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Quarta Turma

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Quarta Turma

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL N. 1.092.289-MG (2008/0156292-0)

Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti

Embargante: Unibanco União de Bancos Brasileiros S/A

Advogados: Ivan Junqueira Ribeiro e outro(s)

Luciano Correa Gomes e outro(s)

Embargado: Wellington Cassimiro e outros

Advogado: Lillian Jorge Salgado e outro(s)

EMENTA

Embargos de declaração. Agravo regimental. Recurso especial.

Ação ordinária. Fase instrutória. Exibição incidental de documentos.

Multa diária incabível.

1. A ordem incidental de exibição de documentos, na fase

instrutória de ação ordinária, encontra respaldo, no sistema processual

vigente, não no art. 461 invocado no recurso especial, mas no art. 355

e seguintes do CPC, que não prevêem multa cominatória. Isso porque

o escopo das regras instrutórias do Código de Processo Civil é buscar

o caminho adequado para que as partes produzam provas de suas

alegações, ensejando a formação da convicção do magistrado, e não

assegurar, de pronto, o cumprimento antecipado (tutela antecipada)

ou defi nitivo (execução de sentença) de obrigação de direito material

de fazer, não fazer ou entrega de coisa.

2. Segundo a jurisprudência consolidada do STJ, na ação de

exibição de documentos não cabe a aplicação de multa cominatória

(Súmula n. 372). Este entendimento aplica-se, pelos mesmos

fundamentos, para afastar a cominação de multa diária para forçar

a parte a exibir documentos em medida incidental no curso de ação

ordinária. Nesta, ao contrário do que sucede na ação cautelar, cabe

a presunção ficta de veracidade dos fatos que a parte adversária

pretendia comprovar com o documento (CPC, art. 359), cujas

consequências serão avaliadas pelo juízo em conjunto com as demais

provas constantes dos autos, sem prejuízo da possibilidade de busca

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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e apreensão, nos casos em que a presunção fi cta do art. 359 não for

sufi ciente, ao prudente critério judicial.

3. Embargos de declaração acolhidos.

ACÓRDÃO

A Turma, por unanimidade, acolheu os embargos de declaração, nos

termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros João Otávio de

Noronha e Luis Felipe Salomão votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Raul Araújo.

Brasília (DF), 19 de maio de 2011 (data do julgamento).

Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora

DJe 25.05.2011

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Trata-se de embargos de declaração

opostos por Unibanco - União de Bancos Brasileiros S.A. contra acórdão assim

ementado:

Direito Processual Civil. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental. Multa cominatória. Possibilidade, por não se tratar de cautelar de exibição de documentos.

1. Em homenagem aos princípios da fungibilidade recursal e da economia processual, esta Corte vem admitindo o recebimento dos embargos de declaração em que se pretende emprestar efeitos infringentes, como agravo regimental, desde que comprovada a interposição tempestiva da irresignação e verifi cada a inexistência de erro grosseiro ou má-fé do recorrente.

2. A jurisprudência desta Corte entende incabível a imposição de multa cominatória nas ações cautelares de exibição de documentos, não vedando, contudo, tal providência nas ações que tenham por objeto obrigação de fazer ou não fazer, nos termos do art. 461, § 4º, do CPC.

3. Agravo regimental a que se nega provimento.

Alega o embargante que incorreu o acórdão embargado em erro material,

“porque consta do resultado do julgamento a aplicação de multa ‘nos termos do

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 409

voto do Sr. Ministro Relator’, sendo certo, no entanto, que o voto em nenhum

momento faz menção à aplicação de multa”.

Alega, também, que foi omisso o julgado, pois “a jurisprudência que se

fi xou foi no sentido de que, mesmo se tratando de pedido incidental de juntada

de documentos na ação principal não cabe a aplicação da multa diária prevista

no art. 461, § 4º, do CPC, mas sim a presunção de veracidade prevista no art.

359 do mesmo diploma legal”.

Intimados para apresentarem resposta aos embargos de declaração, os

embargados não se manifestaram (e-STJ, fl s. 500-502).

É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti (Relatora): Anoto, de início, que

assiste razão ao embargante quanto ao erro material em que incorreu o acórdão

embargado, que ora corrijo, para dele suprimir a expressão “com aplicação de

multa”.

Igualmente tem razão quando alega que o acórdão embargado não

enfrentou a questão relativa aos efeitos do descumprimento de ordem de

exibição de documento incidental em ação ordinária, a saber, a confi ssão fi cta

dos fatos que a parte adversária pretende comprovar com o documento e não a

imposição de multa diária.

O acórdão embargado adota, em sua fundamentação, precedentes que

cuidaram de descumprimento injustifi cado de obrigação de fazer, e, por este

motivo, entenderam cabível a multa prevista no art. 461, do CPC.

No caso dos autos, não se trata de compelir o recorrente a cumprir

obrigação de fazer, mas de descumprimento de ordem de exibição de documento

considerado necessário para a realização de perícia relativa aos encargos de

contrato bancário, questionados em ação ordinária de nulidade de cláusulas

contratuais.

O acórdão recorrido, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, deu parcial

provimento ao agravo de instrumento do banco, para limitar a 60 dias o período

máximo em que a multa diária de R$ 200,00 poderia ser imposta ao réu.

Assiste razão ao embargante. A propósito do tema, reporto-me a voto

proferido no AgRg no Ag n. 1.179.249-RJ:

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(...) Com efeito, não se postula, nos autos de origem - ação de cobrança de diferenças de correção monetária, em fase de processo de conhecimento - a condenação do réu ao cumprimento de obrigação de fazer, de não fazer ou de entrega de coisa, hipóteses em que teria aplicação a regra do art. 461 ou 461-A do CPC.

Trata-se de ação ordinária de cobrança em que se pede o cumprimento de obrigação de dar dinheiro. Incidentalmente, foi determinada a exibição, pelo banco réu, de extratos relativos ao período em que se discute o direito às diferenças de correção monetária.

A ordem de exibição de documentos deu-se, portanto, na fase instrutória de ação ordinária de cobrança e encontra respaldo, no sistema processual vigente, não no art. 461 invocado no recurso especial, mas no art. 355 e seguintes do CPC, que não prevêem multa cominatória. Isso porque o escopo das regras instrutórias do Código de Processo Civil é buscar o caminho adequado para que as partes produzam provas de suas alegações, ensejando a formação da convicção do magistrado, e não assegurar, de pronto, o cumprimento antecipado (tutela antecipada) ou defi nitivo (execução de sentença) de obrigação de direito material de fazer, não fazer ou entrega de coisa.

O descumprimento da ordem incidental de exibição de documentos (CPC, art. 355), ônus processual, poderá ter consequências desfavoráveis ao réu, reputando-se como verdadeiros os fatos que se pretendia comprovar com o documento (CPC, art. 359), o que será avaliado pelo Juiz da causa, ao prolatar a sentença, com base nas alegações das partes e no conjunto probatório. Daí a inaplicabilidade desta presunção de veracidade no âmbito da ação cautelar de exibição, proclamada pela 2ª Seção, em acórdão repetitivo (REsp n. 1.094.846-MS, relator o Ministro Carlos Fernando Mathias), mas sua plena pertinência no caso de recusa de apresentação de documentos em incidente da fase de instrução de ação ordinária.

O banco alega que os documentos necessários à instrução da causa já estão juntados aos autos de origem. Mas se não estiverem, arcará com as consequências processuais do descumprimento do ônus processual que lhe foi atribuído pela decisão que determinou a exibição do documento. No caso dos autos, por exemplo, tendo a autora afi rmado que possuía determinada conta de caderneta de poupança, em determinada época, com saldo que especifi cou e data-base que, em tese, lhe asseguraria o recebimento dos expurgos, estes fatos, se o banco não exibir os extratos, e os constantes dos autos não os contrariarem, serão tidos como verdadeiros, no momento da sentença, por força da regra do art. 359, do CPC.

Registro que não foi ainda alcançada a fase de liquidação e execução de sentença. Os documentos necessários para o processo de conhecimento são apenas os essenciais para a verifi cação da existência do direito alegado pelo autor (no caso, prova da existência da conta, com saldo positivo na época dos expurgos e data-base da caderneta). Na fase de liquidação serão necessários extratos mais detalhados, e se o devedor não os apresentar, mesmo em face de nova decisão

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 411

judicial, arcará com as consequências processuais de sua inação, podendo se fazer necessária busca e apreensão de documentos ou até mesmo perícia para a apuração do valor devido, arcando o devedor com o incremento dos custos da execução, sem prejuízo de outras multas decorrentes da obstrução indevida do serviço judiciário. Não haverá ensejo, todavia, mesmo em fase de liquidação para a cominação de multa diária, com base no art. 461, do CPC.

Registro que há recentes precedentes, em agravo regimental, da 3ª e da 4ª Turmas, afi rmando que a Súmula n. 372 não se aplica à hipótese de multa cominatória imposta incidentalmente em processo de conhecimento para fazer cumprir determinação de exibição de documentos. No entender dos mencionados precedentes, a mencionada súmula seria restrita aos processos cautelares de exibição de documentos, de forma que a imposição de multa em caráter incidental em processo de conhecimento encontraria apoio no art. 461 do CPC (3ª Turma, AgRg no REsp n. 1.096.940-MG e 4ª Turma, AgRg no Ag n. 1.165.808-SP, entre outros).

Por outro lado, em sentido contrário, registro a decisão singular do Ministro João Otávio de Noronha, no Ag n. 1.150.821, proferida em liquidação provisória de sentença coletiva condenatória ao pagamento de diferenças de correção expurgadas de caderneta de poupança, na qual foi consignado que “a aplicabilidade de multa cominatória prevista no art. 461 do CPC é restrita às demandas que envolvem obrigação de fazer e não fazer, sendo incabível em sede de pedido incidental de exibição de documentos”.

Não encontro motivos, com a devida vênia, para admitir a multa diária na fase instrutória da ação de conhecimento, se a exibição de documentos for determinada em caráter incidental, mas, de outra forma, não admiti-la se ordenada em liminar ou sentença proferida em ação cautelar de exibição de documentos (Súmula n. 372).

A leitura dos precedentes desta súmula, se por um lado evidencia que todos eles foram tirados de ações cautelares, por outro, não corrobora, em seus fundamentos, a distinção preconizada nos precedentes mencionados. Ao contrário, data vênia. Se a multa cominatória não é admitida nas ações cautelares de exibição de documento (nas quais não cabe, também, a presunção de veracidade estabelecida pelo art. 359), com maior razão ainda não deve ser permitida nas ações ordinárias, na fase de conhecimento, onde é possível a aplicação da mencionada pena de confissão de veracidade dos fatos que se pretendia provar com o documento não exibido.

Recordo que o voto do Ministro Luís Felipe Salomão, no repetitivo REsp n. 1.094.849, no qual se assentou não caber, em ação cautelar de exibição de documentos, a aplicação da confi ssão fi cta prevista no art. 359, do CPC (inerente às ações conhecimento), ressaltou que embora também não sendo cabível a multa, em face da Súmula n. 372, “não há de fi car sem sanção o descumprimento da ordem do Juiz”, aventando, então, a possibilidade de ordem de busca e apreensão e até mesmo de apuração criminal da conduta do recalcitrante.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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No caso dos autos, no qual se cuida de fase instrutória de processo de conhecimento, a consequência do descumprimento injustificado do ônus processual não será a imposição de multa cominatória reservada por lei para forçar o devedor ao cumprimento de obrigação de direito material de fazer, não fazer, ou entregar coisa, mas a presunção de veracidade dos fatos que a parte adversária pretendia comprovar, presunção esta que não é absoluta, devendo ser apreciada pelo juízo no momento da sentença em face dos demais elementos de prova constantes dos autos.

Registro a incoerência da tese esposada pelo acórdão recorrido - segundo a qual a multa cominatória não tem fi nalidade indenizatória, mas constranger a parte adversária a apresentar o documento - com a limitação temporal da multa, pois, ao cabo dos 60 dias, se não exibido o documento, o autor será credor da quantia de R$ 12.000,00, mas não terá obtido o documento supostamente necessário para a realização da perícia, prova esta que tem por escopo dimensionar o conteúdo patrimonial da obrigação financeira. Esta limitação teve o louvável objetivo prático de evitar atingisse a multa elevado valor, desproporcional à obrigação patrimonial discutida nos autos, mas seria incompatível com o caráter cominatório da multa prevista no art. 461, do CPC, caso se tratasse de realmente pressionar o devedor de obrigação de direito material de fazer, não fazer, ou entregar coisa, hipóteses em que o retardamento do cumprimento da obrigação deveria ensejar a majoração da multa e não sua supressão.

Em face do exposto, acolho os embargos de declaração para restaurar a decisão de fl s. 455-458, que deu provimento ao recurso especial, afastando a multa cominatória, e também para corrigir o erro material ocorrido na proclamação do resultado do julgamento ocorrido em 20.05.2010, excluindo a expressão “com aplicação de multa”.

É como voto.

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 33.155-MA (2010/0189145-8)

Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti

Recorrente: Bradesco Saúde S/A

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 413

Advogado: Alexandre Cardoso Júnior e outro(s)

Recorrido: Eunice Garcez de Sousa

Advogado: José Ribamar Serra e outro(s)

EMENTA

Processo Civil. Mandado de segurança. Juizado Especial.

Competência. Cumprimento de sentença. Multa cominatória. Alçada.

Lei n. 9.099/1995. Recurso provido.

1. A jurisprudência do STJ admite a impetração de mandado

de segurança para que o Tribunal de Justiça exerça o controle da

competência dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, vedada a

análise do mérito do processo subjacente.

2. Dispõe o art. 3º, § 1º, inciso I, da Lei n. 9.099/1995, que

compete ao Juizado Especial promover a “execução dos seus julgados”,

não fazendo o referido dispositivo legal restrição ao valor máximo do

título, o que não seria mesmo necessário, uma vez que o art. 39 da

mesma lei estabelece ser “inefi caz a sentença condenatória na parte em

que exceder a alçada estabelecida nesta lei”.

3. O valor da alçada é de quarenta salários mínimos calculados na

data da propositura da ação. Se, quando da execução, o título ostentar

valor superior, em decorrência de encargos posteriores ao ajuizamento

(correção monetária, juros e ônus da sucumbência), tal circunstância

não alterará a competência para a execução e nem implicará a renúncia

aos acessórios e consectários da obrigação reconhecida pelo título.

4. Tratando-se de obrigação de fazer, cujo cumprimento é

imposto sob pena de multa diária, a incidir após a intimação pessoal

do devedor para o seu adimplemento, o excesso em relação à alçada

somente é verifi cável na fase de execução, donde a impossibilidade

de controle da competência do Juizado na fase de conhecimento,

afastando-se, portanto, a alegada preclusão. Controle passível de ser

exercido, portanto, por meio de mandado de segurança perante o

Tribunal de Justiça, na fase de execução.

5. A interpretação sistemática dos dispositivos da Lei n.

9.099/1995 conduz à limitação da competência do Juizado Especial

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

414

para cominar - e executar - multas coercitivas (art. 52, inciso V) em

valores consentâneos com a alçada respectiva. Se a obrigação é tida

pelo autor, no momento da opção pela via do Juizado Especial, como

de “baixa complexidade” a demora em seu cumprimento não deve

resultar em execução, a título de multa isoladamente considerada, de

valor superior ao da alçada.

6. O valor da multa cominatória não faz coisa julgada material,

podendo ser revisto, a qualquer momento, caso se revele insufi ciente

ou excessivo (CPC, art. 461, § 6º). Redução do valor executado a título

de multa ao limite de quarenta salários mínimos.

7. Recurso provido.

ACÓRDÃO

A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso ordinário em

mandado de segurança, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os

Srs. Ministros Antonio Carlos Ferreira, João Otávio de Noronha, Luis Felipe

Salomão e Raul Araújo votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 28 de junho de 2011 (data do julgamento).

Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora

DJe 29.08.2011

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Na origem, Bradesco Saúde S.A.

impetrou mandado de segurança contra o improvimento de recurso inominado

pela 5ª Turma Recursal Cível e Criminal dos Juizados Especiais de São Luís.

O recurso interposto visava à reforma de sentença do 8º Juizado Especial Cível

e Criminal de São Luís, que rejeitou embargos à execução recebidos como

impugnação ao cumprimento do título judicial.

No mandado de segurança, a impetrante sustenta que a litisconsorte

passiva necessária, Eunice Garcez de Souza, moveu-lhe ação indenizatória em

que foi condenada ao pagamento de R$ 48,00 por danos materiais e de R$

10.352,00 por danos morais, porém ajuizou cumprimento de sentença no valor

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 415

de R$ 943.458,53, pelo acréscimo, a pretexto do descumprimento de obrigação

de fazer, da multa diária fi xada pelo Juízo, em R$ 5.000,00.

Relata que apresentou sem sucesso exceção de pré-executividade,

obrigando-a a oferecer carta de custódia de letras fi nanceiras do tesouro para

garantir a execução e abrir a via dos embargos à execução, que foram recebidos

como impugnação pelo Julgador, que também os rejeitou.

No recurso, além das questões de mérito, deduziu a preliminar de

incompetência do Juizado Especial para processar execução de valor superior a

quarenta salários mínimos, mas a decisão foi confi rmada.

Justifi ca o cabimento do mandado de segurança pela ausência de recurso

cabível contra o ato judicial coator, que infringe os princípios constitucionais

do juiz natural, da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal,

conforme previstos nos arts. 5º, LII, XXXVII, LIV e LV, e 98, I, da Constituição,

além de contrariar o entendimento jurisprudencial do STJ a favor da adequação

do mandado de segurança com o propósito de controlar a competência dos

Juizados Especiais, ainda que não se possa imiscuir no mérito do julgado (STJ,

Corte Especial, RMS n. 17.524-BA).

Adiciona que há ainda fumaça de bom direito e perigo de demora na

possibilidade de prática de atos executórios, como a penhora “on line”

de recursos, que, no seu entender, são de competência da Justiça Comum

Estadual, alternativamente pleiteando a limitação do valor ao teto legal da Lei

n. 9.099/1995, glosando o excesso.

No TJMA, o Desembargador Antônio Guerreiro Júnior deferiu a liminar,

suspendendo a execução (fl s. 1.095-1.100).

A 5ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais de São

Luís presta informações no sentido de que possui competência tanto para o

julgamento do mandado de segurança contra seus atos como para promover a

execução dos próprios julgados, conforme disciplinado pela LJE, arts. 3º, § 1º,

I, e 52, ainda que ultrapassem o valor de alçada, que vincula apenas o pedido

principal, não os acessórios.

Por maioria, as Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Justiça do

Estado do Maranhão, conduzida pelo voto vencedor da Desembargadora

Maria das Graças de Castro Duarte Mendes, não obstante tenham admitido o

mandado de segurança contra decisão de não provimento de recurso inominado,

denegaram a segurança ao entendimento que o cumprimento da sentença

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

416

demanda apenas cálculos aritméticos, sem maior complexidade, e de que a

questão da competência deveria ser arguída na fase de conhecimento, estando

preclusa a oportunidade, sob pena de ofensa à coisa julgada que assegura a

execução no Juízo prolator da sentença ainda que superados os quarenta salários

mínimos.

O acórdão recorrido possui a seguinte ementa (fl s. 1.342-1.343):

Constitucional. Mandado de segurança. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Competência. Controle. Causa de menor complexidade. Arguição de ilegitimidade e incompetência do Juizado na fase de execução. Impossibilidade. Fase processual que não demanda conhecimento técnico. Inexistência de complexidade e de ofensa ao juiz natural. Preliminares rejeitadas. Ordem denegada.

I - Preliminar de decadência rejeita, tendo em vista que o Mandamus foi impetrado do prazo legal de 120 (cento e vinte) dias.

II - Quanto à ilegitimidade da autoridade coatora, impõe-se a sua rejeição, pois, o Presidente da Turma Recursal fi gura como prolator da decisão que julga os Embargos de Declaração.

III - Segundo entendimento jurisprudencial deste Egrégio Tribunal de Justiça e do Colendo Superior Tribunal de Justiça, é cabível mandado de segurança para realizar o controle de competência dos Juizados Especiais Cíveis, tendo em vista a ausência de instrumento processual adequado. Precedentes.

IV - O controle de competência visa evitar que os Juizados apreciem matéria de relevante complexidade e, deste modo, avance na competência da Justiça Ordinária.

V - É opção do Autor, ao propor a sua ação, optar pelo procedimento dos Juizados, mas cabe ao Judiciário realizar o controle quanto à complexidade ou não da causa.

VI - Deixando a parte transitar em julgado a sentença, sem arguir o controle de competência, não poderá fazê-lo na execução, quando esta depender de simples cálculo aritmético, que não evidencie relevante complexidade.

VII - Ordem denegada.

Os embargos de declaração opostos pela impetrante e pela litisconsorte

passiva necessária foram rejeitados (fl s. 1.619-1.627 e 1.650-1.657).

Bradesco Saúde S.A. interpõe recurso ordinário com base no art. 105,

inc. II, b, da Constituição, pugnando, inicialmente, pela concessão de efeito

suspensivo para sustar a execução dos Processos n. 666/04 e n. 218/05, julgados

conjuntamente pelo 8º JEC de São Luís.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 417

Reedita os argumentos da inicial no sentido de que foi violado direito

líquido e certo pelo desrespeito à competência do órgão judicial executor

da sentença, sendo escorreita a impetração na fase de cumprimento porque

somente nesse momento foi deduzida a pretensão que exorbitou o valor da

alçada legal, pois a multa, apesar de prevista na sentença, somente foi imposta

no cumprimento.

Assevera que o julgamento antecipado da impugnação causou cerceamento

de defesa, pois a exequente não comprovou o descumprimento da decisão

judicial.

Adiciona que a competência é matéria de ordem pública e, na espécie, de

natureza absoluta, podendo ser levantada a questão a qualquer tempo ou fase do

processo.

Insiste que foram violados os princípios do juiz natural, da ampla defesa,

do contraditório e do devido processo legal dada a complexidade da causa, não

podendo ser excedido nem mesmo em execução o teto de quarenta salários

mínimos, pois a Lei n. 9.099/1995, art. 3º, § 3º, impõe a renúncia ao montante

que sobejar, valores que não podem ser sobrepostos apenas em nome da

celeridade de julgamento.

Por fi m, invoca o precedente da Corte Especial do STJ no RMS n. 17.524-

BA, que admite o enfrentamento do tema em sede de mandado de segurança.

Nas contrarrazões de fl s. 1.694-1.738, Eunice Garcez de Souza afi rma

que a recorrente age de má-fé e busca induzir o Tribunal a erro quando requer

a suspensão das execuções paralelas, pois uma é de pequeno valor, meros R$

6.000,00, enquanto a outra já está suspensa.

Destaca que o valor da condenação não é objeto do writ, apenas a

competência para o cumprimento da sentença, assegurado pelo art. 3º, § 1º, I,

da Lei n. 9.099/1995, posição adotada em diversos precedentes de Tribunais

Estaduais.

Alega que o mérito da sentença não é passível de reforma pela Justiça

Comum Estadual e que há recurso previsto no ordenamento jurídico

contra o não provimento do recurso, tanto que a recorrente interpôs recurso

extraordinário, sendo incabível o mandado de segurança por força da Súmula n.

267-STF.

Assevera que o limite de quarenta salários mínimos atua somente na

fase de conhecimento, não incluindo verbas acessórias decorrentes do próprio

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

418

julgamento, sob pena de exclusão da correção monetária, juros de mora e

honorários advocatícios.

Ressalta que o feito não encerra complexidade alguma e que a negativa de

descumprimento da obrigação de fazer imposta pela decisão judicial implica

dilação probatória incompatível com a via mandamental.

Refere que os precedentes citados tratam de hipótese diversa, não do

cumprimento da decisão, e que o valor somente atingiu o montante pleiteado

em função da recalcitrância da impetrante.

Por fi m, pede a condenação de Bradesco Saúde e de seu patrono por má-fé

em virtude da evidente deturpação do dispositivo legal, com envio de cópia das

peças dos autos à OAB-MA.

Contra a decisão de recebimento do recurso ordinário, opôs a recorrente

embargos de declaração, que foram acolhidos para agregar-lhe efeito suspensivo,

reconsideração que também foi objeto de agravo regimental pela litisconsorte,

que levou à revogação da anterior, negando-se a seguir provimento ao regimental

da seguradora.

O Ministério Público Federal manifestou-se às fls. 1.858-1.862, em

parecer da lavra do Subprocurador-Geral João Pedro de Saboia Bandeira de

Mello Filho, pelo não provimento do recurso.

É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti (Relatora): O ato comissivo

impugnado foi o acórdão da Turma Recursal de Juizados Especiais Cíveis que

manteve a competência do Juizado Estadual para o julgamento de embargos à

execução de multa diária cominatória, que alcançou o valor de R$ 959.145,39,

multa esta imposta na fase de cumprimento de sentença proferida pelo referido

Juizado.

Afasto as preliminares levantadas em contrarrazões ao recurso ordinário, a

saber, a alegada incidência da Súmula n. 267 do STF e a violação do princípio

da unirrecorribilidade.

Apesar de a fundamentação do mandado de segurança apontar vários

dispositivos constitucionais que supostamente foram violados, dando ensejo à

interposição de recurso extraordinário, protocolado em 20.11.2008 (fl s. 1.208-

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 419

1.240), um dia antes do mandado de segurança, o mencionado recurso não foi

admitido por decisão irrecorrida (fl s. 1.508-1.510 e 1.512), causando a perda da

oportunidade, por aquela via, de reforma do mérito.

Ademais, não se está diante de recurso, mas de mandado de segurança, cuja

adequação ao tema da discussão da competência dos Juizados Especiais já foi

anteriormente aceita em precedente deste Tribunal, citado por ambas as partes,

no RMS n. 17.524-BA (Corte Especial, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJU de

11.09.2006), no qual, após longo debate, se concluiu que o Tribunal de Justiça

deve exercer o controle apenas acerca da competência do Juizado Especial Civil,

o que não se confunde com o exame do mérito da decisão.

Necessário frisar que a edição da Súmula n. 376-STJ também não interfere

no cabimento do mandado de segurança de que se cuida, que é próprio para a

análise da competência.

Passo ao exame do mérito, a saber, a competência para execução de decisão

cominatória de multa em fase de cumprimento de sentença, que excede quarenta

salários mínimos.

No julgamento do RMS n. 17.524-BA, fi cou estabelecido que o exame,

pelo Tribunal de Justiça, do mandado de segurança é restrito à defi nição da

competência do Juizado, em contraposição à competência da Justiça Comum,

não lhe cabendo enfrentar as questões de mérito do recurso interposto contra

a rejeição da impugnação ao cumprimento da sentença prolatada pelo 8º

Juízo de Direito do Juizado Especial Cível e Criminal de São Luís, relativas

ao cerceamento de defesa pelo julgamento antecipado da impugnação, à

necessidade de intimação para o cumprimento do julgado, ao valor adequado

da multa diária no caso concreto e à comprovação do descumprimento da

obrigação de fazer, entre outras.

Em relação à questão da competência, quando superado pela execução ou

cumprimento de sentença o limite estabelecido no art. 3º, caput, inc. I, da Lei

n. 9.099/1995, há precedentes, da 3ª e da 4ª Turma, nos quais se estabeleceu

que “compete ao próprio juizado especial cível a execução de suas sentenças

independentemente do valor acrescido à condenação” (4ª Turma, RMS n.

27.935-SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, unânime, DJe de 16.06.2010).

No mesmo sentido, 4ª Turma, REsp n. 691.785-RJ, Rel. Ministro Raul Araújo,

unânime, DJe de 20.10.2010, e 3ª Turma, AgRg no RMS n. 32.032-BA, Rel.

Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS), unânime,

DJe de 23.09.2010.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

420

Com efeito, dispõe o art. 3º, § 1º, inciso I, da Lei n. 9.099/1995, que

compete ao Juizado Especial promover a “execução dos seus julgados”, não

fazendo o referido dispositivo legal restrição ao valor máximo do título, o que

não seria mesmo necessário, uma vez que o art. 39 da mesma lei estabelece ser

“inefi caz a sentença condenatória na parte em que exceder a alçada estabelecida

nesta lei”.

O valor da alçada é de quarenta salários mínimos calculados na data da

propositura da ação. Se, quando da execução, o título ostentar valor superior,

em decorrência de encargos inerentes à condenação, tais como juros, correção

monetária e ônus da sucumbência, tal circunstância não alterará a competência

para a execução e nem implicará a renúncia aos acessórios e consectários da

obrigação reconhecida pelo título. A renúncia ao crédito excedente à alçada,

imposta pelo art. 3º, § 3º, é exercida quando da opção pelo ajuizamento da

ação no Juizado e, portanto, o valor deve ser aferido na data da propositura

da ação, não perdendo o autor direito aos encargos decorrentes da demora na

solução da causa (correção e juros posteriores ao ajuizamento da ação e ônus da

sucumbência).

Merece, a meu sentir, tratamento diferenciado a questão da multa diária

cominatória, a despeito da conclusão que se poderia extrair dos precedentes

citados acima, os quais cuidaram de multas de valores bastante inferiores ao caso

ora em exame.

Tratando-se de obrigação de fazer, cujo cumprimento é imposto sob

pena de multa diária, a incidir após a intimação pessoal do devedor para o seu

adimplemento, o excesso em relação à alçada somente é verifi cável na fase de

execução, donde a impossibilidade de controle da competência do Juizado na

fase de conhecimento. Afasta-se, portanto, a preclusão alegada como obstáculo,

pelo acórdão recorrido, para a concessão da segurança.

No caso em exame, o valor da causa e da condenação por danos materiais

e morais imposta pela sentença situaram-se em patamar inferior à alçada, de

modo que a competência do Juizado revelava-se indene de dúvidas, assim

como o é, para prosseguir na execução de seu próprio julgado, dentro do limite

da alçada legal, estabelecido pelo art. 3º, inciso 1º e § 3º e art. 39 da Lei n.

9.099/1995.

O valor da alçada (quarenta salários mínimos) é fator eleito pela lei para

defi nir o que se entende por causa de “menor complexidade”. Presume a lei

que causas das quais possa resultar a imposição, ao vencido, de obrigações

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 421

pecuniárias de maior valor mereçam a tramitação pelo rito processual comum,

cercado de maiores garantias processuais, entre as quais a cadeia de recursos no

âmbito da Justiça de segundo grau, o acesso ao Superior Tribunal de Justiça por

meio de recurso especial e a ação rescisória.

Fixado o valor da pretensão do autor quando do ajuizamento da inicial,

renunciando ele, por imposição legal (art. 3º, § 3º), ao valor que exceder a alçada

dos Juizados, não se põe em dúvida a competência do Juizado para a execução

da sentença, mesmo que ultrapassado este valor por contingências inerentes ao

decurso do tempo, como correção monetária e juros de mora, os quais incidem

sobre aquela base de cálculo situada no limite da alçada, além dos honorários

de advogado, encargo este que também encontra parâmetros defi nidos em lei

(CPC, art. 20).

