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VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 1 ‘Que os olhos livres fazem a alma escrava’ : a poesia dramática de Eugénio de Castro. Um diálogo interior com o teatro de Maurice Maeterlinck Maria de Jesus Cabral FCT/ Universidade de Coimbra La Scène est [...] la majestueuse ouverture sur le mystère dont on est au monde pour envisager la grandeur (Stéphane Mallarmé). O nome e a obra de Eugénio de Castro (1869-1944) estão íntima e privilegiadamente associados à poética decadentista e simbolista finisseculares, espelhada nas suas obras novecentistas 1 , publicadas em anos-charneira de viragem estética que preludia o “litígio das modernidades” – segundo a expressão de José Carlos Seabra Pereira 2 . É sem dúvida o poeta português que mais se consagrou a relevar os desafios literários lançados desde Paris em época de “Crise de versos” – “exquise, fondamentale”, tal como a definiu Mallarmé em passo decisivo do seu “Avant-Dire” ao Traité du Verbe de René Ghil (1886) –, ou seja, a revolucionar a poesia, do ponto de vista formal e linguístico. 1 A crítica divide habitualmente a obra de Eugénio de Castro em dois grandes momentos: o primeiro corresponde à fase “inconformista” e abarca a produção das colectâneas poéticas Oaristos, Horas e Silva, bem como os poemas dramáticos Sagramor, O Rei Galaor, Belkiss, Tiresias, Salomé, O Anel de Polícrates publicada na década de 1890; a segunda fase, comummente designada por “pós-simbolista”, ou “neoclassicizante”, abre com Constança, em 1900, logo seguida por Depois da Ceifa. 2 Aludimos ao artigo de José Carlos Seabra Pereira “A condição do Simbolismo em Portugal e o litígio das modernidades” (Pereira, 1989-1990: 143-156).

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‘Que os olhos livres fazem a alma escrava’ : a poesia dramática de Eugénio de Castro.

Um diálogo interior com o teatro de Maurice Maeterlinck

Maria de Jesus Cabral FCT/ Universidade de Coimbra

La Scène est [...] la majestueuse ouverture sur le mystère dont on est au monde pour envisager la grandeur (Stéphane Mallarmé).

O nome e a obra de Eugénio de Castro (1869-1944) estão íntima e

privilegiadamente associados à poética decadentista e simbolista finisseculares,

espelhada nas suas obras novecentistas1, publicadas em anos-charneira de viragem

estética que preludia o “litígio das modernidades” – segundo a expressão de José Carlos

Seabra Pereira2.

É sem dúvida o poeta português que mais se consagrou a relevar os desafios

literários lançados desde Paris em época de “Crise de versos” – “exquise,

fondamentale”, tal como a definiu Mallarmé em passo decisivo do seu “Avant-Dire” ao

Traité du Verbe de René Ghil (1886) –, ou seja, a revolucionar a poesia, do ponto de

vista formal e linguístico.

1 A crítica divide habitualmente a obra de Eugénio de Castro em dois grandes momentos: o primeiro corresponde à fase “inconformista” e abarca a produção das colectâneas poéticas Oaristos, Horas e Silva, bem como os poemas dramáticos Sagramor, O Rei Galaor, Belkiss, Tiresias, Salomé, O Anel de Polícrates publicada na década de 1890; a segunda fase, comummente designada por “pós-simbolista”, ou “neoclassicizante”, abre com Constança, em 1900, logo seguida por Depois da Ceifa. 2 Aludimos ao artigo de José Carlos Seabra Pereira “A condição do Simbolismo em Portugal e o litígio das modernidades” (Pereira, 1989-1990: 143-156).

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“La poésie rénumère le défaut des langues” (Mallarmé)

No polémico prefácio-programa de Oaristos (1890), Eugénio de Castro

invectiva toda uma tradição literária presa a padrões e práticas convencionais da poesia

e da própria linguagem. Movido pelo desejo de “épater le bourgeois” (Castro, 1927:13),

e de sacudir os espíritos e a literatura da “paralisia que a entravava” (1927:14), o poeta

acusa a poesia portuguesa de permanecer “na concorridíssima estação da Vulgaridade”

(1927:21), perpetuando versos, rima e vocabulário de “uma franciscana pobreza”

(idem), e impele os seus congéneres a entrarem no “expresso da Originalidade”.

Militante e provocador, afirma sem subtilezas:

Este livro [Oaristos] é o primeiro que em Portugal aparece defendendo a

liberdade do Ritmo contra os dogmáticos e estultos decretos dos velhos

prosodistas (Castro, 1927:22).

Este timbre subversivo está patente nas revistas Boémia Nova e Os Insubmissos

(1889), vindas a lume em sincronia e sinergia intelectual e estética com o ambiente de

“Revolução poética” (Guy Michaud, 1995: 127) que tinha o seu epicentro na capital

francesa, mas que a dinâmica transfronteiriça e marcadamente francófila do nefelibata

português irradiou no campo das letras portuguesas. Na mesma linha, surge a acção de

Castro à frente de Arte, revista internacional (Outubro1895- Junho 1896), que se

manifesta dentro de um espírito cosmopolita sem precedentes na Literatura Portuguesa.

Isso mesmo nos revela um simples exame do índice da revista, em que se avizinham,

escritos em várias línguas, mas com predominância para o francês, textos de índole

ficcional – poesia sobretudo, mas também alguns contos e poemas dramáticos – e outros

de vertente crítico-ensaística. Sem postergar a sua idiossincrasia lusa e o seu propósito

de divulgar a “Jovem Literatura Portuguesa”, ressalta uma visão aberta ao exterior e a

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crença na capacidade da literatura em atravessar e até mesmo transcender fronteiras

geográficas, linguísticas ou culturais. Pelo contrário, transparece a vontade de simbiose,

de sinergias e de intercâmbios “no sentido da communicação e communhão de Portugal

com o melhor das litteraturas europeias” (1895: 54), como se pode ler no artigo

“Portugal no estrangeiro”, que enumera o elenco de periódicos que permutavam com a

nossa coimbrã: “Bayreuther Blatter (da Baviera), Echo des Jeunes (Canada), Mercure

de France, Revues des Revues, Vero (Itália), Zeit (Viena) /…/ e especialmente

l’Ermitage e La Revue Blanche”3. Mas o mais espantoso é a autêntica sincronia quer

dos textos programáticos quer dos da própria produção poética que interagiam hors

frontières, veiculando os valores estéticos da nova Escola idealista. Nunca a Literatura

europeia conhecera tamanha efervescência cosmopolita.

