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WODISNEY CORDEIRO DOS SANTOS QUANDO A MORTE SE APAIXONA: UMA REFLEXÃO SOBRE IMORTALIDADE E FINITUDE EM AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional do Departamento de Ciências Humanas – Campus V da Universidade do Estado da Bahia, como requisito básico para a obtenção do título de Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional. Orientador: Prof. Dr. Paulo de Assis de Almeida Guerreiro Santo Antônio de Jesus 2008

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WODISNEY CORDEIRO DOS SANTOS

QUANDO A MORTE SE APAIXONA: UMA REFLEXÃO SOBRE IMORTALIDADE E FINITUDE EM AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional do Departamento de Ciências Humanas – Campus V da Universidade do Estado da Bahia, como requisito básico para a obtenção do título de Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional.

Orientador: Prof. Dr. Paulo de Assis de Almeida Guerreiro

Santo Antônio de Jesus

2008

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S237 Santos, Wodisney Cordeiro dos.

Quando a morte se apaixona: uma reflexão sobre imortalidade e finitude em As intermitências da morte de José Saramago / Wodisney Cordeiro dos Santos - 2008.

115 f.: Orientador: Prof. Dr. Paulo de Assis de Almeida Guerreiro. Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa

de pós-graduação em Cultura, memória e desenvolvimento regional, 2008.

1. Saramago, José - Análise. 2. Literatura Portuguesa – Crítica e

interpretação. 3. Prosa (literatura) - Ensaios I. Guerreiro, Paulo de Assis de Almeida. II. Universidade do Estado da Bahia, programa de pós-graduação em Cultura, memória e desenvolvimento regional.

CDD: B869

Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.

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WODISNEY CORDEIRO DOS SANTOS

QUANDO A MORTE SE APAIXONA: UMA REFLEXÃO SOBRE IMORTALIDADE E FINITUDE EM AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional do Departamento de Ciências Humanas – Campus V da Universidade do Estado da Bahia, como requisito básico para a obtenção do título de Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional.

Linha de pesquisa: Cultura, memória, linguagens e identidades

Aprovação em, _______ / ________/ _________

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo de Assis de Almeida Guerreiro - UNEB

___________________________________________________________ Prof. Dr. Vitor Hugo Fernandes Martins - UNEB

___________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Henrique Seidel - UEFS

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DEDICATÓRIA

Dedico esta dissertação a três mulheres em minha vida: A minha mãe Hilma, pela simplicidade de vida; minha esposa Cláudia, pela paciência e incentivo e ao meu presente de Deus e filha Mabelle, pela alegria constante.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, que no seu livre arbítrio nos permite pensar e comunicar;

Aos meus pais, que desde muito cedo me deram o apoio necessário para que eu

prosseguisse nessa dura caminhada;

A minha esposa, pela paciência, apoio e dedicação constante;

A minha filha, que, sem saber, me proporcionou o prazer de descansar nas suas

travessuras;

Ao meu orientador, pelo amigo que sempre demonstrou ser;

Aos colegas de curso, que me auxiliaram incontáveis vezes;

A todo o corpo de professores e funcionários que compõe o mestrado Cultura,

memória e desenvolvimento regional;

E a Andréia, que durante o período como secretária no mestrado foi sempre

competente e disposta a auxiliar.

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“O que pretendo, sim, é evitar que se esqueça que ela existe, que é o que se costuma fazer. Tentamos apagar a morte. As pessoas já não mais morrem, simplesmente desaparecem”. (José Saramago)

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RESUMO

A presente dissertação é uma discussão de como a arte e a literatura em

especial constituem uma ponte entre a vida e a morte e sobre a literatura como um

valioso instrumento de confrontação do homem com a morte. O romance investigado

aqui é As intermitências da morte, José Saramago. Ele nos fará refletir a morte a

partir da sua não existência, fazendo uso do sobrenatural para criar uma reflexão

com o real. No romance, o uso do sobrenatural presente servirá para nos fazer

pensar a morte sob outra perspectiva, um tanto quanto inusitada, ou seja, pela de

sua ausência. Pois é isso que é discutido no romance: como ficaria a humanidade

sem a existência da morte, sem que as pessoas morressem. Veremos que a arte

então, e a literatura em especial, torna-se uma ponte entre a vida e a morte. A

literatura passa a ser um valioso instrumento de confrontação do homem com a

morte, uma vez que o texto literário acaba servindo para atenuar o medo que tal

certeza provoca.

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ABSTRACT

The following work is a discussion about how art and literature put life and

death together and about literature can be a rich instrument of men’s confrontation

with death. The investigated novel, José Saramago’s Death at intervals, leads us to

think about death from its inexistence, by using the supernatural to make a

connection with the reality. In the novel, the usage of the supernatural makes us think

about death under a different perspective, a little unusual, because of its non-

existence. This is what is discussed in the novel: how the humankind would be if

death did not exist, if people could not die. We will see then that art, especially

literature, becomes a bridge between life and death. Literature becomes a rich

instrument for men to face death, since the literary text sometimes softens the fear

caused by the certainty of mortality.

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SUMÁRIO

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................

2. CAPÍTULO I – A LITERATURA DOMANDO O MEDO ...........................

2.1. DOS MEDOS .....................................................................................

2.2. DO FANTÁSTICO .............................................................................

2.3. DO ESTRANHO.................................................................................

2.4. DO MARAVILHOSO..........................................................................

2.5. A PRESENÇA DO INSÓLITO NO FANTÁSTICO, NO ESTRANHO

E NO MARAVILHOSO..............................................................................

3. CAPÍTULO II – JOSÉ SARAMAGO E A MIRABILIA DA MORTE............

3.1. O NOVO REALISMO ........................................................................

3.2. O MARAVILHOSO EM SARAMAGO ...............................................

3.2.1. A JANGADA DE PEDRA ....................................................

3.2.2. O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS.............................

3.2.3. AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE.....................................

4. CAPÍTULO III – A MORTE, A RELIGIÃO, A FILOSOFIA E ARTE...........

4.1 A EXPERIÊNCIA DA PRÓPRIA MORTE NA MORTE DO OUTRO..

4.2 MORRER É ALGO NATURAL ..........................................................

4.3. DOMINADOS PELO MEDO .............................................................

4.4. CONFRONTRANDO OS NOSSOS MEDOS ....................................

4.5. FILOSOFAR COM ARTE .................................................................

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................

REFERÊNCIAS...............................................................................................

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho é um diálogo estabelecido com o romance de José

Saramago, As intermitências da morte, no intuito de se compreender alguns

aspectos utilizados pelo autor na construção da imagem da morte.

Embora sejam muitos os autores que fizeram da morte a temática ou o

personagem das suas obras, são poucos que conseguem um nível de

desobrenaturalização da imagem da morte nos domínios da ficção. E é exatamente

isso que nos intriga: Saramago consegue impregnar a imagem da morte de um tal

teor de humanização que os efeitos da narrativa conduzem o leitor a uma nova

forma de vislumbrar a relação do homem com essa verdade inexorável, isso no

sentido de dizer que o autor português traz à tona zonas obscuras ou inusitadas e,

talvez, nunca dantes pensadas sobre o tema da morte. Portanto, a escolha desta

obra deveu-se ao fato de nos interessarmos por uma prática literária que, ao assumir

determinadas possibilidades, denomina-se ora de realismo fantástico, ora de

realismo estranho, ora de realismo maravilhoso. Essas três perspectivas, ao que

tudo indica, possuem uma zona de interseção que é o sobrenatural que poderá ser

confirmado ou não como uma forma de manifestação concreta em uma determinada

obra. Melhor explicando, há em algumas obras fatos ditos sobrenaturais e que,

posteriormente vêm a ser explicados, anulando com isso toda a extraordinariedade

que nelas se fazem presentes, como acontece no realismo estranho.