Já a multa cominatória não é estimada segundo critério objetivo

correspondente ao conteúdo material da obrigação que busca compelir o

devedor a cumprir. Penso que a interpretação sistemática dos dispositivos da

Lei n. 9.099/1995 conduz à limitação da competência do Juizado Especial para

cominar - e executar - multas coercitivas em valores consentâneos com a alçada

respectiva (art. 52, inciso V). Se a obrigação é tida pelo autor, no momento da

opção pela via do Juizado Especial, como de “baixa complexidade” a demora em

seu cumprimento não deve resultar em valor devido a título de multa superior

ao valor da alçada. Anoto que, na linha de reiterada jurisprudência do STJ, o

valor da multa diária cominatória não faz coisa julgada material, podendo ser

revisto, a qualquer momento, se se revelar insufi ciente ou excessivo, conforme

dispõe o art. 461, § 6º, do CPC (cf., entre muitos outros, o acórdão da 4ª Turma

já citado, no REsp n. 691.785-RJ, Rel. Ministro Raul Araújo, unânime, DJe de

20.10.2010). O valor executado a título de multa excedente à alçada deve ser

suprimido, sem que tal constitua ofensa a coisa julgada.

Considero, portanto, que o valor da alçada previsto no art. 3º, inciso I, da

Lei n. 9.099/1995, o qual tem em mira o valor da obrigação principal na data

do ajuizamento da ação (quarenta salários mínimos), deve ser aplicado, por

analogia, como o valor máximo a ser executado contra o devedor, a título de

multa cominatória.

Nessa linha de entendimento, o devedor poderá ser, em execução perante

o Juizado, compelido a pagar, no máximo, o valor da obrigação principal e

seus consectários, acrescido de multa cominatória, esta no valor máximo de

quarenta salários mínimos. Tendo por norte a circunstância de se tratar de

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

422

causa de menor complexidade, assim entendido baixo valor, caberá ao Juiz

do Juizado, verifi cando o atraso desmotivado no cumprimento da obrigação

imposta pela sentença, arbitrar a multa diária. Os atos executórios devem visar

ao pagamento da obrigação principal (a qual é limitada pelos arts. 3º e 39 em

quarenta salários mínimos na data da propositura), seus acessórios posteriores

ao ajuizamento (juros, correção e eventualmente ônus da sucumbência) e multa

cominatória (esta até o limite de outros quarenta salários, na época da execução,

sendo decotado o excesso, mesmo após o trânsito em julgado). Se a multa até

este limite não for sufi ciente para constranger o devedor a cumprir a sentença,

restará ao credor, que livremente optou pelo via do Juizado, valer-se de outros

meios, como, por exemplo, notitia criminis por desobediência à ordem judicial

ou ajuizamento de nova ação perante a Justiça Comum, caso o inadimplemento

retardado tenha dado origem a outros danos posteriores ao ajuizamento da ação

no Juizado. Será instaurada, então, nova fase de conhecimento para apurar fatos

posteriores (embora ligados ao alegado descumprimento da decisão do juizado)

que possam ensejar outra indenização.

Em face do exposto, dou provimento ao recurso ordinário para conceder,

em parte, a segurança para o fi m de reduzir o valor executado a título de multa a

quarenta salários mínimos da época em que iniciada a execução com correção e

juros a partir de então.

É como voto.

VOTO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: Sr. Presidente, acompanho o voto da

eminente Relatora por fundamento diferente e ainda com duas ressalvas.

A primeira é a de que, mesmo em sede de mandado de segurança, com

base no art. 461, § 6º, do Código de Processo Civil, o juiz poderá, de ofício,

modifi car o valor ou a periodicidade da multa, caso verifi que que se tornou

insufi ciente ou excessiva. Nesse caso, de ofício, estou reconhecendo que a multa

foi excessiva e, portanto, eu a limito ao patamar de quarenta salários mínimos,

consentâneo com o montante da obrigação principal.

Em segundo lugar, a ressalva é que o Enunciado n. 25 do Fórum de

Juizados Especiais preceitua que a multa cominatória e todos os consectários

da condenação não encontram a barreira dos quarenta salários, mas o prudente

arbítrio do juiz não deixará que esses consectários ultrapassem sobremaneira o

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 423

teto do juizado, permitindo, assim, o cumprimento e a efetividade da decisão

judicial.

Não concordo com o fundamento da Relatora quando limita, sempre,

em todos os casos, a esse patamar, a cobrança da multa, pois esse ponto poderá

servir de estímulo a descumprimento de ordens judiciais.

Então, embora por fundamento diferente, acompanho o voto da eminente

Relatora, dando provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança.

VOTO-VOGAL

O Sr. Ministro Raul Araújo: Sr. Presidente, cumprimento os ilustres

patronos das partes, que fi zeram suas sustentações orais contribuindo para

o melhor esclarecimento do caso, como também a eminente Relatora, pelo

brilhante voto que nos traz.

No precedente que foi referido, do qual fui Relator, não se discutia

propriamente a questão acerca do valor da multa e a possibilidade de esse valor

ultrapassar ou não a alçada do Juizado. Discutia-se se o Juizado teria ou não

competência para executar o valor da multa diária fi xada. E isso fi cou resolvido

no precedente.

Quanto ao caso que temos em julgamento, o pedido formulado na inicial

trazia, parece-me, um capítulo um tanto nebuloso que tratava de a parte requerer

que a outra cumprisse o contrato. No entanto, as duas partes tinham uma visão

diferente sobre o signifi cado de cumprimento do contrato. Para o promovido,

Bradesco Saúde, havia o cumprimento do contrato nos termos em que fora

estabelecido e, para a promovente, não.

Sabemos que contratos de seguro de saúde são de diferentes espécies,

diferentes valores. Há contratos de seguro com coberturas fabulosas, que,

naturalmente, têm prêmios bem mais elevados, as prestações são elevadas.

Certamente esse de R$ 48,00 (quarenta e oito reais) mensais não era dos

contratos de seguro mais asseguradores do melhor tratamento de saúde, mas,

provavelmente, foi o melhor pelo qual a pessoa pôde optar na ocasião.

Então, o contrato de seguro de saúde não é algo uniforme em toda situação.

Não se tem, necessariamente, o direito à UTI no ar; se se paga um contrato mais

simples, às vezes só se tem direito a atendimento hospitalar e, às vezes, também

consultas médicas. Isso tudo fi ca previsto nos contratos, que são diversos.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

424

Assim, entendo que o pedido nessa parte era nebuloso e talvez ultrapassasse

a alçada e a própria competência do juizado especial, na medida em que trazia

uma discussão que já não era tão singela, tão simples, envolvendo a interpretação

de um contrato de seguro que tem sua complexidade, e havia divergência séria

entre as partes nessa questão. Quanto ao mais, o pedido era simples, devolução

de R$ 48,00 (quarenta e oito reais), fi xação de dano moral dentro do limite da

alçada do juizado, coisa muito simples, que não apresentava difi culdade quanto

ao cumprimento.

A discussão veio exatamente em torno daquela questão nebulosa, onde o

juiz tinha um pensamento, quando estabelecia sua decisão, o promovente tinha

outro e o promovido ainda um terceiro; quer dizer, visões diferentes conforme

a posição de cada um na ação. Isso só podia mesmo ter dado nessa discussão,

que difi cilmente será solucionada, ou seja, sabermos quem cumpriu e quem

descumpriu o quê.

Entendo que a solução trazida pela eminente Sra. Ministra Relatora está

muito ajustada para a hipótese que temos. O caso realmente ostenta um valor

que ultrapassa, e muito, aquele da alçada dos juizados especiais. A proposta que

Sua Excelência traz, em relação à limitação do valor da multa ao da alçada do

juizado especial, merece ser prestigiada.

Acompanho integralmente o voto da eminente Sra. Ministra Relatora,

dando provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança.

RECURSO ESPECIAL N. 866.840-SP (2006/0129056-3)

Relator: Ministro Luis Felipe Salomão

Relator para o acórdão: Ministro Raul Araújo

Recorrente: Bradesco Saúde S/A

Advogados: Evandro Luís Castello Branco Pertence

Maria Salgado e outro(s)

Luis Felipe Freire Lisboa e outro(s)

Recorrido: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor IDEC

Advogados: Andrea Lazzarini Salazar e outro(s)

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 425

Walter Jose Faiad de Moura

Paulo Ferreira Pacini e outro(s)

EMENTA

Direito Civil. Consumidor. Plano de saúde. Ação civil pública. Cláusula de reajuste por mudança de faixa etária. Incremento do risco subjetivo. Segurado idoso. Discriminação. Abuso a ser aferido caso a caso. Condições que devem ser observadas para validade do reajuste.

1. Nos contratos de seguro de saúde, de trato sucessivo, os valores cobrados a título de prêmio ou mensalidade guardam relação de proporcionalidade com o grau de probabilidade de ocorrência do evento risco coberto. Maior o risco, maior o valor do prêmio.

2. É de natural constatação que quanto mais avançada a idade da pessoa, independentemente de estar ou não ela enquadrada legalmente como idosa, maior é a probabilidade de contrair problema que afete sua saúde. Há uma relação direta entre incremento de faixa etária e aumento de risco de a pessoa vir a necessitar de serviços de assistência médica.

3. Atento a tal circunstância, veio o legislador a editar a Lei Federal n. 9.656/1998, rompendo o silêncio que até então mantinha acerca do tema, preservando a possibilidade de reajuste da mensalidade de plano ou seguro de saúde em razão da mudança de faixa etária do segurado, estabelecendo, contudo, algumas restrições e limites a tais reajustes.

4. Não se deve ignorar que o Estatuto do Idoso, em seu art. 15, § 3º, veda “a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade”. Entretanto, a incidência de tal preceito não autoriza uma interpretação literal que determine, abstratamente, que se repute abusivo todo e qualquer reajuste baseado em mudança de faixa etária do idoso. Somente o reajuste desarrazoado, injustifi cado, que, em concreto, vise de forma perceptível a difi cultar ou impedir a permanência do segurado idoso no plano de saúde implica na vedada discriminação, violadora da garantia da isonomia.

5. Nesse contexto, deve-se admitir a validade de reajustes em

razão da mudança de faixa etária, desde que atendidas certas condições,

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

426

quais sejam: a) previsão no instrumento negocial; b) respeito aos

limites e demais requisitos estabelecidos na Lei Federal n. 9.656/1998;

e c) observância ao princípio da boa-fé objetiva, que veda índices

de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em demasia o

segurado.

6. Sempre que o consumidor segurado perceber abuso no aumento

de mensalidade de seu seguro de saúde, em razão de mudança de

faixa etária, poderá questionar a validade de tal medida, cabendo ao

Judiciário o exame da exorbitância, caso a caso.

7. Recurso especial provido.

ACÓRDÃO

Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Raul

Araújo, dando provimento ao recurso especial, divergindo do voto do Sr.

Ministro Relator, e os votos dos Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Maria

Isabel Gallotti, no mesmo sentido da divergência, a Quarta Turma, por maioria,

decide dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro

Raul Araújo. Vencido o Relator, Ministro Luis Felipe Salomão, que negava

provimento ao recurso especial. Votaram com o Sr. Ministro Raul Araújo os Srs.

Ministros Maria Isabel Gallotti e João Otávio de Noronha.

Brasília (DF), 07 de junho de 2011 (data do julgamento).

Ministro Raul Araújo, Relator

DJe 17.08.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. O Instituto Brasileiro de Defesa

do Consumidor – IDEC, ajuizou ação coletiva em face da Saúde Bradesco

objetivando anulação de cláusula contratual, alegando que a associada da

entidade autora, Sra. Ingeborg Ina Hasseroot, fi rmou contrato de adesão para

prestação de serviços de assistência médico-hospitalar com a ré, mediante

pagamento de contribuição mensal, cujo valor, para o mês de novembro de 1998,

era de R$ 178,07. Contudo, no mês seguinte - dez/1998 - foi informada que a

referida prestação mensal sofreria um reajuste de 78,03% por reenquadramento,

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 427

em razão da mudança da faixa etária (a associada completara 70 anos), conforme

previsão contratual, passando a mensalidade a valer R$ 317,61. Afi rma que há

diversos outros contratantes na mesma situação.

Sustenta, ainda, que o contrato de adesão imposto unilateralmente pela

empresa regula uma relação de consumo, na qual os consumidores buscam

assegurar proteção à sua saúde e de sua família, e caracteriza-se pela durabilidade

das obrigações de ambas as partes, criando, inclusive, uma expectativa quanto à

manutenção do vínculo contratual por tempo indeterminado. No contexto dessa

relação jurídica marcada pelo trato sucessivo de suas prestações, dependência

e expectativa de continuidade, verifica-se que a estipulação contratual

fi xando aumento - que ultrapassa 40% -, por mudança de faixa etária, não se

compatibiliza com o ordenamento jurídico pátrio.

Afi rma que, nos termos da Lei n. 9.656/1998, que dispõe sobre a assistência

médica privada no país, com a alteração promovida pela MP n. 1.730-7, é

possível o aumento por faixa etária desde que estas e os respectivos percentuais

estejam explícitos no contrato, sendo que o valor fi xado para a última faixa etária

- 70 anos em diante - não pode ultrapassar seis vezes o valor da primeira faixa

etária - de 0 a 17 anos, conforme a Resolução n. 6 da Consu.

A sentença proferida às fls. 375-381 julgou procedente o pedido,

determinando a nulidade da cláusula contratual e devolução dos valores

ilegalmente cobrados.

Interposta apelação (fl s. 392-415), foi-lhe negado provimento, nos termos

do seguinte acórdão (fl s. 486-491):

Ação civil pública. Plano de saúde. Nulidade de cláusula contratual. Aumento na mensalidade por mudança de faixa etária. Abusividade. Ocorrência. Recurso não-provido (fl . 487).

Opostos embargos de declaração (fl s. 500-503), foram rejeitados (fl s. 508-512).

Inconformada, a Bradesco Seguros S/A interpõe recurso especial pelas

alíneas a e c do permissivo constitucional sustentando violação aos artigos 126,

427 e 535 do Código de Processo Civil e 35-G da Lei n. 9.656/1998, além de

dissídio jurisprudencial.

Alega, preliminarmente, nulidade do aresto em face da ausência de

debate acerca dos temas relevantes suscitados pela recorrente e por não ter sido

oportunizado o contraditório, mediante a realização da perícia requerida.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

428

A recorrente defende, em síntese, que era e ainda é lícito às seguradoras

estabelecerem, nos contratos, reajustes das prestações em razão da mudança

de faixa etária, não se afi gurando, dessa forma, a ilegalidade apontada pelo

recorrido, acolhida pelo Tribunal, daí a violação aos art. 126, CPC e 35-G, Lei

n. 9.656/1998.

Sustenta, também, caracterizado o dissídio.

Contrarrazões ofertadas às fl s. 642-665.

O Ministério Público declinou de se manifestar, conforme assevera a

sentença.

Decisão conferindo crivo positivo de admissibilidade ao recurso especial, às

fl s. 667-668.

É o relatório.

VOTO VENCIDO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. De início, cumpre afastar

a dita violação ao artigo 535 do Código de Processo Civil.

O acórdão recorrido apresentou os fundamentos nos quais apoiou o seu

julgamento. Com efeito, o Tribunal a quo dirimiu as questões pertinentes ao

litígio, afi gurando-se dispensável que venha examinar uma a uma as alegações

e fundamentos expendidos pelas partes. Basta ao órgão julgador que decline as

razões jurídicas que embasaram a decisão, não sendo exigível que se reporte de

modo específi co a determinados preceitos legais.

Além disso, não significa omissão quando o julgador adota outro

fundamento que não aquele perquirido pela parte.

3. Também não se observa nenhuma afronta ao preceito legal inserto no

artigo 427 do CPC, ao fundamento de que ocorrera cerceamento ao direito de

defesa do ora recorrente.

No sistema de persuasão racional, ou livre convencimento motivado,

adotado pelo Código de Processo Civil nos arts. 130 e 131, de regra, não

cabe compelir o magistrado a autorizar a produção desta ou daquela prova,

se por outros meios estiver convencido da verdade dos fatos. Isso decorre da

circunstância de ser o juiz o destinatário fi nal da prova, a quem cabe a análise

da conveniência e necessidade da sua produção. Incidência da Súmula n. 7 deste

Superior Tribunal de Justiça.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 429

4. Discute-se a validade de cláusula fixada em contrato de prestação

de serviço médico-hospitalar que reajusta o valor da prestação em razão da

mudança de faixa etária.

No caso concreto, a associada do plano de saúde pagou em novembro

do ano de 1998 parcela no valor de R$ 178,07 (cento e setenta e oito reais e

sete centavos). Contudo, em dezembro do mesmo ano, ao completar 70 anos

de idade, ocorreu o reenquadramento de sua mensalidade para R$ 317,61

(trezentos e dezessete reais e sessenta e um centavos).

4.1. Não ocorreu negativa de vigência ao artigo 35-G, Lei n. 9.656/1998,

sob a redação da MP n. 1.908-18/99, que ora é transcrito:

Art. 35-G. A partir de 05 de junho de 1998, fi ca estabelecido para os contratos celebrados anteriormente à data de vigência desta Lei que:

I - qualquer variação na contraprestação pecuniária para consumidores com mais de sessenta anos de idade estará sujeita à autorização prévia do Ministério da Saúde, ouvido o Ministério da Fazenda;

II - a alegação de doença ou lesão preexistente estará sujeita à prévia regulamentação da matéria pelo Consu;

III - é vedada a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato individual ou familiar de produtos defi nidos no inciso I e § 1º do art. 1º desta Lei por parte da operadora, salvo o disposto no inciso II do parágrafo único do art. 13 desta Lei;

IV - é vedada a interrupção de internação hospitalar em leito clínico, cirúrgico ou em centro de terapia intensiva ou similar, salvo a critério do médico assistente.

§ 1º Os contratos anteriores à vigência desta Lei, que estabeleçam reajuste por mudança de faixa etária com idade inicial em sessenta anos ou mais, deverão ser adaptados, até 31 de outubro de 1999, para repactuação da cláusula de reajuste, observadas as seguintes disposições:

I - a repactuação será garantida aos consumidores de que trata o parágrafo único do art. 15, para as mudanças de faixa etária ocorridas após a vigência desta Lei, e limitar-se-á à diluição da aplicação do reajuste anteriormente previsto, em reajustes parciais anuais, com adoção de percentual fi xo que, aplicado a cada ano, permita atingir o reajuste integral no início do último ano da faixa etária considerada;

II - para aplicação da fórmula de diluição, consideram-se de dez anos as faixas etárias que tenham sido estipuladas sem limite superior;

III - a nova cláusula, contendo a fórmula de aplicação do reajuste, deverá ser encaminhada aos consumidores, juntamente com o boleto ou título de cobrança, com a demonstração do valor originalmente contratado, do valor repactuado e

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

430

do percentual de reajuste anual fi xo, esclarecendo, ainda, que o seu pagamento formalizará esta repactuação;

IV - é vedada a interrupção de internação hospitalar em leito clínico, cirúrgico ou em centro de terapia intensiva ou similar, salvo a critério do médico assistente.

IV - a cláusula original de reajuste deverá ter sido previamente submetida ao Ministério da Saúde;

V - Na falta de aprovação prévia, a operadora, para que possa aplicar reajuste por faixa etária a consumidores com sessenta anos ou mais de idade e dez anos ou mais de contrato, deverá submeter ao Ministério da Saúde as condições contratuais acompanhadas de nota técnica, para, uma vez aprovada a cláusula e o percentual de reajuste, adotar a diluição prevista neste parágrafo.

§ 2º Nos contratos individuais de produtos defi nidos no inciso I e § 1º do art. 1º desta Lei, independentemente da data de sua celebração, a aplicação de cláusula de reajuste das contraprestações pecuniárias, dependerá de prévia aprovação do Ministério da Saúde.

§ 3º O disposto no art. 35 desta Lei aplica-se sem prejuízo do estabelecido neste artigo.

O aumento foi declarado ilegal em decorrência de ter sido imposto

de forma unilateral e abusiva, com fi xação aleatória, e em bases fi nanceiras

desconhecidas para os contratantes na oportunidade dos reajustes.

Outrossim, conforme sublinhado no aresto objurgado, a seguradora, ao

estabelecer política de faixa etária para idosos, está a “desfi gurar o equilíbrio e a

fi nalidade social como razão de sua atuação neste segmento, a fi car impedida de

poder granjear vantagem indevida e politicamente incorreta” (fl . 489).

Nesse ponto, exsurge a conduta predatória e abusiva da empresa, ao cobrar

menos dos jovens porque, como raramente adoecem, quase não utilizam-se dos

serviços oferecidos, ao tempo em que torna inacessível o seu uso àqueles que,

por serem de mais idade, dele com certeza irão se valer com mais freqüência.

A conclusão é de que se pretende ganhar ao máximo, prestando-se o

mínimo.

4.2. Nessa linha, apresenta-se de relevância, de modo a agravar a situação

delineada nos autos, a característica de que, no contrato de adesão, não é dada ao

contratante que a ele adere a oportunidade de discutir as condições contratuais

ali determinadas, o que fere direitos e causa desequilíbrio a demandar a

ingerência do Judiciário, a fi m de conferir proteção à parte mais vulnerável da

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 431

relação contratual, no sentido de estabelecer situação de igualdade, que no plano

dos fatos não existe.

Busca-se, destarte, a manutenção do equilíbrio contratual e o atendimento

de um interesse da sociedade que, como preleciona Arnaldo Wald, “pode não

coincidir com os do contratante que aderiu ao contrato e que não exerceu

plenamente a sua liberdade contratual” sendo que a “idéia básica é o atendimento

dos interesses da própria sociedade e do maior grupo de interessados, que não

pode sofrer as conseqüências do comportamento de um deles” (“A Dupla

Função Econômica e Social do Contrato”, publicada na Justilex, Ano III, n. 29,

2004, p. 21).

Intervém-se, assim, sempre que se constatar uma situação de

vulnerabilidade fática, jurídica ou econômica e, em sua decorrência, uma

condição de desequilíbrio na reciprocidade dos direitos e obrigações.

4.3. Às considerações acima expostas, acrescente-se que o Código de

Defesa do Consumidor estabelece normas de ordem pública e interesse social,

consagrando, em seu artigo 4º, os princípios da boa-fé objetiva, equidade, como

também coíbe o abuso de direito:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

[...]

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

[...]

VI - coibição e repressão efi cientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;

André Soares Hentz, em obra intitulada “Ética nas Relações Contratuais

à Luz do Código Civil de 2002”, Editora Juarez de Oliveira, p. 98-99, explicita

que:

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

432

Somente com advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, é que a boa-fé objetiva foi consagrada no Brasil. Legislação derivada de ditames constitucionais, a boa-fé passou a ser utilizada tanto para a interpretação de cláusulas contratuais como também para a integração das obrigações pactuadas, revelando ser fundamental que as partes se comportem com correção e lealdade até o cumprimento de suas prestações.

Cláudia Lima Marques explica que a adoção da boa-fé objetiva pelo Código de Defesa do Consumidor contribuiu sobremaneira na exegese das relações contratuais no Brasil como linha teleológica de interpretação (art. 4º, III), e como cláusula geral (art. 51, IV), positivando em todo o seu corpo de normas a existência de uma série de deveres anexos às relações contratuais, como dever de informação dos fornecedores e prestadores de serviços (art. 31) e a vinculação à publicidade divulgada, (arts. 30 e 35) dentre outros.

Com efeito, nos casos de prestações continuadas, de longo período, como

no caso de prestação de assistência médica em que o consumidor passa anos e

anos contribuindo na esperança de garantir para si e sua família uma assistência

adequada, discriminá-lo, quando atinge determinada faixa etária, e só por conta

desse fato, momento esse que necessita de maior segurança, por se encontrar

acentuada a sua vulnerabilidade, traduz, indubitavelmente, comportamento que

vai na contramão de todos os princípios acima mencionados.

A relação travada entre os litigantes é de consumo, de trato sucessivo e,

portanto gera a expectativa no consumidor de sua continuidade, ou seja, envolve

prestação periódica, devendo ser obstado o reajuste que se respalda de forma

exclusiva na variação de idade do segurado.

4.4. Por conseguinte, diante da aplicação do Código de Defesa do

Consumidor, a operadora do seguro-saúde está obrigada ao cumprimento

de uma boa-fé qualifi cada, ou seja, uma boa-fé que pressupõe os deveres de

informação, cooperação e cuidado com o consumidor/segurado.

No caso em análise, a seguradora impôs condição que limita os direitos

do consumidor em razão de sua idade, e sem que isso fi casse completamente

esclarecido no contrato.

Ademais, não demonstrou fosse necessário o reajuste efetivado. Assim

agindo, afetou o equilíbrio da relação, diminuindo o seu risco em detrimento do

consumidor/segurado.

5. Noutro âmbito, releva notar, ainda, que não se pode desprezar a força

que o idoso representa hoje no mercado de trabalho e a importância desse fato,

do ponto de vista econômico e social.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 433

5.1. Se por um lado, o avanço da ciência e da tecnologia vem proporcionando

uma longevidade cada vez maior ao ser humano, por outro lado, é certo, que os

índices de natalidade são cada vez mais baixos.

Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),

em 2005 havia cerca de 5,6 milhões de idosos trabalhando em todo o país,

movimentando aproximadamente R$ 7.000.000.000,00 (sete bilhões de reais)

ao mês (http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.

php?id_noticia=774).

Assim, o idoso, com suas potencialidades e limitações, será parte

signifi cativa na força de trabalho principalmente porque as questões atinentes

ao uso do intelecto se tornarão mais relevantes e mais exigidas, como se pode

verifi car pela procura cada vez mais acentuada desse segmento da população nas

áreas ligadas à educação, agências de viagens, cursos de idiomas e informática,

entre outros.

Apresenta-se, pois, fator da maior relevância promover e facilitar o acesso

do idoso aos planos de saúde, vedando-se qualquer tratamento discriminatório

em razão da idade.

Em artigo doutrinário – Os Planos de Saúde em face do Estatuto do

Idoso - publicado no Repertório de Jurisprudência IOB, vol. III, março de

2004, Cristian Rodolfo Wackerhagen reforça a argumentação acima,

sublinhando a exclusão sofrida pelo idoso no âmbito social, não obstante a sua

representatividade na produção econômica do país. Diz o autor:

Assim como muitos países, o Brasil vive hoje uma transformação – diminui a taxa de natalidade e aumenta a expectativa de vida. Em 2005, o Brasil terá 16 vezes mais idosos do que em 1950, embora a população vá se multiplicar por cinco anos apenas. A expectativa de vida dobrou de 33,7 anos em 1950 para 68,3 neste ano.

Esses números deixam evidente uma situação – o Brasil está envelhecendo. É um fato novo nas estatísticas pátrias e atípico nas escalas mundiais, pois sempre fomos considerado um país jovem, característica típica dos países subdesenvolvidos, em função da alta taxa de natalidade.

Por conseqüência dessa característica peculiar, um dos segmentos da população que mais sofre pela exclusão social são os idosos. Mesmo aqueles com boas condições econômicas ressentem-se da difi culdade em manter uma boa qualidade de vida, devido aos elevados custos que a idade lhes impõe.

De acordo com algumas estatísticas, cerca de 85% dos idosos têm pelo menos uma doença crônica que prescinde de exames periódicos e tratamentos

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

434

prolongados, ou, em casos extremos de intervenção cirúrgica e procedimento de elevado custo.

Lamentavelmente, o Estado não preparou a sociedade para a transição da política de privatização dos serviços à saúde, acarretando sérias difi culdades à população idosa. A defi ciência estatal na prestação dos serviços de assistência à saúde, como já ressaltamos, levou ao surgimento da participação do setor privado. Com aumento da demanda por este serviço privado, elevou-se também a prática de abusividade por parte desse setor, ainda que haja uma grande competitividade entre as empresas prestadoras desses serviços.

Como se trata de um serviço privado, que visa, sobretudo, a maior lucratividade e o menor custo, os contratos de planos privados de saúde são um campo fértil para a proliferação de cláusulas abusivas (p. 160).

O autor informa a importante mudança introduzida pela Lei n. 9.656/1998,

no sentido de não mais permitir o reajuste para pessoas com mais de sessenta

anos e com no mínimo dez anos no plano sucessor.

Empresta-se destaque, ainda, ao dever das seguradoras de saúde em razão

da delegação que lhes foi conferida pelo Estado, assim como a proteção dada

pela Constituição Federal ao idoso:

Com efeito, justamente por realizarem serviços delegados pelo Estado, estes setores privados têm a obrigação e a responsabilidade social de arcar com algum ônus para determinada parcela de nossa sociedade, em detrimento da conveniência e oportunidade dos negócios que o Estado lhe concedeu.

Ora, a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 confere proteção especial às pessoas idosas no seu art. 230 e atribui quota dessa responsabilidade às demais pessoas, dispondo “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida” (p. 159-160).

5.2. Inspirado nesse espírito protetor, foi editado o Estatuto do Idoso – Lei

n. 10.741/2003 – que, em seu artigo 15, assegura “a atenção integral à saúde do

idoso, por intermédio do Sistema único de Saúde (SUS) garantindo-lhe acesso

universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços,

para a prevenção, promoção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial

as doenças que afetam preferencialmente os idosos”. Acrescentando em seu §

3º ser “vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de

valores diferenciados em razão da idade.”

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 435

A entrada em vigor do Estatuto do Idoso, e, em particular o disposto no

citado artigo 15, § 3º, contrapõe-se aos reajustes escalonados previstos na Lei

dos Contratos de Plano de Saúde, em razão da variação de faixa etária, e veio

a pôr fi m a quaisquer dúvidas acerca da impossibilidade de discriminação do

idoso.

Tem-se, com efeito, se constatado a multiplicação de ações civis coletivas

promovidas pelas entidades protetivas do consumidor e pelo Ministério Público,

em diversos estados do país, com fi ns à aplicação do Estatuto do Idoso, abolindo-

se as restrições impostas pela Lei n. 9.656/1998 relativamente aos reajustes em

razão da variação de faixa etária, inclusive àqueles contratos celebrados antes de

sua vigência e que contêm cláusulas abusivas.

5.3. Esse é o entendimento albergado neste STJ, que, na forma do julgado

proferido no REsp n. 989.380-RN, de relatoria da insigne Ministra Nancy

Andrighi, assim consignou:

O plano de assistência à saúde, apresenta natureza jurídica de contrato de trato sucessivo, por prazo indeterminado, a envolver transferência onerosa de riscos, que possam afetar futuramente a saúde do consumidor e seus dependentes, mediante a prestação - de serviços de assistência médico-ambulatorial e hospitalar, diretamente ou por meio de rede credenciada, ou ainda pelo simples reembolso das despesas.

Como característica principal, sobressai o fato de envolver execução periódica ou continuada, por se tratar de contrato de fazer de longa duração, que se prolonga no tempo; os direitos e obrigações dele decorrentes são exercidos por tempo indeterminado e sucessivamente. Dessa forma, mês a mês, o consumidor efetua o pagamento das mensalidades para ter acesso à cobertura contratualmente prevista, o que, ao mesmo tempo lhe assegura o direito de, mês a mês, ter prestada a assistência à saúde tal como estabelecida na lei e no contrato. Assim, ao fi rmar contrato de plano de saúde, o consumidor tem como objetivo primordial a garantia de que, no futuro, quando ele e sua família necessitarem, será dada a cobertura nos termos em que contratada. A operadora, por sua vez, a qualquer momento, pode ser acionada, desde que receba mensalmente o valor estipulado na avença.

