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1 Quarenta E Uns Sonetos Catados Alex Simões

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Quarenta E Uns Sonetos Catados

Alex Simões

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“Catar feijão se limita com escrever:

jogam-se os grãos na água do alguidar

e as palavras na folha do papel;

e depois, joga-se fora o que boiar. [...]”

(João Cabral de Melo Neto, Catar Feijão, Educação

pela Pedra)

“Para que serve a pintura

a não ser quando apresenta

precisamente a procura

daquilo que mais aparenta,

quando ministra quarenta

enigmas vezes setenta?”

Paulo Leminski, Sete Assuntos por Segundo, La vie

en close.

Para Célia Adler e

Rosa Virgínia Mattos e Silva, in memoriam.

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Sumário Apresentação 07 I (fechai os olhos para a poesia) 11 de perguntas e poetas 12 versos alexsandrinhos 13 poetas tapam o sol com a peneira 14 bursite, tradição e tá lento, o indivisual 15 soneto sobre si mesmo 16 “navegar é preciso, performar eu preciso” 17 a quem interessar possa 18 cozinha íntima 19 estudos para lira n° 1 20 à literatura em si 21 os versos? 22 breviário 23 sóbria declaração 24 poética 25 síntese 26 paradão 27 aos desavisados 28 soneto intitulável 29 (pensei em mil palavras que não vieram 30 II questão de gênero 33 buças russas libertas (quae sera tamen) 34 conselho 35 poema edipiano 36 Penélope 37 desatino 38 ocaso 39 possessão 40 o encontro no espelho 41 o encontro no espelho iii 42 patriarcal 43 r. mutt 1917 44 III pátria zinha 47 soneto armado 48 se ocidente, rapaz 49 igatu 50 quebra-(qu)eixo 51 IV

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movimento avesso 55 de travessas e travessias 56 “...(no silêncio) Eternos” 57 de estar no meio 58 luar no feicibuque 59 (que resta agora, se faltou a rima) 60 soneto 61 desencanto 62 (meu corpo atende aos beijos não lançados) 63 soneto para carlos anísio melhor 64 (meus olhos debruçaram sobre a vida) 65 calar de vez a dor 66 desfiliação 67 (mais um soneto inscrito na memória) 68 mulher de roxo 69 (quantos sonetos eu te escreverei) 70 o bem que não é meu 71 marinha I 72 marinha II 73 40, ingleses e uns catados 40 77 inglês número dois 78 inglês número quatro 79 inglês número cinco 80 inglês número sete 81 inglês número oito 82 inglês número dez 83 inglês número onze 84 inglês número treze 85 inglês número catorze 86 por um solo 87 ofélia 88 refazenda: grande 89 versos de preceito 90

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Caro poeta:

Desculpe, mas você não assinou seus poemas e eu

tenho péssima memória para nomes. Desculpe

também ter metido a caneta no seu texto.

Normalmente, não faço isso. Mas como não teria

muito tempo para conversar, tomei esta liberdade.

Acho que você tem talento. Começou pelo mais

difícil, o soneto que, por ser uma forma e uma

fôrma bem rígida, carece de muita habilidade

artesanal para ficar de pé. Para ser grande, pior

ainda. São poucos na língua e de poucos poetas.

Contudo o desafio do soneto confere tanta perícia

ao taco de quem o encaçapa que, ao voltar a

outras formas, o poeta chega a achar fácil.

Continue. Mas tente a redondilha maior. E leia na

Enciclopédia Delta Larousse, Vol 6, o tratado de

versificação de Manuel Bandeira. E leia em

Wolfgang Kaiser Análise e Interpretação da Obra

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Literária o capítulo sobre o verso. Técnica ajuda.

Liberta. Cuidado com o encontro de vogais – é a

coisa mais traiçoeira em Português.

No mais, parabéns: você é poeta. Precisa crescer

tecnicamente e amadurecer a cabeça. Leia muita

poesia. Escreva. Só se aprende a escrever,

escrevendo.

Ildásio Tavares, 13 de março de 1996.

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I

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fechai os olhos para a Poesia,

colocai-a em cálices de vinho,

derramai ao longo do caminho

o poema nosso de cada dia.

afastai vossa dor da ironia,

imprimi a beleza em pergaminhos,

deletai toda a dor de ser sozinho

mas também relatai toda alegria.

ficai de joelhos para a Poesia

e pedi, sem pudor, ao firmamento

que não vos seja vão cada momento

de busca, na palavra, da harmonia.

mas não deixeis que a vida vos esqueça,

nem que as traças vos subam às cabeças.

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[ 1991 ]

de perguntas e poetas

a Marcus Vinícius Rodrigues e Állex Leilla

não se pergunta nada a um poeta

que é por definição das Evasivas

amigo, assim como Musas e Divas

lhe rodeiam a cabeceira, cometas.

com um poeta nunca se intrometa

que a sua cabeça à beça a si se esquiva

e no esquivar-se iguala-se à sua Diva

e fica mal ferir a quem com seta

fere, mas só com amor e com rodeios.

e nisso é que consiste o não indagar

àquele que ignora qualquer freio

ou direção. não tente lhe roubar

porque ele vem vazio. quem mesmo sabe

por que será que nele tudo cabe?

[ 2007 ]

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versos alexsandrinhos

fazer ou não fazer: ex-a questão, eu faço

não para me gabar, nem para me esconder.

imagino você achando de foder

meu ostinato rigore, bem, roubo mas faço

poemas e canções são feitos de pedaços

que às vezes eu senti, que às vezes eu menti

mas nunca que eu criei. pra quê? tá tudo aqui,

poemas e canções já feitos. despedaço e

não se trata de mim. a matéria que eu uso

é a deles, eu só cometo trocadilhos

com palavras que vêm, carregadas de outros.

não pense que sou médium ou um plagiador escroto.

eu apenas sampleio velhos estribilhos

com um toque afroamerindianocafluso.

