, mas também a audição e o tato.

33. Dividiram-se as três partes dessa maneira, porque se notou maior incidência de fragmentação do corpo palhaço a partir delas.

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A expressão facial do palhaço não é forte, não é dramática. Ela deve fazer rir, essa é a sua função. Mesmo quando está chorando ou triste, deve fazer isso com intuito de as pessoas rirem e não de elas se emocionarem melancolicamen-te. A expressão do rosto deve ser sempre pontual, apostar em uma determinada expressão e marcar. Tudo no palhaço é pontual. O olhar, a expressão e a ação. A leitura que alguns têm de palhaço é a do exagero das expressões e das ações, mas a verdade é justamente o inverso. A expressão carregada gera aspecto dra-mático tenso e rígido. Palhaço não é somente exagero por ele mesmo, é dilata-ção, é suspensão.

O artista deve ampliar o seu campo de visão para olhar o público, já que a interação com a platéia é constante e essencial, portanto, é importante o artista ter domínio das coisas que acontecem e de quem é o espectador: quem está contente, quem aparentemente é mais sério, os tipos físicos etc. Tudo isso, ser-ve de motivo para um possível desvio dentro da improvisação. Além do desen-volvimento da amplitude do olhar, o foco é trabalhado, marcando a (in)tenção durante a ação física.

O rosto: na linguagem cômica a máscara do palhaço é o seu corpo como um todo, portanto, ele não deve ser mais forte do que os movimentos, o corpo é o foco da situação, ele é quem comunica o estado, a sensação, de uma manei-ra explícita. A maioria dos atores que iniciam a linguagem cômica, pensa que o exagero do palhaço deve estar no rosto. Essa característica se dá principalmente pela hegemonia do drama, onde o rosto é concentra grande parte das intenções da personagem.

... por isso a importância da questão física, do humor corporal, porque ele mostra o nosso lado animal de maneira mais imediata, o que é muito importante pro humor, o humor só funciona com tensão e alivio. (POSSOLO, 2008)

O homem se expressa tanto por gestos como por mudanças faciais. Isso o coloca em constante leitura de expressões. A transformação do homem, em especial o ocidental, perante o desenvolvimento da fala e da linguagem deixou cada vez menos lugar ao corpo como meio de expressão e de comunicação. Por conseqüência, o corpo perdeu lugar significativo para a palavra, em uma comu-nicação cada vez mais verbal.

A expressão facial do palhaço não é forte, não é dramática. Ela deve fazer

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rir, essa é a sua função. Mesmo quando está chorando ou triste, deve fazer isso com intuito de as pessoas rirem e não de se emocionarem. A expressão do ros-to deve ser sempre pontual, apostar em uma determinada expressão e marcar. Tudo no palhaço é pontual. O olhar, a expressão e a ação. A leitura leviana que alguns têm de palhaço é a do exagero das expressões e das ações, mas a verda-de é justamente o inverso. A expressão carregada gera aspecto dramático tenso e rígido. Palhaço não é somente exagero, é dilatação, é suspensão.

A dilatação do gesto é usada para além da construção de uma caricatura: ela dá energia à presença cênica do ator. Isso é particularmente evidente na personagem de pantaleão: ele é um velho, mas o ator compõe a figura com gestos amplos e vi-gorosos. Ele não imita, por exemplo, o andar de um velho curvado, mas o reconstrói por meio de um contraste, que transmite a idéia de um velho sem reproduzir sua fraqueza. As costas são tão curvadas, que se tornam poderosas como uma mola comprimida. Cada passo é maior só que o passo normal, de modo que o equilíbrio precário do velho é reconstruído por meio de um desequilibre, que implica mais uma abundância que uma falta de energia. (Barba e Sevarese, 1995: 148)

Na movimentação, o uso da cabeça está diretamente ligado ao pescoço. A percepção e conscientização da anatomia das partes do corpo são importantes para um aprofundamento da mecânica do movimento.

O palhaço trabalha com o corpo extra-cotidiano, corpo de intenso gasto energético, que precisa de controle, de tensão. Movimentos de difícil execução e que necessitam de grande condicionamento físico para serem feitos durante um tempo estendido. Por isso é muito comum os atores caírem em gestos coti-dianos, mais fáceis e com os quais já estão habituados.