No primeiro capítulo desta dissertação, para começarmos a tratar de como a

arte trabalha o medo da morte, analisaremos as manifestações do medo a partir de

Howard Phillips Lovecraft em El horror en La literatura, que afirma que a narrativa

sobrenatural deve ser observada pela forte carga de emoção que causa no leitor,

contudo, notaremos que Todorov em Introdução à literatura fantástica, apontará para

outro caminho, a saber, que nem toda sobrenaturalidade é capaz de gerar esse

pavor.

Em seguida, há uma comparação entre o fantástico, o estranho e o

maravilhoso que, sem embargo, são categorias que serão utilizadas para

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esboçarmos algumas inferências sobre a imagem da morte em As intermitências da

morte.

No segundo capítulo, procuraremos evidenciar a predileção de José

Saramago pela temática da morte em algumas de suas obras, o que culminará

finalmente no romance As intermitências da morte. Inicialmente, falaremos do novo

realismo tão difundido na América espanhola e observaremos como José Saramago

dele se utiliza para a manifestação do seu pensamento. Para tal demonstração,

rastrearemos algumas de suas obras e elegeremos basicamente três delas para

ensaiarmos algum nível de análise. São elas: A jangada de pedra, O ano da morte

de Ricardo Reis e As intermitências da morte, nosso corpus investigativo.

Ainda no segundo capítulo, como um exercício de reflexão sobre o que vêm a

ser as três possibilidades de realismo segundo as idéias de Todorov, Irlemar

Chiampi, Filipe Furtado e outros autores, ousamos inserir algumas obras elencadas

de José Saramago no maravilhoso como forma de demonstrar a escolha do escritor

por esta prática de realismo, ou seja, a não-predileção pelas ambigüidades ou

incertezas, visto que ele se propõe a manter um diálogo franco com o seu leitor sem,

no entanto, optar pela hesitação tão presente no realismo fantástico. As imagens

fantasmagóricas utilizadas nos seus romances tendem a ser encaradas como

naturais, anulando assim o terror defendido por Lovecraft causado pela presença do

sobrenatural.

O uso do sobrenatural presente em As intermitências da morte servirá para

nos fazer pensar a morte sob outra perspectiva, um tanto quanto inusitada, ou seja,

por meio de sua ausência. Pois é isso que é discutido no romance: como ficaria a

humanidade sem a existência da morte, sem que as pessoas morressem.

Por outro lado, ao nos debruçarmos sobre a temática da morte, estaremos

tentando compreender um importante papel que tem a arte e, mais especificamente,

a literatura, que é o de aproximar o homem do seu maior inimigo, de sua maior

angústia. Como coube ao ser humano entre os demais seres vivos ter a consciência

de sua finitude, restou a ele criar mecanismos que o fizessem refletir essa sua não-

permanência entre os viventes, e de ter a certeza de que o seu tempo de vida é

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breve. A arte então (e a literatura em especial) torna-se uma ponte entre a vida e a

morte, passa a ser um valioso instrumento de confrontação do homem com a morte,

uma vez que o texto literário acaba servindo para atenuar o medo que tal certeza

provoca.

No terceiro capítulo, discutimos a morte a partir de um diálogo possível entre

algumas perspectivas da religião, da filosofia e da arte em As intermitências da

morte. Analisamos como a literatura contribui para a ampliação desse diálogo.

Assim, veremos que o homem tem a sua experiência de morte na morte do outro.

Por outro lado, observaremos também que, neste seu romance, Saramago rompe

com esta experiência humana ao não permitir aos seus personagens tal vivência.

Como uma forma de fazer a morte ser pensada e imaginada de outra maneira, ele

anula, inicialmente, a presença da morte que se torna um fenômeno tão natural

como o amanhecer e o anoitecer. Ele nos fará ver a ausência da morte como algo

que faz parte da natureza, do existir. E com isso, possibilitará um amplo diálogo com

autores como Françoise Dastur, Schopenhauer, Roberto DaMatta, bem como com o

próprio José Saramago.

Outra análise contida neste terceiro capítulo é a que irá tratar do medo e as

suas implicações. Esta discussão nos fará ver que, por conta do medo da morte, o

homem torna-se mais frágil em suas emoções e, por conta disso, se torna um alvo

fácil para toda e qualquer promessa de vida eterna. Poderemos ver o quanto o autor

do romance critica a religião cristã e, em especial, a igreja católica, ao afirmar que o

que mantém os fiéis em constante profissão de fé é o medo que as pessoas têm em

não continuarem a existir após a morte. Observaremos como a igreja se posiciona

como o verdadeiro caminho que conduz o homem à glória eterna, como a religião

atua à maneira de um instrumento de controle social e como o homem faz uso dela

para a manipulação das pessoas. Em seguida, analisaremos a morte por outra

perspectiva, ou seja, pela capacidade que tem o homem de confrontá-la.

Perceberemos que a religiosidade humana é mais uma maneira de manter a certeza

da morte o mais distante possível, de maneira que se possa viver sem o domínio

dessa aflição. Notaremos que outra forma de manter a morte distante do homem é a

não realização dos funerais nas residências. Além disso, analisaremos o quanto a

despedida do morto não mais será a sua despedida da sua cidade, da sua

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sociedade, pelo fato de a cidade não comportar mais tais festividades em razão de

uma extrema velocidade do existir. Observaremos como podemos confrontar os

nossos medos fazendo uso da religião, da filosofia e das artes como uma maneira

de resistir a nossa maior angústia. Utilizaremos também outras linguagens artísticas

como um modo de ampliar a discussão e para isso, analisaremos dois filmes: O

primeiro será À espera de um milagre e o segundo, O homem bi-centenário. Como

ambos os filmes trazem uma boa abordagem sobre questões como a morte e o

envelhecimento, acreditamos que contribuirão para o enriquecimento das nossas

discussões. Por fim, veremos como é possível filosofar com arte, ou melhor, como

as artes auxiliam o homem em suas reflexões mais profundas.

Portanto, se “no dia seguinte ninguém morreu” (SARAMAGO, 2005, p.11), foi

para nos fazer refletir sobre a importância da morte em nossas vidas e o quanto

morrer e viver são, em verdade, uma unidade, são, por assim dizer, indissociáveis.

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2. CAPÍTULO I

A LITERATURA DOMANDO O MEDO

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2.1. DOS MEDOS

Lovecraft escreve que “la emoción más antigua y más intensa de la

humanidad es el miedo, y el más antiguo y más intenso de los miedos es el miedo a

lo desconocido” (LOVECRAFT,1989,p.7). E como reagir a tão forte sentimento? Sem

dúvida, enfrentando-o, porém como enfrentar o maior de todos os desconhecidos,

ou seja, a morte? A religião, a arte, a filosofia e a ciência, cada uma em seus

domínios, contribuem para minimizar o impacto desta que é a maior das aflições

humanas. No caso da literatura, ao fazer da morte um dos seus temas principais, o

resultado é que o que, a princípio, é desconhecido e, por isso mesmo, temeroso,

passa a ser um pouco mais familiar, ou seja, um pouco menos desconhecido e,

dessa forma, o temor da morte é atenuado.

Ao referir-se às grandes histórias, diz Umberto Eco: (...) “Os contos “já feitos”

nos ensinam também a morrer.” (ECO, 2003,p. 21). Há muito tempo, a literatura tem

sido um importante instrumento de reflexão sobre os nossos temores. Um bom

exemplo deste tratamento de revelação das agruras da morte está contido na obra

de Aleilton Fonseca, O desterro dos mortos. No conto O avô e o rio, a naturalidade

com que a morte é apresentada ao leitor deixa claro o quanto o morrer faz parte da

vida.

