quando chegar a primavera

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  • Anlise Psicolgica (1989), 1-2-3 (VII): 287-304

    Quando Chegar a Primavera (*)

    MASUD KHAN

    Nada havia de invulgar na minha visita a D. W. Winnicott nesta manh de domingo, pelas 10 horas, em Novembro de 1969. Aps o meu passeio a cavalo dirigia-me directa- mente para casa de DWW todas as manhs de domingo, desde h dois anos, ali perma- necendo duas horas ou mais, conforme aquilo que de mim queria. Nunca fiquei para almoar. A sade e o vigor fsico de DWW tinham enfraquecido muito nestes anos. Era seu desejo que eu o ajudasse a que o seu livro Playing and Reality)) ficasse escrito e pronto a ser publicado. Era para mim um prazer ajudar DWW. Ele entregar- -me-ia textos batidos a mquina ou histrias clnicas e trabalhariamos este material at que ficasse com a dimenso e a forma pr- prias para publicao. Era nestes encontros

    que mais aprendia com DWW. Ele falava livremente e sobre vrios assuntos, dificil- mente se cingindo por muito tempo ao texto escrito. Frequentemente caa num silncio sonolento, quase ressonando. Estes momen- tos permitiam-me ler o texto escrito ou repensar no que me tinha dito. Em breve se recompunha e comeava outra vez a falar. O mais engraado que, por vezes ao emer- gir para o estado consciente, DWW cen- surava-me carinhosamente: Sabe, Khan, [tratava-me sempre pelo apelido] quase sonhei. Mas no consegui porque a sua presena aqui se interps no caminho do sonho)). Eu ouvia DWW com um estado de esprito indulgente, provocava-o e pros- seguiamos com o trabalho. DWW traba- lhava sobre os seus textos como uma criana

    (*) Quando convidei Masud Khan a juntar-se a ns neste ciclo de conferncias em comemorao dos 25 anos de vida activa do ISPA, a resposta foi imediatamente positiva.

    Enviou-me duas propostas, e sugeri-lhe que falasse do Caso Veroniquen. Infelizmente, o seu estado de sade agravou-se, e ele no pde estar presente, tendo a sua conferncia sido lida na sua ausncia.

    Esta conferncia, que foi apresentada pela primeira vez no ISPA, veio a ser publicada um ano depois no ltimo livro de Khan,

  • como uma criana ebuliente, instvel, de nove anos. Frequentemente dizia em ar de desafio: nido me aconteceu quando eu tinha nove anos. Nunca envelheci em esp- rito ou estilo desde a. Aquilo que todos ns, os que trabalhmos intimamente com DWW nos ltimos anos da sua vida, mais nele aprecivamos era a sua irrepreensvel frescura de pensamento criativo e de capa- cidade clnica. Ainda continuava a ver doen- tes, embora apenas para pareceres, crianas e adultos. A maioria destes eram psicanalis- tas de todo o mundo, com reputaes firma- das, que procuravam o auxlio de DWW, que conheciam por terem lido os seus escritos. Todos tinham efectuado longas anlises pes- soais por uma de duas razes: ou por treino ou por sofrimento. DWW discutia apenas os casos que eu podia auxiliar a escrever, ou em narrativa clnica ou por forma a que ele os pudesse organizar em pensamento. Que eu saiba, DWW nunca escreveu aquilo que se pudesse classificar de escrito puramente te- rico. Comeava sempre com um trabalho clnico recente e, a partir da, partia a teo- rizar. A razo para a ausncia ou escassez de material clnico nos seus escritos como, por exemplo, no cThe use of an object)) (1969), reside no cuidado de DWW em man- ter o anonimato dos seus clientes, mesmo de crianas de cinco anos, e no citar o mate- rial clnico que o levara a uma noo terica especfica. Nunca o incitei a incluir dados clnicos, pois eu sabia que isso o perturba- ria de tal forma que se fecharia em si pr- prio e deixaria de escrever.

    Esta manh encontrei DWW em estado de excitao. Mal tinha acabado de tirar a capa de montar e de me sentar para tomar uma chvena de ch que ele prprio preparava, no pequeno gabinete da secretria onde sem- pre trabalhvamos em conjunto e onde podamos manter a nossa privacidade, quase pressenti que DWW me a fazer algum pedido inesperado. Dar-me uma nova tarefa! Pouco foi dito especificamente entre ns. Conheciamo-nos desde h duas dcadas, tra-

    balhando em grande proximidade, mantendo ao mesmo tempo, as nossas distncias. Nunca fiz parte da sua vida familiar ou social, nem ele da minha.

    DWW sentou-se, voltou-se e encaixou a face entre as mos, como era seu estilo e comeou com: Sabe, Khan, vi esta jovem, Veronique, na consulta de ontem. Tem treze anos. Recusa-se a comer ou a ir a escola por- que, diz, tornou-se ((ridiculamente magra)) ( a frase dela, Khan). Disse ao mdico dela e aos pais, que eu no podia tratar a filha mas que a observaria em consulta e a aju- daria a encontrar o tipo de auxlio certo)). Eu notara a utilizao, por DWW, da frase O tipo de auxlio certo)) em vez de trata- mento)). Sempre escrevinhava ((apontamen- tos quando tnhamos estas conversas; DWW no as levava muito a srio pois que era a sua forma de descarregar o seu carre- gamento de pensamentos, como eu lhe cha- mava, Este ((partilham de experincias clnicas era bastante terico por parte de DWW. Prosseguiu: (Veronique uma rapa- riga muito [deu grande nfase a esta pala- vra] intelectual. Fala ingls e francs fluentemente)). InterpuzxCom esse nome, DWW, ela de qualquer forma francesa, no?)). Sim, a me francesa, mas isso no importante)). Sorri e deixei-o prosseguir: Bom, eu no sabia, porque no mo disse- ram, que ela me procurava vinda de uma Clnica particular. H dois meses que est l internada por recusa em alimentar-se e em ir a escola)). Notei, novamente, que DWW evitava o recurso ao calo psiquitrico ou mdico. Prosseguiu: bastante bonita. Monta a cavalo. Isso vai torna-los amigos, Khan)). Sabia, agora, que DWW decidira que eu devia cuidar da rapariga. Continuei a ouvir: Sabe, ela no est verdadeirumente doente. Ela no est verdadeiramente a recusar nada: alimentao, estudos ou sexo. Podia, com facilidade, ter descoberto du- rante a consulta o que ela estava a recusar e porqu, mas decidi no o fazer e deix-lo descobrir isso com o auxlio dela. Sim, vai

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  • gostar dela, Khan. uma aristocrata. Uma filha nica. O pai adora-a. A me tem muito orgulho nas suas realizaes como estudante e como promissora cavaleira. Quase a sua infncia, Khan. Sim, Khan, a nica ambi- o de Veronique treinar para representar a Gr-Bretanha nos Jogos Olmpicos. [Como voc DWW, devia ter representado a Gr-Bretanha em 1914, mas a primeira Guerra Mundial impediu-o]. Pensei, pois, imediatamente em si, prosseguiu. Claro que h alguns jovens analistas, com quali- ficaes mdicas, que seriam talvez mais apropriados para conduzir a situao dela. Mas ela fala, quando se descontrai, em ingls e francs, indiferentemente, como seu hbito em casa; fala de cavalos e de con- cursos de saltos com um zelo voraz [notei que DWW usara o adjectivo voraz]; e, com os diabos, ela uma intelectual. A prop- sito, quem essa Simone de Beauvoir, em Paris? Escreveu bastante sobre as mulheres e o sexo. Como voc l tudo, certamente tambm leu a obra dela. Deixei passar a piada de DWW. Sabia que ele estava ener- vado por duas razes: a rapariga era uma proposta profissional invulgar e ele no estava certo de que eu a recebesse. A Clnica particular era a umas vinte milhas de Lon- dres e eu teria que l me deslocar. DWW prosseguiu, aps um curto ((desapareci- mento)) em si prprio: Ah sim, Khan, eu prometi que ihes telefonaria hoje, para a Cl- nica, para lhes dizer o que voc decidiu. Posso dizer-lhes que j falmos sobre o assunto e que voc vai l e a ver, por volta da hora do almoo? No seu carro pode, facilmente, chegar l em menos de uma hora, especialmente num domingo. Clinica- mente, o importante ver a Veronique quando ela recusa a alimentao)). Quer dizer, DWW, corno que ela o faz?. Sim! Sim!! Mas, por amor de Deus, Khan, no seja demasiado esperto com a Veronique, ou nunca descobrir o que a leva a no comer ou a no ir a escola)). Como queira, DWWD. S com esta minha concordncia

    DWW pegou no telefone e combinou que eu visitaria Veronique nesse mesmo dia, por volta da hora do almoo. Pouco passava das 11 horas. DWW acompanhou-me ao carro. Como despedida disse-me, com a sua habi- tual ironia: Oh Khan, v vestido assim mesmo. As suas botas de montar e o pinga- lim faro com que Veronique tenha mais confiana em si do que tudo aquilo que possa dizer. Boa sorte, Khan)). E assim parti para me encontrar com Veronique.