[ 2002 ]

poetas tapam o sol com a peneira

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14

poetas tapam o sol com a peneira

e querem fazer disso profissão.

ardem na praia sem eira nem beira,

rasgando o guarda-sol, não ganham o pão.

poetas, girassóis e outras besteiras,

ninguém vê mais sentido nisso, não.

pintores, não se cortem nas orelhas,

cantores, não escutem esta canção.

não falem mais o que lhes der na telha,

pulem o muro da lamentação,

nem contem mais do pente que pentelha

o oco da sua imaginação.

de mel, não de zunzum, vive a abelha.

mais que um poema, aqui vai a lição.

[ 2012 ]

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15

bursite, tradição e tá lento, o individual

doem-me os ombros, tantos são os pesos.

línguas mortas e vivas misturadas,

a plêiade no peito embaralhada,

os esquecidos como contrapeso.

mil vozes confundidas no desejo

de ter consigo a minha entrelaçada

e o medo de parar na encruzilhada,

entre rimas ideias e solfejos.

a folha em branco amarelada está.

há sempre um risco de perder-se, há

sempre um mesmo fantasma em breve assomo.

o mundo derretendo-se em milênios:

poetas trôpegos, prestos boêmios,

eu e você cantando velhos nomos.

[ 2000 ]

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16

soneto sobre si mesmo

errando porque novo só depois

do erro se repete e a tentativa

dessangra e se arrebenta em coisa viva

a cada vez que alguém dá nome aos bois.

pisando a jaca e no feijão com arroz,

meter pés pelas mãos, a coisa viva

é viva porque a carne é rediviva,

do mesmo pulso que sangrado foi.

errando é que se prende o meliante,

que serve como exemplo aos seus irmãos,

certinhos de que nunca como antes

algum puído foi com precisão

tamanha em contratempo e contraexemplo:

14 arestas pregam-se no temp(l)o.

[ 2013 ]

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17

"navegar não é preciso, performar eu preciso!"

roubado de Zmario

tomo um café, que não acaba nunca

e espero a borra me desatinar

você não me interrompe mas pergunta

se eu quero me contemporaneizar.

e eu não respondo e pego o seu batom

desse de piche que está sempre perto

passo ele em mim e acho o gosto bom

divago sobre o papa e o rei roberto:

um porque beija o chão, o outro, o poeta,

me fez assim moderno e logo caio

na divagação. você grita, terno:

"vixe, poeta! sai dessa punheta!"

e assim me acorda a la sérgio sampaio

com "um livro de poesia na gaveta..."

[ 2013 ]

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18

a quem interessar possa

um poema pesa muito

(são toneladas de plumas

multiformes, milenares)

a quem possa interessar

o peso de muitas cores,

sangue, silêncio e cicuta,

cheiros nem sempre agradáveis

emite sua atmosfera

ecos de jovens suicidas,

complicações com o poder,

envolvimento com o crime,

tráfico de armas e drogas.

poesia, puta velha,

teu passado a uns condena.

[ 2007 ]

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19

cozinha íntima

para Marcus Vinícius Rodrigues

tem um poema aqui dentro

que esqueci de lhe mostrar

espere só um momento

que vou lá dentro buscar

ele está em andamento

faz favor de não contar

pra ninguém do fazimento

pro bolo não desandar

peraí, que eu volto já

enquanto isso, o rebento,

todo acontecimento

vem quando tem de chegar

meu poema tem fermento

e a lua, pó de solar

[ 2012 ]

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20

estudo para lira no 01

para Mirella Márcia e para Hegel

se eu conseguir fazer uma canção

será por todo amor que te reservo

mas não me sentirei senhor ou servo

apenas tocarei teu coração

terá poucas palavras, um refrão

de rimas pobres, pobres sentimentos

haverei de esquecer meus pensamentos

se eu conseguir fazer uma canção.

direi quase que nada tão somente

o que o corpo deseja imensamente

o que a fala sem ritmo não comporta

direi mais do que sou, mais do que és.

se eu conseguir cantar o que me exortas

trarei o mundo inteiro aos nossos pés

[ 1995 ]

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21

à literatura em si

este soneto não quer ser a obra

de um autor desesperado e circunspecto

que produz aos magotes poemetos

para neles caber o que foi sobra

de outro poema que não se quis sobra

do nariz entalhado por Gepeto.

este soneto não é um soneto

e este quarteto não é do outro a dobra,

nem sexteto os tercetos em sequência

de rima interpolada, aqui cosendo

a virtuosa e vazia inexperiência

em um registro que vai, num crescendo,

da língua que se fala sem ciência

a um saber que se constrói: fazendo

[ 1996 ]

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22

os versos?

os versos? esconderam-se no escuro.

portanto, sempre dizem mais, que eu saiba.

esperam decantar, para que caiba

a poesia nos corações duros.

palavras não significam somente

o que delas esperar. poemas

não são meras conjunções de monemas.

não os entendas, apenas os sente.

abre o coração mais que os ouvidos

e recebe a poesia com amor,

sem pressenti-la, deixa-a, por favor,

pronunciar-te o mal dos consumidos

e ainda os prazeres incontíveis.

e expurgarás a dor com que convives.

[ 1993 ]

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23

breviário

para Rosa Virgínia Mattos e Silva

se é triste o poeta, bem mais triste

é o mundo que o faz subversivo

para depois queimar todos os livros

como se inventasse o que não existe.

se é triste o poema, quem insiste

em fazê-lo é um réu cativo,

desafia a morte para os vivos

atentarem que ele não desiste.

se é triste a poesia, por que lê-la

se não há tristeza igual em si

mesmo. não eras antes de vê-la?

se é triste a palavra que a ti

digo, eu vou, calado, ouvir estrelas.

mas reclamarás que emudeci.

