quando o percurso torna se destino

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Quando o percurso torna-se des no surgiu da vontade de explorar novas paragens e, também, compartilhar com artistas locais experiências e situações durante percursos, fazendo uso das características físicas e geográficas de cada localidade escolhida, propondo uma interação com as formações e situações específicas da natureza e como essas influem no co diano dos moradores locais.O projeto foi composto por quatro ações que aconteceram em quatro diferentes regiões do Brasil: Grão-Mogol (MG), Urubici / Urussanga (SC), Petrolina (PE) / Juazeiro (BA) e Fortaleza(CE), eleitas por apresentar certas especi cidades físicas e geográficas fundamentais ao projeto, relacionadas aos quatro elementos da natureza - Terra: territórios cambiáveis (MG), Ar: experiência cinza (SC), Água: margem, história e resistência (PE) e Fogo: sol nascente e sol poente (CE). Para cada viagem, um artista residente no estado foi convidado para me acompanhar e, juntos, interagirmos com os locais selecionados. Respectivamente: Pablo Lobato (MG), Julia Amaral (SC), Traplev (PE e BA) e Yuri Firmeza, Galciani Neves e Cecília Bedê (CE).Encontros e caminhos percorridos foram partes essenciais do projeto, pois os caminhos traçados eram determinados pelas conversas durante os percursos. Assim, as possibilidades eram imensas, explorando os elementos da natureza e as relações que se estabelecem com os habitantes dessas regiões, permitindo que as vivências fossem intensas e significativas.

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  • QUANDO O PERCURSO TORNA-SE DESTINO

    Fbio Tremonte

  • QUANDO O PERCURSO TORNA-SE DESTINO

  • Projeto contemplado pelo Programa Edital Rede Nacional Funarte Artes Visuais - 10 edioRealizado no primeiro semestre de 2014

  • Digo: o real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a gente no meio da travessia. Joo Guimares Rosa

  • Quando o percurso torna-se destino surgiu da vontade de explorar novas paragens e, tambm, compartilhar com artistas locais

    experincias e situaes durante percursos, fazendo uso das caractersticas fsicas e geogrficas de cada localidade escolhida, propondo

    uma interao com as formaes e situaes especficas da natureza e como essas influem no cotidiano dos moradores locais.

    O projeto foi composto por quatro aes que aconteceram em quatro diferentes regies do Brasil: Gro-Mogol (MG), Urubici / Urussanga

    (SC), Petrolina (PE) / Juazeiro (BA) e Fortaleza(CE), eleitas por apresentar certas especificidades fsicas e geogrficas fundamentais ao

    projeto, relacionadas aos quatro elementos da natureza - Terra: territrios cambiveis (MG), Ar: experincia cinza (SC), gua: margem,

    histria e resistncia (PE) e Fogo: sol nascente e sol poente (CE). Para cada viagem, um artista residente no estado foi convidado para me

    acompanhar e, juntos, interagirmos com os locais selecionados. Respectivamente: Pablo Lobato (MG), Julia Amaral (SC), Traplev (PE e

    BA) e Yuri Firmeza, Galciani Neves e Ceclia Bed (CE).

    Encontros e caminhos percorridos foram partes essenciais do projeto, pois os caminhos traados eram determinados pelas conversas

    durante os percursos. Assim, as possibilidades eram imensas, explorando os elementos da natureza e as relaes que se estabelecem

    com os habitantes dessas regies, permitindo que as vivncias fossem intensas e significativas.

  • Gro Mogol | MG

    Terra: territrios cambiveis

  • Urubici e Urussanga | SC

    Ar: experincia cinza

  • Petrolina | PE e Juazeiro | BA

    gua: margem, histria e resistncia

  • Fortaleza | CE

    Fogo: sol nascente e sol poente

  • No meio do Sol quente

    Em poucos lugares h um Sol to inclemente como no Cear. Tanto que falar dessa terra inevitavelmente tambm

    narrar a relao de sua gente com o Sol. E isso, em muito, requer adentrar um vocabulrio inventado pela experincia

    rdua de se viver sob aquele cu to claro e ofuscante. Um dia bonito, por exemplo, cinza, chuvoso, cheio de nuvens

    e bonito de chuva, diria um sertanejo. A me que cuida do filho brada: tira o p do Sol quente. Se fulano cansou

    de esperar, certeza que ficou plantado no mi do Sol. E morada boa virada para o nascente, pois no bate o

    Sol quente do meio-dia pra tarde. No Cear, no se aplaude o Sol, a no ser quando o astro visto sendo engolido

    triunfalmente pelo mar. O Sol merece vaia, um aoite de vaias, com a peculiaridade do grito voclico e grave que s

    o cearense sabe dar*.