Dentro do repertório há muitas quedas e tropeços. O pescoço é essencial para dar certo grau de veracidade a estas ações. Quando o ator cai para frente ou tropeça, o pescoço deve ir para trás, rapidamente, como se tivesse se deslo-cado do resto do corpo. É interessante testar um empurrão: um ator empurra o outro pelas costas, o que recebeu o empurrão deve estar relaxado e deixar que o empurrão reverbere para o corpo, principalmente para o pescoço. Prestar atenção em como o corpo reage. Esse movimento é automáti-co, o pescoço se desloca para trás..

O ator que não está acostumado a fazer o Andar do Cavalo34 terá inicialmente, dificuldade para organizar organicamente o mo-vimento de “chicote” do pescoço, já que essas vértebras cervi-cais, cotidianamente, pouquíssimo são acionadas, menos ainda flexionadas para trás.

• Tronco

Não existe a definição de tronco no estudo da anatomia. Aqui, o tronco é formado pela coluna vertebral (não inteira, a partir da 6º

34. Jogo: Andares Expressivos (o cavalo), presente nas fichas de Construção do Palhaço.

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vértebra cervical até a 12º vértebra toráxica), ou seja, dos ombros até o umbigo, passando pelas costelas, pelo osso esterno e braços. No trabalho do palhaço, o tronco deve explorar o exterior, a curiosidade: é o centro do ímpeto pessoal. As mãos e os braços são um prolongamento de sua vontade e curiosidade: eles tocam, pegam, mexem e analisam qualquer objeto. Os braços molduram o mo-vimento, eles desenham as ações físicas juntamente com o restante do corpo, como em uma dança.

O que é um gesto se olharmos para o exterior? Como reconhecê-lo? O gesto é uma ação periférica do corpo, não nasce do interno do corpo, mas da peri-feria. 1° exemplo: quando os fazendeiros dizem um bom-dia às visitas, se são ainda ligados à vida tradicional, o movimento da mão começa dentro do corpo (Grotowski demonstra), e os da cidade assim (demonstra o mesmo movimento partindo das mãos). Este é o gesto. Quase sempre se encontra na periferia, nas “caras”, nesta parte das mãos, nos pés, pois muito frequentemente não tem origem na coluna vertebral. Ao contrário, a ação é algo mais, porque nasce do interno do corpo, está radicada na coluna vertebral e habita o corpo. (Burnier, 1994: 40)

Claramente, Burnier define que os movimentos nascidos da coluna verte-bral são ações, já os gestos são movimentos periféricos do corpo sem qualquer relação com a coluna. Dessa maneira, o tronco estabelece relação direta com os braços até a ponta dos dedos. Por isso, o seu despertar e trabalho de consci-ência são fundamentais. Na coluna os movimentos de rotação, flexão anterior, posterior, lateral direita e esquerda são essenciais para a propagação da ação do movimento.

No palhaço, os movimentos variam entre ação do movimento (que parte da coluna) e do gesto (que é periférico).

• Base

Neste trabalho, base corporal é entendida como pés, pernas e bacia. Na base está localizado o centro de energia e equilíbrio do corpo. Ela define a estru-tura do palhaço: o andar/caminhar envolve tempo, peso, dinâmica e fluência dos passos, e tem como conseqüência a definição do ritmo em cena. Por isso, a sua escolha e articulação são tão importantes. Ela é alicerce do corpo, é quem defi-ne o caminho a seguir. Dessa maneira, o estudo corporal da criação do palhaço pode partir da base.

No jogo de Deslocamento do Espaço (pés)35, a pesquisa de criação da per-sonagem parte da base. Através de desequilíbrios gerados pelas diferentes po-sições das bordas dos pés os atores descobrem novas maneiras de caminhar e consequentemente composições de diferentes personalidades, ou seja, de tipos cômicos. A base desequilibra e deforma o resto do corpo.

Há também a questão já abordada no cap. I, de que o palhaço trabalha sem-

35. Ver nas fichas de jogos de Construção do Palhaço.

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pre com os desejos primitivos, na linha do grotesco, do baixo-ventre. Esse baixo ventre representa o sexo, a libido, o prazer. A comida (estômago), o sexo, as necessidades primárias, a maioria dos desejos ligados à lógica do palhaço, locali-zam-se no baixo ventre, portanto a base deve ser muito explorada e acentuada.

Quanto mais o ator libera o ridículo, soltando-se de pudores, morais e amar-ras, mais trabalha essa região e o oposto também acontece: o exterior estimula o interior, se há grande estímulo e trabalho no baixo-ventre, há mais facilidade de desprendimento para o ator.

vi. O eXtra-cOtidianO

É importante fugir de gestos habituais, porém os gestos cotidianos, quando alterados em sua função, podem tornar-se extra-cotidianos. A repetição é um desses caminhos. já que representa um desvio do padrão, ou seja, um tartamu-deio corporal.