    Conduzia de forma a chegar a Clnica a hora do almoo. Todo o ambiente tinha uma atmosfera agradvel. O edifcio era de um estilo rstico, victoriano, com relvados cui- dados e canteiros de flores por todo o lado. No incio do caminho estreito reparara num cartaz que dizia: Por favor conduza devagar - Cavalos e cavaleiros. A me, ou o mdico, escolhera um lugar agradvel para Veronique; sabia que no tinha sido esco- lhido por Winnicott. Fui recebido pelo dono/director, um escocs afvel de cabelo grisalho. Pediu a uma senhora, rotunda, com os seus quarenta anos, que me levasse junto de Veronique Era bastante faladora. uma rapariga to encantadora. D-se bem com todos. Se aquela velha querida comesse)). No pude deixar de sorrir com a incon- gruncia de chamar a Veronique (velha que- rida. Como no perguntara como me devia apresentar, no lhe disse o meu nome. Dirigiu-se de imediato a Veronique, que estava sentada a ler, no que me parecia ser uma sala de estar muito espaosa. Veronique levantou-se. Era muito magra, alta, ruiva, com olhos verdes suaves e uma face plida, muito plida. Apresentei-me: Sou Masud Khan. Eu sei, Sir. [replicou com voz fria]. O Dr. Winnicott falou-me de si. Comeou a andar na direco da porta. Virando-se para mim, disse com um sorriso apagado: Escolhi um quarto no segundo andar. A comida servida no meu quarto. No como com os outros visitantes)). Tentando marcar a minha presena disse, como que por acaso:

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  • Ah, no come apenas consigo prpria. Olhou para mim com ar intrigado. Passmos por outros visitantes de diversas idades. Sentia-me estranho com as botas, os cales de montar e um sweater branco de gola alta. Subir as escadas tirara o flego a Veronique. Ao entrarmos no seu quarto, os meus olhos captaram a presena de um pingalim de senhora. Tinha um punho de prata. O quarto estava recheado de mobilirio em cores pastel. Nada cheio. Gosto disto aqui. [disse Veronique]. Em casa ocupo o sto. Gosto de olhar para os relvados)). Entrou uma mulher jovem que perguntou a Veroni- que se queria que lhe servisse de imediato o almoo. Sim, por favor)), disse quase que com entusiasmo. Comecei a pensar se no teria j recuperado a sua capacidade de comer. Com a refeio veio uma mdica jovem. A criada disps a refeio na mesa. A mdica dirigiu-se-me: o dr. Khan?)). Por favor, doutor no. S Khan. No sou mdico)). Teve uma apagada exclamao ininteligvel, deslocou-se para perto de Vero- nique e destapou a travessa. Pausa. (Vai comer o seu almoo?. No, obrigada, respondeu Veronique, educada mas firme- mente. A mdica tapou a travessa e deslizou para fora do quarto, para regressar acompa- nhada por um mdico de meia idade. Ao aproximarem-se da porta podiamos ouvi-la dizer: No, s tomou meia chvena de ch ao pequeno almoo)). O mdico dirigiu-se a Veronique dizendo-me Ol quando passou por mim. Destapou a travessa. Coma um pouco, Veronique. O que que gostaria de comer?)), perguntou apontando os diversos alimentos. Nada, muito obrigada)). Sabe que a sua me vai ficar muito perturbada quando chegar esta tarde e souber que tor- nou a no comer?)). Pode ser que coma um bocado com o Pap a hora do ch. O Pap vem, no vem?)). Sim, vem, respondeu o mdico bastante bruscamente.

    Mais umas insistncias e recusas aps o que ambos os mdicos se retiraram. A criada veio levantar a mesa. Veronique disse-lhe:

    ((Espere um pouco, por favor)). Olhando-me, perguntou: Quer comer alguma coisa, Sir?)). No, obrigado Veronique. Comi no caminho. Gostaria de uma chvena de ch. Aqui ou no jardim? Est bastante ventoso l fora, por isso, vamos tom-lo aqui)). Deli- beradamente dissera vamos. Veronique disse a criada: Um bule de ch, leite, a- car e duas chvenas, por favor)). Sentei-me na nica cadeira confortvel da sala e per- guntei: ((Importa-se que eu fume cachimbo, Veronique?)). De forma nenhuma, Sir. O Pap est sempre a fumar cachimbo, e, a mam fuma cigarros franceses uns atrs dos outros. Eu observava veladamente Veroni- que. A criada voltou com a bandeja do ch, que colocou na mesa. tudo por agora. Tornaremos a cham-la. Obrigada)). Tratou a criada pelo nome, mas esqueci-me dele. Veronique tirou a minha chvena da ban- deja, colocou-a na mesa, deitou-lhe leite e depois perguntou-me: Quer o seu ch fraco ou forte?. Forte e com quatro cubos de acar, por favor)). Veronique sorriu deiicio- samente, deitou o ch e passou-me a ch- vena. Notei que afastara a cadeira da mesa e que se sentara. No ia, pois, tomar nenhum ch. No lhe ia falar no assunto. Seguiu-se um silncio estranho. Ento, Vero- nique perguntou: Vai fazer-me muitas per- guntas?)). No, de forma nenhuma Veronique. Vim c, para que nos pudessemos conhecer. Partirei cedo, pois vou tomar ch com uns amigos as quatro horas)). E claro, a sua mulher deve estar A sua espera. pena ter vindo aqui A hora do almoo)). No! No foi maada nenhuma, Veronique. A minha mulher est em Paris e volta hoje a noite)). Outro silncio vazio. O pingalim cap- tou outra vez a minha ateno. No pode andar a cavalo no seu estado actual)). No, no mo permitem. O Dr. X diz que estou demasiado fraca)). Nervosamente fez uma pausa. Quando pensa que volta a comer?. ((Quando chegar a Primavera! Ainda est longe. Tenho sempre mais apetite na Prima- vera, acrescentou ela. Nunca me alimentei