Regido pelo CDC, para além da continuidade na prestação, assume destaque o dado da “catividade” do contrato de plano de assistência à saúde, reproduzida na relação de consumo havida entre as partes. O convívio ao longo de anos a fio gera expectativas para o consumidor no sentido da manutenção do equilíbrio econômico e da qualidade dos serviços. Esse vínculo de convivência e dependência, movido com a clara fi nalidade de alcançar segurança e estabilidade, reduz o consumidor a uma posição de “cativo” do fornecedor.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

436

Após anos pagando regularmente sua mensalidade, e cumprindo outros requisitos contratuais, não mais interessa ao consumidor desvencilhar-se do contrato, mas sim de que suas expectativas quanto à qualidade do serviço oferecido, bem como da relação dos custos, sejam mantidas, notadamente quando atinge uma idade em que as preocupações já não mais deveriam açodar-lhe mente.

Nessa condição, a única opção conveniente para o consumidor idoso passa a ser a manutenção da relação contratual, para que tenha assegurado seu bem-estar nesse momento da vida. Ele deposita confi ança nessa continuidade. Nessa perspectiva, percebe-se que os serviços assumem indiscutível importância na sociedade de consumo em que vive a humanidade no seu atual estágio, pois passam a ser imprescindíveis para a vida e conforto do homem, havendo grande estímulo ao aparecimento do tipo contratual ora em exame, socialmente relevante e merecedor respostas de eqüitativas do Judiciário quando chamado a decidir frente à nova realidade.

Importante realçar que, naquela oportunidade, discutia-se a aplicação do

Estatuto do Idoso - Lei n. 10.741/2003 - aos contratos celebrados anteriormente

à sua edição e à Lei dos Planos de Saúde, levando-se em conta que o único

motivo utilizado pela seguradora para majoração do valor da mensalidade, por

faixa etária, era a condição jurídica de idoso.

Reconheceu-se, então, a incidência do Estatuto do Idoso sobre todas as

relações abarcando planos de saúde, inclusive aqueles fi rmados anteriormente

à sua vigência, mormente quando o artigo 15, parágrafo único, da Lei n.

9.656/1998 veda expressamente essa variação aos consumidores com mais de

sessenta anos.

Com efeito, assim consignou o voto condutor do referido REsp n. 989.380-

RN:

O surgimento de norma cogente (impositiva e de ordem pública), posterior à celebração do contrato de trato sucessivo, como acontece com o Estatuto do Idoso, impõe-lhe aplicação imediata, devendo incidir sobre todas as relações que, em execução contratual, realizarem-se a partir da sua vigência, abarcando os planos de saúde, ainda que fi rmados anteriormente à vigência do Estatuto do Idoso.

Quando do julgamento do REsp n. 809.329-RJ, DJ de 11.04.2008, que envolveu semelhante questão, explicitei, em meu voto, que o art. 15 da Lei n. 9.656/1998 faculta a variação das contraprestações pecuniárias estabelecidas nos contratos de planos de saúde em razão da idade do consumidor, desde que estejam previstas no contrato inicial as faixas etárias e os percentuais de

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 437

reajuste incidentes em cada uma delas, conforme normas expedidas pela ANS. No entanto, o próprio parágrafo único do aludido dispositivo legal veda tal variação para consumidores com idade superior a 60 anos.

Sob tal encadeamento lógico, o consumidor que atingiu a idade de 60 anos, quer seja antes da vigência do Estatuto do Idoso, quer seja a partir de sua vigência (1º de janeiro de 2004), está sempre amparado contra a abusividade de reajustes das mensalidades dos planos de saúde com base exclusivamente na mudança de faixa etária, por força das salvaguardas conferidas por dispositivos legais infraconstitucionais que já concediam tutela de semelhante jaez, agora confi rmadas pelo Estatuto Protetivo.

Nessa mesma linha de entendimento, os seguintes precedentes dessa

Superior Corte de Justiça:

Agravo regimental. Recurso especial. Plano de saúde. Reajuste de mensalidades em razão de mudança de faixa etária. Vedação. Precedentes. Decisão agravada mantida por seus próprios fundamentos.

1. Deve ser declarada a abusividade e conseqüente nulidade de cláusula contratual que prevê reajuste de mensalidade de plano de saúde calcada exclusivamente na mudança de faixa etária. Veda-se a discriminação do idoso em razão da idade, nos termos do art. 15, § 3º, do Estatuto do Idoso, o que impede especifi camente o reajuste das mensalidades dos planos de saúde que se derem por mudança de faixa etária. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça.

2. [...]

3. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no AgRg no REsp n. 533.539-RS, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 23.02.2010, DJe 08.03.2010).

Agravo regimental. Plano de saúde. Reajuste de mensalidade em razão de mudança de faixa etária (idoso). Inadmissibilidade. Ocorrência de discriminação e de abusividade. Decisão agravada. Manutenção.

A jurisprudência deste Tribunal Superior consagrou o entendimento de ser abusiva a cláusula contratual que prevê o reajuste da mensalidade de plano de saúde com base exclusivamente em mudança de faixa etária, mormente se for consumidor que atingir a idade de 60 anos, o que o qualifi ca como idoso, sendo vedada, portanto, a sua discriminação.

Agravo regimental improvido.

(AgRg nos EDcl no REsp n. 1.113.069-SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 17.03.2011, DJe 29.03.2011).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

438

No mesmo sentido os EREsp n. 989.380-RN, Relator Ministro Aldir

Passarinho Júnior; AgRg no REsp n. 325.593, Relator Ministro Vasco Della

Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS).

Realce-se que o que se afasta aqui, em sede de ação coletiva intentada em

favor dos associados da entidade recorrida - IDEC, são os reajustes procedidos

em razão da variação da faixa etária e, no caso particular, principalmente, sua

realização sem que fi casse clara e especifi cada a ocorrência de tais reajustes, nos

contratos celebrados entre as partes litigantes na presente lide.

Não se discute, portanto, os demais reajustes admitidos em lei, tais como

o reajuste anual e o reajuste nos casos de sinistro garantidos às empresas

prestadoras de planos de saúde, sempre ressalvada a abusividade.

6. Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.

É como voto

VOTO VENCEDOR

O Sr. Ministro Raul Araújo: Cuida-se de Ação Civil Pública proposta

pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC contra Bradesco Saúde

S/A com o fi to de ver declarada a nulidade de cláusulas constantes dos contratos

celebrados entre a sociedade empresária ré e os substituídos, as quais estabelecem

reajustes das mensalidades baseados exclusivamente na mudança de faixa etária

do segurado.

O d. Juízo de planície julgou procedente a demanda, nos seguintes termos:

Ante o exposto, Julgo Procedente a ação e declaro a nulidade da cláusula de instrumentalização de faixa onerosa e diferenciada para idosos, com extensão a todos os consumidores associados do autor, devolvendo-se o que constituiu reajuste gravoso e diferenciado ao curso dessas relações vigentes.

Condeno a Ré nas custas do processo e verba honorária que arbitro em 10% (dez por cento) do valor atribuído à causa, corrigido a partir do ajuizamento da ação (e-STJ, fl . 381).

Irresignada com a r. sentença, a sociedade empresária ré interpôs recurso

de apelação, ao qual foi negado provimento, em julgado que guarda a seguinte

ementa:

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 439

Ação civil pública. Plano de saúde. Nulidade de cláusula contratual. Aumento na mensalidade por mudança de faixa etária. Abusividade. Ocorrência. Recurso não provido (e-STJ, fl . 487).

Opostos embargos declaratórios, foram rejeitados (e-STJ, fl s. 508-512).

Assim, interpôs a sociedade empresária ré o presente recurso especial,

arrimado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, alegando violação aos

arts. 126, 535, II, e 427 do Código de Processo Civil e ao art. 35-G da Lei

Federal n. 9.656/1998, com a redação que lhe conferiu a Medida Provisória n.

1.908-18/99, bem como divergência jurisprudencial.

Sustenta, em suma, que: a) o v. acórdão recorrido se encontra omisso,

pois deixou de “declinar a ratio adotada em relação aos dispositivos ventilados,

explicar por que, havendo lei específi ca, julgou com base na equidade” (e-STJ, fl .

524); b) houve cerceamento de defesa, porquanto “dispensada perícia essencial ao

deslinde da controvérsia” (e-STJ, fl . 525); c) a Lei Federal n. 9.656/1998, em seu

art. 35-G (atual art. 35-E), permite o reajuste em razão da faixa etária, somente

exigindo que tais aumentos sejam diluídos, o que foi observado pela recorrente;

d) todos os seus contratos foram previamente aprovados pela Superintendência

de Seguros Privados (Susep).

Contrarrazões do recorrido, às fl s. 642-665.

Às fl s. 667-668, foi proferida decisão positiva de admissibilidade do recurso

especial.

Na sessão de 26 de outubro de 2010, teve início o julgamento do presente

apelo nobre, ocasião em que o eminente Relator, Ministro Luis Felipe Salomão,

negou provimento ao recurso, asseverando que “o que se afasta aqui, em sede de

ação coletiva intentada em favor dos associados da entidade recorrida - IDEC

-, são os reajustes procedidos em razão da variação da faixa etária e, no caso

particular, principalmente, sua realização sem que fi casse clara e especifi cada a

ocorrência de tais reajustes, nos contratos celebrados entre as partes litigantes na

presente lide”.

Na oportunidade, pedi vista dos autos para examinar mais de perto o caso.

O feito foi incluído na pauta do dia 16 de dezembro de 2010.

No entanto, o d. órgão do Ministério Público Federal peticionou à

fl . 695, solicitando adiamento do julgamento do recurso especial, a fi m de

apresentar parecer, o que foi deferido. No parecer, acostado às fl s. 704-708, o d.

Subprocurador-Geral da República opinou pelo não conhecimento do recurso

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

440

especial, em razão da incidência dos óbices dos Enunciados n. 83 e n. 211 da

Súmula do eg. Superior Tribunal de Justiça.

Feita a breve exposição supra, passo a proferir o voto-vista.

De início, faz-se oportuna uma digressão sobre os contratos de seguro,

gênero no qual se inserem os seguros e planos de saúde.

O seguro, de acordo com Sérgio Cavalieri Filho “é o contrato pelo qual o

segurador, mediante o recebimento de um prêmio, assume perante o segurado a

obrigação de pagar-lhe uma determinada indenização, prevista no contrato, caso

o risco a que está sujeito se materialize em um Sinistro. Segurador e segurado

negociam as consequências econômicas do risco, mediante a obrigação do

segurador de repará-las” (in Programa de Direito do Consumidor, 2ª edição, p.

214).

Ainda segundo o renomado autor, são três os elementos essenciais do

seguro: o risco, a mutualidade e a boa-fé.

O primeiro elemento divide-se em: a) risco objetivo, que traduz as

circunstâncias fáticas que envolvem a coisa ou a pessoa segurada, infl uindo

na probabilidade de ocorrência do evento danoso; e b) risco subjetivo, que se

relaciona com as características pessoais do segurado, defi nindo o seu perfi l.

A mutualidade, por sua vez, caracteriza-se por ser o “elemento econômico do

seguro”. Sobre tal elemento, ensina o ilustre autor que:

Quando falamos em mutualidade estamos falando de uma operação coletiva de poupança. Um grupo de pessoas, expostas aos mesmos riscos, resolvem formar um fundo capaz de cobrir os prejuízos que possam vir a sofrer. A toda evidência, a contribuição de cada um para esse fundo será proporcional à gravidade do risco a que está exposto. É possível prever, através de dados estatísticos e cálculos atuariais, o número de sinistros que poderão ocorrer dentro de um determinado período, os gastos que terão que ser feitos e a contribuição de cada uma (ob. cit., p. 214-215).

Do terceiro elemento se tratará mais adiante.

O contrato de seguro de saúde, embora regido por legislação específi ca,

segue a mesma lógica, ou seja, é razoável que os valores pagos a título de prêmio

ou mensalidade sejam proporcionais ao grau de probabilidade de ocorrência

do evento risco coberto, além de outras circunstâncias relevantes normalmente

já levadas em conta por ocasião da contratação inicial do seguro, como, por

exemplo, o nível de qualidade da cobertura (v.g. enfermaria ou apartamento) e

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 441

a abrangência da cobertura (internações hospitalares, honorários médicos e seus

limites, consultas médicas etc). Maior o risco, maior o valor do prêmio.

Nessa esteira, é cediço que quanto mais avançada a idade do segurado,

independentemente de ser ele enquadrado ou não como idoso, nos termos do

respectivo Estatuto, maior será seu risco subjetivo, pois, normalmente, é provável

que a pessoa de mais idade necessite de serviços de assistência médica com

maior frequência do que a pessoa que se encontre em uma menor faixa etária.

Trata-se de uma constatação natural, de um fato que se observa na vida e que

pode ser cientifi camente confi rmado.

Por isso mesmo, os contratos de seguro de saúde normalmente trazem

cláusula prevendo reajuste em função do aumento da idade do segurado.

Atento a tal circunstância, veio o legislador a editar a Lei Federal n.

9.656/1998, rompendo o silêncio que até então mantinha acerca do tema,

preservando a possibilidade de reajuste da mensalidade de plano ou seguro de

saúde em razão da mudança de faixa etária do segurado, estabelecendo, contudo,

algumas restrições a tais reajustes. É o que se depreende da leitura dos seguintes

dispositivos:

Art. 14. Em razão da idade do consumidor, ou da condição de pessoa portadora de deficiência, ninguém pode ser impedido de participar de planos privados de assistência à saúde.

Art. 15. A variação das contraprestações pecuniárias estabelecidas nos contratos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, em razão da idade do consumidor, somente poderá ocorrer caso estejam previstas no contrato inicial as faixas etárias e os percentuais de reajustes incidentes em cada uma delas, conforme normas expedidas pela ANS, ressalvado o disposto no art. 35-E (Redação dada pela Medida Provisória n. 2.177-44, de 2001).

Parágrafo único. É vedada a variação a que alude o caput para consumidores com mais de sessenta anos de idade, que participarem dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º, ou sucessores, há mais de dez anos (Redação dada pela Medida Provisória n. 2.177-44, de 2001).

Tal possibilidade encontra-se também prevista no art. 35-E da referida lei

(antigo art. 35-G), dispositivo que, no entanto, está com a efi cácia suspensa, por

motivos diversos dos alegados na presente ação, em razão de decisão proferida

pelo eg. Supremo Tribunal Federal, em medida cautelar na ADI n. 1.931.

Da leitura dos mencionados preceitos, vê-se que o próprio ordenamento

jurídico permite expressamente o reajuste das mensalidades em razão do

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

442

ingresso do segurado em faixa etária mais avançada em que os riscos de saúde

são abstratamente elevados, buscando, assim, manter o equilíbrio atuarial do

sistema.

Sucede que, em aparente contradição com as disposições do art.

15 supratranscrito, adveio o chamado Estatuto do Idoso, Lei Federal n.

10.741/2003, dispondo o seguinte:

Art. 15. É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.

§ 1º A prevenção e a manutenção da saúde do idoso serão efetivadas por meio de:

I – cadastramento da população idosa em base territorial;

II – atendimento geriátrico e gerontológico em ambulatórios;

III – unidades geriátricas de referência, com pessoal especializado nas áreas de geriatria e gerontologia social;

IV – atendimento domiciliar, incluindo a internação, para a população que dele necessitar e esteja impossibilitada de se locomover, inclusive para idosos abrigados e acolhidos por instituições públicas, fi lantrópicas ou sem fi ns lucrativos e eventualmente conveniadas com o Poder Público, nos meios urbano e rural;

V – reabilitação orientada pela geriatria e gerontologia, para redução das seqüelas decorrentes do agravo da saúde.

§ 2º Incumbe ao Poder Público fornecer aos idosos, gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso continuado, assim como próteses, órteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.

§ 3º É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade.

§ 4º Os idosos portadores de defi ciência ou com limitação incapacitante terão atendimento especializado, nos termos da lei.

Então é preciso encontrar um ponto de equilíbrio na interpretação de tais

comandos normativos a fi m de se chegar a uma solução justa para os interesses

em confl ito, envolvendo seguradoras e segurados idosos.

E é nesse ponto que entra o terceiro elemento do contrato do seguro, a

boa-fé. Sobre tal elemento, leciona Sérgio Cavalieri Filho que “não basta que as

partes tenham boa intenção apenas na hora da celebração do contrato de seguro;

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 443

a boa-fé objetiva impõe um comportamento jurídico de lealdade e cooperação

nos contratos, não somente na hora da sua celebração, mas também durante

toda a sua execução, mormente naqueles contratos que se prolongam no tempo”

(ob. cit., p. 216).

É, portanto, com base em tais premissas que se deve interpretar o art. 15,

§ 3º, do Estatuto do Idoso, que veda “a discriminação do idoso nos planos de

saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade”.

Ora, não se extrai de tal norma interpretação que determine, abstratamente,

que se repute abusivo todo e qualquer reajuste que se baseie em mudança de

faixa etária, como pretende o promovente desta ação civil pública, mas tão

somente o reajuste discriminante, desarrazoado, que, em concreto, traduza

verdadeiro fator de discriminação do idoso, justamente por visar difi cultar ou

impedir sua permanência no plano.

A cláusula contratual que preveja aumento de mensalidade com base

exclusivamente em mudança de idade, visando forçar a saída do segurado

idoso do plano, é que deve ser afastada. Esse vício se percebe pela ausência

de justifi cativa para o nível do aumento aplicado, o que se torna perceptível

sobretudo pela demasia da majoração do valor da mensalidade do contrato

de seguro de vida do idoso, comparada com os percentuais de reajustes

anteriormente postos durante a vigência do pacto. Isso é que compromete a

validade da norma contratual, por ser ilegal, discriminatória.

Neste ponto, faz-se oportuna a transcrição de salutar lição do il. Professor

Celso Antônio Bandeira de Mello, a qual bem traduz os critérios a serem

considerados para se defi nir se uma regra se encontra em conformidade ou em

confronto com o princípio constitucional da isonomia, in verbis:

Então, no que atina ao ponto central da matéria abordada procede afi rmar: é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualifi car os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto.

Cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o critério especifi cador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica - a dizer: o fator de discriminação - pode ser qualquer elemento radicado neles; todavia, necessita, inarredavelmente, guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

444

disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia (in “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, Ed. Malheiros, 3a. ed. SP, 2010, p. 38).

Na esteira do ensinamento acima, não há como se considerar violador do

princípio da isonomia o reajuste, autorizado em lei, decorrente de mudança de

faixa etária, baseado no já mencionado natural incremento do elemento risco,

pois caracterizada a pertinência lógica que justifi ca tal diferenciação, máxime

quando já idoso o segurado.

O que não se mostra possível, de acordo com as regras do art. 15, §

3º, da Lei Federal n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e do art. 14 da Lei

Federal n. 9.656/1998, transcritos supra, por afrontar nitidamente o princípio

da igualdade, repise-se, é que a seguradora, em fl agrante abuso do exercício de

direito e divorciada da boa-fé contratual, aumente sobremaneira a mensalidade

dos planos de saúde, aplicando percentuais desarrazoados, que constituam

verdadeira barreira à permanência do idoso no plano de saúde. Procedendo de

tal forma, a seguradora criaria, em verdade, fator de discriminação do idoso, com

o objetivo escuso e ilegal de usar a majoração para desencorajar o segurado a

permanecer no plano, o que, evidentemente, não pode ser tolerado.

Nesse contexto, deve-se admitir a validade de reajustes em razão da

mudança de faixa etária, que, como visto, se justifi ca em razão do aumento do

risco subjetivo, desde que atendidas certas condições, quais sejam: a) previsão no

instrumento negocial; b) respeito aos limites e demais requisitos estabelecidos

na Lei Federal n. 9.656/1998; e c) observância do princípio da boa-fé objetiva,

que veda índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em

demasia o segurado.

Portanto, não procede a pretensão deduzida na presente ação civil pública,

no sentido de ser declarada a nulidade das cláusulas dos contratos fi rmados entre

a sociedade empresária ré e todos os contratantes fi liados à entidade-autora,

que estabelecem aumento em razão de mudança de faixa etária. Como visto, a

decretação de nulidade das cláusulas que prevejam majoração de mensalidade

em razão da mudança de faixa etária, além de contrariar a lógica atuarial do

sistema securitário, afronta a legislação regente da matéria, que expressamente

prevê tal possibilidade de reajuste, desde que respeitado o que nela está disposto.

O mesmo se pode dizer, sem indevida supressão de instância, acerca do

pedido subsidiário, também formulado na inicial, no qual a promovente requer,

caso o julgador “não se convença da ilegalidade das cláusulas”, seja “fi xada uma

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 445

percentagem determinada para os aumentos das mensalidades em virtude de

mudança de faixa etária, com base no que se apurar na fase instrutória” (e-STJ,

fl s. 39-40).

Ora, se não se reconhece a ilegalidade da cláusula contratual, igualmente

improcedente é o pedido de o julgador, atuando como legislador, fi xar um

percentual determinado para os aumentos das mensalidades, de forma

prospectiva e rígida, sem levar em conta a dinâmica do contrato de trato

sucessivo. Tal negócio, como cediço, pode ser afetado por mudanças no complexo

quadro fático que envolve a relação jurídica de direito material a ser regulada

pela decisão. Trata-se, assim, de pretensão incompatível com o reconhecimento

da legalidade das cláusulas impugnadas.

Evidentemente, como se deixou registrado acima, caso algum consumidor

segurado perceba abuso no aumento de sua mensalidade, em razão de mudança

de faixa etária, aí sim poder-se-á cogitar de ilegalidade, cujo reconhecimento

autorizará o julgador a revisar o índice aplicado, seja em ação individual ou

coletiva.

Diante do exposto, conheço e dou provimento ao recurso especial, para

julgar improcedente a ação civil pública, invertendo-se os ônus sucumbenciais.

É como voto.

VOTO

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Observo que se trata de contratos

de adesão de prestação de assistência médico-hospitalar nos quais prevista

cláusula de reajuste por faixa etária. A ação coletiva foi ajuizada pelo Instituto

de Defesa do Consumidor e abrange contratos anteriores ao Estatuto do Idoso

e à própria Lei n. 9.656/1998, diplomas legais estes que não podem retroagir

para alcançar contratos em curso.

A sentença declara a invalidade da cláusula de reajuste por faixa etária, em

caráter geral, para diferentes tipos de contratos de adesão, não especifi camente

analisados, presumindo a abusividade em caráter geral da mencionada

estipulação a partir do exemplo de determinado reajuste imposto a alguns

associados.

Penso que, mesmo que se analise a questão sob o prisma do Estatuto do

Idoso, embora se trate de contratos anteriores a ela, deveria ser demonstrada, no

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

446

caso dos contratos em foco na ação civil pública, a abusividade, a discriminação

desproporcional sem fundamento na realidade do risco coberto em cada tipo de

contrato.

Seria possível uma ação em que segurados determinados ou uma instituição

que os representasse sustentasse que, naqueles contratos específi cos, houvesse

abuso nas alterações provocadas pela mudança de faixa etária.

Mas não é o que sucede aqui, em que se procurou e se obteve, em primeiro

e segundo grau de jurisdição, sentença que considera que a qualquer alteração

de prêmio em função do avanço da faixa etária seria por si só ilegal, porque seria

discriminatório. Em um contrato de seguro, não há como abstrair o aumento de

risco causado pelo aumento de faixa etária. O possível abuso deverá ser objeto,

caso a caso, de comprovação, além de estar na alçada da agência reguladora

adotar as medidas administrativas cabíveis.

Não foi demonstrada, no âmbito desta ação civil pública, a procedência do

pedido, que dependeria da demonstração in concreto do abuso em cada um dos

contratos mencionados na inicial.

Com a devida vênia do Relator, adiro à divergência, conhecendo do recurso

especial e dando-lhe provimento para julgar improcedente a ação civil pública,

invertendo os ônus sucumbenciais.

ESCLARECIMENTO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: Sr. Ministro João Otávio de Noronha,

nossa divergência é ontológica, nossa “visão de mundo” é muito diferente.

Porém, não divergimos num único ponto. Ninguém quer tirar o lucro da

empresa, pois o regime de nossa economia obedece o sistema capitalista. O que

não creio possível é o lucro pelo lucro, lucro desenfreado, o lucro desmedido. O

“mercado”, Ministro, não é mágico e resolve todos os problemas.

No caso em apreço, o Plano de Saúde aumentou a mensalidade, de um dia

para o outro, pelo simples implemento da idade.

É ônus do plano demonstrar, cabalmente, a razoabilidade do valor adotado.

Com efeito, porque se trata de contrato por adesão, tem que informar ao

consumidor adequadamente e comprovar a necessidade do reajuste. Não me

parece razoável que, pelo simples fato da passagem de um dia, pois o benefi ciário

do plano passou de 59 para 60 anos, dobrará a mensalidade. Ora, não se pode

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 447

prestigiar, como disse antes, o lucro predatório, o lucro descabido. É isso que se

pretende, com a interpretação do Estatuto do Idoso, coibir. Ninguém quer vedar

lucro. Ninguém quer que o sistema imploda. O que se quer é, no momento em

que o plano de saúde calcular, que faça a projeção e informe o consumidor antes.

O que não pode é, por um dia, pelo simples fato do implemento da idade, dobrar

o valor da mensalidade, predatoriamente, em um processo cativo, que é aquele

em que está o consumidor do serviço de saúde, em um contrato de adesão, para

que ele possa cumprir com a fi nalidade do lucro.

É preciso, Sr. Ministro João Otávio de Noronha, como julgadores, pesar,

penso eu, respeitando a ponderação de V. Exa., o interesse econômico-fi nanceiro

do plano com o resguardo da tutela do consumidor, porque, do contrário, é

melhor rasgar o Código do Consumidor. Se for só o lucro que interessa, vamos

rasgar o Estatuto do Idoso também.

ESCLARECIMENTO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: Penso que não me fi z explicar nessa

questão da prova. Na verdade, o juízo indeferiu a prova.

ESCLARECIMENTO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: Sr. Ministro Raul Araújo, a ação é

coletiva, todos os benefi ciários estão indicados na inicial, não se trata de uma

ação civil pública com sujeito indeterminado. E a tese é justamente o inverso.

RECURSO ESPECIAL N. 962.265-SP (2007/0109773-8)

Relator: Ministro João Otávio de Noronha

Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo

Recorrido: Mário Carlos Beni

Advogado: João Paulo Hecker da Silva e outro(s)

Recorrido: Antônio Carlos Feltrin

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

448

Advogado: Vera Lucia Montebelere e outro(s)

Recorrido: Luiz Antônio Fleury Filho

Advogado: Manoel Giacomo Bifulco e outro(s)

Recorrido: Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo e outro

Advogado: Guilherme José Braz de Oliveira e outro(s)

Recorrido: Wadico Waldir Bucchi e outros

Advogado: Ana Lúcia Medeiros e outro(s)

Recorrido: Jorge Flávio Sandrin e outros

Advogado: Maria Elisabeth de Menezes Corigliano e outro(s)

Recorrido: Antônio Augusto Mesquita Neto e outros

Advogados: Carlos Augusto Sobral Rolemberg e outro(s)

Flávio Cascaes de Barros Barreto e outro(s)

Paulo Roberto Saraiva da Costa Leite

Recorrido: Paulo Salvador Frontini

Advogado: Marco Antônio Negrao Martorelli e outro(s)

Recorrido: Orlando Gabriel Zancaner - espólio

Representado por: Weida Zancaner - inventariante

Advogado: William Roberto Grapella e outro(s)

Recorrido: José Fernando da Costa Boucinhas

Advogado: Felippe de Paula C de A Lacerda Filho e outro(s)

Recorrido: Fernando Mathias Mazzucchelli

Advogado: Marco Polo Levorin

Recorrido: José Campello Nogueira

Advogado: César de Castro Prado Nogueira

Interessado: Unibanco União de Bancos Brasileiros S/A

Advogados: Th iago Luiz Blundi Sturzenegger e outro(s)

Domingos Espina e outro(s)

Interessado: Roberto Luiz Lyra Ranieri

Advogado: Jorge Lauro Celidonio

Interessado: Nelson Gomes Teixeira

Advogado: Adolfo Henrique Machado Neto

Interessado: Aloysio Nunes Ferreira e outros

Advogado: Alcedo Ferreira Mendes

Interessado: Antônio Cláudio Leonardo Pereira Sechaczewiski

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 449

Advogado: Antônio Cândido de Azevedo Sodré Filho e outro(s)

Interessado: Oliver Simioni

Advogado: Suzana Angélica Paim Figueredo

Interessado: Gilberto Gregori

Advogado: Octávio Teixeira Brilhante Ustra

Interessado: Antônio Hermann Menezes Dias de Azevedo

Advogado: Jurandir Scarcella Portela e outro(s)

Interessado: Banco do Estado de São Paulo S/A - Banespa

Advogado: Francisco Bueno e outro(s)

EMENTA

Direito Civil e Bancário. Regime de Administração Especial

Temporária (RAET). Ação civil de responsabilidade objetiva. Lei

n. 6.024/1974, arts. 39 e 40. Decreto-Lei n. 2.321/1987, art. 15.

Legitimidade ativa do Ministério Público. Ocorrência em tese.

Inexistência de credores insatisfeitos e de passivo a descoberto. Falta

de interesse processual. Recurso adesivo. Honorários advocatícios de

sucumbência a cargo do Ministério Público. Ausência de má-fé. Não

cabimento.

1. O art. 39 da Lei n. 6.024/1974 trata de hipótese de

responsabilidade subjetiva dos administradores e conselheiros fi scais

de instituição financeira submetida aos regimes de intervenção,

liquidação extrajudicial, falência e administração temporária.

Respondem eles somente pelos atos que tiverem praticado ou omissões

em que houverem incorrido com culpa ou dolo.

2. O art. 40 também cuida de responsabilidade subjetiva e apenas

complementa o dispositivo anterior, estabelecendo a solidariedade

entre os administradores culposos e a instituição fi nanceira em relação

às obrigações por esta assumidas durante a gestão daqueles, até que

sejam cumpridas.

3. A Lei n. 6.024/1974, todavia, autoriza a inversão do ônus

da prova, de modo que compete aos administradores da instituição

demonstrar que atuaram com o devido zelo, a fi m de não serem

responsabilizados pelos prejuízos causados.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

450

4. O art. 15 do Decreto-Lei n. 2.321/1987 prevê, uma vez

decretado o Regime de Administração Especial Temporária – RAET,

a responsabilidade objetiva do controlador, que, solidariamente com

os ex-administradores da instituição, responderá pelas obrigações por

esta assumidas, até o montante do passivo a descoberto, apurado em

balanço que terá por data-base o dia da decretação do RAET.

5. Controlador é a pessoa natural ou jurídica que detém parcela

do capital votante que lhe possibilite exercer a administração de fato

da companhia, não se confundindo, no caso das empresas estatais, com

os agentes políticos que representam a pessoa de direito público titular

dessas ações.

6. O Ministério Público é parte legítima para propor ação de

responsabilidade contra administradores de instituições fi nanceiras

sujeitas ao regime de administração especial temporária. Poderá nela

prosseguir, mesmo em caso de levantamento do regime especial, desde

que remanesça interesse público a ser tutelado.

7. Falta-lhe, no entanto, interesse processual para propor ou

prosseguir em ação de responsabilidade objetiva se comprovada a

inexistência de credores não satisfeitos e de passivo a descoberto da

instituição, caso em que a discussão a respeito da legitimidade ativa

torna-se inócua.

8. O Ministério Público, em ação civil pública e suas subsidiárias,

só pode ser condenado ao pagamento de honorários advocatícios e

despesas processuais em caso de comprovada má-fé.

9. Recurso especial desprovido. Recurso especial adesivo não

conhecido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

unanimidade, negar provimento ao recurso especial e não conhecer do recurso

especial adesivo, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros

Luis Felipe Salomão, Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti e Antônio Carlos

Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 451

Dr(a). Paulo Roberto Saraiva da Costa Leite, pela parte recorrida: Antônio

Augusto Mesquita Neto.