[ 1991 ]

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24

sóbria declaração

não me inspiras vãos clichês caducos,

versos de amor com intenções de morte,

linhas inúteis mas com tom de porte

palavras tolas para o amor de eunucos.

não me inspiras mais do que tu és

e és o que vejo, nada mais que isto,

sou o que quiseres e por ter-te visto

lanço-me a ti, mas não te beijo os pés.

é que no amor não me contenta a espera

nem mesmo a dor inútil de não ter.

prendo-me à vida, não curto quimeras,

dou-me, por partes, se tiver prazer.

neste soneto que a ti dedico

peço que leias o que não, escrito.

[ 1996 ]

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25

poética

tudo que escrevo não é meu. é nosso

desejo imenso, palavreado absorto,

solto em palavras do que já foi morto

antes de ser e que sentir não posso.

tudo que escrevo é fundo como um poço,

pesado fardo que em vão suporto,

nauta da barca preso no seu porto,

imensa âncora em pequeno fosso.

tudo o que flui eu sou enquanto calo

e abstratamente vivo no meu canto

a revelar-me em tudo que não falo

e despencar em versos da minha boca

chorando riso e gargalhando pranto

da vida às vezes má, mas nunca pouca.

[ 1997 ]

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26

síntese

reduzir a morfemas lexicais

e estruturas sintáticas a língua

é como que deixá-la a sós, à míngua,

e explicar inexplicáveis ais

que me permito em falas naturais

que substituem a falta de não ser.

analisar é o mesmo que morrer

pois mortas são as leis, gramaticais

ou quaisquer outras que ao meu discurso

vão dar explicações de todo exatas

já que a palavra – dizem – vem inata

e as leis que as regem ainda estão em curso

e em curso estou, ignaro no que digo,

sujeito-objeto ao verbo ser comigo

[ 1996 ]

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27

paraDão

posso até dizer a que vim porque

preciso muito pouco para isso

primeiro porque é sem compromisso

se segundo porque não tem por que

usar palavras sem ter nada a ver.

como explicar como é que é essa parada?

é só pra não parar na encruzilhada

e dar uns tapas se alguém vier bater.

tem de caber na ginga e no balanço

sabendo atravessar sem (se) ferir

dançando para não morrer de banzo

na hora certa de dizer e ouvir

dar tempo ao tempo e um beat paraDão

batendo o pé mas sempre pé no chão.

[ 2003 ]

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28

aos desavisados

e a Permínio

a vida não me foi tão bela assim

nem lhe retribuí com o que não tive,

apenas não me apiedo mais de mim

pois sei que só quem finge sobrevive.

aprendi com o tempo que o fim

é a única constante entre as variáveis

insólitas do mundo e, assim,

eu torno as minhas dores mais maleáveis,

mas não dentro de mim. é que as pessoas

só veem o que lhas praz e o meu sorriso

pode ser de alegria ou de um espanto:

esdrúxulas palavras, quando à toa

se rimam entre si num tom preciso

compõem a beleza de um canto.

[ 1995 ]

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29

soneto intitulável

“Há naus tao frágeis, com pesados ferros/

Há naus de ferro, âncoras de ar.”

(M. C. Paranhos)

eu devo prosseguir com toda essa loucura?

no limbo morrerei na sede de tocar

as intocáveis mãos? e as âncoras de ar

poderão sustentar as férreas estruturas?

devo querer um dom que se me afigura

o de não mais poder os meus olhos fechar

quando a consciência jaz e o corpo quer voar

e deslizar no caos que pra sempre perdura?

amar, não possuir, calar, ser todo ouvidos,

no mundo se perder, saber que suaviza

memorizar o céu. achados e perdidos

sempre se encontrarão numa escrita imprecisa.

é isso uma missão ou um castigo imenso.

viver ou escrever, sobre isso um dia eu penso.

[1996]

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para Luiza Vianna

pensei em mil palavras que não vieram.

chorei, lutei por elas e perdi.

na vida tantos corpos me tiveram,

na arte tantas falas engoli.

pensei em mil poemas que estiveram

no céu da boca, esdrúxulos e exatos,

e quantos versos brancos não quiseram

rimar coisa com coisa pelo fato

de se saberem coisas tão distantes

umas das outras, fartas de tristeza,

que mesmo assim me dizem da beleza

de serem absolutas e inconstantes.

e um poema inteiro se mostrou

por trás de tudo aquilo que faltou.

[ 1991 ]

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II

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questão de gênero

a Janaína Dutra, in memoriam.

há uma mulher em mim, essencial,

que me faz escutar outras mulheres,

que me faz respeitar essas mulheres,

embora delas seja desigual.

e não se trata apenas de ter pau.

retirá-lo seria uma intempérie,

pois meu sexo não dói e não me fere:

sou de outra ordem de transexual.

eu posso ser tratado em masculino

ou feminino, isso tanto faz,

só não espere de mim um par de peitos,

os dela são bem lisos, de rapaz.

e apesar de nem sempre falar fino,

essa mulher, como outras, quer respeito.

[ 2001 ]

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buças russas libertas (quae sera tamen)

"garotas boas vão pro céu

garotas más vão para qualquer lugar"

(Rebeca Matta e Mae West)

fora deste poema tem um blog

e um rapaz meio estranho que o escreve.

ele fala que não, no fundo deve

a agiotas de versos, um ciborgue

esse rapaz, o do blog, um maníaco

por redes de arrastão de gigabites,

precisa de dinheiro e birinights,

mas quem não? tem fratura no ilíaco

o rapaz, tem cóccix e pé quebrados,

manco, mestiço, mefisto, os dichotes

sempre o perseguem, mas se alguns trocados

não lhe rendem, e se a cobra dá o bote,

o poeta lança o salto com dados

de malarmée pra free pussy riotes!