Aproximava os “novos” (idem), nessa busca concertada de renovação dos

moldes estéticos, um profundo sentimento anti-realista, bem vivo na obra dos seus

ilustres antecessores – desde a “engenharia de avessos” de Edgar Allan Poe4 ao

esteticismo dandy de Baudelaire e ao ideário da Gesamtkunswerk (“obra de arte total”)

de Wagner –, mas que tinha no momento por estandarte a obra e a própria figura de

Stéphane Mallarmé, o “mestre” da Rue de Rome, como era comummente apelidado. É

de lembrar o papel mediador, até mesmo propulsor, das célebres tertúlias da Terça-feira

para a dinâmica transfronteiriça do movimento5.

À semelhança de Paul Claudel, André Gide, Debussy, Paul Valéry, Stephan

George, Whistler, Vittorio Picca, Emile Verhaeren, Rodin entre muitos outros, o

percurso literário de Eugénio de Castro também passou por Paris e pela atracção que a

3 O número de Agosto do mesmo ano da Revue Blanche publica um artigo sobre Sagramor, juntamente com um retrato de Eugénio de Castro por Félix Vallotton, o mesmo que colaborara no célebre Livre des Masques de Rémy de Gourmont (1896). 4 Seguimos a expressão muito sugestiva de Haroldo de Campos (1971). 5 Assim o sublinha Lloyd J. Austin, na Introdução ao quarto volume da correspondência do poeta francês: “les Mardis de la rue de Rome [...] attir[aient] l’élite de la France et du monde” (Mallarmé, 1973 : 8).

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obra e afigura de Mallarmé exercia na nova geração de escritores e artistas. Nascidos

fundamentalmente na década de 1860, todos perfilhavam a “très haute Religion

Artistique dont [vous êtes], avec le divin Wagner et le sublime Poe, un des plus

admirables Pontifes”, como lhe escreve Eugénio de Castro em Abril de 1891

(Mallarmé, 1973: 228), enviando-lhe as suas colectâneas Oaristos e Horas. O mestre

francês salientou inéditas qualidades de ritmo e harmonia, a ponto de querer ler em

língua portuguesa: Eugénio de Castro era matricialmente um poeta, falavam uma

linguagem comum6.

Tanto na linguagem poética como a nível da reflexão teórica – que deixam de

ser práticas estanques, caracterizando-se pelo contrário por influências mútuas, como o

manifesta o “poema crítico” de Mallarmé, recorrente em Divagations7 – as palavras

“beleza”, mistério”, “sonho” e “ideia” ganham uma dimensão axiológica, para além da

acepção estética. Sintomática desse novo valor, revela-se a expressão metafórica

“Religião Artística”, utilizada pelo poeta coimbrão na carta a Mallarmé acima citada,

também com letra maiúscula, espelhando toda a dimensão idealista, espiritual e mística

que também transparece do título da já referida revista coimbrã, Arte.

No prefácio que Manuel da Silva Gaio, companheiro de Castro, escreveu à

segunda edição de Horas, anotou, como característica essencial do seu companheiro, a

capacidade de converter o real “em motivo de Beleza” (Castro, 1927: 75), em ruptura

com a tendência realista – marcadamente positivista – de subordinação ao paradigma

mimético vigente na literatura contemporânea. Contrariando uma arte directa “de

representações e figuras” (1927:74), estável e descritivista, é na “transposição da 6 Para dar uma ideia da fecundidade das relações literárias e de amizade de Eugénio de Castro com a ‘mêlée’ simbolista, referir-se-á que o espólio epistolográfico do poeta coimbrão referente à década de 1980 contém mais de uma centena de cartas de nomes da vanguarda poética: Mallarmé, Maeterlinck, Mockel, René Ghil, Stuart Merril, Viélé-Griffin são referências assinaláveis. 7 Embora esse aspecto esteja desde muito cedo presente na sua obra. Em carta de Janeiro de 1867, dirigida a Eugène Lefébure, Mallarmé alude ao “Poëte Moderne, du dernier, qui, au fond, est un critique avant tout”, acrescentando “c’est bien ce que j’observe sur moi …” (Mallarmé, 1995: 348).

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realidade em valores de gama ideal” (1927:74) que reside o verdadeiro gesto artista,

“criador de Beleza” (1927:76). Um simbolismo – sublinhado pelo autor – “no sentido de

Arte de estilo como antagónica com a Arte de carácter” (1927: 76).

Mas para além das inovações rítmicas, dos “raros vocábulos” e das esotéricas

imagens que dão uma aura tão caracteristicamente decadentista ao poeta dos Oaristos, a

obra novecentista de Eugénio de Castro assume outras formas e outras práticas que

merecem ser enquadradas à luz da viragem idealista a profunda renovação “idealista”

levada a cabo pela nova geração simbolista.

Naturalmente influenciado pela atmosfera de exemplar questionamento e

mutação dos paradigmas literários e artísticos – numa perspectiva de criatividade e não

de crise –, e inconformista por temperamento e por escola8, Eugénio de Castro

desenvolveu várias obras que escapam à definição estrita e estreita de poesia, situando-

se numa zona de fronteira em que a poesia se encontra com o drama. É disso exemplo a

poesia dramática que desenvolveu, paralelamente aos seus poemas líricos novecentistas

– ou seja com pouco mais de vinte anos: Belkiss (1894), Sagramor (1895), Salomé

(1896), O Rei Galaor (1897), A Nereide de Harlém (1897). Belkiss foi desde logo

traduzida em italiano por Vittorio Picca, sendo também a sua versão francesa, como

aliás a de Sagramor, publicada na revista Arte9. Se a simples enumeração contrasta

desde logo com o lugar periférico a que são habitualmente remetidos, parece-nos haver

ainda dois aspectos que não mereceram a devida atenção crítica. O primeiro é o facto de

o interesse e de a incursão de Eugénio de Castro pelo género dramático se

desenvolverem concomitantemente à forte demanda de renovação teatral nos meios

8 Ainda que a sua poesia evolua num sentido neoclassicizante, mormente a partir de Constança (1900), como o demonstrou Aníbal Pinto Castro estudando a relação entre “tradição e inovação na poesia de Eugénio de Castro”. Citamos a partir deste artigo a própria afirmação do poeta, já no crepúsculo da sua vida literária, ao jornal Acção: “Fui um revolucionário e, pela ordem natural das coisas, estou reaccionário…” (Pinto de Castro, 1969:30). 9 Como se verifica na já citada revista coimbrã Arte (1896: 303-304; 312).

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simbolistas franco belgas, no sentido de romper com “l’usage actuel du théâtre avec

furie et magie drapés” (Mallarmé, 1998: 183). Ainda que as repercussões tenham sido

modestas no panorama da dramaturgia portuguesa que permanece “enfeudada aos

esquemas naturalistas” até parte significativa do século XX, como o observou Luís

Francisco Rebello na obra que dedica ao teatro simbolista e modernista (1979: 82) não

podemos postergar a cadeia de comunicação que se cria no caminho da renovação do

drama que será sequentemente levada a cabo por autores como António Patrício, Raul

Brandão ou Almada Negreiros10. Por outro lado, tendo estudado a configuração do

trágico de dimensão interior no primeiro teatro simbolista de Maurice Maeterlinck em

paralelo com o projecto teatral de Mallarmé11 assente na tragicidade essencial e

existencial do ser humano, fomos particularmente sensíveis aos jogos intertextuais que

interligam a obra do dramaturgo belga e os quase desconhecidos poemas dramáticos do

poeta português. Tentaremos mais à frente pôr em evidência algumas dessas afinidades,

debruçando-nos sobre alguns poemas dramáticos, mais especificamente sobre Belkiss.