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  • bem no Inverno. S que desta vez foi pior)). Eu deixara Veronique conduzir a conversa como lhe apetecera. Disse-me que quase se tinha afogado, quando o seu gasolina se vol- tara na Sardenha, durante as frias. Acon- tecera apenas h escassos meses, no princpio de Setembro. O Pap quase desmaiou quando me trouxe para casa. A mam estava furiosa quando me viu to confortavelmente embrulhada e a conversar com o pessoal que me tirou de l)). Veronique falava criptica- mente. Deixou cair o assunto e caminhou para a janela. Virou-se: (%m a certeza, Sir, que no quer fazer quaisquer perguntas?)). Sim, estou certo Veronique)). Mais ch?)). No, obrigado)). Reparara no esboo, em aguarela, de uma cabea de homem, ligeira- mente inclinada. Levantei-me e endireitei-a. Oh, fui eu que fiz esse desenho do Pap, no Vero passado, na Sardenha. Disse-lhe que quase me afogara ali em Setembro pas- sado. O &p ainda no recuperou. Ter pena que no fique para o ch. O Pap conhece-o. A mam conheceu a Mme Beno- zova danar a Giselle. Fomos aos camarins. Vi-o l)). Era verdade que conhecera o pai. Era uma figura importante dos crculos poli- ticos. Pensei para mim mesmo: certamente o DWW devia saber que, de uma forma ou doutra, toda a famlia me conhecera de uma forma ou doutra. Retivera aquela ((informa- o, talvez receando que eu recusasse ver Veronique. De facto, ao regressar a casa, des- cobri que DWW desconhecia tudo isto e muitas outras coisas. Veronique falou com prazer, sem vergonhas, sobre vrias coisas. Da escola. Tinha saudades das aulas de grego. E das aulas de equitao. Aqui s posso pintar. O Dr. X (o dono/director) no aprova muita leitura durante o dia. Gosta que passeemos pelo jardim. Que joguemos croquet. Ele prprio muito bom nesse jogo. Ainda c no o joguei. Sinto-me fraca, mesmo aps um pequenino exerccio. De momento estou muito fraca)). Pergunto-lhe de repente: ((Certamente que, at ao momento, no desmaiou? uma jovem bas-

    tante determinada para permitir que tal suceda)). No. No desmaiei at ao mo- mento. Muitas vezes quase que desmaiei. At os homens valentes desmaiam. O Papa quase desmaiou quando me viu na maca. E foi condecorado com a D. S. O., como oficial de comando, na ltima guerra)). Sim, o seu pai uma pessoa invulgar. Ainda se dedica ao steepiechasing? No, j no. Teve um ligeiro ataque de corao no ltimo Vero. Em Junho, para ser mais precisa. Essa foi a razo pela qual eu estava a nadar s com duas amigas da escola quando o barco se virou. Sou muito m nadadora. O Pap sem- pre fora comigo)). No uma coisa bas- tante excessiva para se fazer, Veronique, s por uma falta de companhia?)). Veronique olhou atentamente para mim. Levantou-se para ir buscar qualquer coisa. Eu levantei- -me tambm. (Vai-se embora?)). Sim, Vero- nique. Voltar?. No posso dizer-lhe. Depender do Dr. Winnicott. Devo falar com ele hoje, mas j tarde. Deverei telefo- nar para si amanh.

    A Veronique acompanhou-me em silncio at ao carro. Agradeci ao Dr. X, que encon- trei a sada. Ao entrar no carro, a Veronique perguntou-me: ((Quanto tempo julga que me vo manter aqui?)). At a Primavera, cal- culo eu, Veronique)). E parti. Podia ver a sua figura frgil, alta, envolvida num vestido verde claro, agitado pelo vento, de p, parada. Ao virar para o caminho, Veronique desapareceu no retrovisor. Todo o encontro tinha um ar estranho, frgil, triste. A volta toda a paisagem estava prisioneira das cores ocres do Inverno.

    Decido no pensar mais na Veronique at falar mais tarde com DWW.

    Tinha sido um dia agradavelmente cheio de acontecimentos que no tinham apresen- tado quaisquer problemas especiais. A Vero- nique tinha sido o mais acomodativa pos- svel comigo e, de igual modo, eu no fora insistente com ela. Sublinhara algumas observaes para mim prprio e chegara

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  • apenas a duas (concluses)). Comecei a sentir-me nervoso a medida que se aproxima- va o momento de visitar DWW e relatar-lhe a minha visita i clnica e o meu encontro com Veronique. Se bem que nunca mo dis- sesse pessoalmente eu sabia, por outros, quanto DWW esperava por mim. Ele era, em muitos aspectos, a menos exigente das pes- soas o que tornava as suas exigncias, no verbalizadas e no explcitas, altamente cobradoras. Era intil preparar os nossos textos para DWW j que ele tinha o condo de nos desarmar com alguma pergunta ing- nua, quase idiota. Por isso decidi chegar chez DWW sem ter ensaiado. Eram 19 horas. A porta foi aberta pela sua irm. Nada de alarmante nisso. Mrs. Winnicott nunca me abria a porta. Disseram-me: Faa o favor de subir. O Donald esta a sua espera)). DWW recebia-me l em cima)) (como ns dizamos) apenas quando estava ((indis- posto)): o nosso eufemismo por um ataque de angina do corao, que o incapacitara por vrios dias. A porta do seu quarto estava aberta. DWW estava deitado na cama, con- fortavelmente enrolado na roupa e com o fogo de gs sibilando, quente. Sorriu-me discretamente e disse: Ento regressou em segurana, Khan)). Agora tinha a certeza de que ainda sofria dores considerveis. No liguei ao que me disse. ((Sente-se. Sirva-se do Whisky). S se tiver de puro malte!. Sim, h algum na garrafa de trs)). Servi- -me de uma quantidade generosa. Estava agora ainda mais nervoso. Quaisquer sinais de perda de fora por parte de DWW deixavam-me muito ansioso. Ele tentava sempre escond-lo de mim e conclu que o conseguira. Tratava-se de um estpido jogo britnico que ele jogava melhor do que eu. Nascera e criara-se nesse jogo. Eu no. Comecei com a observao mais desabrida do meu encontro. ({Veronique [disse a DWW] servia o ch como um experiente mordomo irlands)). ((Porqu irlands, Khan?)). Tem um sentido muito seco de humor)). Eu notei isso, Khan. Fico contente por ter

    notado tambm)). No fora minha inteno comear assim o relato. Decidira, de modo bastante infantil, assustar DWW. Anunciei com alguma pompa: (Tinha toda a razo, DWW. A Veronique no est a recusar nada. No est doente, de forma alguma . Ento de que sofre? Bem, DWW, creio que ela est a guardar uma queixa no formulada con- tra a me. O seu olhar de alma cndida, mascara um dio vingativo. A primeira vtima a prpria Veronique. Por isso nada houve que lhe pudesse oferecer)). DWW sentou-se contra as almofadas. Sim, eu no pensei que pudesse ou fizesse. Obrigado por no lho ter dito. Falou muito com ela?)). No, DWWD. E ela?. Um bocado, mas de forma muito afvel)). DWW pensou e disse um tanto distantemente: O pai de Veronique telefonou-me h pouco. Teve pena que no ficasse para o ch. Vocs conhecem- -se, Khan?)). Sim DWW, conhecemo-nos. ((Sirva-se de mais, Khan)). Eu fi-lo. O que sugere que os pais devem fazer?)). A pro- psito dos pais, no sei. Mas sei o que o pai devia fazem. Sim?, perguntou DWW. O pai deveria lev-la para a Sardenha, szinha com ele. A mulher tem o suficiente que a ocupe em Londres e Paris para que no notasse muito a falta de Veronique)). E o trabalho poltico do pai?. No creio que o espere um trabalho muito pesado durante este Inverno. Ser um Vero frio, na Sarde- nha. A Veronique pode andar a cavalo e estudar grego com o pai. No precisar de se afogar para chamar a ateno sobre si mesma)). Oh! Ela falou-lhe nisso? A me diz que ela odeia falar nisso)). O que eu penso, DWW, que a me que se sente cul- pada e desconfortvel com o assunto)). ((Desculpe-me Khan, sinto-me um pouco cansado agora. Poderia ver a Veronique amanh? O pai ir l ao almoo. A me pre- side a inaugurao de uma festa qualquer na aldeia deles. Por isso vocs os trs podem decidir, de modo pacfico e positivo, o rumo a tomar)). DWW chamou a irm. Quando ela chegou, disse: Khan vai sair agora. Por

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  • favor telefona para a Clnica e diz-lhes que ir almoar com a Veronique e com o pai)). A velha raposa premeditara tudo. Quando saa, DWW disse: Khan, no se esquece de como tratar a me de Veronique? Sim, Sua Senhoria, ou ela vai voltar para se vingar)). Como quiser DWW. A propsito, o meu telefone ficar desimpedido para o caso de precisar de me telefonar)). Para qu, Khan?)). Oh, por preocupao e interesse DWW)), disse eu com uma aspereza cal- culada. lXs trocas de palavras eram pergun- tas entre ns.