[ 2012 ]

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conselho

quem acuendar o bofe de uma amiga,

mesmo que seja um quibe mal passado,

faça um babado tal, que ninguém diga:

“cuidado com essa bicha aí do lado!”

que o mesmo bofe ao menos seja odara,

que não te leve o acué, nenhum trocado,

nem fale grosso ou cuspa em sua cara

quando estiver com racha acompanhado.

quem se joga no ocó da mona alheia

pode entrar num babado muito forte,

pode até tomar uma churria e meia

por uma mala de pequeno porte.

ouça o que eu digo, biba fechativa:

cuenda o seu próprio baco, Negativa!

[ 1993 ]

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36

poema edipiano

assim como mattoso, eu amo os pés:

os jambos e os troqueus, principalmente,

e tenho um pé quebrado, que, igualmente,

me faz mancar nas fintas de pelés.

é o que eu simulo: verso que não joga

futebol, mas garrincha com palavras

bate bola em amistosos de entressafra

fazendo da alegria os nove fora.

embora aqui chulé não se aplicasse

posto que a evidência da parábola

indiscutível nos pareceria,

sinto um mau cheiro que não da metáfora:

repetindo o já dito, errando o passe,

peladas sem chulé não haveria.

[ 2012 ]

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37

penélope

disfarço em cada teia que te faço

e desfaço em minha veia o meu pranto

e sou desfeita junto com o manto

e em cada ponto é urdido o nosso laço.

choro de amor perdida entre os meus braços,

léguas distante, tecido o quebranto

em mim contido e novamente o manto

me é desfeito em troca dum cansaço

que não chega. nosso destino - exato -

é pura espera e solidão e luta

inútil guerra, lucidez abrupta

que nos encerra na prisão dos fatos.

meu desespero teço a cada dia,

descubro em vão que o manto é fantasia.

[ 1991 ]

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38

desatino

como se não bastasse a tua loucura,

as mãos dilacerando as minhas partes,

boca chupando boca, essa arte

que permite fodermos com doçura

porque também no gozo há tessitura

e sombra e luz e cheiro e desatino

do tempo e a falta dele, o feminino

e o masculino, o encontro e a procura.

mas somos clandestinos, nosso amor

é daqueles que fogem ao rigor

dos dias tormentosos e de luto.

eis a cena excitante pros marmanjos:

nosso amor, um banquete para os putos,

uma oferenda para exus e anjos.

[ 1999 ]

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ocaso

eles se olharam em meio à multidão,

eram seis horas, mais ou menos quente,

mas não podiam dar bandeira à gente

inda era claro, horário de verão

e era tesão de escuro — um era preto

— de quarto escuro, onde se vê de frente

e é tudo escuro impreterivelmente —

o outro era quase branco. bem discretos,

seguiram reto ao mar, não muito além,

sem desviar os olhos, sem ninguém,

só mar e lua e sol e anoitecer.

e logo vão deitar-se um sobre o outro.

chegada a noite, tudo pode o outro

ser o outro ser o outro ser o outro ser.

[ 2003 ]

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possessão

olhos e lábios que procuro atroz,

forte e valente. necessito, então,

da tua calma e da mansidão

deliciosa vinda de tua voz.

o meu furor é por demais veloz.

quer alcançar-te lépido, se não

antes chegar de qualquer intenção

desvinculada do que somos nós.

é não perder-te todo meu intento

e desviar da sombra o sentimento

pra que não haja dúvidas jamais,

nem que se hesite, por um só instante,

em ser, um do outro, intrépido amante

a fazer risos e afastar os ais.

[ 1991 ]

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41

o encontro no espelho

olho no olho exangue que se entrega

na imagem do pânico contido,

a palavra grunhida, a ira cega

e o pudor de viver emudecido.

palma na palma torpe que escorrega

no silêncio do quadro ensandecido

deste espelho de dor, que em mim sossega

o horror de me ver apodrecido.

língua na língua, bocas que se mordem,

verso no verso livre de outra estética,

rima na rima pura da desordem,

fala na fala presa à dura métrica.

quebra-se o espelho e espera-se que acordem

o pavor e a desilusão patética.

[ 1992 ]

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42

o encontro no espelho III

o que será que existe além de mim?

que mundo estranho é esse que me cerca

e me amedronta e faz com que me perca

e me bifurque entre um não e um sim?

por que meus olhos rubros não se esquecem

de seu reflexo e se voltam para o mundo

e não se deixam descer ao profundo

poço dos meus desejos que me aquecem?

labirinto de espelhos, traz de volta

a minha imagem e me dá saída

da solidão que faz da minha vida

prisioneira da dor que não me solta.

grito de pânico lançado em vão

e o eco responde com um sim e um não.

[ 1993 ]

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43

patriarcal

mulher que não se bate nem com a flor,

porém flor bela espanca nos presídios,

cada caso é um caso e uma dor

única biografia-suicídio.

os falos decepados sei de cor

dos finisseculares hominídeos,

seus paus reconstituídos, quem mandou

não aprenderem as lições de Ovídio?

nossa família em sacrossanto lar

onde se estupram filhas no escuro

no claro os homens sabem o seu lugar

lupanares não são mais tão seguros

em tempos em que o orgasmo vem do olhar

as putas iniciam-se intramuros.

[ 1996 ]

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r. mutt 1917

exercício de observação para a

oficina de Angélica Freitas

fico pensando em você:

pouco na sua aparência,

menos ainda na essência,

mas no que o torna um bidê.

Marcel Duchamp fez ver

que não há maior ciência

em forjar resiliência

num objeto: desver.

mas o que é mesmo um bidê?

peça branca onde se mija,

torneira e ralo? e o prazer

do meu pau? será que fica

muito machista dizer

que o bom de mijar é a mira?

[ 2013 ]

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45

III

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pátria zinha

*poema em coautoria com Reinofy Duarte

Fui parido pelo ventre desta pátria

Dos irmãos que sentem dores pela história

Em que anseiam por ter um dia de glória

No solo tão gentil da terra mátria.