Brasília (DF), 14 de junho de 2011 (data do julgamento).

Ministro João Otávio de Noronha, Relator

DJe 22.06.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Cuida-se, na origem, de ação

civil pública de responsabilidade ajuizada pelo Ministério Público do Estado

de São Paulo contra ex-administradores e ex-conselheiros fi scais do Banco

do Estado de São Paulo (Banespa) e outras pessoas que, segundo a ótica do

Parquet, mantinham vínculo de controle com aquela instituição fi nanceira, tudo

com relação a fatos ocorridos no quinquênio anterior ao RAET – Regime de

Administração Especial Temporária, decretado pelo Banco Central do Brasil.

Visa o autor, ora recorrente, à condenação dos réus ao pagamento da

importância de R$ 2.814.632.000,00 (dois bilhões, oitocentos e quatorze

milhões e seiscentos e trinta e dois mil reais), quantia equivalente ao suposto

prejuízo encontrado pelo Banco Central do Brasil em inquérito administrativo

instaurado para apuração da situação econômico-fi nanceira do Banespa, além

de outros valores a serem apurados em liquidação de sentença.

A inicial (fl s. 02-75, vol. 1) é clara em afi rmar que se trata de ação de

responsabilidade civil objetiva e veio embasada nos arts. 127 e 129, III, da

Constituição Federal, 40 e 46 da Lei n. 6.024/1974 e 15 e 19 do Decreto-Lei n.

2.321/1987.

Após regular, embora demorada tramitação do processo, valendo assinalar

que contam os autos com 20 volumes e 270 anexos, sobreveio a sentença de fl s.

2.645-2.699, vol. 8, por meio da qual o magistrado de primeiro grau extinguiu o

processo em conformidade com o art. 267, VI, c.c. o art. 295, II e III, do Código

de Processo Civil, ao fundamento de que, cessado o regime de administração

temporária a que fora submetida a instituição fi nanceira, não mais possuía o

Ministério Público legitimidade para prosseguir no feito e interesse processual,

uma vez que, a partir do levantamento daquele regime especial, sem que

houvesse credores insatisfeitos, não se poderia falar em interesse público a ser

tutelado.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

452

Daquela sentença o Ministério Público apelou (fl s. 2.652-2.693, vol. 8).

Apelações adesivas foram interpostas às fl s. 2.730-2.746, 2.950-2.958, 3.020-

3.026 e 3.112-3.116 (vols. 8 e 9). A Terceira Câmara de Direito Privado do

Tribunal de Justiça de São Paulo, por maioria, negou provimento aos recursos

por meio do acórdão de fl s. 4.011-4.037 (vol. 14), cuja ementa foi assim redigida:

Ação civil pública de responsabilidade. Preliminares arguidas pelo Ministério Público que foram rejeitadas. Ilegitimidade de parte e ausência de interesse de agir. Ocorrência. Ministério Público que, na espécie, não defende interesses difusos ou coletivos, mas interesses próprios do Banespa e de seus acionistas.

Ilegitimidade passiva de parte. Reconhecimento. Agentes políticos que não podem estar sujeitos à responsabilidade civil objetiva.

Honorários advocatícios. Condenação. Impossibilidade. Ministério Público que, enquanto instituição, conta com isenção dos encargos da sucumbência. Fazenda do Estado, por outro lado, que não pode suportar esse ônus por não ter sido parte no feito. Improvidos os recursos do Ministério Público e dos réus.

Foram opostos embargos de declaração pelo Ministério Público (fls.

4.067-4.075, vol. 14), ao fi nal rejeitados pelo acórdão de fl s. 4.085-4.087 (vol.

14), resumido nestes termos:

Embargos de declaração. Pressupostos. Inocorrência. Prestação jurisdicional que foi entregue de forma clara e precisa. Embargante que, a pretexto de esclarecer ou completar o julgado, na realidade busca alterá-lo. Embargos rejeitados.

Sobrevieram, então, recurso extraordinário (fl s. 4.108-4.267, vols. 14-15) e recurso especial (fl s. 4.283-4.438, vols. 15-16), apresentados pelo órgão ministerial.

No recurso especial, interposto com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, alega o recorrente violação dos seguintes dispositivos legais: 93, 106, 115, 139, 165, 253, 458, 459, 535, I e II, 555 e 556 do Código de Processo Civil; 40 e 46 da Lei n. 6.024/1974; 15 e 19 do Decreto-Lei n. 2.321/1987; 7º da Lei n. 9.447/1997; 3º e 5º da Lei n. 7.347/1985; 1º da Lei n. 7.913/1989; e 25, IV, e 29, VIII, da Lei n. 8.625/1993. Aduz também violação de diversos dispositivos constitucionais, além de divergência jurisprudencial.

Foram apresentadas contrarrazões por Paulo Salvador Frontini (fl s. 4.510-4.536, vol. 16); Mário Carlos Beni (fl s. 4.563-4.585, vol. 16); Luiz Antônio Fleury Filho (fl s. 4.620-4.648, vol. 16); Antônio Carlos Feltrin (fl s. 4.664-

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 453

4.672, vol. 16); Antônio Augusto de Mesquita Neto, Antônio Carlos Coutinho Nogueira, Clodoaldo Antonângelo, João Octaviano Machado Neto, José Machado de Campos Filho, José Tiacci Kirsten, Nildo Basini e Orestes Quércia (fl s. 4.695-4.729, vol. 17); Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo e Frederico Mathias Mazzucchelli (fls. 4.765-4.781, vol. 18); Wadico Waldir Bucchi, Antenor Araken Caldas Farias, Henrique Silveira de Almeida, Gilberto Rocha da Silveira Bueno, Sérgio Sampaio Laff ranchi, Luís Antônio Melges Tinós e Celso Rui Domingues (fl s. 4.811-4.835, vol. 18); José Campello Nogueira (fl s. 4.847-4.866, vol. 18); Fernando Mathias Mazzucchelli (fl s. 4.892-4.905, vol. 18); José Fernando da Costa Boucinhas (fl s. 4.926-4.952, vol. 18); Jorge Flávio Sandrin, Clóvis Panzarini, Wilson de Almeida Filho, Luiz Carlos Pereira de Carvalho, Nilton Gomes Monteiro, Pedro Luiz Ferronato, Waldemar Camarano Filho, Valdir Guaraldo, Zildomar Divino Ribeiro e Emília Ticami (fl s. 4.963-4.970, vol. 18); Oliver Simioni (fl s. 5.020-5.058, vol. 19) e espólio de Orlando Gabriel Zancaner e Maurício dos Santos (fl s. 5.140-5.144, vol. 19).

Antônio Augusto de Mesquita Neto, José Machado de Campos Filho e Orestes Quércia ofereceram recurso especial adesivo (fl s. 4.868-4.874, vol. 18) também com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, por entender que o acórdão recorrido, ao rejeitar o pedido de condenação do autor ao pagamento de honorários de sucumbência, teria contrariado os arts. 20 e 81 do Código de Processo Civil e 18 da Lei n. 7.347/1985. O adesivo também foi contra-arrazoado (fl s. 5.073-5.080, vol. 19).

O recurso especial não foi admitido na origem, e do recurso adesivo não se conheceu ex vi do disposto no art. 500, incisos II e III, do Código de Processo Civil (fl s. 5.187-5.191, vol. 19).

Sobreveio agravo de instrumento contra o despacho de inadmissibilidade do recurso especial. O relator originário a quem fora distribuído o agravo, Ministro Cesar Asfor Rocha, deu-lhe provimento e determinou a subida do especial para melhor apreciação (Ag n. 754.194-SP).

O Ministério Público Federal, por sua vez, ofereceu parecer pelo conhecimento e provimento do recurso especial e pelo desprovimento do adesivo.

Tendo em vista a notícia do falecimento do réu Orestes Quércia, determinei a intimação dos herdeiros para os fins do art. 283 e seguintes do RISTJ, tendo vindo aos autos a petição de fl s. 5.349-5.350 e demais documentos que comprovam a regularização da representação processual para o feito.

É o relatório.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

454

VOTO

O Sr. Ministro João Otávio de Noronha (Relator): Pede o recorrente a

apreciação, juntamente com este apelo, dos recursos especiais interpostos contra

acórdãos proferidos na Apelação n. 119.128-4, no Agravo de Instrumento n.

105.478-4 e no Confl ito/Dúvida de Competência n. 94.946.0/1-01 (numeração

na origem).

No entanto, constam dos autos (fl s. 6.674-6.688, Apenso n. 23) certidões

que atestam a não interposição de agravos contra os respectivos despachos

denegatórios. Fica, assim, prejudicado o pedido, uma vez que o não oferecimento

dos agravos correspondentes faz surgir a fi gura da preclusão, a impedir o exame

daqueles recursos. Não obstante, como as matérias neles tratadas também foram

debatidas nestes autos, o voto as abrangerá.

Analiso, inicialmente, algumas questões preliminares que foram arguidas

em contrarrazões.

A primeira delas foi trazida por Jorge Flávio Sandrin e outros (fl s. 4.963-

4.970, vol. 18) e diz respeito a eventual intempestividade do recurso especial.

Alegam os recorridos que, embora o recurso tenha sido protocolizado

dentro do prazo legal, os autos somente foram devolvidos ao cartório seis dias

após o vencimento daquele período, sendo de se aplicar, por isso, a regra do art.

195 do Código de Processo Civil, in verbis:

Art. 195. O advogado deve restituir os autos no prazo legal. Não o fazendo, mandará o juiz, de ofício, riscar o que neles houver escrito e desentranhar as alegações e documentos que apresentar.

Rejeito a preliminar.

Com efeito, colhe-se da jurisprudência desta Corte que as penalidades

previstas no referido dispositivo legal não se aplicam à contagem dos prazos

processuais. Confi ra-se a ementa abaixo na parte que interessa ao ponto:

Processual Civil. Recurso especial. Embargos de declaração sucessivamente opostos. Tempestividade. Segundos aclaratórios. Interposição dentro do prazo legal. Devolução dos autos a posteriori. Irrelevância. CPC, art. 195. Primeiros declaratórios. Intimação do acórdão por ofi cial de justiça. Prazo recursal. Termo inicial. Juntada aos autos do mandado cumprido. CPC, art. 241, II. Anulação dos acórdãos de fl s. 2.605-2.615. Princípio da economia processual. Devolução dos autos. Precedentes.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 455

- Protocolizados os embargos declaratórios da União dentro do prazo legal, é irrelevante a data em que foram os autos devolvidos em cartório.

- Dentre as sanções contidas no art. 195 do CPC, pela demora na devolução dos autos pelo advogado, não se inclui o não-conhecimento do recurso por intempestividade.

[...]

(REsp n. 505.371-DF, relator Ministro Francisco Peçanha Martins, DJ de 21.03.2005).

Afasto, em seguida, a alegada inépcia da petição recursal, invocada nas

contrarrazões oferecidas por Antônio Augusto de Mesquita Neto e outros (fl s.

4.695-4.729, vol. 17). Os recorridos pleiteiam a inadmissibilidade do apelo

especial dada a falta de objetividade e “inaceitável prolixidade”, argumentando

que o recorrente “abusou do seu direito de recorrer e de escrever, misturando

fatos e fundamentos, misturando matéria de recurso extraordinário com matéria

de recurso especial, tão só com o objetivo de difi cultar a apreciação do cerne da

questão” (fl . 4.697).

É verdade que as partes (e os magistrados também, por que não?) deveriam

formalizar seus arrazoados com clareza, concisão e objetividade. É atitude que

a todos benefi ciaria. No entanto, mesmo reconhecendo que a petição de recurso

especial afasta-se dessa orientação, pode-se extrair dali os elementos essenciais,

necessários e sufi cientes para a perfeita identifi cação das teses que se pretende

ver analisadas neste Tribunal. É preferível, sempre, a cabal defi nição do direito.

Há ainda a alegação de ocorrência de trânsito em julgado da parte do

acórdão impugnado que teria reconhecido a ilegitimidade passiva dos agentes

públicos arrolados na inicial, como ex-governadores e ex-secretários da Fazenda

do Estado de São Paulo. Alega-se, nas contrarrazões, que o recorrente não se

teria insurgido expressamente contra os termos do acórdão quanto ao ponto.

Não vejo dessa forma.

De fato, o recurso especial rebate as conclusões do acórdão recorrido a

respeito da matéria às fl s. 127 e seguintes das suas razões (fl s. 4.409 e seguintes dos

autos), pugnando pelo reconhecimento da legitimidade passiva de todos os agentes

políticos indicados na inicial, governadores e secretários da Fazenda do Estado de

São Paulo, em razão da sua pretensa ingerência nos negócios do Banespa.

Prosseguindo, verifi co que o recurso não merece prosperar no que diz

respeito à alegada violação dos arts. 93, 106, 115, 555 e 556 do Código de

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

456

Processo Civil. Quanto ao ponto, levanta o recorrente preliminar de nulidade do

acórdão impugnado, integrado por aquele proferido nos embargos de declaração,

em razão de suposta incompetência absoluta da Terceira Câmara de Direito

Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Argumenta que a competência para

o julgamento da apelação seria da Sétima Câmara de Direito Privado daquela

Corte, por prevenção, em homenagem ao princípio do juízo natural da causa

em segunda instância. Aduz, em defesa de sua tese, que o Regimento Interno

do Tribunal Bandeirante, em seu art. 226, contém norma que asseguraria a

prevenção da competência tal qual pretendida. Confi ra-se a referida norma

regulamentar, citada pelo recorrente em nota de rodapé à fl . 4.340:

Art. 226. A câmara que primeiro conhecer de uma causa ou de qualquer incidente, inclusive de mandado de segurança ou habeas corpus contra decisão de juiz de primeiro grau, terá a competência preventa para os feitos originários conexos e para todos os recursos, na causa principal, cautelar ou acessória, incidente, oriunda de outro, conexa ou continente, derivadas do mesmo ato, fato, contrato ou relação jurídica, e nos processos de execução das respectivas sentenças.

§ 1º. Previne a competência da câmara mesmo a decisão que deixar de julgar o mérito do recurso ou da ação.

Observo, de início, que em nenhum momento o recorrente pretende ver

reconhecida ilegalidade de dispositivo regimental. Aliás, à fl . 4.354, há mesmo

afi rmativa sua no sentido de que “o Regimento Interno da Colenda Corte do

Estado não desobedeceu à ordem legal e constitucional, prevendo regras para

o seu atendimento. Sua interpretação ou aplicação é que pode ser equivocada”.

Ora, consta do voto do relator (fl . 4.013) que a Corte originária, para

proceder à distribuição do feito a ele, utilizou-se do disposto no art. 226, § 2º,

do Regimento Interno ao invés de reconhecer a prevenção da Sétima Câmara

de Direito Privado, como pleiteado pelo recorrente. E, à fl . 3.933, está transcrita

referida norma, in verbis:

Cessará a prevenção se, na Câmara, não mais tiver assento qualquer dos juízes que participaram, com visto nos autos, do julgamento anterior.

Cessada a prevenção da Sétima Câmara de Direito Privado, utilizou-se do

disposto no art. 229, III, daquele regimento para a escolha do Desembargador

Flávio Pinheiro, agora membro da Terceira Câmara, para a relatoria do recurso,

uma vez que já havia ele atuado nos autos do Agravo de Instrumento n.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 457

105.478, quando ainda integrava a Oitava Câmara de Direito Privado. Está

assim redigido esse dispositivo regimental:

O desembargador que for transferido para outra Câmara, nos feitos em que houver lançado seu visto, como relator ou revisor, será juiz certo.

Como se vê, a questão atinente à competência da Terceira Câmara para

apreciação do recurso foi decidida levando-se em consideração as disposições do

próprio Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo, condizentes,

em princípio, com as regras processuais consignadas no ordenamento processual

civil, conforme reconhecido pelo próprio recorrente. Se houve má aplicação

daquelas normas ou sua inadequada interpretação, a ofensa não é da lei federal,

mas, eventualmente, do dispositivo regimental utilizado. Incidem na espécie, por

isso, as Súmulas n. 280 e n. 399 do STF.

Não houve também violação do art. 535, I e II, do Código de Processo

Civil.

Aduz o recorrente que o acórdão de fl s. 4.011-4.037 (vol. 14) incorreu em

omissão, contradição e obscuridade, defeitos que não foram sanados quando

do julgamento dos embargos de declaração tempestivamente opostos. Embora

argua a presença daqueles vícios, faz apenas breve referência à ausência de

fundamentação do julgado, alegando que a Corte a quo teria deixado de “analisar

as questões suscitadas à luz de dispositivos legais e constitucionais aplicáveis à

espécie”.

Não procede a irresignação. Na verdade, o Tribunal Estadual aplicou à

espécie a legislação que entendeu pertinente, dando-lhe interpretação que,

sob sua ótica, seria a mais adequada à hipótese submetida a julgamento,

particularmente diante do quadro fático que se lhe apresentava.

O Superior Tribunal de Justiça tem posição fi rme na seguinte direção:

Processual Civil. Coisa julgada. Limites. Parte dispositiva. Motivos e fundamentos não alcançados. Art. 469, I, do CPC. Embargos de declaração rejeitados.

I - Os embargos de declaração devem atender aos seus requisitos, quais sejam, suprir omissão, contradição ou obscuridade, não havendo qualquer desses pressupostos, rejeitam-se os mesmos, mormente quando o ponto fulcral da controvérsia reside na insatisfação do embargante com o deslinde da controvérsia.

II - O julgador não está obrigado a responder a todos os questionamentos formulados pelas partes, competindo-lhe, apenas, indicar a fundamentação

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

458

adequada ao deslinde da controvérsia, observadas as peculiaridades do caso concreto, como ocorreu in casu, não havendo qualquer omissão no julgado embargado.

III - Inviável a utilização dos embargos de declaração, sob a alegação de pretensa omissão, quando a pretensão almeja - em verdade - reapreciar o julgado, objetivando a alteração do conteúdo meritório da decisão embargada.

IV - Consoante entendimento consolidado por este e. STJ, nos termos do art. 469, I, do Código de Processo Civil, somente o dispositivo da decisão judicial faz coisa julgada, e não os motivos e fundamentos do decisum. Nesse sentido: REsp n. 968.384-RJ, 2ª Turma, Rel. Ministro Castro Meira, DJe de 27.02.2009).

V - Embargos de declaração rejeitados.

(EDcl no AgRg no Ag n. 1.238.609-RJ, relator Ministro Gilson Dipp, DJe de 17.12.2010).

Não vejo em que medida, por outro lado, teriam sido violados os arts. 125,

I, 130, 332, 458 e 459 do Código de Processo Civil.

O fato de o Juiz primevo, com posterior ratifi cação pelo Tribunal a quo, ter

considerado sufi ciente o documento de fl s. 1.472-1.473 (fornecido pelo Banco

Central do Brasil) para reconhecer a ausência de condições da ação e extinguir

o feito não leva necessariamente à violação dos dispositivos legais invocados

pelo recorrente, notadamente os arts. 125, I, 130 e 332 do Código de Processo

Civil. O Ministério Público juntou à inicial dezenas de volumes de documentos

na busca de comprovar suas alegações. No entanto, o Juiz, que tem liberdade

para apreciar as provas, entendeu sufi ciente, para extinguir o processo, aquela

produzida pelos réus. O ato de valoração da prova nada tem de incompatível

com o tratamento isonômico dado às partes. De outra forma, os processos

seriam intermináveis.

Inexiste também ofensa aos arts. 458 e 459 do CPC. A sentença contém

todos os requisitos essenciais exigidos pela lei. Concisão não implica insufi ciência

de fundamentação, mas decorre de autorização dada pela própria norma legal

tida por vulnerada pelo recorrente.

Afasto as alegações de ofensa a todos os dispositivos constitucionais

apontados. É que o recurso especial, na forma preconizada na Carta Magna, não

se presta à apreciação de matéria constitucional, função reservada ao Supremo

Tribunal Federal nos julgamentos de recursos extraordinários que lhe sejam

submetidos.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 459

No que se refere à legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação

de responsabilidade de ex-administradores de instituição fi nanceira submetida

a administração especial, a jurisprudência atual desta Corte vai em sentido

contrário àquele adotado pelo acórdão recorrido.

É verdade que julgados mais antigos dão conta de decisões que reconheciam

a ilegitimidade do Ministério Público para propor a ação de responsabilidade,

uma vez cessada a intervenção do Banco Central na administração da instituição

fi nanceira, conforme se vê no REsp n. 13.847-RJ, relator Ministro Fontes de

Alencar, DJ de 1º.03.1999, de ementa seguinte:

Liquidação extrajudicial de instituição fi nanceira. Ação de responsabilidade dos ex-administradores.

- O cessamento da liquidação extrajudicial faz nenhuma a legitimidade do Ministério Público para a ação de responsabilidade de ex-administradores da instituição fi nanceira.

- Recurso especial atendido.

No entanto, a partir do julgamento do REsp n. 444.948-RO, relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 03.02.2003, a Segunda Seção deste Tribunal mudou seu posicionamento e, tendo por base o art. 7º da Lei n. 9.447/1997, passou a entender que o Ministério Público tem, sim, legitimidade para propor ação que vise à apuração de responsabilidade de ex-administradores de instituições fi nanceiras submetidas ao regime de administração especial, ainda que cessada a intervenção. Ficou assim redigida a ementa do acórdão:

Instituição fi nanceira. Regime de Administração Especial Temporária. Cessação. Ministério Público. Legitimidade.

O Ministério Público não perde a legitimidade para prosseguir na ação de responsabilidade de administradores de instituições financeiras após o levantamento do Regime de Administração Especial Temporária. Lei n. 9.447/1997.

Recurso não conhecido.

No julgamento do AgRg nos EREsp n. 590.490-GO, relatado pelo

Ministro Jorge Scartezzini (DJ de 05.12.2005), fi cou expressamente ressaltada a

superação da divergência. Veja-se:

Agravo regimental nos embargos de divergência. Instituição fi nanceira. Ação de responsabilidade de ex-administrador. Regime de liquidação extrajudicial. Cessação. Ministério Público. Legitimidade. Divergência jurisprudencial superada. Súmula n. 168-STJ. Recurso desprovido.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

460

1. Encontra-se superado o dissídio pretoriano aventado, porquanto a e. Segunda Seção desta Superior Corte de Justiça, ao julgar o REsp n. 444.948-RO, posicionou-se na vertente da legitimidade do Parquet para propor e prosseguir com a ação de responsabilidade de ex-administradores de instituição fi nanceira, mesmo após o encerramento dos regimes de intervenção, liquidação extrajudicial ou administração especial temporária impostos, consoante o disposto no art. 7º, II, da Lei n. 9.447/1997 c.c. o art. 46 da Lei n. 6.024/1974.

2. “Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se fi rmou no mesmo sentido do acórdão embargado” (Súmula n. 168-STJ).

3. Agravo regimental desprovido.

Também adotei tal orientação no julgamento do REsp n. 489.392-RO, em

cujo acórdão, publicado em 31.03.2008, se vê ementa nos seguintes termos:

Recurso especial. Ação coletiva. Instituição financeira. Regime de Administração Especial Temporária. Ministério Público. Legitimidade.

1. A cessação do regime de administração especial (Lei n. 9.447/1997) não retira do Ministério Público a legitimidade para prosseguir em ação de responsabilidade de administradores de instituições fi nanceiras.

2. Recurso especial desprovido.

Recentemente, esta Turma ratifi cou o entendimento acima em acórdão

relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão assim ementado:

Civil e Processual Civil. Instituição financeira. Regime de Administração Especial e Temporária (RAET). Ação de responsabilidade e reparação de danos. Legitimidade do Ministério Público.

1. Recurso especial de Dilson Machado Fernandes:

1.1. A arguição genérica de violação do art. 535 do CPC incide no óbice da Súmula n. 284-STF.

1.2. O recorrente não indica de que forma os arts. 7º, II, da Lei n. 9.447/1997, 45 e 46 da Lei n. 6.024/1974 e 3º, 367, VI, do CPC foram malferidos, motivo pelo qual defi ciente a fundamentação. Incidência da Súmula n. 284-STF.

1.3. Para a configuração do dissídio jurisprudencial, faz-se necessária a indicação das circunstâncias que identifi quem as semelhanças entre o aresto recorrido e o paradigma, nos termos do parágrafo único, do art. 541, do Código de Processo Civil e dos parágrafos do art. 255 do Regimento Interno do STJ.

2. Recurso especial de João Wilson de Almeida Godim e Ellen Ruth Catanhede Salles Rosa:

2.1. Não há falar em violação ao art. 535 do Código de Processo Civil. O Eg. Tribunal a quo dirimiu as questões pertinentes ao litígio, afigurando-

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 461

se dispensável que venha examinar uma a uma as alegações e fundamentos expendidos pelas partes. Precedentes.

2.2. O Ministério Público detém legitimidade para propor ação e nela prosseguir, no caso de responsabilidade civil dos ex-administradores de instituições financeiras que foram submetidas a intervenções, ainda quando cessado o Regime de Administração Especial e Temporária (RAET).

3. Recursos especiais não conhecidos (REsp n. 444.887-RO, DJe de 29.03.2010).

De fato, a clareza do art. 7º da Lei n. 9.447/1997 não dá margem a dúvidas.

Prevê o referido dispositivo legal:

Art. 7º A implementação das medidas previstas no artigo anterior e o encerramento por qualquer forma, dos regimes de intervenção, liquidação extrajudicial ou administração especial temporária não prejudicarão:

I - o andamento do inquérito para apuração das responsabilidades dos controladores, administradores, membros dos conselhos da instituição e das pessoas naturais ou jurídicas prestadoras de serviços de auditoria independente às instituições submetidas aos regimes de que tratam a Lei n. 6.024, de 1974, e o Decreto-Lei n. 2.321, de 1987;

II - a legitimidade do Ministério Público para prosseguir ou propor as ações previstas nos arts. 45 e 46 da Lei n. 6.024, de 1974.

Dessarte, é inquestionável que o Ministério Público detém legitimidade

para propor ação e nela continuar, em caso de responsabilidade civil dos ex-

administradores de instituições fi nanceiras submetidas a regime de administração

especial, ainda quando encerrado, por qualquer forma, esse regime.

Nessas circunstâncias, aparentemente seria caso de se conhecer do recurso

e de lhe dar provimento. No entanto, o caso ora trazido a julgamento apresenta

nuances que levarão a rumo diferente. É que, a rigor, a hipótese é de falta de

interesse processual, e não propriamente de ilegitimidade de parte.

Não se pode olvidar que a ação proposta teve como fundamentos os arts.

40 e 46 da Lei n. 6.024/1974 e 15 e 19 do Decreto-Lei n. 2.321/1987 e que o

recorrente, textualmente, em seu pedido, requer:

Diante do exposto, promove o Ministério Público do Estado de São Paulo, com base nos artigos 127 e 129, III, da Constituição Federal e 40 e 46 da Lei n. 6.024, de 13 de março de 1974, 15 e 19, do Decreto-Lei n. 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, a presente ação de responsabilidade civil objetiva em face dos ex-administradores do Banco do Estado de São Paulo S/A, e pessoas que com ele mantinham vínculo de controle [...] (fl . 71).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

462

Em diversas outras passagens de sua longa petição inicial, o órgão

ministerial expressamente aduz que a ação tinha por fundamento a

responsabilidade objetiva dos ex-administradores do Banespa, circunstância que

tornava despicienda a perquirição de culpa ou dolo. Alguns exemplos:

- Entretanto, as sociedades bancárias seguem regra jurídica distinta, ou seja, aí há a chamada responsabilidade objetiva e solidária dos administradores em relação aos prejuízos apurados na sociedade. Trata-se, aliás, de critério abrangente às instituições fi nanceiras estatais.

Para a hipótese do Regime de Administração Especial Temporária, como no presente caso, a lei é expressa ao impor a responsabilidade objetiva a todos os administradores e controladores da sociedade bancária, uma vez que não exige, nem se discute a existência de dolo ou de culpa (v. art. 15 do Dec. Lei n. 2.321/1987) (fl . 58).

- [...] Não importa aí verificar se o administrador agiu com culpa ou dolo. É irrelevante o elemento subjetivo na definição dessa responsabilidade civil. Respondem pessoal e solidariamente, com a sociedade, pelas obrigações contraídas, mesmo nos atos de administração normal (fl . 60).

- [...] Não se discute quem tenha participado diretamente do ato prejudicial aos credores sociais e investidores. Todos os administradores da sociedade respondem.

Nem é caso de o Ministério Público, em hipóteses de responsabilidade societária, individualizar a conduta dos administradores na prática de irregularidades ou ilicitudes específi cas. Por isso mesmo preferiu a lei, ao cuidar da matéria, reconhecer a responsabilidade objetiva dos administradores (fl . 61).

- [...] É irrelevante, pois, a conduta individual dos administradores e controladores ou a graduação da culpa de cada um na prática de atos lesivos à sociedade. Como todos e cada um têm poderes legais e estatutários para impedir a prática de ilegalidades, cabe-lhes incontestável responsabilidade objetiva pelos prejuízos apurados na sociedade.

Resta aos administradores e controladores perseguidos judicialmente pela responsabilidade objetiva, o ajuizamento de ação própria contra os maiores culpados pelos prejuízos. Aliás, porque participantes de cada um dos atos da empresa, terão facilidade de comprovar a graduação da responsabilidade subjetiva na referida via processual.

O que é preciso apurar, além do prejuízo, para o ajuizamento da demanda civil pública de responsabilidade, então, é a identidade dos administradores e controladores da instituição fi nanceira em Regime de Administração Especial Temporária. E nada mais. A qualidade de administrador ou controlador no

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 463

período em que se apurou prejuízo é o que basta para o reconhecimento da responsabilidade (fl . 62).

Coerente com o posicionamento que adotou, o Ministério Público

efetivamente não cuidou de individualizar a participação de cada um dos réus

nos atos por ele tidos como ilegais ou desabonadores, ou de imputar-lhes

conduta capaz de causar prejuízos à instituição ou a terceiros. Com isso, acabou

por impossibilitar a defesa dos demandados, que não puderam nem mesmo

fazer prova de sua inocência.

Agrava-se a situação quando se percebe que todos os réus foram colocados

numa mesma posição, todavia, em verdade, como se verá, conselheiros fi scais,

administradores e controladores têm responsabilidades diferentes dentro de

uma companhia, esteja ela em atividade normal ou submetida a qualquer tipo de

intervenção.

E mais: em dois recentes julgamentos realizados na Terceira Turma do

Superior Tribunal de Justiça, adotou-se o entendimento de que tanto o art.

39 quanto o 40 da Lei n. 6.024/1974 tratam de responsabilidade subjetiva,

alterando-se, então, a jurisprudência da Corte, que, até então, considerava ser a

norma do art. 39 de responsabilidade subjetiva e a do art. 40, de responsabilidade

objetiva.

De fato, no julgamento do REsp n. 447.939-SP (DJ de 25.10.2007),

relatado pela Ministra Nancy Andrighi, fi cou assentado o seguinte:

Direito Civil e Bancário. Liquidação extrajudicial de consórcio, pelo Banco Central, com fundamento na Lei n. 6.024/1974. Propositura de ação civil pública para a responsabilização dos administradores. Acolhimento, pelo Tribunal a quo, da tese de que seria objetiva sua responsabilidade, com fundamento no art. 40 da Lei n. 6.024/1974. Reforma da decisão.