Vô foi ficando menos forte. Já enchia menos cada carro, mas sem coragem para me mandar fazer o mesmo. Demorava tanto no percurso que dava tempo de eu encher o carrinho e esperar. Um dia fiquei preocupado. Vô pegou a velha pá e tirou do carro que eu quase enchera, três bons punhados. Pôs as mãos nas costas, à altura dos quadris, e vergou o corpo duas vezes, consertando-se. Eu o observei, primeiro surpreso. Ele me olhou em silêncio, e triste. As lágrimas se insinuaram em meus olhos. Um dia, vô não me veio chamar na cama como fazia. Abri os olhos e não ouvi o intenso canto dos pássaros da manhã. Era tarde, as réstias de sol entrando pelas telhas vãs me mostravam. Vô perdera a hora? Meu coração apertou como nunca eu sentira. Minhas lágrimas inundaram o sol que fazia lá fora. No quarto ao lado, vô dormia, o semblante plácido no corpo fatigado, para sempre... (FONSECA, 2001, p. 35-36)

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Entretanto, a literatura tem trabalhado a temática da morte de outras maneiras

que, sem embargo, constituem-se em formas alternativas ao realismo que

predomina em obras que apresentam a morte como um fato inexorável da

existência. Uma dessas maneiras é o que se convencionou denominar de fantástico,

ou seja, uma tendência que utiliza os limites da realidade em que vivemos e o que

pode ser imaginado como além desses limites — uma presença ambígua constante

entre o real e o sobrenatural — em que os nossos fantasmas passam a conviver

com as nossas imagens lógicas.

Outra tendência próxima ao fantástico é o maravilhoso. A relação entre

ambos é tão estreita que seria difícil tentar compreender um sem buscar entender o

outro. Todorov nos faz entender que o maravilhoso é a aceitação do sobrenatural

(TODOROV, 1975, p. 60).

Como o escopo deste trabalho dissertativo é uma reflexão sobre a imagem da

morte na obra de José Saramago As intermitências da morte e, como pretendemos,

nos limites da ficção literária, conhecer até que ponto dispomos de outra maneira de

pensarmos o desconhecido, torna-se imprescindível que saibamos estabelecer as

possíveis diferenças entre uma ficção de tendência fantástica, uma de tendência

estranha e uma de tendência maravilhosa, três possibilidades de se trabalhar temas

que envolvem o desconhecido como a morte e que, mutatis mutandis, foram

largamente exploradas por autores contemporâneos como José Saramago.

2.2. DO FANTÁSTICO

Se recorrêssemos a um dicionário para sabermos a definição de fantástico,

por certo encontraríamos: 1) que ou aquilo que só existe na imaginação, na fantasia;

2) Que é extravagante, caprichoso; 3) que é fora do comum; 4) que não tem

veracidade1. No fragmento abaixo do romance Pedro Páramo, obra do escritor

mexicano Juan Rulfo, Juan Preciado se vê envolvido em um ambiente ambíguo em

1 HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda., 2001.

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que realidade e incertezas se mesclam a todo instante. Percebemos que na trama o

personagem acaba por contaminar o leitor com as suas dúvidas, com suas

imprecisões.

- Iré con usted. Aquí no me han dejado en paz los gritos. ¿No oyó lo que estaba pasando? Como que estaban asesinando a alguien. ¿No acaba usted de oír? - Tal vez sea algún eco que está aquí encerrado. En este cuarto ahorcaron a Toribio Aldrete hace mucho tiempo. Luego condenaron la puerta, hasta que él se secara; para que su cuerpo no encontrara reposo. No sé cómo has podido entrar, cuando no existe llave para abrir esta puerta. - Fue donã Eduviges quien abrió. Me dijo que era el único cuarto que tenía disponible. - ¿Eduviges Dyada? - Ella. - Pobre Eduviges. Debe de andar penando todavía. (RULFO, 1991, p. 44-45)

Tradução:

- Vou com você. Aqui os gritos não me deixam em paz. Você não ouviu o que aconteceu? Era como se alguém estivesse sendo assassinado. Você não ouviu? - Talvez seja algum eco que esteja fechado aqui dentro. Neste quarto Toribio Aldrete foi enforcado há muito tempo atrás. Depois a porta foi condenada até que ele ficasse seco; afim de que seu corpo não encontrasse descanso. Não sei como você entrou, já que não há chave para abrir a porta. - Foi Dona Eduviges quem a abriu. Ela me disse que era o único quarto que tinha disponível. - Eduviges Dyada? - Ela mesma. - Pobre Eduviges. Talvez ainda ande penando por aí2.

O texto sugere-nos algumas questões: tinha ou não Juan Preciado escutado

gritos? Estaria ou não Eduviges a andar penando? Foi ela mesma quem abriu a

porta? Notamos então que, no texto, a realidade está contaminada de situações que

2 Todas as traduções presentes nesse trabalho dissertativo foram realizadas pelo seu autor.

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remetem o leitor a um mundo de incertezas. Em outro excerto, o clima de

desconfiança com a realidade apresentada é mantido.

- Ya te he dicho que yo no sueño nunca. No tienes consideración de mí. Estoy muy desvelada. Anoche no echaste fuera al gato y no me dejó dormir. - Durmió conmigo, entre mis piernas. Estaba ensopado y por lástima lo dejé quedarse en mi cama; pero no hizo ruido. - No, ruido ni hizo. Sólo se la pasó haciendo circo, brincando de mis pies a mi cabeza, y maullando quedito como si tuviera hambre. - Le di bien de comer y no se despegó de mí en toda la noche. Estás otra vez soñando mentiras, Susana. - Te digo que pasó toda la noche asustándome con sus brincos. Y aunque sea muy cariñoso tu gato, no lo quiero cuando estoy dormida. - Ves visiones, Susana. Eso es lo que pasa. (RULFO, 1991, p. 113)

Tradução:

- Eu já te falei que eu não sonho nunca. Você não tem consideração por mim. Ontem à noite você não colocou o gato do lado de fora e ele não me deixou dormir. - Ele dormiu comigo, entre minhas pernas. Ele estava todo molhado e por pena deixei que ele ficasse em minha cama; mas ele não fez nenhum barulho. - Não, barulho ele não fez. Ele só ficou fazendo malabarismo, pulando dos meus pés a minha cabeça, e miando quietinho como se estivesse com fome. - Eu lhe dei bastante comida e ele não se afastou de mim durante toda a noite. Você está outra vez está sendo enganada pelo sonho, Susana. - Eu te digo que passou toda a noite me assustando com seus pulos. E ainda que teu gato seja muito carinhoso, eu não o quero perto de mim quando eu estiver dormindo. - Você está tendo visões, Susana. Isso é o que está acontecendo.

Era ou não o mesmo gato que estava na cama com Susana? Estaria ela

sonhando ou o que acontecia era real? Tinha Justina dormido e não percebeu que o

gato saíra e fora estar na casa com Susana? Este clima de imprecisão norteia o

fantástico, a presença constante da dúvida é o que o constitui.

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No fantástico, as respostas podem ser várias e uma possível escolha por uma

ou outra possibilidade poderá nos remeter às outras espécies vizinhas, ou seja, ao

estranho ou ao maravilhoso. No estranho, a condição é que um fato contido na obra

deverá vir a ser explicado por fenômenos ditos naturais; o leitor é inserido em fatos

que estão a fazer parte de sua realidade e os fenômenos sobrenaturais surgem para

confundi-lo. No fantástico, menos se necessita de uma explicação para os fatos, do

que uma convivência inquietante entre o narrado e o vivido.

... o gênero tenta suscitar e manter por todas as formas o debate sobre esses dois elementos cuja coexistência parece, a princípio, impossível. A ambigüidade resultante de elementos reciprocamente exclusivos nunca pode ser desfeita até o termo da intriga, pois, se tal vem a acontecer, o discurso fugirá ao gênero mesmo que a narração use de todos os artifícios para nele conservar. (FURTADO, 1980, p. 35-36)

Com efeito, o que faz o fantástico são esses nós de imprecisões que devem

se manter até o fim, evitando assim somente uma resposta para os acontecimentos

apresentados.