Mas somos os herdeiros de uma xátria

Que se instalou no centro da memória,

Deixando no poder a velha escória,

A pátria bem pode se chamar látria,

Bem como de larápios os seus filhos,

Ao menos os que dela bom proveito

Tiram de um tal jeitinho que, sem jeito,

Deixam os que ainda insistem em andar nos trilhos.

Ordem pros pobres, progresso pros ricos,

Mandam os civis, porém sob os milicos.

[ 2013 ]

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soneto armado

a Palestina fica ali do lado

desce o primeiro salto do sapato

desce o segundo salto em staccato

tem Congo na sua rua, nos sobrados

o Haiti é mais perto que o supermercado

logo depois vem o Irã e vem o Iraque

há mais japas e chinos que shitakes

e a Palestina fica ali do lado

esta terra é sem lei mas as fronteiras

são marcadas a ferro e a fogo aceso

em cada esquina tem um homem preso

a cada quadra uma mulher à beira

de uma explosão de craque e gravidez:

sacis pu(lu)lam onde o sem-perna é Rei.

[ 2012 ]

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se ocidente, rapaz

(para Uirá e Gilberto Gil)

"Podemos (não importa que o império do medo)..."

(Carlos Anísio Melhor In: Canto Agônico)

se podemos sorrir, e se mais livres

nós estamos, não sei, porque ruindo

o palácio e a festa, a gente vive

menos feliz, nossos irmãos caindo,

se do leste ou do oeste, ainda irmãos,

caindo como bombas, kamikases

(in)voluntários, bombas que em vão

vão caindo e anunciando a nova fase:

nossa história tão digna e tão rica (?)

não acabou ainda, virão mais

novas formas de dizer que quem fica

tem de ser mais forte, mais rico, mais

claro, mais seco, mais primeiro mundo:

se Oriente, tem petróleo, no fundo.

[ 2001 ]

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50

igatu

"tudo é o suor que a gente derrama"

(Ricardo de Lindaura)

atravesso tuas ruas feito um louco

esquecido de tudo que aprendi:

sobreviver do escasso, amar o pouco,

o passado e o distante agora, aqui.

diamantes encontro olhando o alto

céu da noite assombrada entre ruínas,

não deixeis que te tomem de assalto

pedras mais preciosas que as das minas.

que o progresso não cale tua decência

nem que os tolos confundam por demência

a altivez e a doçura do teu povo:

gente rara dispensa sobrenomes.

não troqueis os teus velhos pelo Novo:

esse monstro que a tudo e a todos come.

[ 1999 ]

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51

quebra-(qu)eixo

deixando, as coisas tomam forma, elas

mesmas por si desencaminham já,

como catar feijão, como o Catar

da Al Jazeera. as coisas são tão belas

que elas por si vão se desembestar

por teias parabólicas e bélicas,

telas políticas, telhas estéticas,

gritos da terra de Paris-Dakar.

lá fica longe pra Caracas, lá

não há lugar nenhum não há mais eixo

menuniverso a la carte que qui-lo

sou jacaré que aspira a crocodilo

num mundo que é uma goma de mascar

mas que preciso às vezes quebrar queixo

[ 2004 ]

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52

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IV

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movimento avesso

preciso de viver com mais vontade,

embora essa preguiça que ora ostento

reflita o meu caminho contra o vento

num movimento avesso ao da cidade.

cioso dessa desidentidade,

lanço meu corpo em muros de cimento.

atiro-me ao asfalto e o sentimento

se perde por detrás de imensas grades.

o coração perplexo e irresoluto

- essa esfinge que dentro do meu peito

declara para todo o sempre um luto -

redime e ameaça a minha garganta:

"àqueles que não vão pelo direito,

resta entoar o que esse avesso canta"

[ 1993 ]

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56

de travessas e travessias

(para ser lido sob um pé de Iroko)

por causa de Rita Santana

pode vir de bandeja, se você

quiser, tudo que a vida te oferece.

o tempo dá o recado, "amadurece",

e você se serve . que ela dê

alegria e muito e intenso prazer,

que ela dê calmaria e seja prece.

as horas são rosário, os dedos tecem

suas contas, terço-guia por ler

a ladainha das horas; é suave

a vida, meu amor, não é tão grave

quanto às vezes parece, é uma questão

de tempo e de deixar-se atravessar:

deixe as horas passar, meu coração,

no candomblé o Tempo é um Orixá.

[ 2012 ]

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57

“...(no silêncio) eternos.”

a Beatriz Franco

eu nunca vi seus olhos derramando

ante a acidez do mundo, eu “nunca vi

o mundo”, eu me derramo porque eu vi

e só pergunto como, onde e quando.

e porque vejo só, sempre sou eu

que vejo, e a mim mesmo, e então, por isso

eu vejo que não ver é seu ofício,

não ver nem derramar nada de seu

fantasma multiforme e colorido.

sua clara e escura câmara e alquímica

que dá contorno, luz e “pele fílmica”

ao invisível ser de outros sentidos

que mora lá nas nuvens e que esconde

o quê o como o quando o porquê e onde.

[ 2003 ]

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58

de estar no meio

morte do autor, morte do amor, a morte.

se amortecia a dor, a morte do humor,

morte dual: da cria e do criador,

a morte a morte a morte a morte a morte

uma tendência de comportamento:

é deus, renato, inês, beatriz, é tanta

a gente, o bicho, o mato, a estrela, a santa,

a guerra santa, a puta paz, invento

de muitos outros tantos carnavais,

a morte do leiteiro e a de Luísa

Porto(?), o morto poeta dos Gerais,

minha cabeça que não se a j u í z a,

mas que inda busca ali e aqui sinais

de estar no meio do caminho, à guisa.