- O Ministério Público é parte legítima para propor a ação de responsabilidade em face dos administradores de instituições fi nanceiras ou consórcios, visando a responsabilização pelos prejuízos causados. Com a falência da sociedade, o Parquet tem de ser substituído pelo síndico da sociedade. A demora nessa substituição, todavia, não implica nulidade do processo. Precedente.

- A regra do art. 39 da Lei n. 6.024/1974 regula uma hipótese de responsabilidade contratual; a do art. 40 da mesma lei, uma hipótese de responsabilidade extracontratual. Ambas as normas, porém, estabelecem a responsabilidade subjetiva do administrador de instituições financeiras ou consórcio. Para que se possa imputar responsabilidade objetiva, é necessário

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

464

previsão expressa, que a Lei n. 6.024/1974 não contém. O art. 40 meramente complementa o art. 39, estabelecendo solidariedade que ele não contempla.

- A Lei n. 6.024/1974, todavia, autoriza a inversão do ônus da prova, de modo que compete aos administradores da instituição demonstrar que atuaram com o devido zelo, impedindo sua responsabilização pelos prejuízos causados.

- Não tendo sido conferido aos réus a oportunidade de comprovar sua ausência de culpa, é necessária a anulação do processo para que o processo ingresse na fase de instrução, devolvendo-se os autos ao juízo de primeiro grau.

- Recurso especial provido.

Após discorrer a respeito das diversas tendências doutrinárias e

jurisprudenciais que pretendem pôr fi m à controvérsia, a relatora pontifi cou:

A norma do art. 40 da Lei n. 6.024/1974, ao dispor que “os administradores de instituições fi nanceiras respondem solidariamente pelas obrigações por elas assumidas durante sua gestão, até que se cumpram”, claramente estabeleceu a possibilidade de se responsabilizarem diretamente os administradores das instituições fi nanceiras pelos prejuízos causados. A solidariedade é estabelecida entre os administradores e a instituição financeira e a idéia de causalidade permanece na norma.

Esta regra, portanto, complementa a do art. 39, estabelecendo a solidariedade que dela não constava. Não há nada na lei, todavia, que indique o estabelecimento de responsabilidade objetiva com base no risco criado. Nesse sentido a opinião de Saulo Ramos (“Inexistência de responsabilidade do Governador do Estado pela gestão de Banco Estadual. Interpretação da Lei n. 6.024/1974”, Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais 01/9-40, ano I, Ed. RT, jan-abr. 1998).

Além disso, conforme observa o Professor Newton de Lucca (“A responsabilidade civil dos administradores das instituições fi nanceiras”, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro 67/32-38, jul.-set. 1987, esp. p. 36), a expressão prejuízos causados, contida no parágrafo único do art. 40 está a delimitar a responsabilidade, não apenas em termos de extensão, mas também de natureza. A idéia de causalidade, porém, está sempre presente. Se estivéssemos diante de uma hipótese de responsabilidade objetiva, como observa Arnoldo Wald, a expressão “prejuízos causados” contida no par. único do art. 40 deveria ser substituída por “prejuízos sofridos”. Da mesma forma, como observa Saulo Ramos, a teoria do risco criado é incompatível com a menção, contida no art. 46 da Lei, de que “a responsabilidade dos ex-administradores, defi nida nesta Lei, será apurada em ação própria”, sendo mais conveniente dizer que “os prejuízos serão exigidos”, expressão muito mais conforme à idéia de responsabilização pelo risco criado.

Além disso, com relação aos argumentos de que a responsabilidade objetiva se fundamenta no risco profi ssional, ou na necessidade de se prestar garantia aos

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 465

credores da instituição fi nanceira, trata-se de argumentos que não se sustentam. É necessário lembrar que em grande parte das vezes as instituições fi nanceiras são geridas por administradores empregados, que não se benefi ciam dos bônus decorrentes da atividade desenvolvida pela instituição. Assim, não há sentido em se justifi car sua responsabilização pelo proveito que aufeririam da atividade desenvolvida pelo banco. Muitas vezes, não são os administradores que criam, ou que gozam dos riscos criados pela atividade bancária, o que é admitido até mesmo por defensores da teoria objetiva (Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, cit., p. 114-115, conforme observado por Ivo Waisberg, cit., p. 144-145). Além disso, nas hipóteses de administradores empregados, que não auferem os lucros da instituição, sua responsabilização como medida de garantia seria de pouco mais que nada. Muito mais efetivo seria buscar do acionista controlador da instituição fi nanceira a justa reparação aos lesados, ainda que mediante mecanismos de desconsideração da personalidade jurídica.

De todas essas ponderações decorre que não é possível, no panorama atual, adotar a tese de que é objetiva a responsabilização dos administradores de instituições fi nanceiras, no âmbito da Lei n. 6.024/1974. A sua responsabilidade é, até que se altere o panorama legislativo, subjetiva, limitando-se aos prejuízos causados por ato de cada um deles, durante sua gestão.

Anoto, por oportuno, que o parecer do jurista Saulo Ramos, mencionado

pela relatora, foi produzido para instruir exatamente este processo que se

encontra em julgamento. Daí a pertinência de sua menção no caso.

No julgamento do REsp n. 819.217-RJ, DJe de 06.11.2009, o relator,

Ministro Massami Uyeda, ao endossar o entendimento adotado pela Ministra

Nancy Andrighi, acrescentou:

Essa orientação jurisprudencial, todavia, tomou novo rumo e passou a reputar a responsabilidade do art. 40 da Lei n. 6.024/1974 como sendo subjetiva, fundada na presunção iuris tantum de culpa dos ex-administradores. Assim, de regra, ante essa presunção relativa, caberá aos ex-administradores o ônus de provar a inexistência de culpa pelos prejuízos causados à instituição fi nanceira.

Consta ainda do voto do relator:

Acresça-se, ainda, que, para esse entendimento jurisprudencial, a solidariedade prevista no art. 40 da Lei n. 6.024/1974 não vincula os ex-administradores entre si. A solidariedade, na verdade, é entre o ex-administrador culposo e a instituição fi nanceira, e não entre aquele e os ex-administradores zelosos ou desprovidos de nexo causal com o dano.

E é a essa mais recente orientação que se deve emprestar homenagem.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

466

Realmente, o mecanismo de intervenção, liquidação e administração especial temporária - RAET das instituições financeiras - por se imbuir de inegável interesse público consistente na saúde econômica do país, na estabilidade dos juros, no controle da taxa de câmbio, no desenvolvimento socioeconômico - mereceu tratamento privilegiado pela legislação brasileira, com instrumentos de responsabilização, ao máximo, eficazes. Entretanto, a interpretação dos dispositivos referentes a esses instrumentos deve ser feita em consonância com primados de razoabilidade e de princípios gerais de direito.

Assim, atendo-se ao art. 40 da Lei n. 6.024/1974, verifi ca-se não ser viável extrair daí que a responsabilidade pelos prejuízos suportados pela instituição fi nanceira é, de forma objetiva e solidária, de todos os ex-administradores, visto que, em nenhum momento, a legislação faz menção expressa à pretensa natureza objetiva da responsabilidade, tampouco à solidariedade entre os administradores em si.

Como se vê, o novo posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de

Justiça induz ao reconhecimento não só de que a responsabilização prevista

no art. 40 da Lei n. 6.024/1974 é subjetiva, fundada, porém, na presunção

juris tantum de culpa dos ex-administradores, cabendo-lhes, por isso, provar

a inexistência de culpa por eventuais prejuízos decorrentes de obrigações

assumidas pelas instituições fi nanceiras durante sua gestão, mas também de

que a responsabilidade solidária, que se estabelecerá entre os administradores

culposos e a sociedade, terá como limite o montante dos prejuízos causados a

terceiros, a teor do contido no parágrafo único do referido art. 40.

Nota-se, daí, que a aplicação da jurisprudência atual desta Corte levaria

fatalmente à mesma conclusão a que chegaram as instâncias ordinárias, isto é, a

da falta de interesse processual para o prosseguimento da causa.

Relativamente à norma contida no art. 15 do Decreto-Lei n. 2.321/1987,

diploma direcionado exclusivamente às instituições fi nanceiras em Regime de

Administração Especial Temporária, como no caso, entendo que ali se previu

expressamente a responsabilidade objetiva. Eis o seu texto:

Art. 15. Decretado o Regime de Administração Especial Temporária, respondem solidariamente com os ex-administradores da instituição pelas obrigações por esta assumidas, as pessoas naturais ou jurídicas que com ela mantenham vínculo de controle, independentemente da apuração de dolo ou culpa.

Diferentemente, porém, do que entende o recorrente, a responsabilidade

objetiva tratada nesse artigo diz respeito apenas às pessoas que mantenham

vínculo de controle com a companhia. O que fez o mencionado dispositivo

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 467

legal foi atribuir responsabilidade solidária e objetiva (“independentemente

de apuração de dolo ou culpa”) aos controladores da companhia, visto

que, em relação aos administradores, como já se viu, a Lei n. 6.024/1974

já estabelecera a natureza de sua responsabilidade (subjetiva). Não há por

que, no caso do RAET, a responsabilidade dos administradores ser maior

do que aquela estabelecida para as hipóteses de intervenção e de liquidação

extrajudicial previstas na Lei n. 6.024/1974. A novidade trazida pelo referido

art. 15 foi a responsabilização solidária e objetiva do controlador, uma vez que é

ele, por intermédio de seus prepostos (membros do conselho de administração e

diretoria), o verdadeiro responsável pelos resultados da empresa. Veja-se, porém,

que essa responsabilidade é apenas pelas obrigações assumidas pela empresa e

“se circunscreve ao montante do passivo a descoberto da instituição, apurado em

balanço que terá por data base o dia da decretação do regime de que trata este

decreto-lei” (§ 2º, do art. 15).

A interpretação correta a ser dada ao referido dispositivo legal, então, é a

seguinte: decretado o RAET, o controlador, independentemente da apuração

de dolo ou culpa dos administradores da pessoa jurídica controlada, responde

solidariamente com eles, cuja responsabilidade é subjetiva, como já se disse,

pelas obrigações assumidas pela instituição fi nanceira. O controlador, somente

ele, tem responsabilidade objetiva. E isso se justifi ca porque o legislador quis

atribuir a quem tem o comando da companhia maior responsabilidade pelas suas

obrigações. Na verdade, quem tem o controle da sociedade age praticamente

como seu dono, é quem estabelece as estratégias, as regras de funcionamento,

etc., e nada mais natural, por isso, que seja o principal responsável caso a

sociedade não consiga cumprir com suas obrigações.

Cumpre defi nir, então, quem são os controladores da companhia sobre

cujos ombros recairá a responsabilidade objetiva e solidária. Conceitualmente,

pode-se dizer que controlador é a pessoa natural ou jurídica que detém parcela

do capital votante que lhe possibilite exercer a administração de fato da

companhia, ou, na dicção da Lei n. 6.404/1974:

Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e

b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

468

Ora, quem detinha tal parcela de capital, no caso, era o Estado de São

Paulo, pessoa jurídica de direito público, nunca as pessoas naturais e agentes

políticos dos ex-governadores e secretários da Fazenda arrolados na inicial.

Por maior infl uência que aquelas pessoas naturais pudessem exercer sobre os

órgãos de administração do Banespa ou sobre os próprios administradores

individualmente, a lei não autoriza sua inclusão no conceito de controladores. Do

ponto de vista legal e conceitual, os órgãos de administração são independentes

e devem pautar suas ações na lei e no estatuto da sociedade que administram,

independentemente de quem sejam os agentes políticos que, eventualmente,

representem a pessoa de direito público titular das ações representativas da

maioria do capital votante da companhia.

Veja-se, a propósito, elucidativo trecho do parecer do jurista Saulo Ramos,

já mencionado, a cujas conclusões adiro integralmente:

Dúvida alguma existe sobre ser o acionista controlador do Banespa o Estado de São Paulo, pessoa jurídica de direito público, e dentro de sua orgânica estruturação a Fazenda Estadual detém a competência para exercer os direitos e suportar os deveres do titular majoritário das ações que representem o controle do capital votante daquela instituição.

Não se pode, porém, confundir o Estado, enquanto pessoa jurídica de direito público, com a fi gura de seu governador, investido do mandato político para chefi ar o Poder Executivo durante o período fi xado pela Constituição. O administrador administra, não é o proprietário das ações, patrimônio do tesouro público.

Para os efeitos da responsabilidade civil, instituída no art. 15 do Dec-Lei n. 2.321/1987, a Fazenda Estadual, seu tesouro e seus recursos, em tese, respondem quanto às obrigações assumidas pela instituição fi nanceira, juntamente com os diretores, com uma importante diferença: estes terão a responsabilidade fundada na culpa, aquela tem responsabilidade objetiva.

Isso quer dizer: se esgotados os bens da instituição, bem como dos ex-administradores culpados, e ainda restar obrigação a ser cumprida, a Fazenda do Estado, que representa o acionista controlador, pagará o saldo devedor da entidade, independentemente de apuração de culpa ou dolo das pessoas que por ela respondiam à época dos fatos e administravam seus bens, direitos e obrigações (“Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais”, vol. I, jan-abril 1998, p. 32).

É importante, diante de tudo o que foi dito até agora, deixar estabelecidas

certas premissas que levarão à conclusão deste voto:

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 469

a) o art. 39 da Lei n. 6.024/1974 trata, única e exclusivamente, de

responsabilidade subjetiva dos administradores e dos conselheiros fi scais da

instituição fi nanceira pelos atos praticados ou omissões em que houverem

incorrido com culpa ou dolo;

b) o art. 40 da Lei n. 6.024/1974 trata também de responsabilidade

subjetiva, fundada, porém, na presunção juris tantum de culpa dos

administradores que, por essa razão, devem desincumbir-se do ônus de provar

a inexistência de culpa pelos prejuízos causados à instituição fi nanceira. Dois

aspectos merecem ser ressaltados no ponto: i) como o art. 40 não os menciona,

não estendem aos conselheiros fi scais as consequências que se podem tirar da

norma; e ii) administradores culposos e instituição respondem, solidariamente,

pelas obrigações por esta assumidas durante a gestão daqueles, até que sejam

cumpridas (no caso, referem-se, naturalmente, àquelas obrigações contraídas

com terceiros);

c) o art. 15 do Decreto-Lei n. 2.321/1987 estabeleceu responsabilidade

objetiva e solidária do controlador, que responderá, juntamente com os ex-

administradores culposos da instituição fi nanceira, pelas obrigações assumidas

pela companhia (perante terceiros, naturalmente). O parágrafo segundo do

referido artigo, entretanto, limita essa responsabilidade ao “montante do passivo

a descoberto da instituição, apurado em balanço que terá por data base o dia da

decretação do regime de que trata este decreto-lei”.

E o que ocorreu na ação que se encontra em julgamento?

O Ministério Público ajuizou ação civil de responsabilidade objetiva com

base nos arts. 40 e 46 da Lei n. 6.024/1974 e nos arts. 15 e 19 do Decreto-Lei n.

2.321/1987, contra todos os ex-conselheiros fi scais e ex-administradores que, nos

últimos 05 anos anteriores à decretação do RAET, exerceram cargos no Banespa,

bem como contra as pessoas naturais dos governadores e ex-governadores,

secretários e ex-secretários da Fazenda do Estado de São Paulo daquele período,

pretendendo que todos sejam, de forma solidária, condenados ao pagamento de

prejuízos que teriam sido causados àquela instituição, aos seus credores e ao

patrimônio público. Pretendeu o órgão ministerial submeter todos os réus aos

mesmos efeitos da decisão, independentemente do período em que ocuparam

os cargos de direção, de terem ou não agido com culpa ou dolo, de serem ou

não meros agentes políticos ao invés de controladores. Entendeu desnecessário,

por isso, individualizar as condutas dos réus, tornando impossível sua defesa,

particularmente daqueles a quem a lei atribui o ônus de provar sua inocência.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

470

No entanto, como se viu, a responsabilidade dos conselheiros fi scais é

apenas subjetiva, uma vez que prevista somente no art. 39 da Lei n. 6.024/1974.

A dos ex-administradores, tida à época como objetiva, limitava-se às obrigações

assumidas pela instituição financeira durante sua gestão e até que fossem

cumpridas, conforme previsto no art. 40 da referida lei. Além disso, os agentes

políticos não se confundem com a fi gura do controlador prevista no Decreto-

Lei n. 2.321/1987.

Observe-se, contudo, que tanto o Juiz de primeiro grau quanto o Tribunal

a quo julgaram a causa como se de responsabilidade objetiva se tratasse, até

porque, à época, repita-se, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

assim entendia. E, ao fazê-lo, considerando carecedor de ação o autor, aqueles

órgãos julgadores levaram em conta os elementos de prova de que dispunham e

que entenderam sufi cientes para extinguir, sem mais delongas, processo em que

se discutia responsabilidade objetiva.

Assim é que sentença e acórdão regional concluíram pela inexistência

tanto de credores insatisfeitos quanto de passivo a descoberto da instituição com

base em informações prestadas pelo próprio órgão responsável pela decretação e

pelo levantamento do Regime de Administração Temporária, o Banco Central

do Brasil, como se vê do documento de fl s. 1.472-1.473.

E por que se contentaram aqueles órgãos julgadores com tais informações,

considerando-as sufi cientes para decretar a extinção do feito? Ora, como se viu,

o art. 40 da Lei n. 6.024/1974 estabelece responsabilidade dos administradores

(subjetiva, segundo o entendimento atual; objetiva, conforme o entendimento

da época da prolação das decisões) pelas obrigações assumidas pelas instituições

fi nanceiras até que essas sejam cumpridas. Daí por que, tendo o Banco Central

afi rmado não haver “obrigação do Banespa não satisfeita, junto a credores e/ou

investidores”, tal informação foi bastante para a conclusão de que não incidia a

responsabilidade prevista no art. 40 (fosse ela objetiva ou subjetiva, digo eu).

Ademais, o § 2º do art. 15 do Decreto-Lei n. 2.321/1987 limita a

responsabilidade solidária do controlador (e não dos agentes políticos) “ao

montante do passivo a descoberto da instituição, apurado em balanço que terá

por data base o dia da decretação do regime de que trata este decreto-lei”. O

mesmo documento expedido pelo Banco Central do Brasil (fl s. 1.472-1.473)

pontua, em resposta a questionamento que lhe formulara um dos interessados,

que “o patrimônio líquido do Banespa, nos balanços de 1994 e nos exercícios

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 471

seguintes, mostrou-se sempre positivo, conforme os números que se seguem”, a

signifi car que não havia passivo a descoberto à época da decretação do RAET.

Vê-se, por isso, que as duas únicas situações que poderiam levar à

condenação nos moldes pretendidos pelo Ministério Público, ou seja, por

responsabilidade objetiva, mesmo considerando o entendimento da época,

foram de imediato afastadas por prova tida como sufi ciente pelas instâncias

ordinárias para extinguir o feito.

Não se perquire aqui a existência de outros danos que eventualmente

possa o Banespa ou a própria população do Estado de São Paulo ter sofrido. Se

existiram, devem ser apurados e atribuída a responsabilidade a quem de direito.

O que não se admite é que uma ação de responsabilidade civil objetiva fundada

no art. 40 da Lei n. 6.024/1974 possa ter prosseguimento quando se percebe

não ser ela o meio idôneo para atingir o objetivo perseguido.

A propósito, ensina Donaldo Armelin que o interesse de agir pode ser

conceituado como resultante da idoneidade objetiva do pedido, para o autor, de

provocar uma atuação potencialmente útil da jurisdição. Esta idoneidade pressupõe

uma causa petendi também idônea, sem o que o pedido careceria de condições de

provocar aquela atuação útil da jurisdição (“Legitimidade para agir no direito

processual civil brasileiro”. São Paulo, RT, 1979, p. 63-64).

Nelson Nery Junior, por sua vez, afi rma que existe interesse processual quando

a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando

essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade do ponto de vista prático.

Movendo a ação errada ou utilizando-se do procedimento incorreto, o provimento

jurisdicional não lhe será útil, razão pela qual a inadequação procedimental acarreta

inexistência de interesse processual (“Condições da ação”. RePro n. 64, São Paulo,

RT, 1991, p. 37).

Como se percebe, mesmo que se adotasse o entendimento jurisprudencial

da época, como fi zeram as instâncias ordinárias, no sentido de se admitir como

objetiva a responsabilidade prevista no art. 40 da Lei n. 6.024/1974, ainda assim,

repita-se, o levantamento do RAET decorrente da inexistência de credores e/

ou investidores insatisfeitos e de passivo a descoberto, como atestado pelo Banco

Central do Brasil no já referido documento de fl s. 1.472-1.473 (questão fática

insuscetível de reanálise por esta Corte, a teor da Súmula n. 7-STJ), tornou

sem utilidade a continuação do processo, uma vez que a ação, nos termos em

que proposta, não apresentava mais nenhuma condição de procedibilidade.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

472

Inexistentes os motivos para eventual condenação por responsabilidade objetiva,

não poderia o autor, àquela altura, pretender fazer prova de outros danos

decorrentes de atuação culposa ou dolosa dos réus. Como bem afi rmando no

acórdão recorrido, “a ação é de responsabilidade civil objetiva, onde não se

discute a respeito da situação individual de cada réu, nem comporta essa ação

discussão a respeito de fatos específi cos. Ao optar pela responsabilidade civil

objetiva, o Ministério Público se autolimitou, não podendo, agora, nesta ação,

pretender demonstrar cada ato ilícito, o dano, a culpa de cada um, o nexo causal,

situações típicas da ação de responsabilidade civil subjetiva” (os grifos constam

do acórdão impugnado, fl . 4.016).

Em tais circunstâncias, tornava-se até mesmo despicienda a análise quanto

à legitimidade ativa do Ministério Público, a partir de então. É que, reconhecida

a falta de interesse de agir, o processo morre aí. Se não há mais sobre o que

discutir, cessa a polêmica sobre quem tem legitimidade para fazê-lo.

Por isso, não obstante o posicionamento atual deste Tribunal quanto

à legitimidade, em tese, do Ministério Público para propor e prosseguir nas

demandas dessa natureza, o reconhecimento de sua ilegitimidade ativa, como

ocorreu, não altera o resultado alcançado pelo acórdão impugnado. Seria inócuo,

no caso concreto, qualquer reconhecimento de sua legitimidade para prosseguir

na ação, porquanto mais nada há a prover. Fica prejudicada, portanto, a análise

de eventual violação das Leis n. 7.347/1985, n. 7.913/1989, n. 8.625/1993 e n.

9.447/1997.

Quanto à alegada divergência jurisprudencial, verifi co que não fi cou ela

caracterizada.

Veja-se que o primeiro acórdão paradigma diz respeito a hipótese de

encerramento, por via de mandado de segurança, de liquidação extrajudicial em

que se menciona a ocorrência de incertezas quanto à satisfação dos credores.

O segundo trata claramente da hipótese prevista no art. 39 da Lei n.

6.024/1974 porquanto se refere a responsabilização de administradores “pelos

atos que tiverem praticado ou omissões em que houverem incorrido”.

E, fi nalmente, o terceiro é ainda mais inespecífi co, uma vez que trata

da legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública “para

a tutela de direitos individuais homogêneos dos aplicadores de títulos de

capitalização lesados pela atuação irregular de sociedade de capitalização no

mercado fi nanceiro”.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 473

Quanto ao último paradigma, fi ca até mesmo prejudicada sua análise em

razão de já se ter defi nido a questão da legitimidade ativa do Ministério Público.

É caso, pois, de se negar provimento ao apelo.

Passo agora à apreciação do recurso adesivo interposto por Antônio

Augusto de Mesquita Neto, José Machado de Campos Filho e Orestes Quércia

(fl s. 4.868-4.874, vol. 18).

Aduzem os recorrentes adesivos que o acórdão impugnado, ao negar

pedido de condenação do Ministério Público ou da Fazenda Estadual ao

pagamento de honorários à parte vencedora, negou vigência aos arts. 20 e 81 do

Código de Processo Civil, bem como ao art. 18 da Lei de Ação Civil Pública.

Trouxe à colação, para demonstração da divergência jurisprudencial, excerto de

acórdão proferido pela Primeira Seção deste Tribunal.

Entendo não estar caracterizado o dissídio pretoriano.

Com efeito, o acórdão paradigma trata de questão bastante diferente

daquela aqui ventilada, a saber, a de condenação da Fazenda Pública do Estado

de São Paulo ao pagamento de honorários advocatícios em processo no qual

ela própria era parte e sucumbiu. Essa circunstância é fundamental na análise

da questão posta em julgamento e sua dessemelhança implica em não ter sido

atendida a regra constante do art. 255, § 2º, do RISTJ.

Quanto à pretensa violação dos dispositivos legais apontados, a

jurisprudência desta Corte tem posição já consolidada no sentido de que,

ausente comprovação de má-fé do órgão ministerial, são incabíveis honorários

de sucumbência nas ações civis públicas em que fi gura como autor.

Transcrevo, a título de exemplo:

Processual Civil. Ação de execução promovida pelo Ministério Público. Honorários advocatícios. Não cabimento.

1. O Ministério Público, em ação civil pública e nas suas subsidiárias, só pode ser condenado ao pagamento de honorários advocatícios e despesas processuais em caso de comprovada má-fé. Precedentes.

2. Agravo regimental improvido (AgRg no Ag n. 542.821-MT, relator Ministro João Otávio de Noronha, DJ de 06.02.2006).

Embargos de divergência. Processo Civil. Ação civil pública. Honorários advocatícios. Ministério Público autor e vencedor.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

474

1. Na ação civil pública movida pelo Ministério Público, a questão da verba honorária foge inteiramente das regras do CPC, sendo disciplinada pelas normas próprias da Lei n. 7.347/1985.

2. Posiciona-se o STJ no sentido de que, em sede de ação civil pública, a condenação do Ministério Público ao pagamento de honorários advocatícios somente é cabível na hipótese de comprovada e inequívoca má-fé do Parquet.

3. Dentro da absoluta simetria de tratamento e à luz da interpretação sistemática do ordenamento, não pode o Parquet benefi ciar-se de honorários, quando for vencedor na ação civil pública. Precedentes.

4. Embargos de divergência providos (EREsp n. 895.530-PR, relatora Ministra Eliana Calmon, DJe de 18.12.2009).

Processo Civil. Ação civil pública. Ministério Público. Condenação. Custas. Lei n. 7.347/1985 artigos 17 e 18.

1. Em se tratando de ação civil pública, a questão dos ônus da sucumbência recebe disciplina específi ca, que afasta a aplicação subsidiária do art. 20 do CPC.

2. A teor do art. 18 da Lei n. 7.347/1985, a regra é a isenção de honorários de advogado, custas e despesas processuais, ressalvada apenas a hipótese de má-fé processual da associação autora.

3. Recurso improvido (REsp n. 47.242-RS, relator Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ de 17.10.1994).

Verifi ca-se, assim, que o acórdão impugnado, nessa parte, encontra-se em

harmonia com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sendo de se

aplicar à espécie a Súmula n. 83-STJ. Inviável, por conseguinte, o conhecimento

do recurso especial adesivo por qualquer das alíneas indicadas.

Pelo exposto, conheço do recurso especial, mas nego-lhe provimento. Não conheço

do recurso adesivo.

É como voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.131.498-RJ (2009/0149030-4)

Relator: Ministro Raul Araújo

Recorrente: Carrefour Comércio e Indústria Ltda.

Advogado: Carlos Roberto de Siqueira Castro e outro(s)

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 475

Recorrido: Irmãos Vitale S/A Indústria e Comércio e outro

Advogado: Mariana Zonenschein e outro(s)

EMENTA

Recurso especial. Direitos autorais. Obra musical. Letra alterada.

Utilização em propaganda veiculada na televisão. Paródia ou paráfrase.

Inexistência. Danos materiais devidos. Alteração do conteúdo da obra.

Danos morais. Ocorrência.

1. O autor da obra detém direitos de natureza pessoal e

patrimonial. Os primeiros são direitos personalíssimos, por isso

inalienáveis e irrenunciáveis, além de imprescritíveis, estando previstos

no art. 24 da Lei n. 9.610/1998. Os segundos, regulados pelo art. 28 da

referida Lei, são passíveis de alienação.

2. Nesse contexto, nada há a reparar na decisão guerreada

quando afi rma ser o segundo recorrido ainda titular de direitos morais

que podem ser vindicados em juízo, tendo direito à reparação por

danos morais em face das modifi cações perpetradas em sua obra

sem autorização, pois apenas alienou seus direitos autorais de ordem

patrimonial.

3. Na hipótese dos autos, a letra original da canção foi alterada

de modo a atrair consumidores ao estabelecimento da sociedade

empresária ré, não havendo falar em paráfrase, pois a canção original

não foi usada como mote para desenvolvimento de outro pensamento,

ou mesmo em paródia, isto é, em imitação cômica, ou em tratamento

antitético do tema. Foi deturpada para melhor atender aos interesses

comerciais do promovido na propaganda.

4. Recurso especial conhecido e desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide

a Quarta Turma, por unanimidade, conhecer e negar provimento ao recurso

especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Maria

Isabel Gallotti, João Otávio de Noronha e Luis Felipe Salomão votaram com o

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

476

Sr. Ministro Relator. Sustentou oralmente a Dra. Mariana Zonenschein, pela

parte recorrida Irmãos Vitale S/A Indústria e Comércio.

Brasília (DF), 17 de maio de 2011 (data do julgamento).

Ministro Raul Araújo, Relator

DJe 08.06.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Raul Araújo: Por Irmãos Vitale S/A Indústria e Comércio e

Pedro Marcílio Barichello foi ajuizada ação de reparação por danos materiais e

morais contra Carrefour Comércio Indústria Ltda., afi rmando serem detentores

dos direitos autorais sobre a obra “Roda, Roda, Roda”, canção utilizada com a

letra alterada em propaganda da ré, veiculada na Rede Globo, sem autorização e

a devida remuneração.

Os pedidos formulados pelo primeiro autor foram julgados parcialmente

procedentes, sendo a ré condenada ao pagamento dos danos materiais

decorrentes da utilização indevida da obra, a serem apurados em liqüidação de

sentença, bem como a se abster de veicular a propaganda ou utilizar a obra sem

autorização, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (mil reais). O pedido de

danos morais formulado pelo segundo autor foi julgado improcedente (sentença

às fl s. 345-349).

Interpostas apelações por ambas as partes e pela Dpz- Dualibi, Petit,

Zaragoza Propaganda Ltda., na qualidade de assistente litisconsorcial, restou

parcialmente provida a apelação dos autores e desprovidas as demais pela

egrégia Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de

Janeiro, em acórdão que guarda a seguinte ementa:

Apelação. Ação de reparação de danos. Utilização sem autorização de obra musical e propaganda veiculada na televisão. Preliminar de ilegitimidade ativa afastada por ser a primeira autora detentora dos direitos autorais referentes à obra. Dever do réu de indenizar pela utilização indevida da obra. Inocorrência de dano moral em relação ao primeiro autor. Só há dano moral contra pessoa jurídica se esta sofrer abalo de sua honra objetiva, o que não ocorreu in casu. Dano moral em relação ao segundo autor. Hipótese de utilização desautorizada de obra artística, com alteração de conteúdo. Indenização como meio de proteção do direito do autor. Caráter educativo-protetivo da indenização. Provimento parcial do primeiro recurso e desprovimento do segundo e terceiro recurso (fl s. 459).

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 477

Opostos embargos de declaração pelas partes, restaram acolhidos os dos

autores para afastar a omissão acerca dos ônus sucumbenciais (fl s. 492-493) e

rejeitados os manejados pelo réu (fl s. 490-491).