Na obra de Frederik Forsyth, O pastor, um acontecimento passaria

despercebido se, ao final da trama, um questionamento não pairasse no ar, dando

assim ao leitor e ao personagem a dúvida e a possibilidade de mais de uma

resposta: um piloto inglês que ia passar suas férias de natal na Inglaterra com sua

família, num vôo que saiu da Holanda, se vê em apuros ao atravessar o Mar do

Norte. Em um ambiente de muita neblina e escuridão, há uma pane nos

equipamentos que o deixa sem comunicação, perdido e quase sem combustível; eis

que surge outro avião e o auxilia, conduzindo-o a uma pista na qual consegue fazer

um pouso tranqüilo e seguro. Entretanto, ao questionar o salvamento com um

comandante de uma torre após o pouso e, ao saber que o avião que o auxiliou não

mais fazia parte das aeronaves que eram utilizadas nos resgates de outras,

inevitavelmente lhe sobreveio a pergunta: quem o salvou? Estando já seguro em

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terra e acomodado, encontra uma fotografia na qual imagina ver o piloto e o avião

que o resgatou:

Tirei os olhos da fotografia e apaguei o cigarro do cinzeiro ao lado da cama. Joe estava a caminho da porta. - Era um homem notável – disse eu com toda a sinceridade. Ainda agora, já de meia-idade, era um piloto soberbo. - Sem dúvida, era excepcional – disse Joe. – Ainda me lembro de Johnny me dizer um dia, aí mesmo nesse lugar onde o senhor está diante do fogo: “Joe, sempre que houver alguém perdido lá fora, no meio da noite, tentando voltar, hei de sair ao encontro dele a fim de trazê-lo para terra”. Fiz um sinal comovido de assentimento. Era evidente que o velho adorava o seu oficial do tempo de guerra. - Bem, ao que parece, ele ainda está fazendo a mesma coisa, sabia? O velho sorriu. - Infelizmente, isso não é possível. Johnny saiu no seu último vôo de patrulhamento na noite de natal de 1943. Fez exatamente quatorze anos esta noite. Caiu com o avião em algum ponto do Mar do Norte. Boa noite, Tenente. Feliz Natal. (FORSYTH, 1975, p. 68 e 70)

O piloto e o leitor são inseridos na imprecisão que os leva a questionar sobre

quem realmente serviu de pastor ou guia para o piloto perdido. Não fica claro se o

salvamento foi obra de alguém que estava disposto a ajudar pessoas em perigo ou

obra do desconhecido. Tais acontecimentos desviam-se das características lógicas

do que se convencionou chamar de realidade, sobretudo da lógica que permite

algum grau de certeza, de confiabilidade, e remetem, em algum momento, para o

que se poderia chamar de alternativa à experiência de realidade, ou seja, à

sobrenaturalidade que é pregada, divulgada e aceita, em maior ou menor grau, em

praticamente todas as sociedades ocidentais.

Outro recurso muito utilizado para produzir a incerteza da narrativa fantástica

tem sido o uso do sonho.

- ¡ Justina ! – le dijeron. Ella volvió la cabeza. No vio a nadie; pero sintió una mano sobre su hombro y la respiración en sus oídos. La voz en secreto: “ Vete de aquí, Justina. Arregla tus enseres y vete. Ya no te necesitamos.”

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- Ella sí me necesita – dijo, enderezando el cuerpo - Está enferma y me necesita. - Ya no, Justina. Yo me quedaré aquí a cuidarla. - ¿ Es usted, don Bartolomé? – y no esperó la respuesta. Lanzó aquel grito que bajó hasta los hombres y las mujeres que regresaban de los campos y que los hizo decir: “Parece ser un aullido humano; pero no parece ser de ningún ser humano.” La lluvia amortigua los ruidos. Se sigue oyendo aún después de todo, granizando sus gotas, hilvanando el hilo de la vida. - ¿Qué te pasa, Justina? ¿Por qué me gritas? – Preguntó Susana San Juan. - Yo no he gritado, Susana. Has de haber estado soñando. - Ya te he dicho que yo no sueño nunca. (RULFO, 1991, p. 112 e 113)

Tradução:

- Justina! – disseram. Ela virou a cabeça. Não viu ninguém. Mas sentiu uma mão em seus ombros e a respiração em seus ouvidos. A voz secretamente: “Sai daqui, Justina. Pega tua mobília e sai. Não precisamos mais de você”. - Ela sim precisa de mim. Disse levantando o corpo. – Está doente e necessita de mim. - Não mais, Justina. Eu ficarei aqui e cuidarei dela. - É o senhor, Sr. Bartolomé? – E não esperou a resposta. Gritou para os homens e mulheres que voltavam do campo e que fez com que eles dissessem: “Parece ser um grito humano; mas não parece ser de nenhum ser humano”. A chuva amortece o barulho. Segue-se ainda escutando depois de tudo, as gotas de granizo, dando continuidade ao fio da vida. - O que está acontecendo contigo, Justina? Porquê você está gritando? – Perguntou Susana San Juan. - Eu não gritei. Susana. Talvez você esteja sonhando. - Eu já te disse que eu nunca sonho.

Esta prevalência em criar e manter uma forte atmosfera de ambigüidades é

que faz do realismo fantástico uma temática diferente ao anular toda e qualquer

possibilidade de haver “verdades”. O que há a todo instante são dúvidas em que o

verossímil nada mais é que uma camuflagem utilizada no processo narrativo.

Segundo Furtado, há “uma organização dinâmica de elementos que mutuamente

combinados ao longo da obra conduzem a uma verdadeira construção de equilíbrio

difícil” (FURTADO,1980,p.15). E ele vai além ao afirmar que “é da rigorosa

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manutenção desse equilíbrio, tanto no plano da história como no do discurso, que

depende a existência do fantástico na narrativa” (idem, ibidem).

Pode-se definir o fantástico como a existência de um mundo em que

acontecimentos estranhos acontecem, mas sem que estes possam ser explicados

como se explicam os fenômenos naturais com os quais estamos acostumados a

lidar. Todorov vai ainda mais longe ao dizer que:

Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão de sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário; ou então existe realmente, exatamente como os outros seres vivos: com a ressalva de que raramente o encontramos. (TODOROV, 1975, p. 30-31)

Ao penetrarmos nessa prática literária, somos conduzidos a uma realidade na

qual nos reconhecemos, ao mesmo tempo em que estamos familiarizados com

personagens como demônios, seres alados, anjos, fadas e outros. Personagens que

abundam em nosso imaginário e que servem de farto material para a construção das

narrativas fantásticas. No entanto precisa ser mantido o caráter ambíguo do

fantástico, a dúvida deve manter-se presente até o fim numa relação constante entre

o real e o imaginário.

Todorov aponta para outra particularidade que é a hesitação. Segundo ele, “é,

pois a primeira condição do fantástico” (TODOROV,1975,p.37) que, no entanto,

pode não se fazer presente em todas as obras de teor fantástico, mas que está

contida na maior parte delas.

Em El otro yo, de Mario Benedetti, a presença do duplo – o eu que se divide –

sinaliza a presença do fantástico sem que haja a hesitação como condição de

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prevalência: o jovem Armando possuía um outro eu com o qual divergia em

pensamentos e atitudes. Um dia, de tão indignado, resolve gritar com o outro eu que

o atormentava. No dia seguinte, o outro eu de Armando havia morrido e então ele

pôde ver-se livre do incômodo. Mas, ao passear feliz por uma rua por onde alguns

dos seus amigos caminhavam e se aproximavam dele, percebe que estes o

ignoram. Os amigos não o reconhecem e ele nota que eles sentiam a falta do outro

eu que era parte integrante da sua vida. Neste conto não há a hesitação, no entanto,

a ambigüidade está presente. Ao não ser reconhecido, Armando sente uma falta de

ar, porém não pôde ficar triste, porque o outro eu lhe havia levado toda a tristeza,

logo,

o fantástico implica portanto não apenas a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no herói; mas também numa maneira de ler, que se pode por ora definir negativamente: não deve ser nem “poética”, nem “alegórica” (TODOROV, 1975, p. 38)

E não somente isso, mas numa “nova” forma de escrever. Evidentemente não

tão nova assim. Atribui-se a presença do fantástico “desde Homero e As mil e uma

noites: Dorothy Scarborough (1917), Montague Summers (1969), Luis Vax (1970),

Jorge Luis Borges e outros”. (RODRIGUES,1988, p.16 e 17).