“Desde ontem a realidade é o impossível” (António Patrício)

Dá-se, assim, um virar-de-rumo paradigmático perante o real, sendo que este

apenas constitui uma passagem para uma dimensão interior, fonte de libertação da

verdadeira natureza humana. Lembremos a forma concisa, mas convicta e programática,

como Gustave Kahn enunciou essa mudança, em Setembro de 1886 na revista

L’Evènement12, escrevendo: “Le but de notre art est d’objectiver le subjectif

10 Esta é a linha de investigação mais ampla, que estamos a desenvolver no âmbito de um projecto de pós-doutoramento subordinado ao tema “rumos do teatro poético, dos impulsos ‘novistas’ finisseculares às viragens modernistas” (FCT/ Universidade de Coimbra). 11 Na obra Mallarmé hors frontières (Cabral, 2007), versão publicada da nossa tese de doutoramento. 12 Em termos bastantes próximos, Fernando Pessoa escreverá em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação: “A obra de arte, fundamentalmente, consiste numa interpretação objectivada duma impressão subjectiva (Pessoa, 1966:177).

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(extériorisation de l’Idée) au lieu de subjectiver l’objectif (la nature vue à travers un

tempérament” (Delsemme, 1964: 3-4).

Desta viragem operativa nasce uma crença fundamental: a da existência de um

mundo interior que é mistério a descobrir, oposto à superficialidade imediata e estável,

determinada em positividade; um mundo denso e complexo, móbil e impalpável, que,

por isso, necessita de novas formas de expressão – de uma nova expressividade. No

texto de referência “Le Mystère dans les lettres” (1896), Mallarmé lança um dado de

amplo alcance no limiar do século XX13:

Il doit y avoir quelque chose d’occulte au fond de tous, je crois

décidément à quelque chose d’abscons, signifiant fermé et caché, qui

habite le commun ; (…) cette réalité s’agite, ouragan jaloux d’attribuer

les ténèbres à quoi que ce soit, profusément, flagramment (Mallarmé,

1998 : 274)

Dez anos antes, formulara a sua concepção de Literatura, que se enforma numa

correlação entre a estética e a metafísica e na relativização genológica. É assim

transferida para o mundo ficcional da literatura toda aquela dimensão oculta e profunda

do ser, aglutinadora de múltiplas potencialidades, de que o poeta será o mediador por

excelência segundo um duplo desígnio, poético e analítico:

Je crois que la Littérature, reprise à sa source qui est l’Art et la Science,

nous fournira un Théâtre dont les représentations sont le vrai culte

moderne, un Livre, explication de l’homme, suffisante à nos plus beaux

rêves. Je crois tout cela écrit dans la nature de façon à ne laisser fermer

13 Não cabendo explicitar as ligações e os paralelismos entre a arte e a ciência, parece-nos contudo oportuno lembrar que Freud – nascido em 1856 – divulgava por esta altura os seus primeiros estudos sobre o inconsciente e sobre a interpretação dos sonhos. Em 1900, publica A Interpretação dos Sonhos.

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les yeux aux intéressés à ne rien voir […]. Montrer cela et soulever un

coin du voile de ce peut-être pareil poème, est dans un isolement mon

plaisir et ma satisfaction14.

Este breve percurso através de alguns textos talvez seja suficiente para inferir

alguns dos valores da doutrina simbolista, mas também o debelar de fronteiras

genológicas – Mallarmé utiliza os vocábulos teatro, livro e poema como sinónimos –,

gesto que aliás se actualiza numa progressiva convergência com outras manifestações

artísticas – não abdicando contudo da eminente posição das letras: “aux convergences

des autres arts située, issue d’eux et les gouvernant, la Fiction ou Poésie” (Mallarmé

1998:237).

Estamos, em suma, num momento crucial de rejeição da mimese realista, que

também irá contribuir para a superação de um paradigma teatral onde imperava o

grosseiro fait divers. Assim o denunciou Mallarmé, de forma especialmente empenhada,

no seu artigo “Richard Wagner, rêverie d’un poète français” (1885), em plena

efervescência simbolista:

[L’opéra de Wagner] surgit au temps d’un théâtre, le seul qu’on peut

appeler caduc, tant la Fiction en est fabriquée d’un élément grossier :

puisqu’elle s’impose à même et tout d’un coup, commandant de croire à

l’existence du personnage et de l’aventure, de croire simplement, rien de

plus (Mallarmé : 1998: 170).

14 Este texto figura numa carta de Novembro de 1886 a Vittorio Pica e é publicado em artigo de 27 novembro na Gazzetta Letteraria com o título «I Moderni Bizantini: Stéphane Mallarmé» (Mallarmé, 1969: 73 e notas), antes de ser inserido pelo poeta em Divagations (Mallarmé, 1998: 399).

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Nesta mesma linha de vanguarda se inserem as suas “Notes sur le théâtre” –

provenientes da sua “campanha dramática” para a Revue indépendante de Edouard

Dujardin15 entre 1886 e 1887 –, não obstante a sua disseminação em Divagations – que

se fazem eco do teatro idealizado por Mallarmé desde os primórdios de Hérodiade16,

em 1864, refém contudo, da impossível “identité du Livre et de la Pièce”17. Passados

vinte anos de reflexões e tentativas para libertar o teatro da utópica “scène de l’esprit”,

Mallarmé é confrontado com as cenas parisienses, onde impera o teatro de Boulevard e

peças de pendor naturalista, claramente assentes no “hargneux fait divers”, segundo ele

mesmo denuncia – por vezes com acerada ironia – nas suas crónicas18. Ciente, contudo,

da premência da renovação do género, Mallarmé relança, afinando-as, as suas posições

e proposições críticas do seu teatro mental. Não só o pretende despido das

convencionais categorias “vierge de temps lieux et personnes sus”, como da própria

expressão teatral que deverá “chuchoter les échos /intérieurs” (Mallarmé, 1998: 227).

Com isso, (re)afirma ainda a necessária participação do receptor, que deverá ser co-

construtor do espectáculo, na “scène intérieure” (idem).