[ 2006 ]

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59

luar no feicibuque

eu vi a lua e toda ela estava

assim vermelha e amarela e branca

como convém olhar a uma distância

que, à linha do horizonte, a estrela dava

a direção e a cor: não do planeta,

nem a estrela dalva uma cantora

de "quem mora na lua", mas pletora

de luz que vem do astro-rei, projeta

a lua que tem sempre as mesmas cores

e suas canções vezeiras, suas pobres

rimas cheias de hiatos alteados.

noutra noite de lua, a novidade

foi vê-la no meu feicibuque e, ao lado

da montra, a mesma lua, noutras cidades.

[ 2012 ]

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60

que resta agora, se faltou a rima,

faltou o ritmo, o ímpeto, o fôlego,

não há poesia nem sentir tão sôfrego

ou que olhar atrás ou para cima?

me diz o que há de fazer com as marcas

farpas e vincos diluídos, soltos

num tempo ébrio de dizeres doutos,

pesares muitos e vitórias parcas?

que conclusão pode tirar então

quem só se banha no poço do juízo

e se alimenta do fel da ironia

da sua íntima condenação?

que a vida se revolva em seu sorriso

e nunca deixe de ser sua vida.

[ 1993 ]

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61

soneto em dor maior

em mim gritou a dor que não contive

e o céu fechou-se e o amor fechou-se em mim

pela vida que me negou um sim

pela felicidade que não tive,

eu era todo um choro insuportável

e o mundo em mil crateras se fizera

cavados pelas unhas dessa fera

que sou por toda a mágoa insuportável

por todo o fel que eu retive preso

e que explodiu e que escorreu dos cantos

da minha boca, porta dos desejos,

trancada a sete frases nos meus prantos.

e, como por encanto, fui inteiro

soprado num poema derradeiro.

[ 1991 ]

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62

desencanto

o meu amor me encharcou de pranto

despiu-me o ser de todo o sentimento

sugou-me a alma e o contentamento

deixou-me pura dor e desencanto.

o meu amor foi livre como um canto

como as palavras ditas para o vento

como a alegria plena de um momento

que se desfaz na brisa, no entanto.

o meu amor doído foi num grito

levando a minha dor desesperada

que foi lançada embalde ao infinito

e se encontrou perdida e embaraçada.

e ao fim de tudo isso que foi dito

concluo que foi dito para nada.

[ 1993 ]

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63

meu corpo atende aos beijos não lançados

respondendo ao silêncio dos que choram,

meus braços se agitam e imploram

ao vácuo dos momentos desejados.

retenho o amargo pranto mal fadado

- as lágrimas são hastes que me escoram

soluços são os restos que em mim moram

do homem triste, frio e calejado.

pois se descalço trilho a via crucis

despojado de vestes e de crenças,

creio que um dia venha a renascença

do espírito de trevas que quer luzes.

meu corpo é um desencontro de vontades

que peca em esquecer a realidade.

[ 1994 ]

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canção para carlos anísio melhor

quantos livros fechados em tua estante

dantes abertos a te abrirem portas,

ressuscitando presenças já mortas

e te trazendo eterno todo instante.

quantas lágrimas que em cantos verteste

vertendo às nossas bocas murmurantes

palavras que diziam o que antes

se escondia por sob as nossas vestes.

ah, meu bardo, morreste, e contigo

morremos não em corpo mas em dor

(como a do corte do cordão-do-umbigo).

de novo estamos sós e com pudor.

cantos agônicos que pedem paz

ao Silêncio, onde o poeta jazz.

[ 1996 ]

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65

meus olhos debruçaram sobre a vida

a sede de saber o dom secreto,

poder vivê-la de modo completo,

e profundas mostraram-se as feridas.

meus olhos perguntaram se há vida

mais viva do que a deles a si mesmos

no espelho dos reflexos a esmo

onde as respostas nunca são ouvidas

de tão frias e prenhes de verdade.

e, como nos instantes de saudade,

meus olhos se fecharam como os lábios,

que já não mais perguntam, pois são sábios

e sabem que as respostas não existem.

fecharam, mas as lágrimas persistem.

[ 1991 ]

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66

calar de vez a dor

e de tantas histórias mal contadas

restou a nossa, poço de lamentos,

prantos, dores, murmúrios, sofrimentos

além de nossas mãos de todo atadas.

e de tantas feridas mal curadas

restam ainda as chagas, os tormentos

do espírito, vazios sentimentos

a derreter as mágoas congeladas.

calar de vez a dor que nos sustenta,

dilacerar a carne que nos grita

o frêmito e o tremor que em nós aumenta

a cada vez que a solidão nos fita,

nos enche de terror e não se aguenta

fingir, na própria dor, paz infinita.

[ 1991 ]

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67

desfiliação

só lágrimas sucedem a tua presença

e o teu olhar me deixa inconsolável,

o horror de ver-te é sempre insustentável

e és, em minha vida, dor imensa.

as múltiplas lacunas que deixaste

reduzem-me a tristeza e solitude

e o medo que me causas amiúde

é parte dessa vida que estragaste.

eu peço-te, por deus, segue tua vida,

que tenhas o meu nome esquecido,

não tragas pra essa alma enlouquecida

mais dor do que as que já me tens trazido

pois sei que a indiferença me é fingida

assim como o teu pânico, escondido.

[ 1991 ]

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68

mais um soneto inscrito na memória,

composto a duras penas, desgastado.

o mesmo velho tema aqui tratado

pra concluir que é finda a nossa história

e ao repetir palavras nestes versos

tais quais amor e dor prazer e drama

revivo o nosso pacto, a nossa trama

de sempre sermos unos e diversos.

e o laço se desfez pelo egoísmo,

me fez perder o fio da meada

de quem pensou viver de estoicismo

tendo na outra a alma acorrentada.

mais um soneto inscrito na memória

pra concluir que é finda a nossa história.