    Em 1942, na Praa do Ferreira, centro de Fortaleza, um reprter que caminhava pelas caladas molhadas, situao

    rara na cidade, assistiu muitos passantes largando seus caminhos e aglomerando-se: Olhando para o alto e

    apontando, comearam uma demonstrao estrondosa, vaiando o astro vencido e apagado, naquele momento, num

    grito unssono de vrias bcas. Mas afinal o velho Rei das alturas venceu, botando todo corpo vermelho para fora das

    nuvens e dispersando os vaiadores (Jornal O povo, 12/01/1942). Muitos contam que finalmente chovia h dois ou

    trs dias, depois de uma intensa estiagem. E no podia mesmo ser hora menos oportuna para o Sol dar o ar de sua

    (des) graa.

    Arrisco pensar que quem vive no Cear (ou mesmo quem sai de l) tem a testa franzida e um olho apertado, tentando

    fisgar algo que paira por sob as nuvens ralinhas que sobram de pouco em pouco. Tambm mantm o hbito de andar

    pela sombra, de procurar um arbusto ou um poste, que seja, para desafogar o cansao que o Sol d e pede para deixar

    tudo para amanh. Ainda assim, tal como Jos de Alencar, um filho ausente, como o prprio se define no prlogo

    de Iracema, o cearense, quando migra, sofre de um banzo. E, por vezes, amofina (em nosso bom portugus), pois

  • carrega uma espcie de ambiguidade climtica: vive a reclamar do frio enquanto sente falta do Sol spero que s

    brilha assim no Cear.

    Galciani Neves

    So Paulo, Inverno de 2014

    __________________________________________________________________________________

    *Voc, leitor, tente entoar uma sequncia de iiiiiiii, seguida por eeeeeee e novamente iiii, esta ltima mais curta.

    Tal sequncia recebe um tom grave medida que pronunciada. Tal descrio aproxima-se da vaia do cearense.

  • O livro de Fbio Tremonte no o ponto de partida, nem de chegada, tampouco o meio da travessia. O livro de Fbio Tremonte o ponto

    de partida, mas tambm de chegada e o meio da travessia.

    O texto breve, descritivo, nomeia os artistas com os quais realizou simultaneamente ou no suas viagens e em que ms elas ocorreram.

    Nada nos contado sobre o que aconteceu durante tais trajetos ou qual foi exatamente o itinerrio adotado. No sabemos se

    encontraram outras pessoa pelo caminho e qual foi a relao estabelecida entre elas. Apresenta-nos a escolha das quatro localidades

    a serem percorridas segundo critrios relacionados s suas caractersticas naturais, por elementos da natureza (fogo, terra, ar e gua).

    Segue-se a esse pequeno texto de Tremonte, que mais se assemelha a uma legenda, quatro captulos formados por fotografias tomadas

    durante as viagens-encontro que o artista realizou (a exceo o ltimo captulo em que foram includos dois textos). Em cada uma das

    quatro sries de imagens vemos os elementos fogo, terra, ar e gua no em estado bruto, mas em frico com a cultura, com a

    histria, enfim, com o homem.

    ***1No primeiro dos captulos, Terra: territrios cambiveis, vemos imagens de empilhamentos de pedras e o cmbio de pequenas pores

    de solos. Esses pequenos gestos tem a fora de alterar, potencialmente, a leitura do nosso presente/passado no futuro. Suponho que

    essas pequenas construes foram deixadas prpria sorte podendo, quem sabe, sobreviver atravs do contato inesperado com algum

    elemento, como uma resina por exemplo, ou graas ao de algum fenmeno capaz de encapsular por longo perodo algumas dessas

    construes, conservando-as, talvez, por milnios. Devaneio: o que os arquelogos do futuro poderiam ler nesses empilhamentos

    e cmbios de solos? A que tipo de prtica, sociedade, representao poderiam vincul-las? Poderiam vincular uma a outra (os

    empilhamentos ao cmbio de solos)? Creio que sempre haveria a ausncia de um dado, de uma evidncia inequvoca que pudesse

    confirmar esta ou aquela hiptese.