O palhaço, assim, sintetiza ou mesmo enfatiza a agressão dos movimentos repeti-tivos que procura equiparar o corpo do homem à grandiosa virtude das máquinas. Diante de um mundo utilitário, revestido de valores de uso e de troca, o corpo gro-tesco do clown pode perfeitamente explorar o sem sentido, como a dizer que há uma inquietação a ser explorada. (BOLOGNESI, 2002: 8)

Da mesma forma, o gesto cômico pode ser cotidiano, inúmeras são as situ-ações que trazem o riso, presentes no dia-a-dia: um tropeção, um engasgo, um peido etc. O palhaço utiliza esses acontecimentos cotidianos de forma teatrali-zada, ou seja, dentro de um corpo dilatado e trabalhado, tornando a situação ainda mais cômica.

Existem inúmeras maneiras de estilizar um movimento cotidiano, de desviar o padrão:

1. O inesperado (sem sentido)

2. A repetição do movimento

3. A oposição do movimento

4. A inversão do movimento

O trabalho extra-cotidiano, no palhaço, é a agregação dos conceitos de di-latação, pontuação, quebra, contra-gesto e fragmentação em um único corpo. Aqui o corpo ganha a característica do controle do não controle com manipula-ção de energia (intensidade de força muscular) e impulsos.

Os palhaços subvertem a própria ação física, construindo e desconstruindo sua função em um jogo de riso. Talvez aí esteja uma contribuição possível a se fazer para os atores. A ação é física. É concreta. É preciso aprender a reagir com o corpo. (FUNCHAL, 2009: 8)

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A repetição do experimento corporal gera uma organicidade do movi-mento, ou seja, uma organização corporal orgânica, imprescindível ao traba-lho final artístico.

a vOZ

Há muito pouco estudo sobre a voz do ator cômico e é realmente compli-cado falar sobre a utilização correta da voz no espaço da rua ou do picadeiro. Por mais cuidado com aquecimento e treinamento que se tenha, o ator acaba se prejudicando, machucando as pregas vocais, tendo que falar alto demais, ultrapassando os limites físicos e biológicos, devido à péssima acústica e a grande competição sonora.

Mas e os artistas de rua que sempre existiram? Não foi sempre assim, hoje as ruas são muito diferentes do que eram no tempo da commedia dell’arte, por exemplo. A competição sonora é com carros, propagandas, trabalhadores em construção, máquinas. Não há como não prejudicar a voz, tendo que fazer os espectadores te ouvirem, em horário comercial. Ou você vai além do seu limite ou o barulho da rua te engole.

A solução de alguns atores é suprimir esse elemento. A voz é substituída pelo corpo, que fala. Alguns circos de grande dimensão deixam para os palha-ços apenas as trapalhadas físicas, em pequenos esquetes, pois o picadeiro é grande demais e a voz dos palhaços não seria facilmente escutada sem ajuda de aparelhos sonoros36.

No Brasil, percebe-se uma identidade de voz nos palhaços. Uma qualidade de voz estridente, metálica e anasalada. É provável que sejam os timbres que possuam maior alcance e ressonância devido à freqüência diferente dos ruídos sonoros da rua ou picadeiro e, por isso, sejam mais utilizados. Não há muito que se escolher quando o espaço é grande e a necessidade de comunicação é vital. A escolha é a do timbre que alcança maior distância e machuca menos as pregais vocais.

Quando você fala forte, você deve falar agudo. O ruído do ambiente normal-mente está em uma freqüência mais grave, então você fala em um tom mais alto para não competir com o ruído que geralmente é mais baixo. imagine um cantor lírico: como é que ele faz para cantar sem microfone, com uma orquestra de cem instrumentos? (...) ele fura o som (...) a orquestra trabalha em uma região de freqüência e ele em outra. ele é esperto! O ator também deve ser esperto nesse sentido, ele deve sacar a paisagem sonora, o que acontece na cena e trabalhar em uma outra freqüência. (sueli master37).

No treinamento com o Grupo Mambembe, no processo de montagem de uma peça de Rua, Soffredini criou um exercício em que o ator fica a 50m do

36. É o caso do Cirque de Soleil ou dos circos americanos de grande porte.37. Todas as citações com nome: Sueli Master, referem-se a transcrições das aulas de Expressão Vocal , ministradas pela professora doutora, no Instituto de Artes da UNESP.