    O almoo com Veronique e o pai correu sobre esferas. Ela telefonara de manh para perguntar o que eu gostaria para o almoo e a minha secretria dissera-lhe que geral- mente comia uma refeio muito ligeira: peixe, um copo ou dois de vinho branco gelado, se possvel seco. Cheguei pontual- mente. O pai chegara uma hora, mais ou menos, antes de mim. No havia necessidade de apresentaes pois que j nos conheca- mos. Veronique pedira que o almoo fosse servido, numa mesa maior, no seu quarto; este era suficientemente espaoso para esse fim. Novamente era notrio que Veronique no s estava habituada a receber em grande estlo, como gostava de o fazer. Em primeiro lugar fiquei surpreendido que uma Clnica em Inglaterra pudesse servir salmo fumado e champagne; claro que do Fortnum and Mason, adientei eu para a picar. Sim, sei)), e saltara alegremente para dar um sonoro beijo na testa do pai, exclamando: ((Querido, querido Pap. Tem estado to preocupado)). Fiquei satisfeito por ter optado por no que- rer a presena de Sua Senhoria. Quatro pes- soas no podiam almoar tranquiiamente no quarto de Veronique. Notei ainda:

    1. Que o Pap dera a Veronique um copo de champagne;

    2. Que no podia ser aquela a primeira vez que os dois patifes recebiam um convi- dado na ausncia de Sua Senhoria;

    3. O Pap no fizera qualquer comentrio por Veronique no ter comido nem um bocadinho da finssima fatia de salmo fumado que tinha no prato. S lhe dera essa fatia e nada mais. Mas Veronique bebera a sua nica taa de champagne e comido um pouco de Camembert em meia bolacha;

    4. Veronique e o Pap estavam tambm bas- tante habituados a tomarem decises por si, isto , entre ambos, sem consultarem Sua Senhoria.

    Mal nos sentmos a mesa eu dissera, casualmente, ao Pap qual fora a recomen- dao do Dr. Winnicott; ou seja que o Papa devia levar Veronique para a sua propriedade na Sardenha durante os meses de Inverno. O Pap no pareceu ter ficado surpreendido, de forma alguma, embora tivesse soerguido ligeiramente as sobrancelhas. Calmamente corrigiu-me dizendo: A propriedade na Sardenha no minha. Comprei-a para o meu segundo filho. Nos ltimos quatro veres fomos para l porque a Veronique gosta muito de l estar e sente-se mais A von- tade que em Cap Ferrat, onde temos uma casa encantadora que dei a Veronique Claro, depois da minha morte, a manso e a quinta que aqui tenho ir para o meu filho mais velho. Tenho dois filhos da minha primeira mulher, de quem me divorciei h uns quinze anos)). Riu um pouco e acrescentou: Foi h tanto tempo que j no consigo recordar)). Veronique brincando meteu-se na conversa: Um momento Pap, eu no sou assim to velha. Ainda. Ele acariciou-lhe afectuosa- mente os cabelos e disse: Ela a nica filha do segundo casamento e a nica que me faz companhia a andar a cavalo todos os fins de semana)). Fez uma pausa e acrescentou: As crianas do-se muito bem umas com as outras. Ambos os meus filhos esto casados. S o meu segundo filho que no se d bem com a me de Veronique)). Aqui, Veronique interrompeu bruscamente: E a Mam d- -lhe alguma oportunidade?. Virou-se para

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  • mim e disse de forma determinada: Por trs vezes a Mam arranjou alguma desculpa de ltimo momento para cancelar a ida a Sar- denha. A verdadeira razo que ela conhece muita gente na regio de Cap Ferrat e quase ningm nas imediaes da nossa proprie- dade. Ela foi a resmungar no Vero passado e foi um desastre)). O Pap parecia extrema- mente embaraado. Fui em seu auxlio dizendo: Ento Veronique, assim embara- as o Pap. Estou certo de que no o dese- jas fazer)). No. [Disse ela arrefecendo] A razo porque disse isto, porque se o Pap concordar em que eu v com o meu irmo para a Sardenha at ao fim do prximo Vero, no ser necessrio que o Pap fique comigo todo esse tempo. Tem coisas muito importantes a fazer em Londres. Dou-me esplendidamente com o meu irmo. Brinca- mos e falamos em italiano. Prefiro o italiano ao francs)). Notei essa preferncia. O Dr. Winnicott disse-me ao telefone o que voc lhe sugerira e eu disse ao Pap que no pre- cisarei dele. De qualquer forma no nada- rei nem andarei no gasolina nos meses de Inverno. Mas gostaria que o Pap me levasse

    Sardenha para que a Mam no pense que a estou a desafiar. Telefonei para a escola, a nossa directora, e ela concordou em que estivesse ausente por mais dois perodos. S que pede um certificado psiquitrico)). O Dr. Winnicott ter o maior prazer em lho passar)), disse eu. C por dentro espumava contra DWW por ele ter dado mais um passo sem mo dizer.

    Durante este espao de tempo, enquanto Veronique falara bastante depressa, o Pap olhava e ouvia de uma forma indulgente e amorosa. Assim, tudo se combinou: Veroni- que ficaria mais duas semanas na Clnica, passaria o Natal com a famlia em Inglaterra e partiria com o Pap para a Sardenha no Ano Novo. Quando me despedia de Veroni- que e do Pap, aquela disse: O Dr. Winni- cott v a Mam na sexta-feira)). Eu disse muito secamente: Isso bom para ambos. Poupa-me uma data de explicaes)).

    No pensei que houvesse para mim qual- quer urgncia em encontrar DWW para dis- cutir o caso de Veronique. Telefonei-lhe quando terminei as consultas da tarde. Pare- cia cansado ao telefone. Disse-lhe rapida- mente que tudo correra a contento de todos. Disse-me, bastante laconicamente: Sim, Khan! Obrigado por quase nunca me aban- donar. Boa noite)). Isto era um grande elo- gio da parte de DWW. De repente dei-me conta de quanto tambm estava cansado. A Veronique fora mais exigente do que eu espe- rava. De qualquer forma entreguei-me a rotina da semana profissional. Quando efec- tuei a minha visita semanal a DWW, no domingo seguinte, encontrei-o estranha- mente exausto e inquieto. Fez-me uma ch- vena de ch. Notei que no tinha pressa em falar de Veronique. Mexeu em vrios papis. No era capaz de decidir o que queria fazer. Esperei. Deitou algumas folhas ao cho. Numa delas havia um desenho feito por uma criana. No se preocupe com isso. No resultou. No fui eu prprio esta semana, Khan. Estou mesmo a envelhecer!)). Pensei para comigo que ele tinha 70 anos. Tivera trs graves ataques de corao nos ltimos vinte anos. De facto era incrvel como DWW ainda funcionava. Esperei. Senti que ele estava zangado a propsito de qualquer coisa. Bem, Khan, ela levou-o a certa. Sua Senhoria telefonou-me h uma hora para me dizer que a irm adoeceu gra- vemente, em Paris, durante a semana. Bom, ela vai buscar a Veronique a Clnica, por volta do meio dia, e depois, tomar um avio para ir ter com a irm. O pai no as pode acompanhar. Isso complica tudo, sem dvida. De qualquer forma, Khan, espero que a experincia tenha valido o esforo. DWW fez uma pausa e brusca- mente mudou de assunto: De que forma supe que Sua Senhoria vai prejudicar Veronique, Khan?)). Deixei DWW expr as suas prprias ideias. ((Aquele acidente do afogamento. A me nunca o mencionou. A filha s fala disso. Espero que ela no

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  • afogue a filha. No tem que se preo- cupar, DWW. A Veronique no assim to frgil, nem to vulnervel)). Mas ela pode ferir o marido e isso seria muito mau para a Veronique. Diga-me mais coisas. Afinal voc passou umas horas com Veronique no domingo e na segunda)). Disse ao DWW que, de forma muito deliberada, no s me abstivera de recolher as intrigas familiares, como no deixara Veronique mencion-las. %to quanto eu podia dizer, havia trs gru- pos. O primeiro era Veronique, o Pap e os meios-irmos (com as esposas). O segundo era apenas Veronique e o Pap. Era o ter- ceiro grupo que estava a rebentar pelas cos-