“Le domaine de l’âme s’étend chaque jour davantage” (Maeterlinck)

A eminente conciliação do teatro ao livro, encontramo-la contudo no “primeiro

teatro”19 de Maurice Maeterlinck, desde a sua primeira peça La Princesse Maleine

(1889), logo seguida da célebre “trilogia da Morte”, constituída por três peças: L’Intruse

15 Embora com algumas reservas, antecipando até um sentimento de desilusão, como se pode ler numa carta endereçada a Dujardin em Agosto de 1886 : « je vous expliquerai de vive voix comment parler du Théâtre Contemporain sans passer pour un fou ou l’homme d’une autre planète si je fais même une allusion aux rêves voulant un autre état ! est difficile autant que vain » (Mallarmé, 1969: 53). 16 Ver Cabral, 2007. 17 Citado das « Notes en vue du Livre » (Mallarmé, 1998 : I : 589). 18 Sobre a experiência de Mallarmé como crítico dramático cf. o nosso artigo “ Entre rêve et réalité: le théâtre des années 1880 crayonné par Mallarmé”, Confluências, 19, 2004, pp. 203-218. 19 O «primeiro teatro» é uma noção com que o próprio autor designa as peças produzidas de 1889 a 1894. Nestas obras, a ideia de um mistério universal e a de uma fatalidade inexorável traduzem uma concepção filosófica pessimista da existência humana.

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(1890), Les Aveugles (1890), Les Sept Princesses (1890) – que Eugénio de Castro se

propôs traduzir em português20. “Avec un vent de l’au-delà dans les trous”, como o

anotou Mallarmé, que foi uma das primeiras pessoas a ler a Princesse Maleine, esta

primeira incursão de Maeterlinck no género dramático contrapõe às formas

predeterminadas de cariz aristotélico um teatro de dimensão latente, que se molda numa

linguagem depurada, de sugestiva brevidade, fonte e rumor do trágico interior

consubstancial à vida humana. Vale a pena relembrar as impressões de Mallarmé sobre

a primeira peça de Maeterlinck:

/…/ un milieu à quoi, pour une cause, rien de simplement humain ne

convenait. Les murs d’un massif arrêt de toute réalité, ténèbres, basalte

[…] pour que leurs hôtes déteints avant d’y devenir les trous, étirant une

tragique fois, quelque membre de douleur habituels, et même souriant,

balbutiassent ou radotassent, seuls, la phrase de leur destin. Tandis qu’au

serment du spectateur il n’aurait existé personne ni rien se serait passé,

sur ces dalles (Mallarmé, 1998 : 228-229).

É operando essa viragem, essa “descida” para o domínio interior e secreto do ser

humano, diametralmente oposto ao trágico de superfície, ao trágico “si superficiel et si

matériel, du sang, des larmes extérieures et de la mort”, como o escreve Maeterlinck no

seu ensaio de 1896 sugestivamente intitulado “O Trágico Quotidiano” (Maeterlinck, I:

489), que o jovem poeta belga assimila e ultrapassa o teatro utópico de Mallarmé.

Ciente de viver uma época “d’éveil de l’âme humaine “(Maeterlinck, 1985: 165), o

poeta belga faz deste princípio invisível o principal pilar do seu teatro simbolista, a

20 Como o mostra uma carta endereçada a Maeterlinck em Dezembro de 1895 (apud. Chast, 1949: 159).

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ponto de lhe ser atribuído o papel de precursor do “Teatro da alma”21. Isso reflecte-se

não só no despojamento formal do drama – “il n’aurait existé personne ni rien se serait

passé” – mas no modo como constrói os próprios diálogos, dando-lhes um carácter

fracturado, balbuciante, que reflecte o vazio do sentido perante o absoluto da morte. A

catástrofe deixou de significar um qualquer feito externo, para adquirir uma dimensão

interior, invisível. E não há muros que protejam o homem da tragicidade essencial que

reside no “seul fait de vivre”. É este o cerne do primeiro teatro de Maeterlinck, desde a

Princesse Maleine (1889), de que lembraremos aqui um breve trecho:

MALEINE

J’ai peur!

HJALMAR

Mais nous sommes dans le parc…

MALEINE

Y a-t-il des murs autour du parc?

HJALMAR

Mais oui ; il y a des murs et des fosses autour du parc.

MALEINE

Et personne ne peut entrer?

HJALMAR

Non; - mais il y a bien des choses inconnues qui entrent malgré tout. (Maeterlinck,

1999, II: 130)

21 Cf. Edouard Schuré, Précurseurs et révoltés – Shelley, Nietzche, Ada Negri, Ibsen, Maeterlinck (1923).

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O reverso paradigmático operado por Maeterlinck enquadra-se nitidamente na

mundividência filosófica do pessimismo schopenhaueriano e no questionamento agudo

das relações da arte com o real mas também com a vontade. Entrara na literatura e no

espírito fim-de-século, como o observou Rémy de Gourmont : “Une vérité nouvelle /…/

toute métaphysique, c'est le principe de l'idéalité du monde (Gourmont 2002 :122). O

autor inscreve-a na esteira da filosofia do “mundo como representação e como

vontade”, de Schopenhauer:

Par rapport à l'homme, sujet pensant, le monde, tout ce qui est extérieur

au moi, n'existe que selon l'idée qu'il s'en fait. Nous ne connaissons que

des phénomènes, nous ne raisonnons que sur des apparences ; toute vérité

en soi nous échappe ; l'essence est inattaquable. C'est ce que

Schopenhauer a vulgarisé sous cette formule si simple et si claire : le

monde est ma représentation. Je ne vois pas ce qui est ; ce qui est, c'est ce

que je vois (Gourmont 2002 :122)

Este princípio de não-conformidade entre o que é e o que se vê, que pode ser

designado por “metafísica da vontade”, corresponde à ideia basilar para os simbolistas

de que o mundo possui um substrato impulsivo e irracional, aglutinador de nova(s)

realidade(s). O sonho revela-se neste contexto a via por excelência para aceder a esse

novo campo de visão – e de vida, como também o postulara Schopenhauer, lembrando

Shakespeare:

Somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos e a nossa vida tão

curta tem por fronteira um sono. E, enfim, Calderon estava tão

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profundamente penetrado por esta ideia que a tornou o assunto de uma

espécie de drama metafísico intitulado: A vida é um sonho22.