[ 1992 ]

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69

mulher de roxo

não me espanta a solidão da vida

nem me amedronta o tédio do normal

pois sei da angústia que te faz igual

a mim, da bofetada enfurecida

que levamos na trilha mal seguida

e tão marcada pela mão do mal

que nos fizemos, por não sermos tal

como devíamos: de fronte erguida

e peito aberto, irmãos e confiantes.

no entanto, somos desiguais, distantes

de nossos corações que nem sentimos.

por isso o tapa que a vida me deu

e a dor que todos nós nos repartimos

devolvo em dobro no semblante teu.

[ 1995 ]

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70

quantos sonetos eu te escreverei

até que a minha dor em si dilua

a chaga imensa, marca que foi tua,

e que me esqueça tudo quanto amei?

e ao lembrar que tanto suportei

quanto pude calar na alma nua,

toda a palavra amarga se insinua

nos lábios frios que por ti cerrei.

quando não mais serei crucificado

por ter me colocado lado a lado

de quem jamais esteve um só instante

estando sempre ausente, e esse é seu charme,

quem nunca imaginou em vir tocar-me

por saber-se incapaz e tão distante?

[ 1993 ]

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71

o bem que não é meu

“queria tanto saber porque seguro/ nas minhas

mãos o bem que não é meu”

(Florbela Espanca)

o bem que não é meu é um vale escuro

por que atravesso cego e tão sandeu.

mas sigo o meu caminho, inseguro,

se o atalho do refúgio se perdeu.

o bem que não é meu e que seguro

me fez acreditar – eu que era ateu –

que o coração que tinha já tão duro

frente ao seu coração amoleceu.

quem dera esse bem eu possuísse

- eu que almejava não ter nada alheio –

pra que minha alegria o mundo visse

e não vivesse todo esse enleio.

é justa a propriedade, se é que existe?

é certo eu ter de estar justo no meio?

[ 1995 ]

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72

marinha I

o que está do outro lado à espera?

o que não sou? o que não posso ser?

a realização de minhas quimeras?

a plenitude de meu bem querer?

será o mar limite da tristeza

que aqui me toma, imensa e onipotente?

será a brisa aviso de um presente

que se anuncia, cheio de beleza?

será que amor que tenho é correnteza

que vai desembocar no mar inquieto

a diluir-me o medo, essa represa

de me sentir mais seco que um deserto

à espera de um dilúvio de proezas

que vão acalentar meu peito aberto?

[ 1994 ]

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73

marinha II

seixos que se incrustraram nos meus olhos,

beijos que mal se deram nesse instante

da areia em minha boca, do ar distante

e o sal desse mar grande que ora colho

e o sol desse ar vagante que me escolho

e me entrego ao abraço da minguante,

lua regente da maré-vazante,

e assim me escorre a água que me molho.

perdido e só na mansidão da praia,

a noite, já inteira, me convence

da minha dor e faz com que eu caia

perguntando a quem meu peito pertence.

e um beijo quente e brusco ele me deu,

dizendo à noite: “esse peito é meu!”

[ 1994 ]

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40, Ingleses e Uns Sonetos Catados

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77

40

e eu que pensava que não chegaria

aos 30, já cheguei naquela idade

em que, quando descobrem quanto tenho,

me dizem algo do tipo: “Nossa, como

você está conservado, a pele boa,

não aparenta a idade que diz ter.”

nessas horas me sinto envaidecido,

chamo Narciso e mando ele pro quarto

ficar lá no cantinho da reflexão

e rio muito porque ninguém sabe

que minha receita de jovialidade

consiste de um artifício muito simples:

o tempo vai me deixando imaturo.

se é bom ou ruim, aí são outros 40.

[ 2013 ]

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inglês número dois

frente ao deus morto, eu me despeço dos homens:

não mais orar pros céus, não mais beijar a terra;

órfão de pai e mãe, os meus fantasmas somem

aliviando a dor que a minha alma berra.

por outro lado estou demais atordoado:

livre da ausência e afã que me trouxeram vivos

preso ao aquém de mim, vivo desacordado

que de tanto chorar só me restaram crivos

que o mundo em mim deixou com suas armadilhas;

esses crivos serão futuros desesperos

de ver os homens sós, vivendo como ilhas

cercadas de água e sal, fantasmas verdadeiros

por trás da pretensão de livrar-se da fé.

sinal dos tempos em que não se sabe o que se é.

[ 2013 ]

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inglês número quatro

minha fala me trai. e é nisso que reside

o meu silêncio, este eterno talvez,

este medo de mim e de que me olvide

quando a fala sair e enlouquecer de vez.

minha fala me esvai e é por isso que eu, preso,

me escondo de mim não mostrando quem sou

economizo a voz, com os olhos sempre acesos

para o que está ao redor do mundo em que estou

minha fala é um ai, é um mas, é um não,

é uma gota de sal numa língua sedenta,

é poesia demais, chiste e simulação

verborrágica e ruim, atordoada e lenta.

é uma lesma que vai sem pensar na chegada,

minha fala é um cais flutuando no nada.

[ 1994 ]

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inglês número cinco

jamais esquecerei o quanto esperou

o infante que partiu e muito tempo atrás

olhando para o céu e a tudo quanto amou.

esgotou-se-lhe a fé que não sustenta mais

o eterno amanhã que, tanto postergado

por seus pais e avós, gentis e tolerantes,

dizendo que um senhor muito velho e cansado

podia castigar os seus desconcertantes

traquejos pueris e as quinhentas mil questões

respondidas de má vontade e sem-gracice

(bem típico de avós que vemos nos sertões

de um tempo em que era mais possível ter velhice).

morto na infância foi esse menino triste

no dia em que atentou que deus só era um chiste.

[ 1994 ]

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inglês número sete

somos todos mortais, humanos repugnantes

desolados de si, faces que se renegam

em nome da altivez dos corpos que se entregam

em rituais de amor com golpes lancinantes.

somos bons animais orgulhosos da ciência

(religião atual, instituída e complexa

que tende a relegar a emoção anexa

ao gozo da razão e suas experiências).

oriundos do pó, aspiramos ao caos,

permutamos, febris, más palavras e guerras.

homo sapiens, será mesmo porque erras

que tanto te afastas de um animal?

talvez mais que errar nos dê a natureza

que no mais é amar nossa maior proeza.