    I turas. Fiz uma pausa. ((Prossiga, Khan. Ajuda fantasiar na presena de outro. S rido quando se faz szinho. Prossegui: Sua Senhoria uns vinte anos mais nova que o Pap. uma parisiense ambiciosa. Primorosamente educada, desejava estar no teatro como a sua bem sucedida irm mais velha. Falhou. O seu nico sucesso foi casar-se com o Pap. E no o perder. Mudou de pas para bem dele. Tem-no aju- dado, de verdade, na vida poltica. Dirige uma casa de campo muito 6 la mode. Mas Veronique foi-se introduzindo sem que Sua Senhoria notasse. DWW, eu fiquei impres- sionado com o que Veronique sabia da vida diria do pai. At age como secretria dele em dados momentos. Ao contrrio de Sua Senhoria, fala fluentemente italiano e tam- bm anda a cavalo com o pai todos os domingos. & ento que falam sobre tudo. esta intimidade entre Veronique e o pai que comea a afectar Sua Senhoria. Pelo menos como eu vejo a situao, DWW. ((Prossiga, Khan. Estou a ouvir. Para agravar ainda mais a situao, Veronique decidiu que ir estudar lnguas. Sua Senho- ria esperava que ela seguisse a carreira da tia. Por outras palavras, fazer e realizar o que Sua Senhoria no conseguiu fazer. Em vez disso, segue as pisadas do Pap: clssi- cos, depois lnguas modernas e histria. Veronique tem todos os caminhos abertos.

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    DWW espreitava-me atravs das fendas que os dedos das suas mos formavam, colo- cadas sobre a face. Interessante! Faz sen- tido. Bom trabalho, Khan. Apesar disso pena que Sua Senhoria lho tivesse estra- gado. No para mim, DWW, para si. Se Veronique procurar ou necessitar de tera- pia, no vou ficar com ela. Sou mais valioso para ela como um conhecido inte- ressado do que como terapeuta. De qual- quer forma sabe perfeitamente, DWW, que desde a sua consulta que criou em Veroni- que uma esperana e uma confiana tais que mais ningum pode ser seu terapeuta. Tenhamos esperana de que ela no tenha necessidade de terapia. E como que o vai recusar quando ela o procurar? J disse a Veronique e ao Pap que a estou a seguir porque voc, neste momento, no est sufi- cientemente bem para receber um novo doente. Mas que ter tudo pronto para quando ela voltar da Sardenha no Outono de 1970. No creio que esse plano se tenha afundado, DWW. Veronique ir para a Sar- denha e conseguir que o Pap e voc faam todas as negociaes com Sua Senhoria. Porque nisso que tudo se resume. A propsito, a irm no est to doente como Sua Senhoria disse. Adoeceu na penltima semana e j est a p e a cir- cular. Como sabe isso, Khan?. Vinha no Le Monde de sbado. A irm de Sua Senhoria uma directora de teatro davant- -garde, muito conhecida em Paris e Nice. A minha mulher conhece-a. Como v, DWW, eu fico melhor fora das suas estra- tgias teraputicas para a Veronique)). Ainda falvamos quando o telefone tocou. Era Veronique, de Paris. DWW compreen- dera tudo mal. Sua Senhoria telefonara-lhe de Heathrow, depois de ter ido buscar Vero- nique a Clnica. DWW estava furioso, Per- guntou a Veronique quando regressava a Inglaterra. Ela disse-lhe que iria directa- mente para a Sardenha dentro de dois ou trs dias. Assim que o Pap pudesse ir a Paris para a levar para a Sardenha. Deixei

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  • DWW szinho na saia para falar com Vero- nique. Depois perguntei-lhe porque estava to furioso.
  • at parar. Vi Sua Senhoria esta tarde. Eles tinham acabado de voltar de Paris)). Quantos eram hoje os eles, DWW?)). Os mesmos: Veronique, o Pap e Sua Senhoria. Sua Senhoria veio szinha. Disse que Veronique gostava de estar em Paris. Esqueci-me: trouxeram com eles, a tia de Veronique que est doente. Agora, isto que bizarro. Espere at o ouvir, Khan. Sua Senhoria est grvida. Foi exactamente isto que ela me disse, Estou grvida, Dr. Win- nicott, ainda nem tirara o casaco de peles. Por vezes directa como os americanos. Que situao detestvel)). DWW mudou de assunto: Acha que esta verso revista melhor, Khan?)). ((Certamente que no! Quem que lhe disse para meter uma pitada de material clnico? Em primeiro lugar, no cabe no argumento; em segundo lugar, demasiado fraco e posto de forma casual. Bom, agora reescreva-o. Para mim chega, Khan. Falemos de Sua Senhoria. No tinha compreendido que s tinha 35 anos. Ainda a no tinha visto a ss. mais viva e francesa quando est szinha. Na companhia do marido e/ou da filha desem- penha o papel de uma britnica de provn- cia. Porque que estes estrangeiros nos macaqueiam?)). Estes estrangeiros, DWW? Eu tambm o sou e no macaqueio. O pro- blema, DWW, que vocs ingleses no gos- tam que os estrangeiros se conformem com os vossos procedimentos)). No! No! Isso no democrtico)). Mas encorajam -nos a que vos macaqueiem)). Sua Senhoria estava muito excitada com a ideia de terem um filho. Tem a certeza que vai ser um filho. No comentei. Julgo que lhe far bem estar grvida e criar um filho. Ela era muito nova quando concebeu Veronique e estava demasiado ocupada a aprender a ser esposa de um rico proprietrio ruraL fi espantoso o que uma mulher pode lucrar ao criar o seu prprio f io)) . Estava a ficar aborrecido com a aclamao eufrica que DWW fazia A nova aventura de Sua Senho- ria. Diz que Sua Senhoria lucrar com

    isso?)). Sim, lucro, Khan, lucro com isso. No concorda?)). No, DWW. Eu sei que lucro um respeitvel conceito da burgue- sia inglesa, esvaziado pelo seu uso ao longo dos sculos, mas Sua Senhoria no inglesa. francesa: temperamenta, alta- mente intelectual e cheia de truques. No vai manter a gravidez at ao parto, DWW)). O que que o leva a pensar que ir per- der esta gravidez?)). No sei. Pressinto que a no quer. Ao engravidar j deve ter obtido o que queria)). E o que era isso, Khan?)). Fazer Veronique sentir que est a faltar como filha. Um filho completar a equao para Sua Senhoria. Depois, por- que hoje nos seus crculos sociais, ela notcia. No o ser daqui a quatro sema- nas. A novidade de vir a ser me ceder a chatice de ser uma fmea pranhe)). Voc consegue mesmo dar cabo de uma pessoa quando no gosta dela, Khan!)). No que eu no goste de Sua Senhoria. ? que no posso confiar nela. Voc pode. -lhe bemvindo)). Mas voc fica com a Veroni- que?)). Sim, DWW! Voc e Sua Senhoria deixaram-me sem alternativa. Eu proporcio- narei a cobertura de Veronique se voc tiver a bondade de a ver de tempos a tempos. E no a mandar para Clnicas ou para tera- pias. Por enquanto no! Combinado?)). Parti. Enquanto conduzia, a caminho de casa, reparei que DWW aceitara os meus termos demasiado rapidamente porque eles eram, afinal, os seus prprios termos. A velha raposa, afinal, sempre se preocupava com cada um e todos que via em consulta. Se exigia muito dos outros, pacientes inclu- dos, dava mais de si prprio i situao do que qualquer um de ns jamais dera ou daria. Quando cheguei a casa, a minha mulher disse-me que Veronique telefonara para me dizer que, A me est grvida. Minha mulher disse-o numa voz de felici- dade, trocista. Perguntei-lhe se achava que Veronique estava a falar a srio. Disse: Sem dvida. Por favor telefona-lhe ama- nh)). A Primavera j chegou, pensei. Bas-

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  • tante paradoxalmente, sem saber o que fazer com a situao total.