Em outro conto de Mario Benedetti, Los bomberos, do livro La muerte y otras

sorpresas, o autor inverte a realidade. Aquilo que é estranho, torna-se digno de

louvores: Olegário, que podia prever o futuro e era parabenizado sempre por seus

amigos por isso, tem a visão de que sua casa estava em chamas. Ao tomar um táxi

em direção ao lugar onde reside, verifica um grande movimento dos bombeiros. No

trajeto, ele sempre está a dizer que sua casa está em chamas. Ao chegar, desce do

táxi e vê maravilhado que a sua adivinhação era verdade e espera ser parabenizado

pelos seus amigos por este grande feito.

Neste caso, prever o futuro é uma expectativa de grande positividade. Seria

humanamente improvável alguém ver a sua própria casa ardendo em chamas e não

movimentar-se para apagá-las. E mais, ter a capacidade de antever o fato e, no

entanto, esperar que este se confirme para que se pudesse ter a certeza da

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existência dos poderes, no caso de Olegário, “suscita no destinatário do enunciado

uma ilusão de confiança na “imparcialidade” do narrador, tornando-se assim um

importante fator de verossimilhança” (FURTADO,1980, p.67). De maneira que, “o

verossímil deverá ainda atuar como elemento de dissimulação, tornando-se, afinal,

uma espécie de máscara dos processos que utiliza” (idem,ibidem, p.47). Até porque,

quando se opta por esta modalidade, quer escritor, quer leitor, empreende-se um

desafio aos limites que estabelecemos para a leitura do real e, com isso, indagamos

sobre um mundo que vai muito além do real. E fica o leitor, em especial,

condicionado a encontrar-se com um mundo distante do que entende por real.

Na prática do fantástico, pode parecer fácil a idealização, contudo, o que se

observa é que, “longe de resultarem da completa e desenfreada liberdade de

imaginação que quase sempre procuram aparentar, a história e o discurso

fantásticos são, pelo contrário, objeto de calculada contenção e censura” (idem,

ibidem, p.51).

Estamos diante de uma narrativa blindada por uma camuflagem que expressa

uma verdade para fatos irreais. O escritor Juan Rulfo, por exemplo, elabora sua

narrativa com essa camuflagem e consegue alterar a realidade por meio de uma

“racionalização de tudo o que de alucinante acontece”. (idem,ibidem, p.64.)

Como usted sabe, no es fácil ajuarear las cosas en un dos por tres. Para eso hay que estar prevenido, y la madre de usted no me avisó sino hasta ahora. - Mi madre – dije - , mi madre ya murió. - Entonces ésa fue la causa de que su voz se oyera tan débil, como si hubiera tenido que atravesar una distancia muy larga para llegar hasta aquí. Ahora lo entiendo. ¿Y cuánto hace que murió? - Hace ya siete días. - Pobre de ella. Se ha de haber sentido abandonada. Nos hicimos promesa de morir juntas. De irnos las dos para darnos ánimo una a la otra en el otro viaje, por si se necesitara, por si acaso encontráramos alguna dificultad. - (…) - Yo creía que aquella mujer estaba loca. Luego no creí nada. Me sentí en un mundo lejano y me dejé arrastrar. (RULFO, 1991, p. 16 e 17.)

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Tradução:

Como você sabe, não é possível ter tanta certeza assim das coisas. Para isso, é importante estar prevenido e tua mãe não me avisou senão agora. - Minha mãe – disse – minha mãe morreu. - Então essa foi a causa de que ouvi a voz dela tão distante, como se tivesse que atravessar uma distancia muito longa para chegar até aqui. Agora eu entendo. Faz muito tempo que ela morreu? - Faz sete dias. - Pobre dela. Ela se sentiu abandonada. Nós fizemos uma promessa de morrermos juntas. De irmos as duas para que déssemos ânimo uma à outra na outra viagem, caso fosse necessário, se por ventura encontrássemos alguma dificuldade. - (...) - Eu achava que aquela mulher estava louca. Depois não achei mais nada. Me senti em um mundo distante e me deixei levar.

Notamos neste fragmento de Pedro Páramo que Rulfo tenta e consegue

manter a dúvida, a incerteza: Eduviges afirma a Juan Preciado que havia escutado a

mãe dele e que, ao mesmo tempo, ambas prometeram morrer juntas para que se

fortalecessem no caminho para o outro mundo. Além disso, ele, Juan Preciado,

pensa estar Eduviges louca e, em seguida, não pensa mais em nada disso. Rulfo,

na tentativa de manter as amarras da ambigüidade psicológica, cria este efeito de

certezas e incertezas.

Outra importante obra em que estas incertezas se manifestam é Manuscrito

encontrado em Saragoça, de Jean Potocki. O jovem Afonso Van Worden, capitão

dos Guardas Valões, faz uma viagem de quatorze jornadas pela Espanha,

acompanhado de um criado e de um garoto. Na primeira, seus criados desaparecem

e, sem mantimentos, abriga-se faminto em uma estalagem abandonada. Cansado e

preocupado com o desaparecimento dos criados, alimenta a sua mente com os mais

sombrios pensamentos: “à medida que a noite se ia tornando mais escura, mais

sombrios se iam tornando os meus pensamentos” (POTOCKI,1971, p.16). De

madrugada, ao ouvir as doze badaladas de um sino na estalagem, surpreende-se

com a presença de uma negra seminua que o convida a comer juntamente com

umas damas.

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A negra foi-se aproximando, fez uma profunda reverência e disse-me em espanhol muito correto: - Senhor cavaleiro, umas damas estrangeiras que estão a passar a noite nesta pousada, rogam-vos que queirais compartilhar com elas a sua ceia. Tende a bondade de seguir-me. (POTOCKI, 1971, p. 17.)

Apresentado a duas lindas irmãs chamadas de Emina e Zibedéia, vestidas

com roupas poucas e transparentes, cercado ainda por outras negras seminuas,

Afonso Van Worden se vê encantado pela beleza dessas mulheres, surgidas na

madrugada.

As duas desconhecidas dirigiram-se a mim com ar natural e afável. Eram duas belezas perfeitas; uma grande, esbelta, deslumbrante, a outra enternecedora e tímida. A mais majestosa tinha uma figura tão admirável como o seu rosto. A mais nova era roliça, os lábios um tanto carnudos as pálpebras semicerradas, mal deixando ver as pupilas ocultas pelas pestanas de um comprimento extraordinário. (idem, ibidem, 1971, p. 18.)

O ápice deste encontro se dará quando o jovem capitão começa a questionar

a realidade que está vivenciando, quando ele se sente acompanhado por demônios

disfarçados de mulheres.

Durante algum tempo pude contemplá-las com serenidade. Porém os seus movimentos, animados por uma cadência cada vez mais rápida, o ruído perturbador da música mourisca, o meu espírito agitado por uma refeição inesperada, tudo se aliava para me perturbar a razão. Já não sabia se eram mulheres, se demônios disfarçados de mulheres. Já não ousava olhá-las – já não queria vê-las. Cobri os olhos com as mãos e senti-me desfalecer. (POTOCKI, 1971, p.19.)

Com efeito, o personagem é afetado justamente na área que nos distingue

dos outros animais, a razão. Ele tem os seus sentidos alterados pelos vários

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acontecimentos que se sucedem durante o seu encontro com Emina e Zibedéia. A

lógica tão fundamental nas ações humanas é posta de lado uma vez que a dúvida

deve prevalecer. Segundo Mclnerny, “ser lógico pressupõe forte consciência do

modo como os fatos que são nossas idéias relacionam-se com os fatos que são

objetos do mundo, pois lógica tem a ver com verdade” (MCLNERNY, 2004, p.19).