Sobrevém, então, recurso especial de Carrefour Comércio e Indústria Ltda.,

com fundamento na letra a do permissivo constitucional, alegando maltrato ao

art. 535, II, do Código de Processo Civil; ao art. 47 da Lei n. 9.610/1998 e ao

art. 927 do Código Civil atual.

Diz o recorrente, de início, que o acórdão recorrido deixou de se manifestar

acerca da incidência do art. 47 da Lei n. 9.610/1998 à espécie, o qual dispõe

sobre a livre utilização de paráfrases e paródias que não forem verdadeiras

reproduções da obra nem lhe implicarem descrédito.

Assinala que foi utilizada na propaganda de televisão questionada apenas

trecho da música “Roda Roda Roda”, mas com a letra modifi cada, sem ter

havido verdadeira reprodução da obra originária, ou alteração que importasse

em seu descrédito, o que afasta a ocorrência de ato ilícito, pois referido art. 47

da Lei n. 9.610/1998 autoriza a livre utilização de paráfrases e paródias como

ocorreu no caso.

Esclarece que houve autorização para a utilização da imagem do

“Chacrinha”, conforme provado nas instâncias ordinárias, enfatizando

ser desnecessária qualquer autorização para a utilização de obras artísticas

modifi cadas, em hipóteses, como a dos autos, em que se criam verdadeiras

paráfrases e paródias.

Afi rma, nesse passo, que afastado o ato ilícito, não há como subsistir o

dever de indenizar.

Assevera, por outro lado, que o segundo autor não é mais detentor da obra,

pois a cedeu ao primeiro autor. Nesse contexto, não faz jus à indenização fi xada

contraditoriamente nas instâncias ordinárias a título de danos morais no valor

de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

Ressalta, nessa ordem de idéias, que a simples utilização desautorizada de

obra musical não dá ensejo a dano moral, seja porque a utilização de paráfrases

é livre, seja porque o segundo autor não detém qualquer direito sobre a obra, ou

ainda porque em nenhum momento houve abalo da personalidade deste, tendo

ele mesmo cedido o direito ao uso da imagem de seu falecido pai, o Chacrinha.

Contrarrazões às fl s. 552-573. Dizem os recorridos que o autor da obra

e seus herdeiros são os únicos capacitados a autorizar a utilização de canção

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

478

adaptada, nos moldes do que dispõe o art. 24, IV e V, da Lei dos Direitos

Autorais. Assim, o segundo requerente, na qualidade de herdeiro do autor da

obra, tem direito à indenização por danos morais na forma em que arbitrada.

Assinalam, ademais, que a matéria trazida pelo recorrente não está

prequestionada, esbarrando o conhecimento do recurso no óbice da Súmula n.

211-STJ.

Sustentam, ainda, que o recorrente pretende discutir matéria fática, pois

para saber se a hipótese em apreço se insere nas disposições contidas no art.

47 da Lei n. 9.610/1998, se traduzindo em paródia ou paráfrase, se mostra

indispensável a análise dos fatos, pretensão que escapa aos lindes do recurso

especial.

Aduz, também, que o acórdão recorrido tratou de forma fundamentada de

todas as matérias levadas a sua apreciação, não havendo se falar em violação ao

art. 535 do Estatuto Processual.

Acrescenta que a Lei de Direitos Autorais, quando autoriza a paródia e a

paráfrase, não o faz para permitir uso comercial de obras artísticas, mas sim para

fi ns de estudo, crítica ou polêmica, nos quais se evidencia o nome do autor e a

obra original.

Afi rma, de outra parte, que os direitos autorais se subdividem em direitos

patrimoniais e morais do autor, sendo que somente os direitos patrimoniais

foram cedidos, continuando os direitos morais, inalienáveis e irrenunciáveis,

na posse do segundo recorrido. Assim, qualquer alteração na canção original

depende da autorização deste, co-autor da obra. Esclarece, nesse passo, que

o segundo recorrido não é fi lho do artista Chacrinha, como afi rmado pelo

recorrente.

Por fi m, reputa bem fi xado o valor dos danos morais, tendo em conta a

grande capacidade fi nanceira do recorrente e o caráter punitivo da indenização.

Os autos ascenderam a esta Corte por força do provimento do Ag n.

1.028.591-RJ.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Raul Araújo (Relator): Afi rma o recorrente, de início, que

o aresto guerreado é omisso, porquanto não se pronuncia acerca da incidência

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 479

do art. 47 da Lei n. 9.610/1998 à espécie, o qual afi rma ser livre a utilização

de paráfrases e paródias da obra original, desde que não impliquem em seu

descrédito.

A Corte Estadual se pronuncia sobre a questão da paródia, porém, não lhe

dá o desfecho esperado pela recorrente, já que mesmo nesses casos entende ser

necessária autorização para sua realização. Confi ra-se o seguinte trecho do voto

condutor do acórdão, verbis:

Frise-se que o réu, buscando se isentar da responsabilização relativa ao uso da canção de propriedade da primeira autora, alega que não cometeu ato ilícito, já que veiculou apenas a apresentação de uma paródia da letra original, sem implicar qualquer descrédito à mesma.

Não importa para a configuração do dever de indenizar a forma como a propaganda foi veiculada, mas sim a falta de autorização do detentor da obra para sua utilização no comercial.

Neste sentido, inexistindo autorização para qualquer tipo de utilização da música, impõe-se o dever de indenizar (fl s. 462).

Assim, conquanto não haja menção expressa ao dispositivo legal

mencionado, a alegação de que foi veiculada apenas uma paródia da canção

original foi enfrentada pelo Colegiado de origem, com o que se afasta a alegação

de violação ao art. 535, II, do Código de Processo Civil.

Aponta o recorrente, por outro lado, a existência de contradição no aresto

recorrido, pois apesar de o segundo autor não possuir direito sobre a canção

“Roda Roda Roda”, já que o cedeu ao primeiro, foi contemplado com a quantia

de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a título de reparação por danos morais.

A contradição a que alude o art. 535, I, do Estatuto Processual é aquela que

ocorre quando o acórdão traz proposições inconciliáveis entre si, sendo a mais

comum a que se dá entre a fundamentação e a decisão.

No caso em análise, afi rma a Corte local que o segundo autor detém

direitos morais sobre a obra e, nessa condição, faz jus ao recebimento de

indenização. Não há, portanto, qualquer contradição. Essa ocorreria, isto sim,

se o acórdão afi rmasse que o segundo autor não possui mais qualquer direito

sobre a canção reproduzida pelo recorrente e, ainda assim, lhe concedesse a

indenização.

Cumpre assinalar, nesse passo, que saber se o autor que cede seus direitos

sobre a obra a terceiro ainda permanece com direitos de natureza personalíssima,

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

480

os quais rendem ensejo, em situações de lesão, a reparação por danos morais, é

questão que se confunde com o mérito, e não propriamente com a alegação de

contradição.

Passo, por isso, ao exame do mérito.

Diz a Lei n. 9.610/1998, em seu art. 47 que são livres as paráfrases e

paródias. O recorrente, com base nesse artigo afi rma que no caso não se há falar

em ato ilícito, porquanto a canção reproduzida na propaganda se encaixaria

nessas modalidades.

Parafrasear signifi ca traduzir em palavras próprias pensamento original de

outro autor. É maneira diferente de dizer algo que já foi dito. É usar um texto

como tema para trabalho de maior amplitude.

Paródia traz em si a idéia de humor, sátira. Consoante esclarece José de

Oliveira Ascensão, implica o tratamento antitético do tema e, nesse sentido,

adverte:

É muito interessante o que se passa com as paródias. É lícito parodiar uma obra anterior (art. 50), e assim acontece com grande freqüência em réplicas de representações dramáticas ou de fi lmes; os programas cômicos da televisão, ou o teatro ligeiro, vivem disto em grande parte. Mas a paródia não pode limitar-se ao mero aproveitamento do tema anterior. Tem de se apreciar o seu próprio grau de criatividade, para julgar daquilo a que se chama o “tratamento antitético do tema”.

Por aqui se vê que o caráter criador não pode deixar de estar presente. Aliás, a paródia não é sequer uma transformação da obra preexistente, pois nesse caso esta teria de ser autorizada. A obra anterior só dá o tema, mas a paródia faz uma criação peça por peça de que resulta um novo conjunto; por isso se fala no tratamento antitético do tema (Direito Autoral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 66).

É necessário fazer um esclarecimento antes de prosseguir.

Alguns doutrinadores, na linha do aresto recorrido, entendem que mesmo

no caso de paráfrases e paródias é necessária prévia autorização do autor da obra

original, interpretação baseada no art. 29, III, da Lei n. 9.610/1998, que tem a

seguinte redação, verbis:

Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

I - omissis;

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 481

II - omissis;

III - a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações;

(...)

Assim, para esses, se faz indispensável a autorização expressa do autor para

transformação de sua obra, sob pena de, não requerida, ser devida indenização.

Outros doutrinadores, porém, afirmam que as paráfrases e paródias

dispensam a prévia permissão do autor, tomando a expressão “livres” do art. 47

da LDA de forma ampla.

Ainda que se adotasse o segundo posicionamento, verifica-se que na

hipótese dos autos a letra original da canção foi alterada de modo a atrair

consumidores ao supermercado da ré, não havendo falar em paráfrase, pois

a canção original não foi usada como mote para desenvolvimento de outro

pensamento, ou mesmo em paródia, isto é, em imitação cômica, ou em

tratamento antitético do tema. Foi deturpada para melhor atender aos interesses

comerciais do promovido na propaganda.

Nesse contexto, andou bem a ilustrada Corte de origem ao condenar o réu

a ressarcir os danos materiais decorrentes da utilização indevida da obra, pois no

caso sequer a discussão acima apontada se põe.

Afirma o recorrente, de outra parte, que o segundo recorrido, Pedro

Marcílio Barichelo, cedeu seus direitos autorais sobre a canção “Roda Roda

Roda”, razão pela qual não faz jus ao recebimento de qualquer indenização.

Cumpre assinalar, porém, que o autor detém direitos de natureza pessoal

e patrimonial. Os primeiros são direitos personalíssimos, por isso inalienáveis

e irrenunciáveis (art. 27 da LDA), além de imprescritíveis, estando previstos

no art. 24 da Lei n. 9.610/1998. Os segundos, regulados pelo art. 28 da Lei de

Direitos Autorais, são passíveis de alienação.

No caso dos autos, o segundo recorrido, um dos autores da canção

modifi cada, cedeu seus direitos patrimoniais sobre a mesma à primeira recorrida.

Porém, continua titular dos direitos pessoais sobre a obra, na qualidade de seu

autor.

Dispõe o art. 24, IV da Lei n. 9.610/1998, que é direito moral do autor o

de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modifi cações ou à

prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como

autor, em sua reputação ou honra.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

482

Nesse contexto, nada há a reparar na decisão guerreada quando afi rma ser

o segundo recorrido titular de direitos morais que podem ser vindicados em

juízo, tendo direito à reparação em face das modifi cações perpetradas em sua

obra sem autorização. Confi ra-se o seguinte trecho do aresto recorrido, verbis:

A defesa do direito do autor, na hipótese, consiste em ver utilização desautorizada, com alteração de conteúdo, de obra artística, o que, por si só, gera dever indenizatório, pois sem esse instrumento, o próprio direito fi caria a descoberto, desqualifi cando a proteção constitucional da matéria.

Dessa forma, caracterizado o dever de indenizar, cabe a fixação do valor, que no caso em exame, deve levar em conta mais o caráter protetivo do que o reparatório, servindo o valor como desestímulo de práticas semelhantes (fl . 463).

De fato, se a canção foi alterada de forma desautorizada, sendo utilizada

e divulgada de forma diversa da concebida pelo autor, este detém direito à

reparação por danos morais, pois violado o direito à intangibilidade da obra.

Cito, a propósito, julgado que, conquanto proferido sob a égide da lei anterior, se

mantém atualizado quanto ao tema:

Direitos autorais. Lei n. 5.988/1973, arts. 25, 80 e 126. Exposição e alterações não autorizadas. Reparação dos danos patrimonial e moral. Recurso não conhecido.

- Embora não se possa negar ao adquirente de uma obra de arte, especialmente em se tratando de galeria de arte, o direito de expo-la, não se pode deixar sem proteção outros direitos decorrentes da produção artística ou intelectual, tais como o da titularidade da autoria e o da intangibilidade da obra.

- A teleologia da Lei n. 5.988/1973, ao garantir a integridade da obra artística ou intelectual, veda a utilização desta em detrimento do respeito ao seu autor, ensejando reparação do dano causado.

(REsp n. 7.550-SP, rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, DJ 02.12.1991).

Ante o exposto, conheço do recurso especial e nego-lhe provimento.

RECURSO ESPECIAL N. 1.180.714-RJ (2010/0022474-9)

Relator: Ministro Luis Felipe Salomão

Recorrente: Alexandre de Vasconcelos Pereira

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 483

Advogados: Anna Maria da Trindade dos Reis e outro(s)

Leonardo Pietro Antonelli e outro(s)

Bernardo Anastasia Cardoso de Oliveira

Recorrido: Transportes Mosa Ltda. - massa falida

Advogados: Leonardo Orsini de Castro Amarante

Mauro Marcello da Costa Machado - síndico

EMENTA

Direito Civil e Comercial. Desconsideração da personalidade jurídica.

Semelhança com as ações revocatória falencial e pauliana. Inexistência.

Prazo decadencial. Ausência. Direito potestativo que não se extingue pelo

não-uso. Deferimento da medida nos autos da falência. Possibilidade. Ação

de responsabilização societária. Instituto diverso. Extensão da disregard a

ex-sócios. Viabilidade.

1. A desconsideração da personalidade jurídica não se assemelha

à ação revocatória falencial ou à ação pauliana, seja em suas causas

justifi cadoras, seja em suas consequências. A primeira (revocatória) visa

ao reconhecimento de inefi cácia de determinado negócio jurídico tido como

suspeito, e a segunda (pauliana) à invalidação de ato praticado em fraude

a credores, servindo ambos os instrumentos como espécies de interditos

restitutórios, no desiderato de devolver à massa, falida ou insolvente, os bens

necessários ao adimplemento dos credores, agora em igualdade de condições

(arts. 129 e 130 da Lei n. 11.101/05 e art. 165 do Código Civil de 2002).

2. A desconsideração da personalidade jurídica, a sua vez, é técnica

consistente não na inefi cácia ou invalidade de negócios jurídicos celebrados

pela empresa, mas na inefi cácia relativa da própria pessoa jurídica -

rectius, inefi cácia do contrato ou estatuto social da empresa -, frente a

credores cujos direitos não são satisfeitos, mercê da autonomia patrimonial

criada pelos atos constitutivos da sociedade.

3. Com efeito, descabe, por ampliação ou analogia, sem qualquer

previsão legal, trazer para a desconsideração da personalidade jurídica os

prazos decadenciais para o ajuizamento das ações revocatória falencial e

pauliana.

4. Relativamente aos direitos potestativos para cujo exercício a lei

não vislumbrou necessidade de prazo especial, prevalece a regra geral da

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

484

inesgotabilidade ou da perpetuidade, segundo a qual os direitos não se

extinguem pelo não-uso. Assim, à míngua de previsão legal, o pedido de

desconsideração da personalidade jurídica, quando preenchidos os requisitos

da medida, poderá ser realizado a qualquer momento.

5. A superação da pessoa jurídica af irma-se como um incidente

processual e não como um processo incidente, razão pela qual pode ser

deferida nos próprios autos da falência, nos termos da jurisprudência

sedimentada do STJ.

6. Não há como confundir a ação de responsabilidade dos sócios e

administradores da sociedade falida (art. 6º do Decreto-Lei n. 7.661/1945

e art. 82 da Lei n. 11.101/2005) com a desconsideração da personalidade

jurídica da empresa. Na primeira, não há um sujeito oculto, ao contrário, é

plenamente identifi cável e evidente, e sua ação infringe seus próprios deveres

de sócio/administrador, ao passo que na segunda, supera-se a personalidade

jurídica sob cujo manto se escondia a pessoa oculta, exatamente para

evidenciá-la como verdadeira benefi ciária dos atos fraudulentos. Ou seja,

a ação de responsabilização societária, em regra, é medida que visa ao

ressarcimento da sociedade por atos próprios dos sócios/administradores, ao

passo que a desconsideração visa ao ressarcimento de credores por atos da

sociedade, em benefício da pessoa oculta.

7. Em sede de processo falimentar, não há como a desconsideração

da personalidade jurídica atingir somente as obrigações contraídas pela

sociedade antes da saída dos sócios. Reconhecendo o acórdão recorrido que

os atos fraudulentos, praticados quando os recorrentes ainda faziam parte

da sociedade, foram causadores do estado de insolvência e esvaziamento

patrimonial por que passa a falida, a superação da pessoa jurídica tem o

condão de estender aos sócios a responsabilidade pelos créditos habilitados, de

forma a solvê-los de acordo com os princípios próprios do direito falimentar,

sobretudo aquele que impõe igualdade de condição entre os credores (par

conditio creditorum), na ordem de preferência imposta pela lei.

8. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido.

ACÓRDÃO

A Turma, por unanimidade, conheceu em parte do recurso especial e

negou-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 485

Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Aldir Passarinho Junior e João

Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.

Dr(a). Sebastiao Alves dos Reis Junior, pela parte recorrente: Alexandre de

Vasconcelos Pereira.

Dr(a). Leonardo Orsini de Castro Amarante, pela parte recorrida:

Transportes Mosa Ltda.

Brasília (DF), 05 de abril de 2011 (data do julgamento).

Ministro Luis Felipe Salomão, Relator

DJe 06.05.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Cuida-se, na origem, de agravo

de instrumento interposto por Alexandre de Vasconcelos Pereira, tirado de

decisão que, nos autos da falência de Transportes Mosa Ltda., desconsiderou

a personalidade jurídica da falida para alcançar os bens de seus ex-acionistas,

para a satisfação dos débitos existentes. O agravante arguiu, notadamente,

que a) a prova dos autos constatam a regularidade dos atos praticados pelos

ex-sócios; b) deve haver uma presunção de legalidade dos atos dos sócios, pois

praticados antes do termo legal fi xado na sentença de quebra; c) nulidade da

decisão, porquanto transbordou os limites subjetivos da lide, a atingir pessoas

que não são partes no processo e não têm nenhuma relação com a falida; d)

para a responsabilização de ex-sócios mostra-se necessário o ajuizamento de

ação própria, revocatória ou inquérito judicial, sendo que, no caso, não teria

havido sequer intimação dos sócios sobre o pedido de desconsideração; e)

subsidiariamente, a responsabilidade dos sócios deveriam estar adstritas até abril

de 2000.

O agravo foi, por maioria, improvido, nos termos da seguinte ementa:

Agravo de instrumento. Civil e Processual Civil. Desconsideração da personalidade jurídica decretada em processo falimentar. Precedentes que admitem a desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar. Desnecessidade de ação própria. Observância do devido processo legal. Inocorrência de cerceamento de defesa, uma vez que os agravantes tinham ciência do processado e houve possibilidade de se manifestarem sobre o

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

486

requerimento do Ministério Público pela desconsideração da personalidade jurídica. Renovação do contraditório em sede recursal. Presença dos pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica, com o desiderato de alcançar os bens dos ex-sócios, sob cuja administração foram praticados os atos abusivos da personalidade jurídica. Desvio da fi nalidade social da empresa e confusão patrimonial. Inaplicabilidade da prescrição e da decadência ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, ante a inocorrência de interesse de terceiro a exigir estabilidade jurídica almejada por aqueles institutos. Suspensão dos prazos prescricionais, previstos nas Leis Falimentares (art. 47, D.L. n. 7.661/1945 e art. 6º da Lei n. 11.101/2005), a indicar que a desconsideração da personalidade jurídica não se sujeita a limite temporal para sua aplicação. Provas documentais e periciais, indicando atos de desvio de fi nalidade praticados, no período em que os agravantes eram sócios da falida, tais como, alienações de bens e direitos, sem o respectivo ingresso nos cofres da empresa das quantias correspondentes aos negócios jurídicos pactuados. Pareceres ministeriais (fl s. 450-472 e 717v nos autos do AI n. 09.997/2007) opinando pelo desprovimento dos 03 (três) agravos de instrumento. Recursos conhecidos. Provimento negado a todos (fl s. 745-779).

O voto vencido, de lavra do Desembargador Nagib Salaib Filho, dava

provimento ao agravo, encampando tese apresentada em parecer jurídico do

Dr. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, notadamente no que concerne ao prazo para

pedido de desconsideração da personalidade jurídica.

Opostos embargos declaratórios, foram eles rejeitados (fl s. 820-825).

Sobreveio recurso especial, fundado na alínea a do permissivo

constitucional, e o recorrente alega ofensa aos arts. 17, 535 e 460 do Código

de Processo Civil; art. 178, inciso II do Código Civil de 1916; art. 50 do

Código Civil de 2002; art. 47 do Decreto-Lei n. 7.661/1945 e art. 6º da

Lei n. 11.101/2005. Pretende o recorrente o afastamento da condenação por

litigância de má-fé; reconhecimento de julgamento ultra petita, porquanto o

Ministério Público pleiteou a responsabilização dos sócios por dívidas limitadas

no tempo; a declaração de decadência do direito de requerer a desconsideração

da personalidade jurídica da falida; necessidade de ação própria para a

responsabilização dos ex-sócios da falida.

Contra-arrazoado (fl s. 962-973), o especial foi admitido (fl s. 997-1.003).

O Ministério Público Federal, mediante parecer do i. Subprocurador-

Geral da República Washington Bolívar Júnior, opina pelo não provimento do

recurso especial (fl s. 1.015-1.025).

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 487

Vieram-me memoriais com parecer jurídico do Dr. Ruy Rosado de Aguiar

Júnior, com teses a lastrear o recurso especial.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. Afasto, de saída, a

alegação de ofensa ao art. 535 do Código de Processo Civil, pois o Eg. Tribunal

a quo dirimiu as questões pertinentes ao litígio, afi gurando-se dispensável que

venha examinar uma a uma as alegações e fundamentos expendidos pelas

partes. Além disso, basta ao órgão julgador que decline as razões jurídicas que

embasaram a decisão, não sendo exigível que se reporte de modo específi co a

determinados preceitos legais.

3. Antes da análise do mérito do recurso especial, convém traçar, de

forma pormenorizada, as premissas fáticas adotadas pelo acórdão recorrido,

principalmente os atos praticados pelos ex-sócios da falida, os quais foram

acoimados de fraudulentos, bem como as circunstâncias em que decretada a quebra.

O acórdão recorrido noticia a seguinte cronologia dos fatos mais relevantes:

1) Em 26 de julho de 1999, em Assembleia Geral Extraordinária, a Transportes Mosa S.A., da qual eram sócios os Agravantes e a Srª Maria Conceição F. de Vasconcelos, foi aprovada a Cisão, Parcial, da companhia, por meio da qual foi criada a sociedade empresaria Erig Ltda., com a transferência de metade do ativo da sociedade cindida para a nova;

2) Na referida cisão, a companhia cindida (Transportes Mosa S.A) assumiu a responsabilidade, exclusiva, de todo o passivo, nos temos da cláusula V, do pacto de cisão;

3) Em 21 de janeiro de 2000, a Transportes Mosa S.A. alienou para outra empresa (Transportes Amigos Unidos - que tem como sócios as mesmas pessoas) o imóvel onde se situava garagem dos ônibus, pelo valor de R$ 150.000,00;

4) Em 03 de abril de 2000, a Transportes Mosa S.A. cedeu todas as quotas que possuía da sociedade Viação Santa Sofi a Ltda. pelo valor de R$ 1.583.764,00 para: Ducauto - Duque de Caxias Veículos Ltda. (que tem como acionistas as mesma pessoas); Anselmo de Aguiar Pereira; Alexandre de Vasconcelos Pereira e Luiz Augusto Geoff roy de Souza Motta (fl . 49 do AI n. 2007.002.09997);

5) Em 14 de abril de 2000, a Transporte Mosa S.A, em operação semelhante, transferiu todas as suas quotas da Faça Turismo Ltda. para Ducauto - Duque de Caxias Veículos Ltda., pelo valor de R$ 509.118,00;

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

488

6) Em 26 de abril de 2000, a Transporte Mosa S.A. transferiu, parcela, de seu ativo (2 linhas, 44 ônibus e 250 funcionários), para Transportes Amigos Unidos Ltda., permanecendo com outras três linhas, 56 ônibus e 200 funcionários;

7) Em 28 de abril de 2000, os Agravantes e a Srª Maria Conceição F. de Vasconcelos, retiraram-se da sociedade transferindo suas ações para os senhores Horácio D’ Anunciação Gouveia e Augusto Carneiro de Souza Campos;

8) Em 12 de dezembro de 2000, os sócios Horácio e Augusto transferem 90% de suas ações, para Francisco Antunes Lima Neto, Rogério Antunes Lima Neto, Rogério Marinho Lima e Nilson Freitas dos Anjos;

9) Após várias transferências de ações, em 12 de novembro de 2001, a companhia volta a ter a forma de Ltda.

10) Em 14 de março de 2002, é decretada intervenção municipal na Transportes Mosa Ltda., que parou de operar nesta mesma data;

11) Em 04 de abril de 2002, a Transportes Mosa Ltda. celebrou “contrato de sociedade em conta de participação” com a Empresa de Transporte e de Turismo Santa Rita dos Milagres Ltda. que, nesta operação, recebeu os últimos 56 ônibus da Mosa.

Por outro lado, tal como salientou o membro do Parquet de primeiro grau,

Dr. Leonardo Araújo Marques, em fundamentada peça que originou a decisão

judicial ora impugnada, mostra-se sintomático o fato de que a falência da

empresa Transporte Mosa Ltda. foi decretada em razão de crédito quirografário

no valor de R$ 54.688,66, decorrente de título executivo judicial pertencente a

credora que se acidentou em ônibus da ré, ainda no ano de 1998.

A falência foi decretada em 15 de maio de 2003, com termo legal fi xado

em dezembro de 2000, com retroação a outubro do mesmo ano.

Como assinalou o Dr. Promotor de Justiça, o fato causou estranheza,

pois “(...) não se tem notícias de falência de outra empresa de ônibus em nosso

Estado” (fl s. 1.619).

O Juízo falimentar, depois de analisar diversas operações tidas como

fraudulentas - como o nítido esvaziamento patrimonial decorrente de cisão

parcial, a transferência de cotas sociais para outras empresas sem que houvesse

contabilização de pagamento, a confusão patrimonial entre os bens da empresa

e os de diversas pessoas da mesma família, além do saque no patrimônio da

falida perpetrado por sócios -, a pedido do Ministério Público, desconsiderou a

personalidade jurídica da falida para que os bens dos sócios fossem arrecadados,

determinando, ademais, que os atingidos pela decisão somente se ausentassem

do local da falência mediante autorização do juízo.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 489

Reveladas essas premissas fáticas, passo ao exame do mérito recursal.

4. Para o desate da controvérsia, notadamente quanto à tese relativa ao

prazo para o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, é imperiosa

a análise minuciosa de institutos e conceitos da teoria geral do direito privado,

como prescrição e decadência - aos quais se ligam os conceitos de pretensão,

direitos subjetivo e potestativo -, desconsideração da personalidade jurídica, além do

alcance da próprias ações revocatória e pauliana.

Nesse ponto, a tese sustentada no parecer do Dr. Ruy Rosado de Aguiar

Júnior, em síntese, é a seguinte:

No caso em exame, os atos considerados fraudulentos, que justifi caram a d.p.j., aconteceram nos anos de 1999 e 2000, tendo ocorrido a decadência do direito de revogá-los (art. 130 da Lei de Falências) quatro anos após, e já estavam a coberto de invalidação ou declaração de inefi cácia em 2007, quando o digno juízo d.p.j. da falida. Daí decorre a impossibilidade da d.p.j..

A segurança dos negócios jurídicos impõe essa limitação temporal para o desfazimento de atos do comércio (fl . 548, e-STJ).

Ou seja, o recorrente sustenta que, escoado o prazo, que seria de decadência,

para a ação revocatória ou pauliana, com vistas a invalidar determinados

negócios jurídicos tidos por fraudulentos, descabe também a desconsideração

da personalidade jurídica da falida para alcançar o patrimônio dos ex-sócios da

empresa.

4.1. A doutrina civilista, desde Windscheid, que trouxe para o direito

material o conceito de actio, direito processual haurido do direito romano,

diferencia com precisão direito subjetivo e direito potestativo.

Direito subjetivo é o poder da vontade consubstanciado na faculdade de

agir e de exigir de outrem determinado comportamento para a realização de um

interesse, cujo pressuposto é a existência de uma relação jurídica.

Nessa esteira, Caio Mário afi rmava que o direito subjetivo, visto dessa

forma, sugere sempre de pronto a ideia de uma prestação ou dever contraposto

de outrem:

Quem tem um poder de ação oponível a outrem, seja este determinado, como nas relações de crédito, seja indeterminado, como nos direitos reais, participa obviamente de uma relação jurídica, que se constrói com um sentido de bilateralidade, suscetível de expressão pela fórmula poder-dever: poder do titular do direito exigível de outrem; dever de alguém para com o titular do direito

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

490

(PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 36).

Encapsulados na fórmula poder-sujeição, a sua vez, estão os chamados

direitos potestativos, a cuja faculdade de exercício não se vincula propriamente

nenhuma prestação contraposta (dever), mas uma submissão à manifestação

unilateral do titular do direito, muito embora tal manifestação atinja diretamente

a esfera jurídica de outrem.

Os direitos potestativos, porque a eles não se relaciona nenhum dever,

mas uma submissão involuntária, são insuscetíveis de violação, como salienta

remansosa doutrina. Os direitos potestativos podem ser constitutivos - como

o que tem o contratante de desfazer o contrato em caso de inadimplemento

-, modifi cativos - como o direito de constituir o devedor em mora, ou o de

escolher entre as obrigações alternativas -, ou extintivos - a exemplo do direito

de despedir empregado ou de anular contratos eivados de vícios (AMARAL,

Francisco. Direito civil: introdução. 6ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 201-

202).

Como dito alhures, somente os direitos subjetivos estão sujeitos a violações,

e quando ditas violações são verifi cadas, nasce para o titular do direito subjetivo

a faculdade (poder) de exigir de outrem uma ação ou omissão (prestação positiva

ou negativa), poder este tradicionalmente nomeado de pretensão.

Assim, por via de consequência, somente os direitos subjetivos possuem

pretensão, ou seja, o poder de exigência de um dever contraposto, já que este

dever inexiste nos direitos potestativos.

Nessa linha é o magistério de Orlando Gomes:

A pretensão é própria dos direitos subjetivos, não existindo nos direitos potestativos nem nos direitos que se exercem por meio de ações prejudiciais ou de estado. Nas ações para o exercício de um direito potestativo, o autor não exige prestação alguma do réu, querendo apenas que o juiz modifi que, por sentença, a relação jurídica que admite a modifi cação pretendida, como, por exemplo, a ação do foreiro para resgatar a enfi teuse e converter em propriedade plena a propriedade até então restrita (GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 99).

A distinção entre direitos potestativos e subjetivos, como bem assinala

Caio Mário da Silva Pereira, muito embora seja de nítida feição acadêmica,

mostrou-se fundamental para solucionar um dos mais antigos problemas de

direito civil, o da diferença entre prescrição e decadência.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 491

Assim, a prescrição é a perda da pretensão inerente ao direito subjetivo,

em razão da passagem do tempo, ao passo que a decadência se revela como o

perecimento do próprio direito potestativo, pelo seu não-exercício no prazo

predeterminado.