    O que iria suceder nas semanas que se seguiram, no podia ter sido previsto por nenhum de ns. Por ns, quero dizer Sua Senhoria (daqui em diante com letras mais- culas. Tout jours!), DWW, Veronique, Pap e Khan. As coisas tomaram um rumo, ou ditaram-no. Mesmo uma dcada ou mais depois, ainda no consigo saber se Sua Senhoria foi a autora dos acontecimentos, a vtima deles, ou meramente um inesperado, se bem que muito conhecedor, agente do pri- meiro acontecimento. Tiro esta noo de acontecimento do (Theatre of Happening)) e do seu ramo, o atheatre of happening)).

    Telefonei a Veronique tal como minha mulher lhe prometera que eu faria. A minha mulher no me disse nada mais do que aquilo que referi l atrs. Quando recebia um telefonema de um doente ou de um colega, o que era raro, dizia apenas o mnimo a ele/ela ou a mim. Veronique estava radiante. Claramente manaca. A me est grvidas. Risinhos abafados na sua voz. Isso mantm-nos ocupados, a todos, no prximo ano. No irei a Sardenha. Nem visi- tas (os longos, longos fins de semana) para o Pap, em Barcelona)). Sem o fazer osten- sivamente deixei cair a seguinte pergunta: E a sua me, Veronique?)). A me estar ocu- pada a destinar trabalhos para todos ns. Os que estiverem ao p, ou ao seu alcance. Sim, o Dr. Winnicott o primeiro da lista. No, o quarto. O primeiro o Pap, depois o nosso mordomo irlands, Mac [de Mac Coy], depois eu, Veronique, e depois o Dr. Winnicott. A me j falou com ele, ao tele- fone, duas vezes. O Dr. Winnicott gosta que lhe telefonem e de falar ao telefone?)). Deve gostar. J devem estar a falar h meia hora. Tambm, ainda so s 9 e 15 h.. No, realmente no, Veronique)), tento corrigi-la para a acalmar um pouco. Vero- nique estava audivelmente demasiado exci- tada. O Dr. Winnicott no gosta de falar

    ao telefone. Suporta-o alegremente. Bastante convidativamente tambm! A tem a razo. Agora oua-me, Veronique. Eu estou fora deste ((acontecimento)). Vamos baptiz-lo A me est grvida)). Veronique tornou a fazer risinhos ao telefone. Sim, Senhor)). Ela ainda no sabia como devia de se me diri- gir. Oua! Estou, como lhe disse, no limite, no mais afastado limite do acontecimento e a irei permanecer. No mais longe, mas no mais perto. De forma que facilmente me possa contactar. Bom, eu vou sair nos dois prximos fins de semana, da noite de quinta at segunda-feira)). Sabia do prximo fim- -de-semana. O Pap disse-me. Ele tambm vai. A Barcelona, quero dizer. S que ele vai ver e o Senhor vai jogar. Boa sorte! Vai jogar contra a equipa britnica. Tenha pena deles! No temos rematadores esquerdinos. Espe- cialmente do lado interno do ataque. Vai ganhar facilmente)). ((Primeiro no a minha equipa, Veronique. Sou apenas um dos quatro. Se a equipa ganhar ser por causa dos outros trs: o alemo, o espanhol e o argentino. So jogadores mais experien- tes que eu e melhor preparados, por treina- rem diariamente. De qualquer forma, um jogo amigvel para fins de caridade! No de competio)). ((Espero que os vossos cavalos no fiquem coxos com o cho duro de Barcelona. O Pap diz que o ltimo jogo da poca. No era a favor da sua rea- lizao, mas acedeu. O Pap cede sempre a opinio da maioria. Disse-me que o solo ali no favorvel aos cavalos criados em Ingla- terra. Dois dos seus so argentinos. Estou certa?)). Sim, Veronique! Bom, no fim-de- -semana seguinte estarei em Genebra. No creio que precise de mim, mas se precisar, telefone para aqui e dir-lhe-o onde me pode encontrar. No sei ainda com quem que irei ficar em Barcelona e em Genebra. De qualquer forma, o Dr. Winnicott estar c e completamente disponvel)). Tal como o Pap! De qualquer forma podia pedir a sua secretria que telefonasse a directora da minha escola para lhe dizer, da sua parte,

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  • que no tem que verificar a todas as horas aquilo que comi? Ou melhor, o que no comi ... hoj e... at agora)). Veronique disse ou melhor, no comido, hoje e at agora, num tom trocista, bem ingls. Podia sentir que se estava a divertir. No momento, como diria Veronique.

    Na terceira semana recebi uma carta de Veronique. Estava escrita com clareza. Dizia sucintamente:

    ((Contente por a suaequipa ter empatado em Barcelona; para mim sempre o melhor resultado. Estou bem. Obrigada pela sua carta a directora. As nossas notcias. Agora a me quer matar a gravidez. O Pap e eu queremos v-lo o mais depressa possvel. Todos temos telefonado ao Dr. Winnicott. At o Pap.

    Indiquei-lhes uma data e recebi ambos na minha saia de estar. Decidi-me tornar aquilo um encontro social. Reparei que Veronique tinha um ligeiro toque, ou melhor, uma sugesto de cor nas suas bochechas. O Pap parecia preocupado e cansado. Chegaram as 11 horas. Ofereci ao Pap um sherry. Vero- nique interveio: O Pap j gosta mais de champagne a esta hora)). Calmamente o Pap tentou silenciar Veronique Queres calar-te? Eu no sou um snob)). Toquei a campainha chamando a minha secretria para que trouxesse uma garrafa de cham- pagne gelado e trs copos. Veronique estava a brincar e disse: Est tudo resolvido. A me far a operao este fim-de-semana. Boa viagem...)). O Pap interveio com um Cala-te. No tem graa. Depois, virou-se para mim e perguntou-me: Tem estado em contacto com o Dr. Winnicott?)). Respondi: No. Desde h quinze dias, mais ou menos. Vou telefonar-lhe, hoje, pelas 20,30. bas- tante desencorajante que Sua Senhoria deci- disse interromper a gravidez)). Ento a Ve- ronique disse-lhe. No tem graa nenhuma. Ambas pensam que sim. Ser assunto das noticias. Nos jornais. Que motivos poderei alegar?)). ((Diga-lhes, querido Pap: o mor-

    domo pensou que seria demasiado trabalho extra. Por isso, Sua Senhoria decidiu pr-lhe termo)). Repreendi Veronique: No se esquea que o Pap tem mais a ver com isto do que a famlia dele e os amigos)). Pergun- tei ao Papa H alguma forma de eu poder ajudar?)). Sim, por favor ajude-me a redi- gir um comunicado para a imprensa)). Dis- cutimos vrias formas. Aconselhei contra a adio de ((psiquitricos aps mdico. O Pap achou que era uma boa ideia. No final ficou assim: Por conselho mdico e fragi- lidade da sua condio fsica foi decidido, por ambas as partes pr termo a gravidez)). Chamei a minha secretria e pedi-lhe que ligasse ao Dr. Winnicott quando tivesse aca- bado de dactilografar o comunicado. Ela f- -lo. DWW j sabia que Veronique e o Pap me iam ver naquela manh. Perguntou-me: O que lhe parece isto tudo, Khan?. Disse- -lhe que, no momento, tudo o que lhe podia transmitir era a curta declarao que o Pap e eu tnhamos preparado para a Imprensa. Li-lha. DWW ficou em silncio. Depois disse: Muito habilidosa. Muito, Khan. Boa sorte. pena que ele tivesse sido arrastado para ela. At logo a noite.

    Pouco havia que pudessemos fazer para alm de esperarmos pelos acontecimentos. Quer o Pap, quer DWW, estavam profun- damente magoados. Pensavam que se tratava de um erro horrvel. Eu pensava que era meramente escandaloso, nada mais. A longo prazo todos ficariam contentes e aliviados, porque ele viera s algumas semanas e fora destrudo! Foi o que disse DWW quando com ele me encontrei nessa noite. Tambm adientei como, desde o momento em que Sua Senhoria tirara Veronique da Clnica e a levara com ela para Paris, ningum mais falara dos problemas das recusas escolares ou alimentares de Veronique. Apenas com uma excepo, a da prpria Veronique ao telefone, quando me pediu que escrevesse directora.