Roger Caillois3 assevera: “Todo o fantástico é ruptura da ordem estabelecida,

irrupção do inadmissível no seio da inalterável realidade”. Além disso, “a fé absoluta

como a incredulidade total nos leva para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá

a vida” (TODOROV, 1975, p.36). É quando duas outras práticas vizinhas podem vir

a surgir: o estranho, como o sobrenatural explicado; o maravilhoso, como o

sobrenatural aceito. Para Todorov, no realismo estranho:

Relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos e que, por isso, provocam na personagem e no leitor reação semelhante àquela que os textos fantásticos nos tornaram familiar. (idem, ibidem, 1975, p. 53.)

Por outro lado, “no maravilhoso os elementos sobrenaturais não provocam

qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito”

(TODOROV, 1975, p. 60.) Sobre o efeito que causa no leitor por intermédio das

ações dos personagens e do narrador, diz Max Milner:

El género fantástico, tal como se desarrolla... confirma esta connivencia de base entre lo imaginario y la óptica, y la pone en acción en relatos en que el rebasar los límites, la puesta en comunicación de espacios incompatibles, la manipulación de las dimensiones y de las distancias, la creación de dobles artificiales o de copias, el dominio de la ilusión y la puesta en duda de sus prestigios dan lugar a una experimentación mental, de una intensidad y de una audacia sumamente particulares. (MILNER, 1990, p. 33 e 34.)

3 CALOIS, R. Au coeur du fantastique. Paris: Gallimard, 1965. Apud TODOROV, p. 32.

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Tradução:

O gênero fantástico tal como se desenvolve... confirma esta conivência de base entre o imaginário e a ótica e a põe em ação em relatos que ultrapassam os limites, põe em comunicação espaços incompatíveis, a manipulação das dimensões e das distancias, a criação de duplos artificiais ou de cópias, o domínio da ilusão e o por em dúvida as suas verdades dão lugar a uma experimentação mental, de uma intensidade e de uma audácia sumamente particulares.

E ele ainda acrescenta:

Gracias a la óptica fantástica, el hombre moderno despliega ante sus propios ojos, no sólo la escena de sus fantasmas con lo que en ella se desarrolla, sino también el propio mecanismo por el cual esos fantasmas surgen a la luz y las vías por los cuales se transforman en textos, es decir, en fuentes de goce para otro y en objetos de cultura. (MILNER, 1990, p. 33 e 34.)

Tradução:

Graças à ótica fantástica, o homem moderno realiza diante de seus próprios olhos, não somente a cena de seus fantasmas com o que nela se desenvolve, mas também o próprio mecanismo pelo qual esses fantasmas surgem à luz e os caminhos pelos quais se transformam em textos, ou seja, em fontes de gozo e em outros objetos de cultura.

É graças a esta ótica fantástica e, por que não dizer ilusão de ótica, que os

sujeitos envolvidos na realização da leitura do texto fantástico, a saber, os

personagens, o narrador e o leitor são iludidos por uma ambigüidade que lhes afeta

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os sentidos. Não é em vão que tal realismo foi cunhado por Franz Roh, em 1925, de

realismo mágico4.

Segundo Chiampi:

... a adoção do termo realismo mágico revelava a preocupação elementar de constatar uma “nova atitude” do narrador diante do real. Sem penetrar nos mecanismos de construção de um novo verossímil, pela análise dos núcleos de significação da nova narrativa ou pela avaliação objetiva de seus resultados poéticos, a crítica não pôde ir além do “modo de ver” a realidade. E nesse modo estranho, complexo, muitas vezes esotérico e lúdico, foi identificado genericamente com a “magia”. (CHIAMPI, 1980, p. 21.)

Independentemente da terminologia, que atualmente parece já sedimentada,

temos assim a possibilidade de, neste mundo mágico-literário, transitar por três

práticas que se assemelham e que, ao mesmo tempo, possuem suas

especificidades: o fantástico, o maravilhoso e o estranho.

2.3. DO ESTRANHO

Conforme foi observado, o fantástico é uma tendência da ficção que

apresenta como principal característica um determinado grau de hesitação que o

leitor experimenta por meio das ações, do discurso dos personagens e da forma de

narração. O fantástico também se situa numa zona intercessora entre duas outras

tendências ficcionais que são o estranho e o maravilhoso. Acreditamos que o

entendimento do estranho servirá para um aprofundamento na compreensão do

maravilhoso.

4 ROH, Franz. Realismo mágico. Postexpresionismo. Madrid: Revista de Occidente, 1927. Apud

CHIAMPI, 1980, p. 21.

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Segundo Todorov, se o leitor ou o personagem, ao estabelecerem o contato

com a narrativa de tendência fantástica, optarem por uma determinada solução que

os conduza a sair dessa tendência, então eles estarão indo em direção ao estranho

ou ao maravilhoso: “Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e

permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a outro tema:

o estranho” (TODOROV, 1975, p. 48).

Todorov auxilia-nos de maneira muito positiva na identificação dessas

tendências tão próximas. No caso específico do estranho, em geral, a narrativa

encontra-se repleta de fatos inexplicáveis que nos iludem a imaginação fazendo-nos

crer que tais acontecimentos pertencem verdadeiramente ao mundo da

sobrenaturalidade. Por certo, ante a leitura de uma obra que pertença ao estranho,

numa leitura isolada, analisando e nos prendendo a determinadas partes do texto, a

ligaremos, de imediato, ao fantástico. Sendo este o jogo estabelecido por nós,

leitores, fica claro então que, nessa leitura, o fantástico poderá desaparecer e não se

manterá em toda a narrativa e, além disso, ler a obra até o final é que nos dará a

condição de nos posicionarmos sobre a sua natureza, se realmente estranha ou

fantástica.

Começamos por dizer, então, que, no estranho, a sobrenaturalidade

imaginada é tão somente um efeito criado para disfarçar uma realidade conhecida,

ou seja, “acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história, no

fim, recebem uma explicação racional” (idem, ibidem, 1975, p. 51). Há um porém

que é preciso ser observado. Como estamos tratando de texto literário, a sedução

que leva o leitor a titubear diante da tendência que lhe é passada é construída por

palavras, ou seja, seduzido pela palavra, o leitor é enganado e direcionado a

acreditar numa “verdade” forjada pelo escritor e vivida pelo narrador e pelos

personagens. Essa manipulação também acontece no fantástico que, caso tenha os

seus acontecimentos insólitos explicados em algum momento da narrativa, dá lugar

ao estranho.

Um exemplo dessa passagem do fantástico para o estranho está na obra, já

citada anteriormente, Manuscrito encontrado em Saragoça de Jean Potocki: o jovem

Afonso Van Worden se vê envolvido em fatos inexplicáveis que confundem a sua

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mente sem, no entanto, impedirem que ele avance no seu objetivo de viajar para

Madrid sob a ordem do rei D. Felipe V.

Conforme foi citado, no caminho, o jovem capitão dos Guardas Valões perde

os seus dois criados que desaparecem de maneira inusitada, levando consigo

animais, comida e bebida. À noite, nas doze badaladas do sino, eis que uma negra

surge e o conduz a duas irmãs, cercadas de negras que se vestiam com pouca

roupa. Afonso, seduzido então pelas duas irmãs, Emina e Zibedeia, imagina estar

diante do próprio Satanás5. Todos os fatos, toda a atmosfera em que o jovem

encontra-se, o levam a imaginar que, em verdade, o que ele vive são eventos

sobrenaturais e que o local é amaldiçoado, porém, estando ele um dia em um

ambiente tranqüilo, tendo acordado mais cedo que o habitual, pôde refletir melhor

sobre tudo o que lhe havia acontecido até aquele presente momento:

Acordei mais cedo do que habitualmente e fui ao terraço para respirar mais à vontade, antes que o sol tivesse aquecido a atmosfera. O ar estava calmo. A própria torrente parecia ecoar com menos força e deixava ouvir o canto dos pássaros. A paz da natureza inundava a minha alma, e pude pensar com tranqüilidade no que me tinha acontecido desde o dia em que saí de Cádis. (POTOCKI, 1971, p. 109.)