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diretor e deve fazer a leitura do texto, de maneira que ele ouça. Isso cria um tempo diferente, uma articulação diferente, um timbre diferente para o ator.

A descoberta desse limite traz, concomitantemente, outras conseqüências. Esse tipo de projeção leva à valorização da articulação das palavras, promove a ele-vação da altura da emissão do texto, e passa a exigir do ator um outro tempo de enunciação da fala, tempo esse diretamente relacionado ao espaço no qual a cena se insere (o ator, dada a dimensão do espaço, ”leva mais tempo” para pronunciar as falas). Finalmente o conjunto desses procedimentos repercute na criação da personagem. (BRITO, Rubens. 2004: 174)

O ator deve então descobrir o limite do alcance vocal, explorando todas as caixas de ressonância, todos os diferentes timbres, tons etc. Mais do que achar uma voz que combine com a personalidade do palhaço ou que desenhe suas características, o ator deve achar uma voz que seja eficiente, que se inte-gre ao corpo, ao jogo.

A intensidade da voz depende do quê? De duas coisas: da força com que o ar sai e da ressonância. Então é aquele velho exemplo, eu posso fazer: um, dois, três, quatro, com a boca fechada e com a mesma força de ar eu posso fazer: um, dois, três, quatro, de boca mais aberta. Por eu ter aberto essa cavidade de ressonância eu ganho em intensidade sem aumentar a força respiratória. Para falar forte não é só a força com que o ar sai do pulmão, é uma questão de ressonância também. (Sueli Master)

Exercícios que misturem condicionamento e fôlego com trabalho vocal são importantes pois aumentam a resistência da voz do ator. As pregas vocais são músculos e assim como qualquer musculatura, podem ser fortificadas, ex-pandidas, alongadas. Buscar exercícios que fortifiquem as pregas vocais, que aumentem a ressonância do ator, que treinem sua melhor projeção, criam pos-sibilidades maiores de o ator fazer esta linguagem sem se prejudicar.

O palhaço Xupetin, no Festival de Circo de Limeira, em oficina curta aos palhaços dos circos ali instalados, passou o seguinte exercício: os atores de-viam correr em círculo gritando sem parar, o mais alto que podiam. Enquanto eles corriam, Xupetin passava batendo na barriga deles e pedindo mais altura e mais força, sem deixá-los parar a corrida. Daí, entende-se como um palhaço popular, às vezes pode tratar da questão da voz. Sem o entendimento da téc-nica, acaba prejudicando as pregas vocais.

a voz é corpo na linguagem cômica, no sentido em que modifica o corpo-ral, o tempo de cena, o ritmo da comédia, o jogo com o público e no sentido em que desenha imagens no espaço, assim como o corpo do ator. O roteiro se dá a partir das possibilidades de voz. Os diálogos devem ser diretos e essen-ciais. No diálogo abaixo, de um esquete compilado no livro Palhaços, de Mario Fernando Bolognesi, pode-se comprovar essa afirmação:

1. Tive uma idéia!

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2. Me dá um pedaço?

1. Pedaço do que?

2. Da geléia!

1. Que geléia eu falei idéia!

2. Mas aonde é que tem idéia?

1. Ué! Na cabeça!

2. Na minha não tem não! Só tem piolho, olha só!

A articulação deve ser vista com atenção especial. É primordial uma fala bem articulada para não gerar confusões no entendimento da platéia. Para a piada logo acima funcionar, o público não pode perder nenhuma parte. Exercí-cios referentes a articulação, como falar com uma rolha entre os dentes, devem ser muito explorados.

É certo que, associado à fala, o corpo comunica o que é essencial e deve ser aproveitado ao máximo. Se alguém não escutou a frase, deve perceber o contexto pelo corporal do palhaço. Na experiência, percebe-se que o corpo as-sociado à musicalidade do texto reforça a intenção da palavra. Isso gera uma organicidade física do clown, necessária para uma boa cena.

Uma dica recebida através da tradição oral circense: direcionar a voz para a curva da lona, ou seja, na diagonal à frente e acima de sua cabeça, tendo como referência o centro do picadeiro. Assim, o som é rebatido para o público, resul-tando em um melhor desempenho vocal. Para rua: sem dicas fundamentais, não há paredes ou lonas e por isso a utilização de recursos como apitos e cornetas que narrem às cenas ou cones que aumentem o volume da voz, ajudam na co-municação.

eXperiÊncias prÁticas: Relatos e descobertas

A visão que temos de nós é sempre a partir dos outros. Só me reconheço no outro, só me entendo e me modifico, quando me percebo em relação a alguém. O outro se transforma em espelho do meu corpo e das minhas ações. Se mal sabemos como é o nosso corpo cotidiano, como dominar um outro corpo, ainda mais distante de nós? Essa foi uma das inquietações que estiveram presentes em todo o processo de experienciação corporal do palhaço.