[ 1994 ]

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inglês número oito

como te espero, amor, não imaginas quanto,

e há muito tempo estou somente à tua espera,

minha dor é um corpo nu e a sua voz, um manto,

que um dia há de cobrir minha doce quimera

que é de contigo estar sem medo de amanhã

dormir pra não acordar do pesadelo imenso

de não satisfazer o muito do afã

que é essa guerra em mim que ora perco ou venço

sem munição nem paz. ando de peito aberto

usando as próprias mãos, rasgando com os dentes

sombrios corações, que deixam descoberto

o mau, duro e senil escravo de uma mente

que firme se mantém às custas de um prazer

que é o de esperar alguém que sei que não vou ter.

[ 1994 ]

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83

inglês número dez

essa vermelhidão do pôr-do-sol me arde

a tez e o coração iguais no seu rubor

e esse pôr do sol me faz lembrar que é tarde

e que não posso mais viver o meu amor.

a minha solidão, precisa e necessária,

se manifesta em dor, se transfigura em luto,

transtorna a lucidez, a louca sedentária,

e finge dar a mim um ar mais sério e astuto.

é tarde, a noite vem e traz junto consigo

lamentos ancestrais que escondo nos poemas,

nos olhos glaciais, nos ombros dos amigos,

e ecoam no meu ser, servindo de algemas

para um homem vulgar de médio raciocínio

que a cada pôr-do-sol vê seu próprio declínio

[ 1994 ]

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84

inglês número onze

a noite e seus perigos me invocam

e me evocam momentos de menino

e como outrora o breus e o caos me tocam

gelando-me com seu sopro assassino.

mas, homem, não serei desafiado

em vão, rendendo a ela meu estertor,

finjo coragem e enfrento o caos velado

e vou rimando dor com a própria dor.

calado, sigo em frente em minha empresa

(gritando a alma, mas o corpo mudo),

busco no breu a lamparina acesa

que pra criança à noite era tudo.

e entrego o meu destino à própria sorte

- que sei que a noite é irmanada à morte.

[ 1994 ]

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inglês número treze

há montes de pessoas pela vida

roçando a nossa pele a todo instante:

piscam-te os olhos, deixam-te feridas,

te esbofeteiam, tornam-se amantes,

amigos e inimigos, não importa:

estarão lá, mas sempre de passagem,

e cada uma delas é uma porta

entre mil outras rotas de viagem.

o que há de aproveitável nessa horda

por nós só é sabido em tempo inábil

e esse afã de amarrá-los com uma corda

só perde aquele que se tornou sábio

e não se agarra mais ao que passou

porque aprendeu que é solitário o voo.

[ 1994 ]

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inglês número catorze

perdidas as palavras, o que resta

senão chorar por elas e calar-se,

destituir a alma de fenestras,

pontes, vales, desejos e disfarces.

perdidos os amigos, de que vale

o sentido das coisas, os percalços,

se não houver ninguém que nada fale;

melhor é se lançar a um cadafalso.

perdidos os amores, o que mais

de importante fica em nossas vidas?

arder no inferno em brasas pelos ais

que grito por ver tantas despedidas.

perdido tudo, inclusive deus,

saí aí no mundo atrás de um eu.

[ 1998 ]

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87

por um solo

a Cláudio Bernardo

o bailarino segue a sua vida

em movimentos mínimos, passando

por janelas, plateias e por palcos,

as marcas em seu corpo indefinido.

acordes são lançados aos ouvidos

como socos no estômago, ou álcool

em indivíduo abstêmio há muitos anos.

responde impaciente com batidas

e espasmos epilépticos – já não

se satisfaz com atitudes belas,

por tanto o jovem berra e se contorce –

não podendo cantar, o artista tosse e

cospe sangue no meio de uma tela,

seu único cenário (a solidão).

[ 2001 ]

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88

ofélia

como a morte se banhasse de flor

e eu era o vento e eu era a pluma

e eu era nada e tinha coisa alguma

senão a imensidão de minha dor

como a morte quis se sobrepor

e assim o fez, deixando imersa a alma,

lancei-me ao rio com enorme calma

e fui beber na morte o meu amor.

e sendo água e flor e morte eu amo

e calo a minha vida quando clamo

por meu amado – todo meu – agora.

ao meu redor flores ecoam risos

de insana donzela de olhos lisos

e todo o rio eu sou que enfim me chora.

[ 1998 ]

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89

refazenda: grande

não aquela dos meus sonhos

que não sonhava em menino.

sonhos que sonho que sonho

que não se põem por escrito.

nem aquela que doeu

e ainda dói de só ver

fora dela, mesmo que eu

dela nunca saia, há-de

vir a outra que não é

sendo assim no que faz mancha

no papel, som na superfície

e pode tudo, até

ser ela mesma, aqui, por

acaso, vamos supor

[ 2006 ]

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versos de preceito

talvez por ser um ateu que vê milagres,

minha não-fé balança

nas matas, sobre o rio ou vendo os mares,

há sempre um deus que dança.

de Oxóssi, Iansã, Ossain, Logun Edé

o toque me arrepia,

do corpo sou devoto e a minha fé,

pretexto pra poesia.

na barca para Oxum, eu pus uns versos,

com meu desejo nu:

“Para Iemanjá, meu coração aberto”,

“Um Laroyê pra Exu”,

“O mundo é grande e cabe neste mar”,

“Agô, Odò Iyá!”

[ 2013 ]

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IMPRENTA

Esta obra foi editada no Jardim Brasil, em

São Salvador da Bahia de Todos os Santos,

Bahia, Brasil, pela Editora Domínio Público,

em 2013.