    2No captulo chamado Ar: experincia cinza, as imagens se adensam e tornam complexa a relao entre a ao do artista, o rastro e a

    histria. como um enxergar por debaixo da venda sobre os olhos. Nele somos confrontados com um passeio feito por entre a neblina

    que recobre mais ou menos a paisagem conforme o trecho. No conseguimos distinguir detalhes na maior parte das fotografias, mas

  • podemos perceber a terra revirada, a placa que adverte sobre a interdio de entrada numa rea militar, o abismo, uma pedra

    desmoronada, as estradas ngremes, os penhascos e as trs vistas de um terreno plano, coberto por capim, onde se encontra o que

    sobrou da estrutura de um antigo ou nunca acabado painel publicitrio.

    Por fim, nas trs ltimas imagens que compem o captulo, a experincia cinza j no se d mais pela atmosfera que paira turvando a

    viso, mas pelo terreno pedregoso e gris que se planteou sob os nossos ps, que estala ao caminharmos sobre ele fazendo ecoar o som

    do onde-no-h-mais-vida. Ao redor desse campo devastado, v-se um trecho de mata que no sabemos ao certo se est a crescer para

    tomar de volta o terreno inspito ou se, ao contrrio, o ermo que est a expandir seu domnio rumo aniquilao da vida que resta.

    No importa, de qualquer modo, a ltima fotografia do captulo no deixa dvida: trata-se de uma imagem da resistncia, uma rvore

    jovem (ou arbusto) que apesar das condies adversas, verdeja. A matria inerte do cadver convertida em substrato para que a vida

    floresa. plausvel que essa sequncia de imagens esteja a nos remeter brutalidade da represso militar policial dos anos de chumbo

    no Brasil e que, lamentavelmente continua ainda a assombrar os setores mais desfavorecidos de certas sociedades contemporneas.

    Esse o captulo destinado ao ar ao que evapora, ao que turva a vista, mas que no se deixa capturar, que evapora, que invisvel e

    quando visvel tudo arrasa ou cega.

    3 O terceiro e penltimo captulo composto por fotografias feitas em Juazeiro e Petrolina, cada uma situada em uma das margens do So

    Francisco. Nas imagens vemos pequenas embarcaes atracadas e alguns tipos de barreiras (muros, engradados empilhados como se

    fossem uma pequena parede, o topo de um muro que contm e separa o rio da terra). Nunca vemos nenhum barco ou bote deriva nas

    imagens de Tremonte, os barcos nunca cumprem sua promessa de lugar sem lugar ou de terceira margem do rio. H um barco que parece

    ter sido h muito esquecido por um mundo em que os corsrios foram substitudos pelas polcias ou onde os sonhos se esgotaram.

    Por outro lado, os muros que aparecem tambm no cumprem integralmente sua funo de bloqueio, interdio, separao. Sobre

    o primeiro muro que aparece, vemos o retrato de uma jovem, que exibe um lindo sorriso e cabelos longos, se sobrepor a uma escrita

    carcomida, anunciando qualquer coisa como o reparo de foges. Ao lado da foto, a divulgao de um espetculo circense. No muro, a

  • foto da moa um escape, no tem nome, legenda; esse rosto parece no estar a servio de nada. Ser que parte do que contextualizava

    essa foto se perdeu ou ser que desde que foi colada no muro era assim mesmo, um rosto, uma fuga?

    A foto seguinte apresenta um bloqueio, talvez temporrio, mas por quanto tempo? Os painis metlicos esto l para proteger a casa

    abandonada de possveis invasores ou para proteger os invasores inadvertidos dos riscos iminentes que a casa arruinada pode oferecer?

    Seja como for, os painis parecem estar, eles mesmos, rotos; quase no so mais uma advertncia, quase no so mais um bloqueio,

    resta to somente o bloqueio ao olhar, o mesmo da outra foto na qual vemos a promessa de uma escada desaguar no deck de um rio ou

    na possibilidade do salto. No entanto, a imagem seguinte nos faz duvidar, talvez o salto nos conduzisse terra firme, talvez seja preciso

    andar mais. Talvez, a presena da escada seja mais provvel do que a do rio bem ali debaixo, caudaloso, para amortecer a queda. Mais

    provvel ainda do que a escada de fato a margem do rio, na qual est atracado o barco abandonado, inerte, que o salto do menino faz

    de novo navegar.