Essa aparente indefinição das ações do palhaço, de como ele é, como reage diante de situações inesperadas e a sua constante necessidade de fazer rir, pode ser em muitos momentos um obstáculo para os atores, em especial para aqueles que estão dando os seus primeiros passos rumo à criação corporal da persona-gem. Numa das aulas de improvisação cômica, na turma do ano de 2009, o pro-fessor Mário Bolognesi esclareceu algumas questões técnicas e principalmente

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falou sobre a importância da fisicalização dos objetos.

Isa - Dificuldade: como deixar com algum gesto, o objeto visível, sem ser óbvio? Como fisicalizar sem ser ilustrativo? Na nossa cabeça acontecia, mas não nas dos outros.

Alex- Teve muita mímica. Às vezes a gente tem certeza e o outro não entende nada.

nati - Talvez o que tenha faltado, tenha sido explorar o contra-gesto, a dilatação do movimento, coisas que trabalhamos no exercício mas que não apareceram nas cenas, pra que a fisicalização fique clara e limpa.

Júnia - Não sei se o público tem que entender tudo: a barraca, o acampamento...

Isa - Mas a cabana ninguém entendeu. Ser claro sem ser óbvio, entender o que é imprescindível da ação.

Alessandro - Sem o objeto o desafio é muito maior.

Júnia - tem muito objeto que a gente acha que compõe e não compõe. Usa para facilitar e acaba atrapalhando.

Alex - Dá pra fazer as coisas sem nada, mas se é um avião e não ficar claro, aí fica surreal. Falta alguma coisa. Um gesto a mais que vai deixar super claro.

marinho - É preciso haver uma melhor definição da situação, melhor definição de tudo. Buscar a essência do gesto. O que é um pinico? Qual a síntese daquele objeto? Vai na essência. Pouco gesto. Claro que sem o objeto se explora a potencialidade para expor o objeto. Tem que deixar claro o “faz de conta”. De um modo geral, a clareza da situação fica comprometida dada a não clareza do corpo, contaminado pelo cotidiano. Foco – A limpeza do gesto intimamente depende do foco. O que ele quer e pra que ele quer. Síntese. Teatro de demonstração e não de vivenciação. Não precisa “entrar numas”, só demonstrar que funciona.

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Circo da Barra do Instituto de Artes da UNESP - Campus de São Paulo / Barra Funda. (maio de 2008)

Treinamento corporal da Trupe Estrupiada. (abril de 2008)

Esquete: o jornal, na oficina: Palhaços, no Circo da Barra. (julho de 2008)

Tatiane e Pedro, da Trupe Estrupiada, em ensaio da peça: Ilha dos Escravos, no Instituto de Artes da UNESP. (maio de 2008)

Tatiane e Pedro, da Trupe Estrupiada, em ensaio da peça: Ilha dos Escravos, no Instituto de Artes da UNESP. (maio de 2008)

Trupe Estrupiada: Juliana Arapiraca, Natália Siufi, Tatiane Ramos, João Alves e Nara Neckis. (maio de 2008)

fotos

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Participantes da oficina: Palhaços, no Circo da Barra. (julho de 2008)

Espetáculo Trapo e Farrapo, na Bienal Interna-cional do livro. (agosto de 2008)

Oficina: Palhaços, ministrada por Mario Bolog-nesi, no Circo da Barra. (julho de 2008)

João e Natália, da Trupe Estrupiada, e Mariana (no alto), lavando as lonas do Circo da Barra. (janeiro de 2009)

João, da Trupe Estrupiada, lavando as lonas do Circo da Barra. (janeiro de 2009)

Espetáculo: Trapo e Farrapo, na Bienal Interna-cional do livro. (agosto de 2008)

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Festival Paulista de Circo 2009, em Limeira. (abril de 2009)

Jogo DESEQUILÍBRIO II, com os alunos de improvisação cômica, sob a condução de Mário Bolognesi. (maio de 2009)

Palito e a freira, em saída de rua na estação rodo-ferroviária Barra Funda. (junho de 2009)

Apresentação de esquete, nas aulas de improvi-sação cômica sob a condução de Mário Bolog-nesi. (maio de 2009)