Esse é o antigo magistério de Antônio Luís da Câmara Leal:

Posto que a inércia e o tempo sejam elementos comuns à decadência e à prescrição, diferem, contudo, relativamente ao seu objeto e momento de atuação, por isso que, na decadência, a ineficácia diz respeito ao exercício do direito e o tempo opera os seus efeitos desde o nascimento deste, ao passo que, na prescrição, a inércia diz respeito ao exercício da ação e o tempo opera os seus efeitos desde o nascimento desta, que, em regra, é posterior ao nascimento do direito por ela protegido (CAMARA LEAL, A. L. da. Da prescrição e da decadência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 115).

Corolário desse entendimento é o de que os deveres jurídicos que subjazem

aos direitos subjetivos são exigidos, ao passo que os direitos potestativos são

exercidos (AMARAL, Francisco. Idem, p. 565).

E, por isso, o prazo de prescrição, em essência, começa a correr tão logo

nasça a pretensão, a qual tem origem com a violação do direito subjetivo, nos

termos do art. 189 do Código Civil: “Violado o direito, nasce para o titular

a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os

arts. 205 e 206”. Por outro lado, o prazo decadencial tem início no momento

do nascimento do próprio direito potestativo, que deverá ser exercido em

determinado lapso temporal sob pena de perecimento. Vale dizer, o direito

potestativo traz em si o gérmen da sua própria destruição.

Assim, prescrita a pretensão, remanesce ainda um direito subjetivo

desprovido de exigibilidade, como aqueles relacionados às chamadas obrigações

naturais, ao passo que com a decadência extinto estará o próprio direito

potestativo.

4.2. Após essas breves observações sobre os institutos da decadência,

prescrição e pretensão, passo a analisar a estrutura das ações pauliana e

revocatória falimentar.

A ação pauliana, como é cediço, participa do arcabouço de medidas judiciais

assecuratórias ou conservatórias da responsabilidade patrimonial do devedor.

É ação serviente àquele que, titularizando crédito quirografário anterior,

encontra-se ameaçado pela inadimplência do devedor, diante de alienações

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

492

que lhe diminuam a solvabilidade ou lhe reduzam à insolvência (art. 158 do

CC/2002).

À sua vez, o regime de fraudes, quando analisadas no âmbito falimentar,

possui colorido próprio.

Os atos praticados pelo devedor em detrimento de credores, se decretada a

falência daquele, podem ser desfeitos nos termos dos arts. 52 e 53 do Decreto-

Lei n. 7.661/1945, parcialmente correspondentes aos arts. 129 e 130 da Lei n.

11.101/2005.

Os dispositivos da lei revogada preveem casos de ineficácia objetiva,

considerada aquela que independe de as partes envolvidas no ato estarem

mancomunadas, e de revogabilidade, cuja aplicação tem sede própria na hipótese

de fraude praticada pelos contratantes, presentes o eventus damni e o consilium

fraudis.

A procedência do pedido da ação revocatória produz, imediatamente, a

inefi cácia do ato apanhado pelos artigos citados, e, de forma mediata, o efeito

restitutório do bem à massa falida, para posterior rateio entre a coletividade de

credores, sejam os créditos anteriores ou posteriores ao ato acoimado com a

inefi cácia.

Trata-se, na verdade, de uma especialização da ação pauliana no âmbito

falimentar, porquanto, os atos listados na Lei de Quebras, sujeitos à revogação e

à inefi cácia, são atos praticados, grosso modo, em fraude contra credores.

Nesse sentido se manifestou Yussef Said Cahali, com amparo no magistério

de Carvalho de Mendonça:

Conforme escreve J. X. Carvalho de Mendonça, a variedade infinita de formas com que se podem revestir os atos comerciais e a facilidade de meios que as transações mercantis proporcionam para o aparelhamento da fraude aconselharam a necessidade de normas mais amplas e de efeitos mais prontos e seguros do que os do Direito Civil. Aproveitando os materiais da ação pauliana, o Direito Comercial construiu o instituto da revogação dos atos do devedor na falência. Para esse fi m, teve de, em pontos substanciais, modifi car as normas do Direito Civil, pois a falência cria um estado de coisas que torna fácil a prova de fraude e coloca a massa não só em frente ao terceiro com que o devedor tratou, com em frente ao credor singular que porventura iludira a soberana lei da igualdade (CAHALI, Yussef Said. Fraude contra credores: fraude contra credores, fraude à execução, ação revocatória falencial, fraude à execução fi scal e fraude à execução penal. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 519).

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 493

Com a fraude contra credores, nasce para o prejudicado um direito

potestativo de agir diretamente na esfera jurídica de outrem (devedor e terceiros

contratantes), anulando o negócio jurídico realizado às astúcias (art. 158, caput,

do CC/2002).

Por outro lado, com a decretação da falência, nasce para a massa falida, para

o Ministério Público ou para qualquer credor habilitado, legitimados por força

de lei, o direito, também potestativo, de ingerência na esfera jurídica da falida e

de quem com ela contratou, para tornar inefi caz, em relação à massa, o negócio

jurídico suspeito.

Ou seja, nascem direitos potestativos que devem ser exercidos em

determinado lapso temporal, daí por que são decadenciais - tanto o prazo para o

ajuizamento de ação revocatória, quanto o de ajuizamento da pauliana (art. 178

do CC/2002 e art. 130 da Lei n. 11.101/2005).

Por outro lado, os negócios jurídicos nulos de pleno direito, ordinariamente,

não estão sujeitos a prescrição ou decadência (art. 169 do CC/2002), e o juiz

apenas declara a nulidade.

Com efeito, fi ca evidente a máxima doutrinária, de muito tempo conhecida,

alicerçada sobretudo na teoria trinária das ações de Chiovenda, segundo a qual

as tutelas condenatórias (que visam a recompor um direito subjetivo violado,

mediante uma prestação do réu) sujeitam-se a prazos prescricionais; as tutelas

constitutivas (positivas ou negativas, que visam à criação, modifi cação ou extinção

de um estado jurídico: anulatória ou revocatória de ato jurídico, por exemplo)

sujeitam-se a prazos decadenciais; e as tutelas declaratórias (v.g., de nulidade) não

se sujeitam a prazo prescricional ou decadencial (AMORIM FILHO, Agnelo.

Critério científi co para distinguir a prescrição da decadência e para identifi car as ações

imprescritíveis. In. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 3º, p. 95-

132, jan./jun. 1961).

5. Cumpre agora, portanto, analisar os contornos teóricos da desconsideração

da personalidade jurídica e concluir se o pedido de tal providência encontra-se

sujeito a algum prazo, e, em caso positivo, se esse prazo é prescricional ou

decadencial (tal como as ações pauliana e revocatória falencial); ou, de forma

mais pragmática, se o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da

empresa reclama uma tutela condenatória, constitutiva ou declaratória do juízo.

5.1. A teoria da disregard doctrine, como é sabido, foi introduzida no direito

pátrio pelas mãos de Rubens Requião, no já distante ano de 1969 (Abuso de

direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais. São Paulo:

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

494

RT, v. 410, dez. 1969), sendo aquela que autoriza o juízo a ignorar a autonomia

patrimonial da pessoa jurídica, sempre que utilizada como instrumento de

fraude ou abuso de direito, para que os sócios e administradores da sociedade

respondam pessoalmente por débitos da pessoa moral.

No direito brasileiro, a teoria encontra-se hoje disseminada por vários

diplomas, apanhando diversas áreas do ordenamento jurídico, como Direito

Civil, Direito do Consumidor, Ambiental, Direito Concorrencial, Direito do

Trabalho, Direito Tributário.

No que interessa para o desate da controvérsia ora instalada, cumpre

analisar o que dispõe o art. 50 do atual Código Civil, o qual reproduz, em

essência, o entendimento doutrinário sobre o tema aceito com razoável lhanura:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de fi nalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

As causas que justifi cam descortinar-se o véu da pessoa jurídica, enraízam-

se em uma conduta abusiva de direitos - e não necessariamente em um ato

isoladamente observado -, qualifi cada pelo desvio de fi nalidade ou pela confusão

patrimonial entre os bens da empresa e dos sócios ou de empresas coligadas. Tal

providência é serviente a uma extensão subjetiva de determinadas obrigações

antes contraídas formalmente pela pessoa moral, cujo adimplemento, porém,

deverá ser suportado pelos sócios.

A partir dessas características já se conclui que a desconsideração da

personalidade jurídica não se assemelha à ação revocatória falencial ou à ação

pauliana, seja em suas causas justifi cadoras, seja em suas consequências.

A primeira (revocatória) visa ao reconhecimento de ineficácia de

determinado negócio jurídico tido como suspeito, e a segunda (pauliana) à

invalidação de ato praticado em fraude a credores, servindo ambos os

instrumentos como espécies de interditos restitutórios, no desiderato de devolver

à massa, falida ou insolvente, os bens necessários ao adimplemento dos credores,

agora em igualdade de condições (arts. 129 e 130 da Lei n. 11.101/2005 e art.

165 do Código Civil de 2002).

A desconsideração da personalidade jurídica, a sua vez, não consubstancia

extinção da pessoa jurídica, tampouco anulação/revogação de atos específi cos

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 495

praticados por ela, ainda que verifi cados os vícios a que faz alusão o art. 50 do

Código Civil.

Em realidade, cuida-se de superação de uma ficção jurídica, que é a

empresa, sob cujo véu se esconde a pessoa natural do sócio.

É técnica de execução de dívidas existentes, técnica essa consistente não

na inefi cácia ou invalidade de negócios jurídicos celebrados pela empresa, mas

na inefi cácia relativa da própria pessoa jurídica - rectius, inefi cácia do contrato ou

estatuto social da empresa -, frente a credores cujos direitos não são satisfeitos,

mercê da autonomia patrimonial criada pelos atos constitutivos da sociedade.

Essa é a aclamada doutrina de Rubens Requião sobre a natureza jurídica

da desconsideração:

(...) a disregard doctrine não visa anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar, no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem. É o caso de declaração de inefi cácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, a mesma incólume para seus outros fi ns legítimos (Idem. p. 14).

No mesmo sentido, de que a natureza jurídica da disregard é de inefi cácia

relativa da própria pessoa jurídica, confiram-se: JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 88-89; SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da

personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 27; BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 43-45.

Com efeito, a meu juízo, descabe, por ampliação ou analogia, sem qualquer previsão legal, trazer para a desconsideração da personalidade jurídica os prazos decadenciais para o ajuizamento das ações revocatória falencial e pauliana.

5.2. A par disso, remanesce ainda a controvérsia acerca da existência de algum prazo para pleitear-se a desconsideração da personalidade jurídica, muito embora tal providência não guarde semelhança com as ações revocatória ou pauliana.

Como dito alhures, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica reclama do juízo uma tutela que estenda aos sócios a responsabilidade por obrigações assumidas pela empresa, mercê do reconhecimento da inefi cácia relativa da própria pessoa jurídica, o que, em última análise, corresponde

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

496

ao reconhecimento da ineficácia dos atos constitutivos da sociedade, especifi camente para determinados fi ns.

Com efeito, verifi cadas as hipóteses previstas em lei para a desconsideração da personalidade jurídica, nasce o direito de o credor, querendo, imiscuir-se nos acentos contratuais ou estatutários da sociedade devedora, celebrados quando da criação da empresa, afastando as limitações sociais acertadas, para atingir diretamente a pessoa natural subjacente.

Vale dizer que, ao se pleitear a superação da pessoa jurídica, depois de verificado o preenchimento dos requisitos autorizadores da medida, o peticionário exerce um direito potestativo de ingerência na esfera jurídica de terceiros, da sociedade e dos sócios, os quais, inicialmente, pactuaram a separação patrimonial entre pessoas jurídica e natural.

Consequentemente, o pedido de desconsideração reclama do juízo uma tutela constitutiva positiva, nascedoura mesma de uma nova relação jurídica entre o credor e os sócios.

Portanto, à primeira vista, a circunstância de o pedido de desconsideração da personalidade jurídica consubstanciar-se em exercício de direito potestativo - e reclamar, por outro lado, uma tutela de natureza constitutiva -, poderia conduzir à conclusão de que tal pedido estaria, em tese, sujeito a prazo decadencial.

Porém, isso não ocorre, haja vista a inexistência de previsão legal.

O sistema civil brasileiro de 1916, como é amplamente sabido, não tratou com muito esmero os institutos da prescrição e da decadência, atribuindo prazos ditos prescricionais a direitos potestativos, sujeitos evidentemente a decadência. Colhem-se como exemplos dessa erronia o pedido de anulação de casamento (art. 178, § 1º e § 4º, II, § 5º, I e II), a ação para se contestar a paternidade de fi lho (art. 178, § 3º), a ação para revogar doação (art. 178, § 6º, I), ação do adotado para se desligar da adoção (art. 178, § 6º, XIII), ação para anulação de contratos em razão de vício de vontade (art. 178, § 9º, inciso V).

Quanto à prescrição, desde o diploma revogado, o legislador optou por prever um prazo geral (art. 177) e situações discriminadas sujeitas a prazos especiais (art. 178), sem exclusão de outros prazos conferidos por leis específi cas. Grosso modo, esse método foi transferido para o Código Civil de 2002, que também prevê um prazo geral (art. 205), e prazos específi cos (art. 206) de prescrição.

Essa sistemática, por si só, possui a virtualidade de apanhar, ordinariamente, todas as pretensões de direito subjetivo e lhes conferir um prazo de perecimento:

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 497

se a pretensão não se enquadra nos prazos prescricionais específi cos, sujeitar-se-á, certamente, ao prazo geral.

Somente alguns direitos subjetivos, observada sua envergadura e especial proteção, não estão sujeitos a prazos prescricionais, como na hipótese de ações declaratórias de nulidades absolutas, pretensões relativas a direitos da personalidade e ao patrimônio público.

Com efeito, conclui-se facilmente que, tratando-se de pretensões de direito subjetivo, a prescritibilidade é a regra e a imprescritibilidade a exceção.

Todavia, tal não ocorre com os direitos potestativos, sujeitos à decadência.

O fato é que o Código Civil de 1916, malgrado tenha baralhado as hipóteses de prescrição e decadência, previu para a decadência a tipicidade das situações sujeitas a tal fenômeno.

O mesmo se diga para o Código Civil de 2002, que não possui, como para a prescrição, um prazo geral e amplo de decadência (salvo o contido no art. 179, específi co para anulação de ato jurídico), fazendo a opção de elencar, de forma esparsa e sem excluir outros diplomas, os direitos potestativos cujo exercício está sujeito a prazo decadencial, seguindo a mesma linha da tipicidade até então existente.

Relativamente a prazos decadenciais, colhem-se, a título de exemplos, as seguintes hipóteses previstas no Código Civil de 2002: anulação dos atos constitutivos da pessoa jurídica (art. 45, § único, e 48, § único); anulação de negócio jurídico celebrado pelo representante em confl ito de interesses com o representado (art. 119); anulação de negócio jurídico viciado (art. 178); direito de redibição ou abatimento de preço (art. 445); ação ex empto ou ex vendito (art. 501); direito de retrovenda (art. 505); exercício do direito de preferência de compra (arts. 513 e 516); revogação de doação por ingratidão (art. 555-558); anulação de deliberações tomadas em assembleia de sócios (art. 1.078, § 4º); anulação de casamento (arts. 1.555 e 1.560); impugnação de paternidade pelo fi lho menor (art. 1.614); anulação de negócio jurídico realizado à mingua de outorga uxória (art. 1.649); anulação de partilha (art. 2.027, § único).

Em suma, se não há regra específi ca conferindo prazo decadencial para o exercício de determinado direito potestativo (salvo as hipóteses de prazos subsidiários, como é o caso do art. 179 do CC/2002), tal exercício não estará sujeito a prazo algum.

Esse é o magistério de Agnelo Amorim Filho - um dos primeiros a sistematizar o estudo da prescrição e da decadência do direito brasileiro -,

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

498

no sentido de que, em relação aos direitos potestativos para cujo exercício a lei não vislumbrou necessidade de prazo especial, prevalece a regra geral da inesgotabilidade ou da perpetuidade, segundo a qual os direitos não se extinguem pelo não-uso (AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científi co para

distinguir a prescrição da decadência e para identifi car as ações imprescritíveis. In.

Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 3º, p. 95-132, jan./jun. 1961).

Tal entendimento foi também sufragado mais recentemente por Yussef

Said Cahali, em notável trabalho monográfi co sobre prescrição e decadência:

(...) os direitos potestativos são insuscetíveis de violação. Porém, o exercício desses direitos, judicial ou extrajudicial, pode ou não estar condicionado a um prazo de decadência, dependendo do grau de perturbação social que o não exercício pode causar. Por consequência, para os direitos potestativos subordinados a prazos, o seu decurso sem o exercício implica a extinção do próprio direito; já para aqueles não vinculados a prazo prevalece o princípio geral da inesgotabilidade ou da perpetuidade, ou seja, direitos que não se extinguem pelo não uso.

Com base nessas premissas, (...) os direitos potestativos sem prazo fi xado em lei são perpétuos, podendo, desse modo, ser exercidos a qualquer tempo, seja por meio de simples declaração de vontade, seja via ação constitutiva (CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 76).

Ademais, a simples possibilidade de haver decadência extra legem, aquela

acertada entre as partes convencionalmente (art. 211 do Código Civil de 2002),

revela que pode haver, ao menos em tese, situações a envolver direitos potestativos

não reguladas em lei, fi cando a cargo dos particulares o estabelecimento dos

prazos decadenciais que lhes melhor convier.

À ausência de acerto nessa seara, as situações jurídicas quedam-se não

reguladas, no tocante a eventual prazo de exercício de direitos.

5.3. Por outro lado, a bem da verdade, o direito sempre conviveu com

situações em que o exercício de direitos potestativos não está sujeito a prazo

algum, e inclusive este Superior Tribunal chancelou, por diversas vezes, esse

entendimento.

Por exemplo, sempre se entendeu que a administração pública poderia,

a qualquer momento, revogar seus próprios atos, quando eivados de vício ou

ilegalidade, mercê do Verbete Sumular n. 473 do STF: “A administração pode

anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque

deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 499

oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos,

a apreciação judicial”.

Somente com a Lei n. 9.784/1999 é que foi fi xado prazo decadencial para

tal providência, nos termos da jurisprudência da Casa:

Administrativo. Servidor público. Vantagem funcional. Ato administrativo. Revogação. Prescrição. Art. 54, da Lei n. 9.784/1999. Irretroatividade. Direito adquirido. Inexistência. Diferença pessoal. Ausência de direito líquido e certo. Precedentes. Ordem denegada.

I - A Eg. Corte Especial deste Tribunal pacifi cou entendimento no sentido de que, anteriormente ao advento da Lei n. 9.784/1999, a Administração podia rever, a qualquer tempo, seus próprios atos quando eivados de nulidade, nos moldes como disposto nas Súmulas n. 346 e n. 473 do Supremo Tribunal Federal. Restou ainda consignado, que o prazo previsto na Lei n. 9.784/1999 somente poderia ser contado a partir de janeiro de 1999, sob pena de se conceder efeito retroativo à referida Lei.

(...)

(MS n. 9.122-DF, Rel. Ministro Gilson Dipp, Corte Especial, julgado em 19.12.2007, DJe 03.03.2008).

Administrativo. Ato administrativo: revogação. Decadência. Lei n. 9.784/1999. Vantagem funcional. Direito adquirido. Devolução de valores.

Até o advento da Lei n. 9.784/1999, a Administração podia revogar a qualquer tempo os seus próprios atos, quando eivados de vícios, na dicção das Súmulas n. 346 e n. 473-STF.

A Lei n. 9.784/1999, ao disciplinar o processo administrativo, estabeleceu o prazo de cinco anos para que pudesse a Administração revogar os seus atos (art. 54).

A vigência do dispositivo, dentro da lógica interpretativa, tem início a partir da publicação da lei, não sendo possível retroagir a norma para limitar a Administração em relação ao passado.

Ilegalidade do ato administrativo que contemplou a impetrante com vantagem funcional derivada de transformação do cargo efetivo em comissão, após a aposentadoria da servidora.

Dispensada a restituição dos valores em razão da boa-fé da servidora no recebimento das parcelas.

Segurança concedida em parte.

(MS n. 9.112-DF, Rel. Ministra Eliana Calmon, Corte Especial, julgado em 16.02.2005, DJ 14.11.2005, p. 174).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

500

O mesmo ocorre com o direito potestativo do estrangeiro, em situação

irregular no País, de requerer seu registro provisório, se o ingresso ocorreu

antes da Lei n. 9.675/1998, conforme já decidiu as Turmas da Primeira Seção,

adotando fundamentos idênticos ao ora proposto:

Processual Civil e Administrativo. Recurso especial em mandado de segurança. Estrangeiro em situação ilegal no país. Alegada violação do art. 1º da Lei n. 1.533/1951. Falta de interesse recursal. Não-conhecimento. Direito ao registro provisório. Lei n. 9.675/1998 e Decreto n. 2.771/1998. Poder regulamentar. Limites. Fixação de prazo decadencial não-previsto na lei regulamentada. Ilegalidade. Exercício de direito potestativo não-subordinado a prazo legal. Aplicação do princípio da inesgotabilidade ou perpetuidade.

Doutrina. Recurso parcialmente conhecido e desprovido.

(...)

5. O direito subjetivo ao registro provisório do estrangeiro em situação ilegal no País (Lei n. 9.675/1998, art. 1º; Decreto n. 2.771/1998, art. 1º), constitui direito potestativo, cujo exercício, pelo titular, tem por objetivo criar uma situação jurídica nova: da condição de estrangeiro em situação ilegal para a de estrangeiro em situação legal, com todos os direitos e deveres previstos no art. 5º da CF/1988 (Decreto n. 2.771/1998, art. 3º).

6. Atendidos os requisitos, o estrangeiro tem direito ao registro provisório independentemente da vontade do Departamento de Polícia Federal, que tem o dever de expedi-lo, para todos os efeitos legais (seja na via administrativa, seja judicialmente, caso necessário), porque o exercício de direito potestativo, diferentemente do que ocorre com os direitos a uma prestação, impõe um estado de sujeição.

7. Para os direitos potestativos sem prazo de exercício fi xado em lei, prevalece o princípio geral da inesgotabilidade ou da perpetuidade, ou seja, direitos que não se extinguem pelo não-uso (FILHO, Agnelo Amorim. Critério Científi co Para Distinguir a Prescrição da Decadência e Para Identifi car as Ações Imprescritíveis, RT 744/738).

(...)

(REsp n. 526.015-SC, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 07.02.2006, DJ 06.03.2006, p. 165).

De resto, também esta Corte já reconheceu a inexistência de prazo para o

exercício do direito potestativo de o locador demandar pela retomada do imóvel,

depois de efetivada a notifi cação obrigatória ao locatário:

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 501

Processo Civil. Recurso especial. Locação. Despejo por denúncia vazia. Art. 78 c.c. art. 46, parág. 2º da Lei n. 8.245/1991. Prévia notifi cação realizada. Inexistência de prazo para propositura da ação. Decadência afastada.

1 - A Lei de Locação (n. 8.245/1991), em seus arts. 46, parág. 2º, e 78, não impõe prazo algum ao locador, após efetuada a obrigatória notifi cação, ao exercício de seu direito de retomada, através da propositura da competente ação de despejo por denúncia vazia. O locador, neste tipo de ação e obedecida a prévia comunicação legal, é árbitro de suas conveniências, não comportando a lei ou ao intérprete, mais restrições que as expressas.

2 - Sendo legal o exercício de tal direito, benefi ciando-se o locatário, inclusive, com a elasticidade temporal para a propositura do mencionado despejo, afasta-se a decadência decretada.

3 - Precedentes (REsp n. 45.526-RO e n. 37.952-SP).

4 - Recurso conhecido e provido para, reformando o v. acórdão de origem, afastar a decadência e julgar procedente a ação, invertendo-se o ônus da sucumbência.

(REsp n. 137.353-SP, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quinta Turma, julgado em 21.09.1999, DJ 06.12.1999, p. 108).

6. No caso dos autos, a desconsideração da personalidade jurídica é apenas

mais uma hipótese em que não há prazo - decadencial, se existisse - para o

exercício desse direito potestativo.

À míngua de previsão legal, o pedido de desconsideração da personalidade

jurídica, quando preenchidos os requisitos da medida, poderá ser realizado a

qualquer momento.

E o próprio projeto do novo Código de Processo Civil, que de forma

inédita disciplina um incidente para a medida, parece ter mantido a mesma

lógica e não prevê qualquer prazo para o exercício do pedido.

Ao contrário, enuncia que a medida “é cabível em todas as fases do processo

de conhecimento, no cumprimento de sentença e também na execução fundada

em título executivo extrajudicial” (art. 77, § único, inciso II, do PL n. 166, de

2010).

7. Rejeitada a tese da decadência do pedido de desconsideração - a qual

reputei ser a principal no recurso especial -, passo à análise dos demais tópicos

do recurso, os quais já foram enfrentados em outros precedentes da Casa, com

jurisprudência tranquila e pacífi ca.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

502

7.1. Afasto, ademais, a alegada exigência de ação própria para a

desconsideração da personalidade jurídica.

A superação da pessoa jurídica afi rma-se como um incidente processual e

não como um processo incidente, razão pela qual pode ser deferida nos próprios

autos da falência, nos termos da jurisprudência sedimentada do STJ, verbis:

Processo Civil. Arts. 458, II, e 535, I e II, do CPC. Ofensa. Não-ocorrência. Súmula n. 284-STF. Análise de cláusulas de contrato e reexame de prova. Súmulas n. 5 e n. 7-STJ. Matérias infraconstitucionais. Prequestionamento. Ausência. Súmula n. 211-STJ. Auto-falência. Desconsideração da personalidade jurídica. Arresto dos bens dos sócios. Desnecessidade de ação autônoma. Decretação no processo falimentar. Impugnação via recursos cabíveis. Desrespeito ao contraditório, ampla defesa e devido processo legal. Não-ocorrência. Impugnação via recursos cabíveis. Precedentes. Súmula n. 83-STJ.

(...)

5. No âmbito civil, cabe ao magistrado, a teor de diretriz jurisprudencial desta Corte, desconsiderar a personalidade jurídica da empresa por simples decisão interlocutória nos próprios autos da falência, sendo, pois, desnecessário o ajuizamento de ação autônoma para esse fi m.

6. Decretada a desconsideração da personalidade jurídica da falida, com a conseqüente propagação dos seus efeitos aos bens patrimoniais dos sócios, não ocorre desrespeito aos postulados do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, nem maltrato a direito líquido e certo de terceiros prejudicados, quando patente sua legitimidade para defesa dos seus direitos, mediante a interposição perante o juízo falimentar dos recursos cabíveis. Precedentes: REsp n. 228.357-SP, Terceira Turma, relator Ministro Castro Filho, DJ de 02.02.2004; REsp n. 418.385-SP, Quarta Turma, relator Ministro Aldir Passarinho Júnior, DJ de 03.09.2007.

7. “Não se conhece do recurso especial, quando a orientação do Tribunal se fi rmou no mesmo sentido da decisão recorrida” – Súmula n. 83 do STJ.

8. Recurso especial não-conhecido.

(REsp n. 881.330-SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 19.08.2008, DJe 10.11.2008).

Comercial e Processual Civil. Acórdão Estadual. Nulidade não confi gurada. Embargos declaratórios ineptos em provocar prequestionamento. Ausência de fundamentação. Falência. Dações em pagamento fraudulentas aos interesses da massa. Desconsideração da personalidade jurídica no bojo do processo falencial. Desnecessidade de ação revocatória. Decreto-Lei n. 7.661/1945, arts. 52 e seguintes.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 503

(...)

III. Detectada a fraude na dação de bens em pagamento, esvaziando o patrimônio empresarial em prejuízo da massa falida, pode o julgador decretar a desconsideração da personalidade jurídica no bojo do próprio processo, facultado aos prejudicados oferecerem defesa perante o mesmo juízo.

IV. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” (Súmula n. 7-STJ).

V. Recurso especial conhecido e improvido.

(REsp n. 418.385-SP, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 19.06.2007, DJ 03.09.2007, p. 178).

No voto condutor do acórdão proferido no REsp n. 881.330, de lavra

do e. Ministro João Otávio de Noronha, em situação absolutamente idêntica,

dispensou-se a citação dos sócios, em desfavor de quem foi superada a pessoa

jurídica, bastando a defesa apresentada no âmbito do próprio juízo que decretou

a medida, também falimentar.

Diante da semelhança fática, adoto como razões de decidir os fundamentos

manifestados por Sua Exa.:

Destarte, em sede de processo de falência – hipótese ocorrente nestes autos –, dúvidas não podem pairar sobre a viabilidade de se deferir, incidentemente, pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida, requerido pela parte interessada, determinando, por conseguinte, o arresto de bens pertencentes aos sócios.

Nesse cenário, cabe ao magistrado, a teor de diretriz jurisprudencial desta Corte, desconsiderar a personalidade jurídica da empresa por simples decisão interlocutória nos próprios autos da falência, sendo, pois, desnecessário o ajuizamento de ação autônoma para esse fim. Nesse sentido, confiram-se os seguintes precedentes: REsp n. 418.385-SP, relator Ministro Aldir Passarinho Júnior, Quarta Turma, DJ de 03.09.2007; REsp n. 331.478-RJ, relator Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, DJ de 20.11.2006; REsp n. 332.763-SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJ de 24.06.2002.

(...)

Razão não assiste à parte ora recorrente.

Cuidando, normalmente, o processo da falência de pontos controvertidos que exigem imediatas soluções, de forma a atingir as fi nalidades que o delimitam, a abertura às partes para socorrerem as vias ordinárias, em geral de tramitação lenta, implicaria na obstrução do curso do procedimento falimentar e o atingimento do seu fi nal desfecho, com prejuízo à coletividade de credores e aos superiores interesses da própria Justiça.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

504

Assim, proclamada incidentemente a desconsideração da pessoa jurídica, como fi cou assentado no caso, com base na existência de elementos hábeis a dar sustentação a decisão de primeiro grau que, ratifi cada pela instância estadual superior, determinou o arresto de bens dos sócios, é de se questionar se, mantida restrita a cognição do juízo universal da falência, tornar-se-ia necessário a adoção do procedimento citatório, como se amplo processo de conhecimento fosse?

A resposta se impõe pela negativa.

Presentes as circunstâncias norteadoras da decisão impugnada, impende aduzir que, decretada a desconsideração da personalidade jurídica da falida, com a conseqüente propagação dos seus efeitos aos bens patrimoniais dos sócios, não ocorre desrespeito aos postulados do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, nem maltrato a direito líquido e certo de terceiros prejudicados, como aventado pela parte ora recorrente, quando patente, na espécie, sua legitimidade para defesa dos seus direitos, mediante a interposição perante o juízo falimentar dos recursos cabíveis.

No caso dos autos, a decisão que acionou a disregard está exaustivamente

fundamentada, somando-se às razões do acórdão recorrido, que identifi cam,

com precisão, os atos tidos por abusivos praticados pela falida, com benefício

evidente dos sócios, então recorrentes.

Também fi cou consignado que todos tiveram oportunidade de se defender

nos autos da falência, circunstância que afasta também a tese de violação ao

devido processo legal, contraditório e ampla defesa, já que das premissas fáticas

traçadas na origem não pode se distanciar esta Corte (Súmula n. 7).