    DWW suportou o maior peso das consul- tas e dos aconselhamentos aos Veroniques.

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  • Ns, DWW e eu, concordramos que tal deveria ser assim at ao Natal. DWW era um clnico de grande reputao e autoridade e com vastas ligaes no mundo mdico. O meu papel cingia-se a falar com Veronique e o Pap. Durante as trs ltimas semanas, das quais Sua Senhoria passara duas numa casa de repouso junto a manso, vira DWW quatro vezes e telefonara muitas mais do que aquelas que recordo. Veronique e o Pap s me tinham telefonado duas vezes e isso para pedir conselhos prticos. Eu tinha uma con- sidervel influncia na imprensa, o que fazia muito geito ao Pap, que constitua notcia. Durante todo o tempo tive bem presente que os Veroniques tinham varrido para debaixo do tapete (e DWW parecia ter-se-lhes jun- tado nisso):

    1. A hospitalizao de Veronique por recusar alimento e o estudo. S porque no cris- talizara a doena na sua forma adequada (o que quer que isso signifique), tambm a sua hospitalizao no era adequada. A Clnica particular era um agradvel local na provncia: para trguas, ideal! Mas no para terapia.

    2. O eu quase me afoguei na Sardenha no fra mencionado, excepto uma vez pela Veronique no nosso primeiro encon- tro. A esse propsito achava que DWW e o Pap se mantinham curiosamente silen- ciosos. No perguntei. Eu tinha a certeza de que havia mais, muito mais do que um simples acidente. DWW j tinha bastante trabalho com os Veroniques. No lhe que- ria causar mais cansao com a minha curiosidade e as minhas conjecturas. Estava tambm seguro que DWW falaria disso um dia, talvez quando chegasse a Primavera.

    Todos os acontecimentos absurdos do ano que se seguiu a declarao de Sua Senhoria a DWW, Estou grvida)), nem me interes- savam nem me divertiam. A minha peque- nina preocupao era conseguir que Veronique e o Pap tivessem um agradvel

    Natal em famlia. Significava muito para ambos e para os dois filhos. Sabia que o filho da Sardenha e a mulher viriam de avio, para o Natal, por causa da aindispo- sio de Sua Senhoria - expresso da famlia para o caso. Mas muito mais impor- tante do que qualquer coisa referente aos Veroniques, era a minha forte deciso de que DWW tivesse um Natal pacfico na compa- nhia das suas irms. DWW era uma pessoa difcil de ajudar. No podia suportar o depender de qualquer pessoa; excepo feita as irms!

    No me surpreendeu que Sua Senhoria atravessasse a sua hospitalizao nobre e resolutamente; tenho de a louvar neste aspecto. Mas isto no mudou a minha con- vico de que ela eventualmente cairia. O que me surpreendeu foi a forma como DWW se juntou ao estilo dos Veroniques. A velha raposa tinha qualquer estratgia na manga. Mantive-me tranquilamente a obser- var todas as charadas e parti com minha mulher para Paris, afim de passarmos ali o Natal com alguns amigos. Para mim, o Natal um acontecimento no social tremenda- mente maador, quando passado em Lon- dres! No posso ser cmplice das sazonais amenidades das famlias inglesas que, durante o resto do ano, nem se levantam para se cumprimentarem uns aos outros. Todas as culturas tm as suas hipocrisias mas os britnicos esto admiravelmente apetre- chados.

    Uma pequena carta de DWW aguardava- -me no meu regresso de Paris, pedindo-me que lhe telefonasse para o stio no campo onde passava o Natal. Assim Fiz. Disse-me que a me de Veronique atravessava uma ligeira depresso. Acrescentou, rapidamente, que isso era de esperar. Claro, DWW, acon- tece e sempre como voc o prepara!)). ((Agora, Khan, eu prometi ao pai de Vero- nique que voc lhe telefonava assim que regressasse. Eu devo voltar pelo Ano Novo. Feliz Ano Novo!)). Para si tambm, DWWD.

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  • Telefonei ao Pap e vi-o nessa mesma tarde. Tinha vindo szinho com o acordo total de Veronique. Decidira qual o rumo a tomar para que Sua Senhoria recuperasse por com- pleto. Era to simples como mand-la, nos meses de Inverno, com Veronique, o filho da Sardenha e sua mulher para fora, regres- sando na Pscoa. Perguntei-lhe: Na Prima- vera?)). Ele no se apercebeu! Deixei passar e cordialmente ouvi o seu plano e intenes. Segundo ele, todos estavam muito felizes com o plano. Os ingleses tm uma forma muito estranha de usar a palavrafeliz; torna- -se neutra nas suas bocas. Havia um pro- blema, acrescentou nervosamente o Pap.

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    r Como explic-lo a imprensa. A sua mulher detinha muitos lugares em organiza- I

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    es de caridade. Fui em seu socorro suge- rindo o seguinte comunicado: A Sra. X ficou profundamente perturbada pela inter- rupo da sua gravidez e partir para o estrangeiro para descansar. Acompanham-na sua filha, seu filho e nora. Mais sugeri que o Pap no deveria assinar o comunicado, mas que ele deveria ser emitido pelo mdico de Sua Senhoria. O Pap ficou francamente aliviado. No queria mudar uma nica pala- vra. Li-o ao telefone a DWW enquanto o Pap ainda estava comigo. Ouviu pensativa- mente e pediu-me que repetisse a leitura. Manteve-se silencioso, por um momento, e depois disse: Muito bem, Khan! Matam-se os Veroniques. Obrigado por me salvar. Feliz Ano Novo para todos)). Desligou. Os Vero- niques partiram para a Sardenha escassos dias aps o Ano Novo. Aqui termina a minha narrativa acerca deles.

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    O verdadeiro propsito ao escrever este captulo o de partilhar com o leitor as minhas experincias divertidas, embora muito duras, de ((trabalhar com DWW em casos vividos. Uma vez os Veroniques longe e no estrangeiro, continuei a encontrar o Pap em vrios acontecimentos sociais e polticos tal como sucedera antes. DWW manteve-se propositadamente evasivo a res-

    peito deles por umas trs semanas. Ento numa das visitas de domingo, ele disse cal- mamente: ((Aquele sonho de Veronique muito interessante, considerando tudo o que sucedeu)). Sem descanso mexia e mudava papis e estranhos escritos que tinha sobre a secretria.

  • talento para afastar tais amizades com gera- es mais jovens, com o afecto e a cerim- nia exactos. Eu fui sempre Khan para ele e para mim ele era, em privado, DWW e, em pblico, o Dr. Winnicott.

    Khan, o que eu no entendo no sonho de Veronique, porque que ela o sonhou. No um sonho. Espicacei DWW Tem a certeza disso?. Sim, a certeza absoluta)). Compreendendo que eu me estava a meter consigo, tornou-se defensivo. ((Diga-me, letrado Khan, onde esto nele os aspectos prprios do sonho? H pouca imaginao na composio deste sonho. Como eu estava a tomar rapidamente notas (tomar notas tornava-nos mais seguramente fecha- dos em ns prprios e um com o outro), deve ter pensado que o no ouvira. Est bem, ponha isso ?i sua maneira, h um pro- cesso primrio muito escasso. Pouco traba- lho do sonho (significando a distoro do sonho). Est pouco reprimido ou trai o facto de algum material estar igualmente incrustado em detalhes igualmente incuos. O sonho, Khan, um comunicado. Sim, to simples como isso. Por isso, porque que o sonha? Podia t-lo dito a si mesma. Assim mesmo, DWW?. Sim, Khan, tal qual. As pessoas gostam de sonhar! Isto no novidade para mim. J vi mais de 7000 crianas em consulta. Algumas entram a sonhar e voltam para casa a sonhar. Ento, o trabalho clnico o de no per- turbar o seu sonho. No o de dar as suas interpretaes. DWW salientara as suas de uma forma estranha. Qualquer coisa o per- turbava. Estranho o nmero de fantasmas que este sbio clnico guardava dentro de si, como seus juzes: Melanie Klein, Ernest Jones (que ensinava acerca do sonho na Sociedade Britnica quando DWW foi can- didato, h uns 36. anos atrs) e at Miss Anna Freud. Eram capazes de o fazer des- carrilar na sua linha de pensamento da forma mais ridcula. Testemunhara-o eu, durante os Encontros Cientficos na Socie-