Oficina de palhaços ministrada pelo palhaço Xupetin, no Festival Paulista de Circo. (abril de 2009)

Natália e Mário Bolognesi, ajustando a lona superior do Circo da Barra. (janeiro de 2009)

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Seguranças da estação rodo-ferroviária Barra Funda, impedindo a apresentação dos palha-ços. (junho de 2009)

Leris Colombaioni na oficina: Palhaçaria Clássi-ca, em Campinas, no espaço semente. (setem-bro de 2009)

Participantes da oficina: Palhaçaria Clássica, de Leris Colombaioni, no espaço semente. (se-tembro de 2009)

Leris Colombaioni mostra os princípios da QUEDA DA CADEIRA. (setembro de 2009)

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“Tudo o que precisa ser feito, pode até ser mal feito, mas precisa ser feito”.38

Este estudo representa a conclusão de uma graduação e de três anos de pesquisa. Percebe-se que a personagem palhaço é um objeto de extrema com-plexidade para ser abordado em pesquisa tão curta e sem o aprofundamento necessário. Para entender um universo em que se misturam, num único jogo, es-pectador, ator e arquétipo, são necessários empenho e dedicação. Há uma von-tade imensa da continuação do fichário, com ajuda de outros colegas da área, para que se torne um material de pesquisa razoável e interessante.

A escolha de se enveredar pelo caminho do não convencional como forma de apresentação do material, pois se acredita que um trabalho dentro da área de artes, deve primar pela forma e pelo conteúdo, revela a ideologia de desvio e de transgressão do próprio palhaço, que não se encaixaria em normas e regras rígidas.

Escrever acerca do objeto nos aproximou dele e clareou diversas questões. A tarefa de lutar com as palavras, parafraseando Drummond, é um exercício ár-duo e diário, mais ainda quando o trabalho é conjunto, o que exige maturidade, parceria e acordos. Mas também reflete a condição da arte teatral que é sempre coletiva e compartilhada. Teorizar a prática é uma necessidade e também um risco.

Entrega: essa palavra empresta significado pertinente a todo o processo de experimentação do palhaço. O ator deve se desprender dos vícios corporais, liberar seu ridículo, relacionar-se com o outro e com o espectador. Não é ele o foco de trabalho, mas o jogo e as relações que esse jogo pede.

Não existiria palhaço num mundo sem erros, num mundo solitário ou se as pessoas fossem todas iguais. O palhaço é contradição: a dialética que se presen-tifica nas ações, o palhaço é desvio, é grotesco, ele está fora dos padrões sociais. Seus assuntos são os mais primitivos e suas questões, elementares. A ingenui-dade, a vulnerabilidade, o ridículo: aspectos dessa personagem que evidenciam sua forma de ser e estar no mundo.

Corpo que comunica: o trabalho corporal é parte essencial e complexa. A apropriação e reconhecimento de sua própria tradição para o treinamento cor-poral:, o ator deve entender os conceitos: fragmentação, dilatação, quebra, pontuação... Saber decupar o movimento, ter o controle absoluto das situações, perceber o que está a sua volta e transformar a cena. Nunca há nada fixo ou

38. Frase utilizada por militantes comunistas cuja autonomia é difícil de ser apreendida.

conclusão

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exatamente programado, o trabalho do palhaço é um processo em mudança constante.

A improvisação requer o uso da técnica totalmente assimilada e orgânica no ator, a criação de um repertório, que cresce a partir da experiência, da vivência, do jogo. A triangulação leva o foco do ator para o espectador, redimensionando o sentido do fazer artístico. A técnica exige atenção constante, rapidez nas to-madas de decisão, precisão e controle do corpo da personagem e do ator.

Tantas reflexões, poucas certezas. A sensação de muito a ser feito, mas também sensação de dever cumprido. Fica a idéia de que as raízes populares têm elementos sofisticados de dificílima apreensão para os que não a vivenciam. Fica a necessidade de registro dessas expressões. Um aprendizado que precisa ir além da técnica, que deve ser práxico e compartilhado.

A certeza de que o circo transita com o constante risco entre vida e morte, entre fracasso e êxito, entre certeza e incerteza, nos faz continuar e nos impul-siona para novas empreitadas. Fica o vermelho no nariz e o riso na boca, levados para além dos muros universitários.

“Em que está trabalhando?”, perguntaram ao sr. K. Ele respondeu: “Tenho muito o que fazer, preparo meu próximo erro”. (Bertolt Brecht)

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