7.2. Por outro lado, não há como confundir a ação de responsabilidade

dos sócios e administradores da sociedade falida (art. 6º do Decreto-Lei

n. 7.661/1945 e art. 82 da Lei n. 11.101/2005) com a desconsideração da

personalidade jurídica da empresa.

A responsabilização dos sócios ocorre quando estes, por ato próprio,

praticam a abusividade lesiva à sociedade (ultra vires, por exemplo), ao passo que

na desconsideração da personalidade jurídica é a pessoa moral que tem seu uso

desvirtuado, por ato dela, tudo em benefício dos sócios e administradores.

Ou seja, na primeira, não há um sujeito oculto, ao contrário, é plenamente

identifi cável e evidente, e sua ação infringe seus próprios deveres de sócio/

administrador, ao passo que na segunda, supera-se a personalidade jurídica sob

cujo manto se escondia a pessoa oculta, exatamente para evidenciá-la como

verdadeira benefi ciária dos atos fraudulentos.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 505

Fábio Ulhoa Coelho elenca, com precisão, as hipóteses de responsabilização

pessoal dos sócios, administradores e acionistas da falida, com base nas leis de

Direito Societário, hipóteses que se distanciam sobremaneira da desconsideração

da personalidade jurídica, que visa tão-somente à extensão da responsabilidade

aos sócios, por dívidas contraídas pela pessoa jurídica:

O sócio da sociedade limitada responde em duas hipóteses.

Na primeira, quando participar de deliberação social infringente da lei ou do contrato social (CC, art. 1.080). É o caso de responsabilidade por ato ilícito, em que não há nenhuma limitação. (...)

Na segunda, o sócio responde solidariamente com os demais pela integralização do capital social (CC, art. 1.052). Aqui, a responsabilidade independe de ato ilícito. (...) É a ação de integralização, que a lei anterior, ao contrário da atual, disciplinava em dispositivo específi co.

O administrador da sociedade limitada, por sua vez, responde quando descumprir o dever de diligência (CC, art. 1.011) e prejudicar, com isso, a sociedade. (...)

O acionista controlador tem responsabilidade pelos danos que decorrem de abuso no exercício do poder de controle (LSA, art. 117) (COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de recuperação de empresas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 208).

Em suma, a ação de responsabilização societária, em regra, é medida que

visa ao ressarcimento da sociedade por atos próprios dos sócios/administradores,

ao passo que a desconsideração visa ao ressarcimento de credores por atos da

sociedade, em benefício da pessoa oculta.

A e. Terceira Turma sufragou entendimento análogo:

Direito Processual Civil e Comercial. Desconsideração da personalidade jurídica de instituição fi nanceira sujeita à liquidação extrajudicial nos autos de sua falência. Possibilidade. A constrição dos bens do administrador é possível quando este se benefi cia do abuso da personalidade jurídica.

- A desconsideração não é regra de responsabilidade civil, não depende de prova da culpa, deve ser reconhecida nos autos da execução, individual ou coletiva, e, por fim, atinge aqueles indivíduos que foram efetivamente beneficiados com o abuso da personalidade jurídica, sejam eles sócios ou meramente administradores.

(...)

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

506

- A responsabilidade do administrador sob a Lei n. 6.024/1974 não se confunde a desconsideração da personalidade jurídica. A desconsideração exige benefício daquele que será chamado a responder. A responsabilidade, ao contrário, não exige este benefício, mas culpa. Desta forma, o administrador que tenha contribuído culposamente, de forma ilícita, para lesar a coletividade de credores de uma instituição fi nanceira, sem auferir benefício pessoal, sujeita-se à ação do art. 46, Lei n. 6.024/1974, mas não pode ser atingido propriamente pela desconsideração da personalidade jurídica.

Recurso Especial provido.

(REsp n. 1.036.398-RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 16.12.2008, DJe 03.02.2009).

7.3. Afasto, ainda, a alegação de que houve julgamento ultra petita.

Primeiramente porque o art. 460 não foi objeto de prequestionamento,

muito embora tenham sido opostos embargos de declaração. Incide, no caso, a

Súmula n. 211-STJ.

Ademais, a tese de que a desconsideração da personalidade jurídica

deve atingir somente as obrigações contraídas pela sociedade antes da saída

dos recorrentes, como supostamente teria pleiteado o Ministério Público, é

incompatível com o próprio sistema falimentar.

Reconhecendo o acórdão recorrido que os atos fraudulentos, praticados

quando os recorrentes ainda faziam parte da sociedade, foram causadores

do estado de insolvência e esvaziamento patrimonial por que passa a falida,

a superação da pessoa jurídica tem o condão de estender aos sócios a

responsabilidade pelos créditos habilitados, de forma a solvê-los de acordo

com os princípios próprios do direito falimentar, sobretudo aquele que impõe

igualdade de condição entre os credores (par conditio creditorum), na ordem de

preferência imposta pela lei.

Nesse passo, também se mostra irrelevante a condição de ex-sócios da

falida à época em que decretada a quebra.

8. Quanto à litigância de má-fé, o acórdão recorrido reconheceu a conduta

processual maliciosa dos recorrentes, afi rmando que “durante toda a instrução

do recurso, apresentaram inúmeras petições e impugnações, eminentemente

procrastinatórias, opondo resistência injustifi cada ao andamento do processo”.

Rever tais conclusões esbarra na Súmula n. 7-STJ.

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 507

9. Afi rme-se, por fi m, que a decisão que desconsiderou a personalidade

jurídica atinge os bens daqueles ex-sócios indicados, não podendo, por óbvio,

prejudicar terceiros de boa-fé.

10. Diante do exposto, conheço parcialmente do recurso e, na extensão,

nego-lhe provimento.

É como voto.

VOTO

O Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior: Sr. Presidente, estou

acompanhando o voto do eminente Relator, apenas anotando que, em relação

ao tempo, não há como fi xar, porque se trata de uma questão que me parece

relativamente simples. É que a desconsideração surge apenas no bojo de algum

processo. A realidade da desconsideração somente vem a lume à medida que, em

uma execução, ou no caso de uma falência, se descobre que houve uma fraude.

Então, não há como fi rmar um parâmetro anterior, porque seria o mesmo que

apagar 80% ou 90% da efi cácia do instituto. Difi cilmente estabelecer um prazo

para a alegação, porque só se desconsidera a personalidade jurídica quando uma

ação já corre há algum tempo e, no bojo dessa ação, descobre-se que realmente

os sócios praticaram aquela confusão patrimonial, aquele desvio fraudulento

que levou ao esvaziamento dos bens da execução ou da cobrança, ou, ainda, da

apuração do crédito. Então, seria quase que jogar por terra a própria efi cácia do

instituto da desconsideração.

O importante, ao meu ver, é não se banalizar o instituto do “disregard”,

aplicando-o a qualquer caso. Este excesso a 4ª Turma tem, reiteradamente,

podado.

Mas, quanto ao prazo, não me parece possível aplicar a tese decadencial,

como sugerida no parecer do eminente Ministro Ruy Rosado de Aguiar.

Desse modo, acompanho o voto do eminente Relator.

Em relação aos terceiros, tema levantado pelo Sr. Ministro Raul Araújo

Filho, sem dúvida nenhuma, existe essa preocupação, mas não vejo como já

agora, de antemão, e em tese, se possa ressalvar essa situação, porque ela só

tem como ser verifi cada no caso concreto. Quer dizer, vamos ter de esperar os

casos concretos para saber se se ressalva ou não essa situação de cada um dos

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

508

terceiros, que podem realmente ter adquirido esses bens posteriormente. Mas

fi ca o registro.

Conheço parcialmente do recurso especial e, nessa extensão, nego-lhe

provimento.

VOTO-ANTECIPADO

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Sr. Presidente, acompanho o voto

do Sr. Ministro Relator, dadas as peculiaridades do caso, especialmente a análise

da matéria de fato, contida no acórdão, que ensejou a conclusão de que houve

fraude e confusão patrimonial, mediante o uso indevido da pessoa jurídica.

Com efeito, não se trata, aqui, da invalidação de determinado ato jurídico, o

qual pudesse ser considerado lesivo a determinada pessoa, hipótese em que se

cogitaria de prazo de decadência para desconstituir o ato viciado. Cuida-se de

uma sucessão de atos lesivos, começando por uma cisão, com a transferência

do passivo exclusivamente para uma das empresas, a transferência gradativa

dos bens desta empresa para outra, retirada de sócios que passaram a ser sócios

de uma terceira empresa, detentora de bens da anterior. Esta sucessão de atos

foi considerada, pelo acórdão recorrido, prova do uso abusivo da personalidade

jurídica, com o fi m de prejudicar direitos dos credores da primitiva empresa,

os quais não tinham, na época dos fatos, sequer como ter conhecimento e

defender-se dessas alterações societárias tidas pelo acórdão recorrido como

fraudulentas. Não cabe, portanto, a decretação da decadência.

Conheço parcialmente do recurso especial e, nessa extensão, nego-lhe

provimento.

RECURSO ESPECIAL N. 1.216.673-SP (2010/0184273-9)

Relator: Ministro João Otávio de Noronha

Recorrente: Unibanco Companhia de Capitalização S/A

Advogados: Wanessa de Cássia Françolin e outro(s)

Luiz Carlos Sturzenegger

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 509

Recorrido: Associação Nacional de Defesa da Cidadania e do Consumidor - Anadec

Advogado: Ronni Fratti e outro(s)

EMENTA

Processual Civil e Bancário. Ação civil pública. Títulos de capitalização. Cláusula instituidora de prazo de carência para devolução de valores aplicados. Abusividade. Não ocorrência.

1. A manifestação do Ministério Público após a sustentação oral realizada pela parte não importa em violação do art. 554 do CPC se sua presença no processo se dá na condição de fi scal da lei.

2. Não pode ser considerada abusiva cláusula contratual que apenas repercute norma legal em vigor, sem fugir aos parâmetros estabelecidos para sua incidência.

3. Nos contratos de capitalização, é válida a convenção que prevê, para o caso de resgate antecipado, o prazo de carência de até 24 (vinte e quatro) meses para a devolução do montante da provisão matemática.

4. Não pode o juiz, com base no CDC, determinar a anulação de cláusula contratual expressamente admitida pelo ordenamento jurídico pátrio se não houver evidência de que o consumidor tenha sido levado a erro quanto ao seu conteúdo. No caso concreto, não há nenhuma alegação de que a recorrente tenha omitido informações aos aplicadores ou agido de maneira a neles incutir falsas expectativas.

5. Deve ser utilizada a técnica do “diálogo das fontes” para harmonizar a aplicação concomitante de dois diplomas legais ao mesmo negócio jurídico; no caso, as normas específi cas que regulam os títulos de capitalização e o CDC, que assegura aos investidores a transparência e as informações necessárias ao perfeito conhecimento do produto.

6. Recurso especial conhecido e provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

510

unanimidade, conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento nos termos

do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Raul

Araújo e Maria Isabel Gallotti votaram com o Sr. Ministro Relator.

Dr(a). Luciano Correa Gomes, pela parte recorrente: Unibanco Companhia

de Capitalização S/A.

Brasília (DF), 02 de junho de 2011 (data do julgamento).

Ministro João Otávio de Noronha, Relator

DJe 09.06.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Trata-se, na origem, de ação

civil pública promovida pela Associação Nacional de Defesa da Cidadania e do

Consumidor – Anadec contra Unibanco Companhia de Capitalização S.A. em

que se discute a respeito da legalidade de cláusula constante dos contratos de

capitalização negociados pela ré, ora recorrente, com seus clientes que institui

prazo de carência de 12 meses para devolução da importância recolhida pelo

aplicador que desiste do plano de capitalização.

Consta da petição inicial pedido de “nulidade parcial da cláusula 8ª, do

plano Plin Unibanco, no tocante ao prazo de 12 (doze) meses para reembolso

dos consumidores que solicitarem resgate antes deste período, que passa a ser de

15 (quinze) dias, assim como para aqueles consumidores que tiverem seu plano

cancelado por inadimplência das parcelas, operado automaticamente, tudo à

luz dos motivos já expostos, condenando a ré, ainda, a expurgar do bojo do seu

contrato de adesão padrão referida determinação constante dessa cláusula” (fl . 15).

O pedido foi julgado improcedente ao entendimento de que “nada existe

de ilegal no contrato e cabe ao consumidor, se quiser resgate antecipado, realizar

outro tipo de aplicação e não pretender alterar aquela que determinadas pessoas

querem realizar a seu bel prazer” (fl . 167).

A Décima Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de

São Paulo deu provimento ao recurso de apelação, proferindo acórdão que veio

assim ementado:

Contrato. Título de capitalização. Pretensão de anulação de cláusula que dispõe sobre a carência para resgate do investimento em caso de desistência

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 511

do contrato. Cabimento. Cláusula que estipula desvantagem excessiva ao consumidor, impondo dupla penalidade ao desistente, a redução do valor a restituir e prazo para essa fi nalidade. Nulidade da cláusula declarada abusiva. Ação civil pública procedente. Recurso provido (fl . 289).

Ambas as partes opuseram embargos de declaração. Unibanco Companhia

de Capitalização S.A. objetivou o prequestionamento de dispositivos legais

que entende aplicáveis ao caso; Anadec buscou declaração a respeito dos ônus

de sucumbência. Foram acolhidos somente estes últimos para sanar o vício,

condenando-se a ora recorrente ao pagamento das custas processuais e dos

honorários advocatícios.

O recurso especial, interposto com fundamento no art. 105, inciso III,

alíneas a e c, da Constituição Federal, foi inadmitido na origem e ascendeu a

esta Corte em razão do provimento que dei a agravo de instrumento que visava

à subida daquele apelo.

Sustenta a recorrente violação dos arts. 460, 535 e 554 do Código de

Processo Civil, dos arts. 1º, 2º, 8º, 32, 35 e 36 do Decreto-Lei n. 73/1966, dos

arts. 1º a 3º do Decreto-Lei n. 261/1967 e do art. 2º da Lei n. 10.192/2001,

além de divergência jurisprudencial.

Foram oferecidas contrarrazões ao recurso especial.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro João Otávio de Noronha (Relator): Inexiste ofensa ao art.

535 do CPC. É que, embora o Tribunal de origem não se tenha manifestado

expressamente a respeito dos dispositivos legais que a recorrente pretendia

ver discutidos, entendo que a tese jurídica neles veiculada foi sufi cientemente

debatida no acórdão recorrido, a ponto de fi car caracterizado o prequestionamento

implícito capaz de levar ao conhecimento do recurso especial.

Não ocorreu também a pretensa violação do art. 554 do Código

de Processo Civil. A propósito do tema, aduz a recorrente que, no dia do

julgamento do recurso de apelação, foi permitido ao representante do Ministério

Público manifestar-se após a sustentação oral realizada pela então apelada, ora

recorrente, fazendo-o em desrespeito à ordem estabelecida no referido art. 554 e

com ofensa ao princípio do contraditório.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

512

Não se pode deslembrar que o Ministério Público é admitido pela

legislação brasileira como um dos titulares do direito de promover ações civis

públicas, como a presente. Na espécie, porém, funciona o douto representante

do MP apenas como custos legis, circunstância em que sua manifestação após a

fala das partes não pode ser tida como violadora de preceito legal. Adota ele, no

caso, postura de imparcialidade, embora sua manifestação possa vir de encontro

às pretensões deste ou daquele litigante. Não é por outra razão que o art. 159,

§ 2º, do RISTJ, ao dispor a respeito dos julgamentos ocorridos nesta Corte,

estabelece que, “se o representante do Ministério Público estiver agindo como

fi scal da lei, fará uso da palavra após o recorrente e o recorrido”, dispositivo que,

por analogia, poderá ter aplicação ao caso.

Quanto ao mérito, tenho que razão assiste à recorrente.

Refuto, em primeiro lugar, o argumento trazido nas contrarrazões do

recurso especial no sentido de que inexiste, na espécie, violação de lei federal

na acepção estabelecida no art. 105, III, da CF, mas apenas discussão sobre

a validade de ato normativo que não se enquadra na hipótese permissiva de

cabimento do apelo.

Vejo, contudo, que as razões recursais, no que diz respeito ao mérito,

invocam ofensa direta de dispositivos constantes dos Decretos-Leis n. 73/1966

e n. 261/1967, integrados, isto sim, por atos normativos que visam regulamentar

e dar operacionalidade ao conteúdo de direito material neles disciplinados. A

violação, em tais situações, é da própria lei, e não do ato normativo que a integra.

Com relação à incidência da Súmula n. 5 deste STJ no caso, verifi co que,

embora utilizado para inadmissão do recurso especial tal fundamento, registro não

se discutir aqui a simples interpretação de cláusula contratual, circunstância que

atrairia a incidência daquele enunciado. Vinte anos atrás, já decidira o Ministro

Eduardo Ribeiro sobre questão semelhante, fazendo-o da seguinte maneira:

A decisão que inadmitiu o especial entendeu que se buscava o reexame das cláusulas, em que se fundou o acórdão, para repelir a pretensão de renovação. Data venia, não tem razão. A questão não está em saber o alcance do que as partes pactuaram mas de sua validade face à lei (REsp n. 4.930-SP, Relator Ministro Eduardo Ribeiro, DJ de 04.03.1991, sem grifos no original).

É exatamente o que ocorre na hipótese em julgamento. O que está sob

apreciação, na verdade, não é o alcance da cláusula, mas saber se o seu conteúdo

é válido diante das normas legais e regulamentares que incidem sobre o contrato

Jurisprudência da QUARTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 405-518, julho/setembro 2011 513

em que ela se encontra inserida. Em outras palavras, a questão é defi nir se pode

haver pactuação de cláusula que institua prazo de carência para a devolução dos

valores aplicados em títulos de capitalização, na hipótese de o aplicador desistir

do plano a que aderiu.

A resposta a tal indagação há de ser afi rmativa.

O parágrafo único do art. 1º do Decreto-Lei n. 261/1967 defi ne os planos

de capitalização ao estabelecer que se consideram “sociedades de capitalização as

que tiverem por objetivo fornecer ao público de acordo com planos aprovados

pelo Governo Federal, a constituição de um capital mínimo perfeitamente

determinado em cada plano e pago em moeda corrente em um prazo máximo

indicado no mesmo plano, a pessoa que possuir um título, segundo cláusulas e regras

aprovadas e mencionadas no próprio título” (sem grifos no original).

O art. 2º daquele diploma legal dispõe:

O controle do Estado se exercerá pelos órgãos referidos neste Decreto-Lei, no interesse dos portadores de títulos de capitalização, e objetivando:

I - promover a expansão do mercado de capitalização e propiciar as condições operacionais necessárias à sua integração no progresso econômico e social do País.

II - promover o aperfeiçoamento do sistema de capitalização e das sociedades que nele operam.

III - preservar a liquidez e a solvência das sociedades de capitalização.

IV - coordenar a política de capitalização com a política de investimentos do Governo Federal, observados os critérios estabelecidos para as políticas monetária, creditícia e fi scal, bem como as características a que devem obedecer as aplicações de cobertura das reservas técnicas.

O art. 3º, por sua vez, enumera os órgãos que compõem o Sistema Nacional

de Capitalização e atribui suas competências, assim:

§ 1º - Compete privativamente ao Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) fi xar as diretrizes e normas da política de capitalização e regulamentar as operações das sociedades do ramo, relativamente às quais exercerá atribuições idênticas às estabelecidas para as sociedades de seguros, nos temos dos incisos I a VI, X a XII e XVII a XIX do art. 32 do Decreto-Lei n. 73, de 21 de novembro de 1966 (redação dada pela Lei Complementar n. 137, de 2010).

§ 2º - A Susep é o órgão executor da política de capitalização traçada pelo CNSP, cabendo-lhe fiscalizar a constituição, organização, funcionamento e operações das sociedades do ramo, relativamente às quais exercerá atribuições

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idênticas às estabelecidas para as sociedades de seguros, nos temos das alíneas a, b, c, g, h, i, k e l, do art. 36 do Decreto-Lei n. 73, de 1966 (redação dada pela Lei Complementar n. 137, de 2010).

Da conjugação dos dispositivos acima transcritos, tem-se que cabe à

Susep a fi scalização das operações de capitalização e a aprovação dos planos

individuais. E, ao exercer suas atribuições, fê-lo aquele órgão por meio da

Circular Susep n. 130/2000, vigente à época do ajuizamento da ação, a prever:

Art. 7º. A Sociedade de Capitalização não poderá se apropriar da provisão matemática dos títulos suspensos ou caducos por inadimplência dos pagamentos, devendo colocar à disposição do titular, independentemente do número de pagamentos efetuados, o valor de resgate após o período de carência, ainda que a inadimplência ocorra em data anterior ao prazo de carência fi xado.

§ 1º - Para o caso de resgate, é facultada a fi xação de um prazo de carência para a efetivação do pagamento, não superior a vinte e quatro meses, contados da data de subscrição do título de capitalização.

§ 2º - Para os títulos de capitalização com prazo de pagamento inferior a vinte e quatro meses, o prazo máximo de carência para efetivação do pagamento fi ca limitado à sua vigência.

Por sua vez, o art. 23 da Circular Susep n. 365/2008, atualmente em vigor,

reproduz norma de conteúdo praticamente igual, in verbis:

Art. 23. A sociedade de capitalização não poderá se apropriar da provisão matemática dos títulos suspensos ou caducos por inadimplência dos pagamentos, devendo colocar à disposição do titular, independentemente do número de pagamentos efetuados, o valor de resgate após o prazo de carência, ainda que a inadimplência ocorra em data anterior ao prazo de carência fi xado.

§ 1º - Para o caso de resgate antecipado, total ou parcial, do montante da provisão matemática, é facultada a fixação de um prazo de carência para efetivação do pagamento, não superior a 24 (vinte e quatro) meses, contados da data de início de vigência do título de capitalização.

Abro aqui um parêntese para esclarecer que a normatização de algumas

matérias, particularmente daquelas de cunho econômico-fi nanceiro, por meio de

resoluções, circulares e outros instrumentos não legislativos, tem sido aceita pela

jurisprudência pátria, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, como forma de

possibilitar à administração controlar e regular, de forma ágil e especializada,

determinados setores da economia, respeitados os limites explicitados no ato

de delegação respectivo. A Constituição Federal, conquanto tenha afastado o

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Estado da exploração direta de certas atividades econômicas, deu-lhe atribuições

de agente normativo com a missão de fi scalizar, incentivar e planejar aquelas

mesmas atividades, conforme previsto no art. 174.

Fábio Konder Comparato, ao cuidar de análise das resoluções editadas

pelo Conselho Monetário Nacional, em situação similar à que ora se apresenta,

entende tratar-se de técnica legislativa que representa instrumento indispensável

do Poder Público para acompanhar e infl uenciar a conjuntura econômica. Tais

resoluções, ressalta o jurista, não constituem simples ato administrativo, mas,

antes, atuam na realidade como o necessário momento integrativo do conteúdo

legal, participando de sua natureza (“Abertura de Crédito. Nulidade de cláusula

contratual”. Revista de Direito Mercantil n. 3, ano 10, Nova Série, 1971, p. 62).

Eros Roberto Grau, antes mesmo de integrar a Suprema Corte Brasileira,

já ensinava o seguinte: “À potestade normativa por meio da qual essas normas

são geradas, dentro de padrões de dinamismo e flexibilidade adequados à

realidade, é que denomino capacidade normativa de conjuntura. Cuida-se

– repita-se – de dever-poder, de órgãos e entidades da Administração, que

envolve, entre outros aspectos, a defi nição de condições operacionais e negociais,

em determinados setores dos mercados. Evidente que esse dever-poder há de

ser ativado em coerência não apenas com as linhas fundamentais e objetivos

determinados no nível constitucional, mas também com o que dispuser, a

propósito do seu desempenho, a lei. Note-se, ademais, que, no exercício da

capacidade normativa de conjuntura, nada mais faz a Administração senão

atender às demandas do sistema econômico, provendo a fl uência da circulação

econômica e fi nanceira. Os agentes econômicos com atuação em campo objeto

de regulação por meio da capacidade normativa de conjuntura restam, em tais

condições, nesta atuação, vinculados pelo que dispuserem tanto as emanações

dessa capacidade normativa quanto a própria lei. Esta, de resto, haverá de ser

sempre o fundamento de tal vinculação, visto que aludida capacidade normativa

somente estará ungida de legalidade quanto e se ativada nos quadrantes da lei.

Assim, o atuar de tais agentes econômicos estará sempre submetido aos ditames

conjunturais que motivam a edição de atos normativos produzidos no âmbito

daquela mesma capacidade normativa” (“A ordem econômica na Constituição

de 1988; interpretação é crítica”. São Paulo: RT, 1990, p. 171-172).

Fecho o parêntese.

Veja-se, pois, que, no caso concreto, a normatização da atividade

desenvolvida pelas sociedades de capitalização tem um objetivo maior, tal qual

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previsto no já mencionado art. 2º do Decreto-Lei n. 261/1967, que não pode ser

obstado pela atitude de algumas pessoas que, mesmo cientes das condições do

contrato que celebram, buscam formas de fugir aos compromissos assumidos.

O formato desenhado para os títulos de capitalização, com suas cláusulas

de devolução apenas parcial do capital investido e de prazo de carência para que

ocorra essa devolução, além de estar revestido de legalidade, como se viu, tem

raízes também em fundamentos econômicos que justifi cam o modelo adotado.

A desistência, a qualquer tempo, dos investidores com a devolução imediata

dos recursos por eles vertidos para o plano de capitalização prejudica os demais

aplicadores que pretendam manter o plano estabelecido, uma vez que a saída de

recursos extemporaneamente reduz a capacidade da sociedade que administra

o plano de obter maiores rendimentos nas aplicações de longo prazo e, por

consequência, de proporcionar maiores ganhos aos seus clientes.

Não tenho dúvidas em afi rmar, na mesma linha do acórdão recorrido e da

jurisprudência desta Corte, que as operações dessa natureza estão submetidas às

regras do Código de Defesa do Consumidor.

Pondero, no entanto, que a incidência das normas consumeristas não se

deve dar de forma tal que obrigue o fornecedor a desnaturar completamente

os seus produtos, principalmente quando elaborados em conformidade com

a legislação vigente. O que deve ser assegurado ao consumidor, em casos que

tais, é a informação clara a respeito das características do produto, a perfeita

explicitação dos seus termos e condições, a fi m de que não haja surpresa para

aquele que o adquire.

Não foi, no entanto, o que ocorreu nestes autos. O acórdão recorrido, ao

determinar a incidência do Código de Defesa do Consumidor sem levar em

consideração outras disposições legais igualmente aplicáveis, impôs à recorrente

a obrigação de transformar seu produto (títulos de capitalização) em outro

tipo de investimento ao exigir que dele seja extirpada cláusula característica

daquela modalidade de aplicação, porque necessária à manutenção do equilíbrio

desenhado para um mercado específi co de investidores. Há dezenas de opções

de investimento no mercado bancário, cada uma delas com suas peculiaridades,

criadas, cada qual, para atender a determinado público. Os títulos de

capitalização constituem opção de investimento para aquelas pessoas que não

têm necessidade da devolução, no curto prazo, dos recursos aplicados.

Não se pode, pois, em ação civil pública, buscar, de forma genérica e

preventivamente, impedir a livre estipulação de cláusulas contratuais

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expressamente admitidas pelo ordenamento jurídico pátrio, sob o pretexto

de proteção da sociedade. Numa democracia, as pessoas devem ter liberdade

de escolha e assumir as consequências daí advindas. O que é necessário fazer,

repito, é assegurar que haja informação sufi ciente e transparência nas relações

jurídicas estabelecidas. Ciente o aplicador de todas as circunstâncias que cercam

o negócio, se a ele aderiu, resta-lhe agir com a boa-fé objetiva exigida de todos os

contratantes e respeitar o pactuado. No caso concreto, não há nenhuma alegação

de que a recorrente omita informações aos aplicadores ou aja de maneira a neles

incutir falsas expectativas.

Não pode ser considerada abusiva cláusula contratual que apenas repercute

norma legal em vigor, sem fugir aos parâmetros fi xados para sua incidência.

Assim, se há norma jurídica a permitir a celebração de cláusula de carência

de até 24 meses para devolução dos valores investidos, não se pode anular, por

abusiva, aquela que prevê prazo inferior, de 12 meses, para dita devolução, sem

que haja a evidência de que o investidor tivesse sido levado a erro quanto a essa

circunstância.

Como já acentuei anteriormente, nas relações jurídicas existentes entre

a recorrente e seus clientes incidem as normas do Código de Defesa do

Consumidor. Tal não induz, porém, ao alijamento das demais normas legais que

sejam aplicáveis a dado negócio jurídico realizado entre as partes, uma vez que

é perfeitamente factível sua compatibilização. No caso em julgamento, é preciso,

de um lado, preservar a identidade do produto concebido em conformidade

com legislação especifi camente prevista para abrangê-lo e, de outro, proteger o

interesse do consumidor.

Exemplo perfeito e acabado dessa harmonização ocorreu no julgamento da

ADI n. 2.591, sobre o qual escreveu a professora Cláudia Lima Marques:

O Supremo Tribunal Federal, no histórico julgamento da ADIn n. 2.591, que concluiu pela constitucionalidade da aplicação do CDC a todas as atividades bancárias, reconheceu a necessidade atual do “diálogo das fontes”. Do voto do Min. Joaquim Barbosa extrai-se a seguinte passagem: “Entendo que o regramento do sistema fi nanceiro e a disciplina do consumo e da defesa do consumidor podem perfeitamente conviver. Em muitos casos, o operador do direito irá deparar-se com fatos que conclamam a aplicação de normas tanto de uma como de outra área do conhecimento jurídico. Assim ocorre em razão dos diferentes aspectos que uma mesma realidade apresenta, fazendo com que ela possa amoldar-se aos âmbitos normativos de diferentes leis”. Em relação ao alegado confronto entre lei complementar disciplinadora da estrutura do sistema fi nanceiro e CDC, o Min.

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Joaquim Barbosa, referindo-se à técnica do diálogo das fontes, observa: “Não há, a priori, por que falar em exclusão formal entre essas espécies normativas, mas, sim, em infl uências recíprocas, em aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente” (“Manual de Direito do Consumidor”, 2ª ed., RT, 2008, p. 90).

Na mesma obra, p. 91, vem o alerta:

No Brasil de hoje, a construção de um direito privado com função social está a depender do grau de domínio que os aplicadores da lei conseguirem alcançar, neste momento, sobre o sistema de coexistência do Direito do Consumidor, do Direito Civil e do Direito Empresarial ou Comercial das obrigações.

De minha parte, considero perfeitamente possível, sem desrespeitar

os princípios do Código de Defesa do Consumidor, mas, até mesmo,

harmonizando-os com outras normas legais que entendo aplicáveis ao caso em

tela, reconhecer a validade da cláusula inquinada de abusiva nos contratos de

capitalização por meio da qual se estipula prazo de carência para devolução dos

valores investidos por quem desiste do plano a que aderiu.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para julgar improcedente

a ação civil pública proposta por Anadec – Associação Nacional de Defesa da

Cidadania e do Consumidor, isenta a autora do pagamento dos ônus de

sucumbência, nos termos do art. 18 da Lei n. 7.347/1985.

Tendo em vista o resultado do julgamento, fi ca prejudicada a análise das

questões atinentes ao alegado julgamento extra petita e à pretensa violação do

art. 2º da Lei n. 10.192, de 2001.

É o voto.