A fragilidade de fronteiras entre a vida e o sonho numa época em que se agudiza

o sentimento doloroso de que “sofrer é a própria essência da vida; que por consequência

o sofrimento não se infiltra em nós vindo de fora, nas trazemos connosco a inesgotável

fonte de que ele sai”, retomando Schopenhauer (Schopenhauer, [s/d]: 414), é o fio

condutor do primeiro teatro de Maeterlinck. Não se contentando, como inúmeros

contemporâneos de uma concepção de arte como refúgio e compensação artística do

real vil, Maeterlinck faz da sua obra um espaço de interrogação estético e metafísico das

angústias – filosóficas mas também civilizacionais – que invadem o homem finissecular

perante a destabilização de parâmetros e limites universalmente consagrados. Que os

conceitos de unidade e de ordem, da própria identidade são agora relativizados,

inclusive no campo das ciências, está por demais patente nas descobertas da psicanálise

e da física. Está fora de dúvida, também, a importância que assume, na mesma época, a

filosofia bergsoniana23 e o primado da intuição do misticismo e da interioridade –

prementes na obra de Maeterlinck. Assim exprime o autor o sentimento moderno da

fragilidade existencial do ser humano, que ele soube modelarmente traduzir nos seus

dramas – citamos o “Prefácio” que escreveu para a edição de 1901 do seu Teatro:

…Nous ne serons que de précaires et fortuites lueurs, abandonnées sans

dessein appréciable à tous les souffles d’une nuit indifférente. À peindre

cette faiblesse immense et inutile, on se rapproche le plus de la vérité 22 Na sua obra O Mundo como representação e como vontade, que utilizamos em tradução portuguesa de M.F. Sá Correia (Schopenhauer, s/d: 27). 23 Assim o considerou Paul Gorceix : « …la philosophie de Bergson qui distingue au-dessous du moi superficiel, social, «un moi fondamental» seulement accessible à l’intuition, fixe ce que pressentaient les symbolistes, à la suite de tant de poètes et des mystiques. Il est fort plausible de supposer que Maeterlinck retrouve en Bergson une démarche de pensée fondée sur l’intuition que Ruysbroeck et Novalis lui avaient ouverte.» (Gorceix, 1975: 126).

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dernière et radicale de notre être /…/ cette grande vérité immobile qui

glace l’énergie et le désir de vivre. C’est ce que j’ai tente dans ces petits

drames (Maeterlinck, 1999, I: 497).

“No mosaico do chão medram plantas estranhas” (E. Castro)

Contrariamente a Mallarmé e a Maeterlinck, o poeta novista português não

desenvolveu um pensamento teórico ou doutrinário sobre o teatro. Tão-pouco se definiu

de modo expresso ou ambíguo – como Pessoa que se considerou “um poeta dramático

escrevendo em poesia lírica” – como autor dramático. No entanto, o seu universo

poético “trágico, severo” e de “revelação profunda” como o sublinhou Silva Gaio no

prefácio já citado (Castro, 1927: 89), revela um substrato pessimista e melancólico que

se acentua progressivamente nas obras da primeira fase. Também no “Preambulo da

Segunda Edição” de Interlúnio (1894) o poeta reconhece em tom retrospectivo24 o seu

“conceito de vida fundamentalmente pessimista” e o “áspero niilismo [das] suas

páginas” (1927, II: 2], indelevelmente marcadas pelo ambiente do final do século.

Como observa José Carlos Seabra Pereira, esta dimensão metafísica da obra de Castro

assenta “numa visão radicalmente pessimista da vida, considerada má por essência”,

acrescentando que “quando não se identifica, desde logo, com uma Weltanschauung

derivada de Schopenhauer e de Hartmann, a sua poesia aproxima-se dela pelo próprio

padecer dos anos, sob o peso da “má fatalidade” e adere a uma mundividência

desesperada” (1975: 262-3). Manifestamente presente na obra de Eugénio de Castro,

essa sensação aparece exemplarmente configurada nos seus poemas dramáticos.

24 O texto é escrito em 1911.

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BELKISS

Despindo-se para entrar no leito:

Morrerei virgem! O meu corpo será uma roseira numa cisterna... (1927: 123)

Não bastassem as indicações cénicas detalhadas que precedem as falas, vemos

que o texto de Belkiss se estruturou do ponto de vista da encenação realmente como um

quadro dramático, o que, ainda a nível dos elementos paratextuais, é confirmado pelo

elenco das “dramatis personae”. A sua escrita organiza-se em dez quadros – seguindo a

fórmula francesa –, o que contribui para despojar o texto de convenções e de todo o

ritual de acções cénicas.

Tendo provavelmente em memória a Hérodiade de Mallarmé – cuja evocação é

por demais evidente no excerto acima –, mas também as princesas maeterlinckianas,

Eugénio de Castro cria Belkiss, uma personagem onde se confluem por uma “aliança

agónica”, segundo a expressão de Paula Morão25, quer a rainha de Sabá da tradição

judaico-cristã26, quer a Bilqis de matriz islâmica. Mas logo se afasta de todo esse

referencial mitológico, para nos revelar uma heroína trágica, “toda vestida de medo”,

contaminada pelo tédio e “chicoteada pela ânsia do irreal e do misterioso”, vivendo a

profunda incapacidade de controlar a sua vida, qual objecto de uma trajectória

existencial “de absurdo e anormalidades” na qual ela se viu lançada e donde não

conseguirá libertar-se senão pela morte final.

25 No seu ensaio sobre O feminino perverso em Salomé e outros mitos (Morão, 2000). 26 Segundo a Bíblia, ela surgiu do deserto liderando uma caravana de tesouros até à corte do Rei Salomão em Jerusalém.

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A atmosfera é insistentemente difusa – Belkiss aparece muitas vezes comparada

com um espectro ou uma sonâmbula –, refém das suas contradições. O seu discurso

reticente, sugestivo do entediamento anímico que assola a sua existência:

No palácio real de Sabá,

Ao anoitecer. Belkiss está me-

lancolicamente sentada a uma

janela: em frente, o mar Ver-

melho e, à esquerda, os jardins

reais escurecidos pela sombra

de uma grande e misteriosa

floresta. Ao lado de Belkiss

aparece, fantasmaticamente, o

velho Zophesamin.

ZOPHESAMIN

Nunca os teus olhos me pareceram tão magoados, Belkiss...

BELKISS

Estou muito fatigada... estive horas e horas a olhar para o mar e nada me

fatiga tanto... Esqueço-me a pensar... o meu espírito anda...anda...anda...

e, quando desperto, sinto-me tão abatida, que acabo por cuidar que

realmente fui onde o meu espírito foi...

ZOPHESAMIN

Nunca os teus olhos me pareceram tão magoados...

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À semelhança do teatro de Maeterlinck, a morte é algo que está subrepticiamente

presente no texto, não apenas a morte: a morte nascida do amor, dois temas que se

interligam na poesia de Castro “como um casamento na capela de um jazigo” (Horas,

1927: 120), mas de um modo aqui muito próximo do “trágico interior” que

modelarmente configura o drama simbolista maeterlinckiano.

O que está, afinal, na origem dessa poesia dramática escrita sob o signo da

fatalidade, que desvigora a vida e cria um universo de vertigem, de dor e até de loucura

– no qual Belkiss, rainha de Sabá se encontra sintomaticamente aprisionada –, e de que

só a morte a poderá libertar?