    4No ltimo captulo Fogo: o sol nascente e o sol poente, fotografias feitas a partir de uma cmera diretamente apontada para o Sol faz

    todo o entorno converter-se numa zona de sombra, o cu diurno transfigurado num cinza fundo. A intensidade da luz solar produziu uma

    atmosfera fria ao seu redor e assim, as fotografias do sol cearense contrariaram a expectativa daquele sol inclemente do qual fala o texto

    de Galciane Neves escrito especialmente para o trabalho; o mesmo sol vaiado anos atrs segundo relata uma antiga matria de jornal.

    Sol, que entre um texto e outro, teve tempo suficiente para maltratar a pele de muita gente, cearense ou no; Sol que durante esse

    tempo no teve tempo de mudar porque seu tempo outro, imemorial. O Sol, em Onde o percurso torna-se destino, deixou de boiar no

    inalcanvel que todo azul e paira num tempo histrico em que as distncias no so mais as mesmas de antes, embora os metros e os

    quilmetros ainda sejam. Ser que vista desse cu gris, a terra tambm cinza? O cinza no mesmo cor em si, ele pertence s cinzas,

    aos cabelos dos que tem a sorte de envelhecer, do chumbo, do cimento, das cidades destrudas, da bruma, da pedra.

    ***Reunidas num nico tomo, essas imagens podero ser um dia a chave para aqueles arquelogos do futuro esboarem alguma compreenso

    sobre os pequenos empilhamentos de pedras e o cmbio de solos. Servem, no presente, para lembrar aos que as menosprezam o poder

    das imagens sua habilidade de guardar sentidos cifrados. A imagem, por mais objetivas e fiis ao real que paream, guardam uma

  • obliquidade que lhe prpria e por isso so capazes de fazer sobreviver, ainda que subterraneamente, aquilo que os discursos da histria,

    do poder e, hoje, da imprensa renegam, ocultam e rejeitam em modulaes que variam entre atos deliberados e aqueles incorporados

    de forma inconsciente, automtica, embora estes ltimos no sejam menos nefastos que os primeiros.

    Emblematicamente o Tar, cuja origem incerta, possui quatro naipes (basto, espadas, copas e ouros) que correspondem, segundo

    certas simbologias, aos quatro elementos: fogo, terra, ar e gua. Segundo estudiosos, antes de ser usado como orculo, provavelmente

    esse baralho foi criado para salvaguardar algum tipo de conhecimento secreto de possveis perseguies ou mesmo da aniquilao.

    Foi a forma encontrada, num determinado presente, para que esse conhecimento pudesse passar a tempos vindouros e se manter. Mas

    o Tar um cdigo cifrado com mltiplas entradas e simbologias oriundas de diversas culturas, egpcia, crist medieval, cabala, etc.

    Disso advm tanto a dificuldade em determinar qual seria de fato sua origem e propsito, quanto a fora de sua sobrevivncia atravs de

    sculos, de mo em mo, de boca em boca, cultura em cultura, gerao em gerao.

    Analogamente, o livro Quando o percurso torna-se destino de Fbio Tremonte coloca-se nesse ponto cego, onde se cruzam mltiplas

    veredas que se bifurcam, cria um labirinto de smbolos: crculos de diferentes cores de solos, circunscritos por solos de tonalidades que

    lhe so contrastantes, as pequenas torres de pedras, o solo devastado (ceifado?), barco, sol, escada, abismo, muro, gua, terra, neblina.

    Imagens que aparecem aqui e acol que nos impedem de rastrear sua origem e inteno. Impreciso necessria ao pensamento,

    possibilidade de inveno, de leitura, de construo, ao que se ala para o que nele no est explicitamente, mas como sombra, rastro,

    pistas espalhadas por um lugar onde ainda possvel a deriva, os piratas e os labirintos.

    Lais Myrrha

    So Paulo, Primavera de 2014

  • Crditos das imagens

    Fbio Tremonte [Solos: territrios cambiveis, Ar: experincia cinza, gua: margem, histria e resistncia]

    Ceclia Bed [Fogo: sol nascente e poente]