Ora, toda esta reflexão de Afonso somente acontece na sua décima jornada

de um total de quatorze. Os eventos que o confundem são iniciados desde a

primeira e muitas coincidências ou não fazem com que ele vivencie fatos que, até

então, faziam parte de um acervo de memórias conhecidas, contudo, não-vividas.

Observa-se também que todo um clima é criado visando inserir o personagem e o

leitor na narrativa fantasmagórica. Cabe ao narrador, que é o próprio personagem

principal, fazer esta introdução:

O conde de Olavide ainda não tinha estabelecido colónias estrangeiras na Serra Morena e esta imponente cadeia de

5 Como não é objetivo nosso neste trabalho abordar questões étnico-raciais, não discutiremos aqui a demonização da mulher negra na obra de Potocki.

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montanhas que separa a Andaluzia da Mancha era habitada apenas por contrabandistas, bandidos e alguns ciganos que, segundo a lenda, comiam os viajantes que assassinavam. É esta a origem do provérbio espanhol: “As ciganas da Serra Morena querem carne de homens”. (POTOCKI, 1971, p. 11.)

Esta introdução da primeira jornada deixa claro que Afonso já possuía

informações sobre o ambiente hostil que ele deveria enfrentar durante a travessia,

entretanto, sendo jovem e cheio de coragem, se vê disposto a superar o medo e a

seguir adiante a serviço do rei Felipe V. E ele segue descrevendo o que poderá

encontrar na sua viagem:

Mas isto não é tudo. O viajante que se arriscava por esta região selvagem sentia o sangue gelar-lhe nas veias, assaltado por mil terrores, capazes de pôr os cabelos em pé ao mais valente: ouvia grandes lamentos que se misturavam com o ruído das torrentes e com o bramir das tempestades; luzes enganosas empurravam-no, como mãos invisíveis, para abismos sem fundo. Verdade seja que não faltavam, nessa estrada perigosíssima, algumas ventas ou albergues, muito afastados uns dos outros. Contudo, as almas do outro mundo, mais diabólicas que os próprios estalajadeiros, tinham obrigado estes a ceder-lhes o seu lugar e a retirarem-se para regiões onde o seu repouso apenas fosse perturbado pelos remorsos das suas consciências, fantasmas a que os estalajadeiros acabaram por se habituar. (POTOCKI, 1971, p. 11.)

O narrador nos insere num ambiente de medo, a fim de que vivamos também

as mesmas emoções sentidas pelo personagem que, neste caso, são a mesma

pessoa. Continuando:

O dono da pousada de Andújar, invocando o testemunho do apóstolo Santiago para os seus relatos maravilhosos, assegurou-me que os archeiros da Santa-irmandade se tinham recusado a acompanhar toda e qualquer expedição à Serra Morena e que os viajantes evitavam este percurso e tomavam o caminho de Jaen ou da Extremadura. A isto respondi que esses caminhos poderiam ser os mais convenientes para os viajantes vulgares, mas que tendo-me o rei D. Felipe V feito a graça de me honrar com o grau de capitão dos Guardas Valões, as leis sagradas da honra me obrigavam a

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viajar para Madrid pelo caminho mais curto, sem perguntar se esse era o mais perigoso. - Meu jovem Senhor – advertiu-me o estalajadeiro. – Vossa Mercê permitirá que lhe observe que se el-rei vos honrou com uma companhia de guardas antes que a idade vos tivesse honrado com o mais pequeno buço no vosso queixo, não será demais dar algumas provas de prudência. Nunca se sabe o que pode acontecer quando os demônios se apoderam de uma região. (POTOCKI, 1971, p. 11- 12.)

Enfim, chega-se ao ponto em que definitivamente é feita a introdução no

mundo dos acontecimentos insólitos. Ao narrar de forma direta a fala do

estalajadeiro, o narrador assinala o início do fantástico, tão necessário para o

desfecho final que irá inserir a obra no estranho. O leitor então é influenciado a

acreditar não somente na existência de tais seres espectrais, bem como que o

caminho a ser percorrido por Afonso lhe reserva muitos perigos. Isso evidencia o

quanto a palavra é capaz de envolver os sentimentos humanos e levar o leitor a crer,

ainda que momentaneamente, na informação que lhe é passada. Em Manuscrito

encontrado em Saragoça, narrador (que é o personagem principal) e leitor se

deixam envolver pela mensagem recebida. Ambos são lançados no caminho em que

o medo será o companheiro constante.

Diferentemente do fantástico e do maravilhoso, o estranho solicita que haja

um esclarecimento dos fatos ocorridos. É então que o autor busca trazer à luz o

acontecimento que ocasionou um instante de interrogação, de dúvida, que fez com

que houvesse um momento de forte ambigüidade típica do fantástico. Cabe ao autor

dar um desfecho no intuito de direcionar tanto leitor como personagem para os fatos

conhecidos no mundo real:

Algumas palavras que se escaparam de Manuel de Sá, governador daquela cidade, e que só recordei mais tarde, fizeram-me suspeitar que tinha algo que ver com a misteriosa existência dos Gomélez e que conhecia uma parte do seu segredo. Foi ele quem me forneceu os meus dois criados, Lopes e Mosquito, e suspeito que foi por sua ordem que me abandonaram à entrada do maldito vale de Los Hermanos. Minhas primas tinham-me com freqüência dado a entender que ia ser posto à prova. Pensei que me deviam ter dado em La Venta uma beberagem que me adormeceu, e que durante o sono me tinham transportado ao lugar da forca e me deixado

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debaixo dela. Pacheco talvez tivesse perdido o seu olho em qualquer outro acidente e não pelas suas relações amorosas com os dois enforcados. Provavelmente a sua terrível história era um conto. Quanto ao eremita, tentando sempre surpreender o meu segredo por meio da confissão, era sem dúvida um agente dos Gomélez que queria por a prova a minha discrição. (POTOCKI, 1971, p. 109.)

Em outro momento da narrativa, Afonso é surpreendido por outro

acontecimento que o deixa confuso, apesar de haver tido experiências anteriores

que não tinham nada de sobrenatural.

Uma manhã Ambrósio veio pedir-me que o substituísse por outro criado, que fosse valente, pois depois da meia-noite não era agradável estar ali, menos ainda na casa em frente. (...) Ambrósio tinha-me dito que este era o momento em que aparecia o fantasma. A luz passava de uma sala para outra, e de um andar para o outro, mas as persianas impediam-me de ver donde procedia a luz. (...) Na noite seguinte, instalei-me de novo no meu observatório e ao chegar a meia-noite, voltei a ver a mesma luz. Mas desta vez vi bem donde vinha. Uma mulher vestida de branco e levando uma vela atravessou lentamente todas as salas do primeiro andar, passou ao segundo e depois desapareceu. Na manhã seguinte, muito cedo, fui ver a duquesa, mas não estava. Dirigi-me à habitação do meu filho e notei certa inquietação e agitação entre as criadas. (...) Por fim a ama confessou-me que na noite anterior uma mulher vestida de branco tinha entrado no quarto do menino com uma vela na mão, o tinha abençoado, e se tinha ido embora. (...) Quando bateu a meia noite instalei-me no meu observatório da janela, donde podia ver o menino dormindo e a sua ama. Logo apareceu uma mulher vestida de branco com uma vela na mão. Acercou-se do berço, olhou longamente para o menino e abençoou-o. Depois, foi à janela e olhou durante algum tempo para onde eu estava. Finalmente, saiu da sala e vi luz no piso superior. A mesma mulher apareceu depois no telhado, passou ao telhado vizinho e desapareceu da minha vista. Confesso que a visão me deixou confuso. Mal dormi. (idem, ibidem, p. 215 e 216.)