BELKISS

cortando as palavras com soluços:

Tens razão, tens. Meu velhinho… a tua razão é tão

Grande como a minha desgraça… eu própria vejo a

Loucura do meu intento, mas não posso abandoná-lo…

Sinto que vou despenhar-me num grande abismo ouri-

çado de cardos e piteiras, num abismo cheio de serpentes,

e quanto mais quero parar mais corro para lá… Sinto que

é a desgraça que me empurra: sinto as suas mãos

nas minhas costas… (1927, II: 163)

A tensão interior é permanente. Tanto quanto Maleine e “les fantômes qui

suivirent” (Maeterlinck, 1999, II : 729), Belkiss fundamenta-se num “princípio

invisível” em que o conflito não reside tanto no que é dito ou vivido pelas personagens,

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mas que se concentra naquilo que Mallarmé designou por drama latente – e que

desqualifica o trágico na sua dimensão épica. O que então ganha corpo é o reverso da

acção para o domínio interior, numa amarga experiência de solidão existencial. Belkiss

afigura-se impotente no seu drama solitário: não sabe nem vê o que está por trás da sua

vida:

BELKISS

Não vejo nada… Parece-me que estou no fundo do mar e que ouço, lá em

cima, o marulho das ondas: é o vento nos ramos altos… Parece-me ouvir

uma voz à distância… Não vejo nada, já não vejo o palácio… Parece-me

que estou ao pé de um lago: sinto o cair das folhas na água… (Castro,

1927, II: 116)

Reconhecemos outrossim nestes trechos as repetições características do primeiro

teatro de Maeterlinck, onde todo o essencial da acção se desenrola no espaço interior e

abismal da alma, evidenciando a perda da função dinâmica do diálogo “indispensável”,

em favor de um diálogo de “segundo grau”. Como o escreveu no “Tragique Quotidien”:

À côté du dialogue indispensable, il y a presque toujours un autre

dialogue qui semble superflu. Examinez attentivement et vous verrez que

c’est le seul que l’âme écoute profondément, parce que c’est en cet

endroit seulement qu’on lui parle. (Maeterlinck, 1999, I:492).

Tradicionalmente, o teatro é um lugar da palavra – o instrumento de trabalho do

actor, no sentido de proporcionar o reconhecimento da realidade. Numa concepção de

teatro simbolista, o efeito deve criar-se não pelo sentido imediato das palavras, mas pela

força de sugestão criada – um pouco à semelhança da música. É nessa linha de

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progressiva estilização da linguagem que se reconhece o uso próximo do leitmotiv

wagneriano – ou seja, a repetição de “motivos condutores” – no teatro de Maeterlinck:

MALEINE

Oh ! Le vent agite mes cheveux ! – mais il n’y a plus de maisons

le long des routes !

LA NOURRICE

Ne parlez pas ainsi vers l’extérieur, je n’entends rien.

MALEINE

Il n’y a plus de maisons le long des routes !

LA NOURRICE

Il n’y a plus de maisons le long des routes ?

MALEINE

Il n’y a plus de clochers dans la campagne !

LA NOURRICE :

Plus de clochers dans la campagne

MALEINE

Je ne reconnais plus rien !

LA NOURRICE

Laissez-moi regarder ; - Il n’y a plus un seul paysan dans les

champs. Oh ! le grand pont de pierre est démoli. – Mais qu’ont-ils

fait aux ponts-levis ? – Voilà une ferme qui a brûlé. - Et celle-là

aussi ! – mais celle-là aussi ! - Mais celle-là aussi ! Mais !... oh,

Maleine ! Maleine !

MALEINE

Tout a… ?

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LA NOURRICE

Tout a brûlé, Maleine ! Tout a brûlé ! Oh, je vois maintenant !...Il

n’y a plus rien

[…]

MALEINE

Mais alors !... (Maeterlinck, 1999, II : 104).

Mallarmé realçou esse substrato musical, escrevendo, a propósito de Pelléas et

Mélisande, que “dans cet art, où tout devient musique dans le sens propre, la partie d’un

instrument même pensif, nuirait, par inutilité” (1998 : 229).

A semelhança da sua Belkiss que “num acesso de cólera lançou ao rio todos os

anéis que tinha nos dedos”, Eugénio de Castro separa-se do “amavioso monopólio” dos

artífices estilísticos – preciosamente trabalhados nas suas poesias – para se aproximar de

uma linguagem teatral mais simples mas não menos expressiva da intensidade e

ontológica que a habita:

ZOPHESAMIN:

Por que levas a mão assim no ar?

BELKISS

É porque a tenho presa… É a desgraça que me leva pela mão… (idem:

165)

O predomínio de espaços misteriosos – a noite escura, a floresta de infinitos

caminhos, nebulosos lagos e feras infernais, a própria visão esfacelada de homens que

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não são mais que “fragmentos de embarcações” (1927: 168) acentuam o sentimento de

perda e de fragilidade oncológica:

BELKISS

O terror… o mistério / …/ Tudo o que me rodeia é baço, mudo, sem

significação /…/ Estou cercada de cousas mortas e tão mortas que chego

a duvidar se realmente vivo (110-111)

Esta consciência trágica do aprisionamento do homem por forças invisíveis que

tudo subjugam e tudo comandam articula-se com o pensamento filosófico e com o

próprio teatro de Maeterlinck – com o qual cria indeléveis intertextualidades e pode

interpretar-se à luz da crise do paradigma racionalista, assente numa série de

pressupostos filosóficos de base cartesiana, exemplarmente questionados e intervertidos

por Maurice Maeterlinck na dupla dimensão filosófica e dramática da sua obra.

Voltamos ao “Tragique Quotidien” (1896):

… il y a en l’homme bien des régions plus fécondes, plus profondes et

plus intéressantes que celles de la raison ou de l’intelligence…

(Maeterlinck, 1999, I: 494).

São essas realidades da vida interior que a trivialidade quotidiana dos homens

não apreende que Maeterlinck transpôs para o seu primeiro teatro: a intuição, o silêncio,

o mistério dos seres e das coisas.

As Sete Princesas é uma peça que configura a força actuante e invisível da morte

de forma especialmente simbólica. As personagens mantêm-se passivas e estáticas,

deixando-se conduzir por uma presença invisível e progressivamente demolidora. O rei

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e a rainha balbuciam frases fragmentadas e as sete princesas, evanescentes, apenas

dormem, num sono muito próximo da morte. Nem o príncipe poderá salvar a sua

anónima e desconhecida amada:

LA REINE

…Elles ont peur de l’obscurité…

LE PRINCE

Il y a une que je ne vois pas bien…

LA REINE

Laquelle préférez-vous ?

LE PRINCE

Celle qu’on ne voit pas bien…

LA REINE

Laquelle ? J’ai l’oreille un peu dure…

LE PRINCE

Celle qu’on ne voit pas bien…

LE ROI

Laquelle est-ce qu’on ne voit pas bien ? Je n’en vois presque

aucune.

LE PRINCE

Celle qui est au milieu… /…/ Je ne la vois pas bien ; il y a une

ombre sur elle… (Maeterlinck, 1999, II: 341)

A sombra da morte já se projecta sobre a princesa. A sua presença invisível e

“intrusa”, para aludir a uma outra peça de Maeterlinck, está a constituir-se como uma

terceira personagem, aquela a que Maeterlinck denominou por “personagem sublime”.