    dade. No Jones, claro; no me recordo dele ter ido ouvir uma nica comunicao de DWW. Eu queria que DWW prosseguisse nos seus pensamentos acerca de Veroni- que sonhando o sonho, por isso disse: Vol- tando ao sonho de Veronique)). Mas DWW no desistia: Veja, Khan, eu tive este pro- blema com os sonhos desde os tempos em que estava a fazer didctica com James Strachey. Nunca fiz anlise com Mrs Klein. No posso dizer que tenha feito anlise com Joan Rivire; , no entanto, verdade que ela me analisou durante uns dez anos. E con- tinuava a analisar-me durante os debates dos Encontros Cientficos)). Mantive-me calado e deixei-o descarregar e livrar-se de todas as memrias que o perturbavam. Frequen- temente picava-o dizendo: Sabe, DWW, voc tem uma coisa em comum com Freud, que Q tinha com o Prncipe Hamlet ... . Que coisa?, perguntava-me sempre. (Voc, Freud e Hamlet podiam viver felizes numa casca de ovo se no tivessem maus sonhos)). Voltemos ao sonho que Veronique podia ter pensado para si prpria, acordada)). Notei a forma como DWW usara as pala- vras. Era nestes aspectos que mostrava a sua verdadeira genialidade. Mas DWW tinha primeiro que marcar pontos. (Voc veja, Khan, eu tambm posso identificar os seus temas freudianos no sonho. Um, Veronique est a exibir a sua supremacia sobre a me, que envelhece e engorda; est a conversar com os convidados, sucedeu-lhe. Dois, a me gorda, no j uma mulher que possa competir com uma jovem pelo inte- resse dos homens. Temas edipianos de riva- lidade sexual. Trs, culpa expressa em preocupaes. Mas ela acorda. Incapacidade de odiar. Falha na posio depressiva de Mrs. Klein, em Veronique. Concorda com tudo isto, Khan?)). Sim, DWW. S que eu no pensara no sonho de Veronique nesses termos. Porqu no? No h nada de mal na tcnica clssica. A resposta ao seu porque no, DWW, porque Veronique no me contou o sonho. Pensei mais pelo

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  • ngulo de que Veronique escondera consigo qualquer coisa pertencendo, ou relacionada, com a me, e que manteve cuidadosamente escondida de mim at ela estar fora do caminho e no estrangeiro. Voc protege mesmo os seus casos. No isso, Khan. Tudo o que eu disse do sonho ser edipiano, etc., pode ser verdade mas irrelevante para o significado e o fim do sonho. ((Ento qual o fim, DWW?. Simplesmente que o sonho sobre o dio reprimido (incons- ciente) da me pela filha, e no no nvel sexual, e nem ela nem a filha o podiam suportar. Compreende-me? Veja, a me no est a chorar por rivalidade ou angstia. Mas por incapacidade. Ou talvez pela sua incapacidade)). ((Ento qual o desejo latente do sonho, DWW?)). ((Simplesmente isto: o desejo de Veronique de salvar a me da sua incapacidade de odiar a filha! Ela foi sonhar um sonho que a me devia ter tido quando estava grvida de Veronique. No o sonhou. Pelo menos no creio que o tenha feito. Assim, quer ela quer Veroni- que ficam potencialmente doentes e demo- raro ainda algum tempo at adoecer. Veja Khan, a prova de que uma pessoa, ou um doente, sonhou um sonho no o lembrar- -se posteriormente dele. Vi pessoas adoece- rem aos 60 anos de idade, e mais, por causa de um sonho que tinham sonhado na puberdade ou na infncia e que no con- seguiram recordar! O nico aspecto positivo no sonho que Veronique acorde antes de chegar a me. Recusa ser a guardi do dio reprimido da me. As crianas passam a vida a fazer isso. Quando um dos factos no-externos entram nos seus sonhos, acor- dam. No querem nada com ele.

    Agora quero partilhar com os meus lei- tores a minha resposta ao sonho ouvido em segunda mo, via DWW. Quando acabou de dizer o que queria, passmos a outros assuntos, em especial aos que referiam os seus escritos e a sua publicao. DWW tinha um sentimento de urgncia naquele ano de 1970, sobre o ter, tanto quanto possvel, os

    seus esboos, notas manuscritas, etc., edi- tados em conjunto comigo. J fizera isso antes, h uns 37 anos. Para e com o meu pai, Khan Bahadur Raja Fazaldad Khan, durante o seu ltimo ano de vida. Ajudara- -o disciplinadamente a preparar as suas vas- tas propriedades e a distribu-las entre os seus oito filhos e duas mulheres, conforme o seu desejo. Ele sabia que o seu fim che- gara, e com tranquilidade e alegria aceitava o facto. Tivera uma boa vida durante 93 anos. DWW s tinha 70, mas vinha sendo seriamente afectado por ataques de corao desde 1950. Sim! Ele era uma pessoa reali- zada e compIeta a medida que percorria o seu caminho at ao fim. Isso causava tris- teza a todos e a cada um de ns que o ama- vamos. Eu no era o nico. Era um de um grande grupo. Tinha sido o mesmo no feliz final de meu pai. Dificilmente, em muitos aspectos, duas pessoas podem ser mais dife- rentes do que o foram meu pai e DWW. Mas, tinham isto em comum: uma inexau- rvel energia para viver; uma infatigvel capacidade para trabalhar; um compromisso total nos cuidados a prestar e no bem estar dos outros.

    Cada um deles, sem disso se aperceber, era brutaImente exigente com aquele ou aqueles a quem respeitavam e/ou por quem tinham afecto. Por isso chegara a nossa rela- o, bem preparado por dezanove anos de aprendizagem resmungona e amorosa com o meu pai. Eu estava ciente da correspon- dncia. Assim estava DWW. E nunca dis- semos uma palavra sobre isso um ao outro. Os observadores da profisso tinham as suas prprias verses interpretativas para intrigarem e espalharem ao redor. Mas vol- temos ao que eu pensei sobre o sonho de Veronique. Mantive as notas das minhas reflexes. Sentia que DWW e eu prprio tinhamos falta de tempo e, por isso, no surgiu a minha vez de lhe dizer o que pen- sava. O importante era ter ouvido DWW. A minha primeira resposta ao sonho foi: tendo sonhado este sonho, onde residia a

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  • necessidade de Veronique engendrar o acon- tecimento Quase que me afoguei na Sar- denha?

    Pensei, tal como DWW, que curto-cir- cuitar a experincia do sonho era auto-con- servador, mas por razes diferentes das dele. Para mim significava ter um outro sonho, desta feita no uma criao de Veronique; s possvel de ser feito por ela. As suas duas declaraes Quase que me afoguei na Sar- denha)) e O Pap quase desmaiou, vi como sendo partes da mesma ((experincia- -sonhando (Khan, 1976), mas fragmenta- das e espalhadas ao longo do tempo. Para mim, o acidente-sonhando anulava as obri- gaes e preocupaes de me ... mais

    gorda que o habitual)). Assegurava-lhe o di- reito a viver pois que a prpria vida se lhe oferecia. E a maior parte dessa nova vida, para Veronique, era o Pap. Precisava dele para o sublinhar. Aqui cada gesto actual, ancorado a realidade, cada acto, cada pala- vra simultaneamente simblico e imagi- nrio, no idioma da lingustica moderna. Lacan (1966) deu-nos a sua gramtica sob cuidadosa mistificao. O que sucedeu desde o sonho me e Eu quase que me afoguei)) confirma, pelo menos para mim, as minhas inferncias. Nas duas outras vezes que estive com Veronique, depois dela vol- tar a Inglaterra, esqueci, com uma desejada facilidade, tudo referente a estes assuntos e nunca sequer os sugeri.

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