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O que Maeterlinck opera, em termos simbólicos, é uma passagem da situação

particular de passividade para o universal: o carácter vão de qualquer acção humana –

contrariando o optimismo cientista e positivista do final do século XIX. Inverte-se assim

a ideia de trágico como acção efectiva para a concepção de “trágico quotidiano”:

Il ne s’agit plus ici de la lutte déterminée d’un être contre un être, de la

lutte d’un désir contre un autre désir ou de l’éternel combat de la passion

et du devoir. Il s’agirait plutôt de faire voir ce qu’il y a d’étonnant dans le

fait seul de vivre. (Maeterlinck, 1999, I: 487).

Tal como na tragédia de raiz clássica, o fatalismo é uma linha de força

permanente. Mas não há mais lugar para os topoi da luta clarividente do herói, que

cumpre um desígnio contra forças adversas divinas ou terrenas. Apesar de todos os

obstáculos e provações, heróis como Édipo, Fedra, Antígona ou Creonte, restauram a

ordem, cumprem um itinerário com sentido. Mas esta catástrofe (a daimonia) é

assumida pelo herói. Lembremos a mítica Antígona que enfrenta Creonte, preferindo

morrer a deixar seu irmão sem sepultura. Este conflito passional representa uma busca

individual de felicidade, ainda que o desafio (a hybris) faça pender o seu destino para a

catástrofe.

Na concepção de “trágico quotidiano”, assim como no primeiro teatro simbolista

de Maeterlinck, não há uma acção ou progressão da acção no sentido da eudaimonia

(felicidade) para a a daimonia (catástrofe). As personagens, quase imateriais, definem-

se pela sua incapacidade de ultrapassar uma atitude receosa e estática, fazendo lembrar

sonâmbulos, puros joguetes nas mãos do destino. Les Aveugles (1891) é talvez a peça

em que a expressão do trágico essencial da condição humana atinge uma amarga

expressividade. O drama inicia com um grupo de cegos reunidos, sem o saber, à volta

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de um padre morto, que tem sido o seu guia. A espera absurda que sustenta a peça é a

tradução do desencontro irrevogável do homem com qualquer transcendência, com o

próprio homem. E da inutilidade de qualquer gesto:

LA PLUS VIEILLE AVEUGLE

Il nous a dit de l’attendre en silence.

TROISIÉME AVEUGLE-NÉ

Nous ne sommes pas dans une église.

LA PLUS VIEILLE AVEUGLE

Vous ne savez pas où nous sommes.

TROISIÈME AVEUGLE-NÉ

J’ai peur quand je ne parle pas.

(Maeterlinck 1999, II: 289)

E por detrás desta perda nosológica se consubstancia também a falência do

discurso para atingir “l’être énigmatique, réel et primitif” o único ser que a Maeterlinck

interessa verdadeiramente representar, reflexo desse mundo interior ou mare

tenebrarum a que ele alude também na sua “Confession de Poète” (Maeterlinck

1999:456).

É sintomático encontrar em Tiresias uma apologia da cegueira em termos que

aproximam Castro do dramaturgo belga que recorreu bastante a personagens cegas, por

considerar que, à semelhança das crianças, possuem uma relação primacial e por isso

privilegiada com o invisível27. Quando, em Tiresias, Sílvio lamenta a sorte daquele,

27 Para Maeterlinck a criança representa uma idade de oiro em que predomina o poder da intuição sobre a inteligência e a razão. Refere assim em “Menus Propos” (1891): “Les enfants apportent les dernières

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pela sua cegueira, Tiresias corrige-o peremptoriamente, invertendo a habitual escala

axiológica: a perda de visão foi meramente exterior, permitindo-lhe uma mais rica e

profunda visão da realidade transcendente:

“Que o teu espírito alumiado seja,

Como eu fui!

Por me veres velho e cego

Não me tenhas piedade mas inveja!

Tive nos olhos vista mas sem gosto

Que os olhos livres fazem a alma escrava (Castro, 1927, II:

212)

O paradoxo da cegueira vidente, topos clássico na literatura desde Sófocles

(Édipo Rei) encontra aqui a sua actualização poética, defendendo de modo contundente

a importância do invisível ou da visão outra que aquela apreensível pela apreensão

imediata das retinas.

No teatro de Maurice Maeterlinck, a personagem do cego sustenta esse paradoxo

de ver com os olhos da interioridade, da alma, ou do sonho:

LA PLUS VIEILLE AVEUGLE

Je rêve parfois que je vois…

LE PLUS VIEIL AVEUGLE

Moi, je ne vois que quand je rêve ... (Maeterlinck, 1999, II: 305)

nouvelles de l’Eternité. Ils ont le dernier mot d’ordre. En moins d’une demi-heure, tout homme devient grave aux côtés d’un enfant. Il arrive, d’ailleurs, des choses extraordinaires à tout être qui vit dans l’intimité des enfants“ (Maeterlinck, 1999, I: 191).

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Zophezamin, tentando refrear os impulsos amorosos de Belkiss, que teima em ir

ao encontro de Salomão, adverte-a de que “os olhos não são todos iguais e,

ordinariamente, os mais cegos são os que mais vêem” (1927, II: 163), e recomenda-lhe

ainda: “abre bem os olhos da alma! / Estrangula esse desejo, torce-lhe o pescoço”

(idem). Mas a cegueira também sugere a própria condição homem, como neste passo de

Tiresias: “Ai dos ceguinhos perdidos nos ermos” (Castro, 1927, II: 89)

Mais próximo ainda do valor maeterlinckiano, há em Sagramor várias

referências à cegueira do homem agitado pelo mundo externo que “esplende e cega”

(1928: 141), alma que tristemente procura sem achar (“tristes os que caminham nesta

vida, cegos, atrás duma ilusão traiçoeira” (idem: 143), perdido no “nevoeiro”,

antecipação da morte (203) e que não se consegue libertar da força tenebrosa que paira,

ameaçadora: “meu pobre coração inocente ceguinho” (155), “eu cego entre os mais

cegos” (182). A obscuridade do espírito, o sentimento de insegurança que a ignorância

cria sinais da loucura final do herói e abre o caminho ao guia ausente, à “Morte

conquistadora, /Mãe do mistério, / mãe do segredo” (220), que se insinua na final do

derradeiro monólogo de Sagramor:

SAGRAMOR

Não sei… Não sei…

Silêncio e treva. (idem)

Esta ruptura com o elemento real sensível funda-se nessa crença partilhada por

Eugénio de Castro de que não é num horizonte da visibilidade imediata e racional que

se inscreve o verdadeiro drama do homem. Existem forças obscuras, invisíveis e

infinitas que dominam tudo, inclusive o homem. Em Belkiss, a imagem da floresta

ganha uma forte conotação simbólica de espaço medonho e misterioso que

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simultaneamente atrai e aterroriza. É para lá, de facto, que a rainha é atraída, apesar das

advertências de Zophesamin, seu preceptor. Não compreendo tal atitude, este pergunta-

lhe: “Que força te impele para aquela floresta donde todos fogem?”, ao que Belkiss

reponde, de forma tão simples quanto desarmante: “o terror… o mistério” (Castro,

1927, II: 110). Cria-se assim um ambiente confrangedor, onde o terror se confunde com

o fantástico, como nesta imagem da floresta descrita como um emaranhado selvagem de

flora e fauna de perversa coloração:

ZOPHESAMIN

“Não faças tal… Há sítios onde o sol nunca entrou… E os lagos!... Não

imaginas, Belkiss, como são aquelas águas… fazem medo aquelas águas

doentes… São esverdeadas, límpidas e não se lhe vê o fundo… Foi lá que

morreu teu irmão…

/…/

BELKISS

Há feras na floresta?

ZOPHESAMIN

Muitas das mais temíveis… Pelo que ouvi, crescem lá umas árvores

carregadas de serpentes, as víboras são aos milhares, e dizem que, pelas

sombras, andam ranchos de catoblepas, que matam com o olhar, e de

mantichoras, animais medonhos e ferozes, que têm três fios de dentes…

(idem: 109-110)

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A floresta aparece ainda associada às mais cruéis barbáries, como a incineração

de corpos de crianças (“ao pé daquele bosque de Acácias/queimaram vinte crianças”

(idem: 88), tornando-se símbolo de morte e de uma natureza desnorteadora e perversa,

que atrai o ser humano como um íman para cruelmente o aniquilar. É desse cenário

alucinatório que um pouco mais à frente sai à desfilada uma personagem, a “Doida”,

que, julgando-se perseguida por um grupo de reis furiosos, “como se viesse perseguida

por lobos” (118), que a querem “levar para o fundo do lago”, acaba por desaparecer

deixando Belkiss presa pelos cabelos e encontrada na madrugada seguinte num sono

profundo (122-123). Contrariando as expectativas do leitor, o próprio poeta acaba por

dar a interpretação da cena, como se a um sonho tivéssemos assistido:

BELKISS

Ah, como és mau, Zophesamin! Para que me acordaste? Estava a

sonhar… e o meu sonho era tão lindo!... (126)

A importância da interioridade, do sonho, o primado conferido à intuição e ao

mistério cria afinidades evidentes com Maeterlinck e com o seu teatro impregnado de

sonho e de inconsciente. Em suma, diametralmente oposto à representação directa,

objectiva ou descritiva, guiada pelo princípio da razão.

O que separa no entanto os dois poetas é que Castro parece constantemente

transportar para a sua escrita a virulência do tédio que o assola – qual albatroz – e que

torna a existência vã e absurda. O poema torna-se encenação do fracasso do próprio eu

poético. No início do quadro II do “Canto Terceiro” de Sagramor (1895) – que cita

Baudelaire em epígrafe –, as metáforas sucedem-se para transpor para a escrita um

mundo interior abismal, fantástico, de tonalidades baudelairianas. Um mundo de tédio –

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recorrentemente grafado com maiúscula –, de dor, mas Belo porquanto resulta da

interpretação individual e estilização do real (“paisagem da minha vida”) num gesto que

é de libertação:

Sagramor está sentado num

Penhasco, à beira do mar Egeu.

SAGRAMOR

Sinto-me cansado de correr mundo,

De caminhar…

Poço de mágoas, negro e profundo,

O duro Tédio vai-me afogar!

Debalde empreendo longas viagens

Maravilhosas:

Já não me encantam céus nem paisagens,

O Tédio ensombra todas as cousas

/…/

Há na minh’alma certa paisagem

Bem dolorida,

Onde as angústias vão em romagem:

É a paisagem da minha vida.

Desesperadamente reivindicado, mas, desgostosamente inatingível, o azul das

alturas – e tudo o que simboliza de transcendente, de elevação, de pureza e de

eternidade – torna-se presença obsessiva e qualquer realidade do mundo terreno, do hic

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et nunc se torna enfadonha e pulsão de morte quando filtrada pela subjectividade

mórbida:

/…/

Dizem-me às vezes: - Olha que doce

Colina, esta,

Toda florida, como se fosse

No mês de Maio um altar em festa!

Repara: andam em cada flor

Cem borboletas!

Mas eu, olhando, triste, em redor,

Só vejo cruzes, só cruzes pretas (1928: 158)

Ávido de vida suprema, o poeta anseia o voo libertador – “Quero ser anjo,

sentindo-me homem, / Quero ser homem, tendo uma asas” (159) – qual albatroz

baudelairiano. No entanto, à semelhança desse “príncipe das alturas” cujas “asas de

gigante o impedem de andar”, o poeta vê-se condenado ao exílio entre os homens. Esta

estrofe cria um laço indelével com o poema “Albatroz”, lembrando os marinheiros que

com cruel prazer espicaçam a ave marinha. O capital simbólico subjacente à

identificação poeta/ave marinha é aqui reactivado e elevado à dualidade característica

da poesia de Castro:

Os marinheiros riam em cima de mim, brigando em estranha guerra,

Com fúria carniceira:

Homem, vivo no mar, peixe, ambiciono a terra (idem)

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Esta consciência da divisão interior, de sofrer um conflito íntimo ligado a um

terrível spleen, de pendor decadente e nefelibata, será mais romântico – e por isso de

ritmo mais lírico – que moderno. Enquanto Castro parece constantemente no fio da

navalha entre vida e arte, entre abismo e céu (Saudades do Céu), para Maeterlinck a

ambiguidade do real deixa de o ser a partir do momento em que materializa, na escrita,

na imanência da própria linguagem, o mistério da vida.

É finalmente do grande spleen do poeta que nasce o autor dramático que com ele

dialoga e interage. Dirigindo-se a Fúlvia, Sagramor diz-lhe: “cada um dos teus braços,

sereia, é uma cadeia” (Castro, 1928: 125): num gesto que foi de reposta não só à sua

evolução estética e ética, mas também ao momento histórico-literário em a crise poética

demanda e exige a libertação de cânones estéticos desgastados e inaptos a responder às

modernas aspirações e inquietações. Deixemos que se abra, ainda pela voz de Sagramor,

épico herói arturiano actualizado em sujeito assombrado num drama íntimo, em duelo

simbólico com o seu próprio eu, uma abertura para outros palcos poético dramáticos –

que ficará para outra ocasião descobrir:

SAGRAMOR

/…/

Fiquem cegos, fiquem cegos,

Se na cegueira acham prazer;

Mas tu que sofres em cruéis desassossegos,

Abre os teus olhos para ver!” (Castro, 1928: 201)

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