Ao que parece, as experiências passadas, relacionadas ao mundo

sobrenatural, não foram suficientes para dar a Afonso a certeza de que não poderia

ser um fantasma o que ele estava vendo. Deveria haver uma explicação racional

para tal fato. No entanto, mais uma vez ele é confundido e levado a pensar na

possibilidade de estar diante de um espectro. De maneira que o leitor sempre

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imagina que existe a possibilidade de haver manifestações espectrais. Assim,

Afonso se vê aturdido ante tal situação vivenciada, porém, como já havia sido citado

anteriormente, no estranho haverá sempre uma explicação racional para tais

acontecimentos, exatamente o que acontece em seguida. A duquesa de Ávila, que

não mais queria dar-se em casamento, apaixonou-se por Afonso, contudo,

desconfiada do amor dele, fez-se passar por Leonora Avadoro, com quem ele se

casou. Entretanto, para a duquesa seria muito difícil permanecer guardando tal

segredo, de modo que se retirou para passar uns meses em uma de suas

propriedades em Ávila. Afonso havia sido informado que a sua mulher Leonora

estava morta e ele acreditava que talvez a mulher vista tivesse sido o fantasma de

sua esposa. Sem embargo, coube ao cavaleiro de Toledo explicar-lhe o que

realmente aconteceu. Ou seja, a duquesa havia se passado por duas pessoas, para

assim poder disfarçar-se e não permitir que alguém se apaixonasse por ela tão

somente pelo seu título e riqueza. Tendo a certeza do amor de Afonso, ela não

suporta mais se manter longe dele, visto que ele deu toda a demonstração de amor

que ela precisava. É quando Toledo lhe expõe a verdade dos fatos:

A duquesa, vendo que recusáveis os partidos mais brilhantes apenas para permanecer fiel a ela, decidiu ser vossa esposa. Ficastes, pois, casado perante Deus e perante a Igreja, mas não perante os homens. (...) Depois da vossa boda, a duquesa decidiu passar alguns meses nas suas propriedades de Ávila para se subtrair ao olhares dos curiosos. (...) para despistar enviámos Leonora para o campo. Depois, pareceu-nos conveniente que partisses para Nápoles, pois não sabíamos já o que vos dizer acerca de Leonora, e a duquesa não se queria dar a conhecer, senão quando uma prova forte do vosso amor aumentasse os vossos direitos. Agora, meu querido Avadoro, devo implorar-lhe que me concedais o vosso perdão. Feri-vos profundamente ao anunciar-vos a morte de uma pessoa que nunca existiu. Mas o vosso amor nada perdeu com isso. A duquesa está comovida ao ver que a amastes tão completamente sob duas aparências tão diferentes. Desde há oito dias arde em desejos por vós. Mas novamente devo declarar-me culpado de obstinar-me em fazer Leonora voltar do outro mundo. A duquesa acedeu a representar de novo o papel de mulher vestida de branco, mas não foi ela que correu tão rapidamente pelo cume do telhado da rua de Retirada, mas sim um pequeno limpa-chaminés que se prestou a isso e que na noite seguinte voltou, disfarçado de diabo coxo. Sentou-se na janela e deslizou até à rua com a ajuda de uma corda de antemão preparada. (idem, ibidem, p. 219.)

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Como é possível notar, houve uma lógica explicação para o que se presumia

ser um fenômeno do além. Não havia mortos, nem fantasmas. Todos os fatos

apresentados foram feitos por vivos.

As explicações, enfim, dadas no final da narrativa, eliminam as dúvidas

criadas e contribuem para retirar as ambigüidades que porventura foram

manifestadas. O fantástico então desaparece, transformando-se no estranho, ou

seja, torna-se um fantástico explicado. Ficando claro que para que haja o estranho,

faz-se necessário que todo um cenário fantástico instale-se e, depois, tudo saia de

forma racionalmente explicada.

2.4. DO MARAVILHOSO

Irlemar Chiampi, em seu livro O realismo maravilhoso, contribui para uma

definição muito clara para o entendimento do que se pode entender como o

maravilhoso. Para ela, essa tendência se dá quando os acontecimentos relatados

numa obra são oriundos da sobrenaturalidade. Logo, não há uma explicação

racional para os fatos narrados. Segundo Chiampi,

(...) o maravilhoso difere radicalmente do humano: é tudo o que é produzido pela intervenção dos seres sobrenaturais. (...) já não se trata de grau de afastamento da ordem normal, mas da própria natureza dos fatos e objetos. Pertencem a outra esfera (não humana, não natural) e não tem explicação racional. (CHIAMPI, 1980, p. 48.)

Diferentemente do fantástico, no maravilhoso não há a presença da

ambigüidade; a hesitação como conseqüência do sobrenatural é nula. Difere

também do estranho, uma vez que, para os fatos narrados, não há uma explicação

racional. No maravilhoso, o sobrenatural acontece, sem causar no leitor nenhuma

reação de estranhamento. Ao contrário, o leitor aceita normalmente tudo o que é

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descrito no texto. “No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não

provocam qualquer reação particular nem nas personagens nem no leitor implícito”

(TODOROV,1975, p. 60).

A Bíblia, em alguns de seus livros, contempla este tipo de relato. No Gênesis,

a formação do homem ocorre mediante um efeito sobrenatural. O homem é feito do

pó da terra por Deus que, em seguida, sopra-lhe nas narinas e lhe dá o fôlego da

vida. Aliás, toda a criação é resultante de fenômenos sobrenaturais. Não se concebe

uma racionalização para tais fatos. “Maravilhoso é o extraordinário, o insólito, o que

escapa ao curso ordinário das coisas e do humano” (CHIAMPI, 1980, p.48). O

diálogo entre Eva e a serpente comprova isso:

Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o Senhor Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim? Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais. Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal. (Gen. 3:1-5.)

Observa-se que o diálogo entre a serpente e a mulher ocorre muito

naturalmente como se a palavra, ou seja, logos, estivesse presente na serpente,

pois, como sabemos, o uso da palavra na comunicação é algo estritamente humano.

Podemos também observar, na obra Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift,

vários aspectos do maravilhoso. O romance é uma crítica à sociedade inglesa do

século XVIII e encontra no extraordinário a fórmula de dialogar com o leitor. Após o

naufrágio do barco em que navegava, o médico Lemuel Gulliver salva-se depois de

nadar por um longo tempo até aportar em uma ilha desconhecida. A salvo e em terra

firme, ele dorme por várias horas. Ao despertar, nota que não podia se movimentar

pelo motivo de estar amarrado por uma grande quantidade de linhas que o

impediam de libertar-se. O incomum está no fato de que as linhas foram postas por

homens bem pequeninos que viviam num país chamado Llliput, onde cavalos,

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carneiros, carros, homens e cidades eram diminutos. Tudo era tão pequeno neste

reino que, ao impedir uma batalha entre Lilliput e Blefuscu — dois povos inimigos —

Gulliver amarra todos os barcos blefuscuanos e os leva para Lilliput.

Em outro momento da obra, Gulliver, após ter retornado à sua família, resolve

fazer outra viagem e se vê agora na situação inversa, ou seja, ele agora é o

pequenino em terras de gigantes. O que podemos notar é que o fato narrado foge

completamente ao que entendemos por natural. No entanto, o maravilhoso o

naturaliza. Isso significa dizer que cabe ao narrador a função de acomodar o seu

leitor ante o texto, eliminando o desconforto que o sobrenatural lhe venha a causar,

naturalizando-o. Há então uma consciência centralizadora que manipula a distância

entre o natural e o sobrenatural, de modo a controlar a confiança de quem lê o texto

no intuito de atrair a sua simpatia.

Vejamos este fragmento:

Mal peguei no sono, um baque muito forte me acordou. Senti que a caixa tinha sido levantada pela alça. Abri a janela e comecei a gritar: - Será que você não percebe que está balançando a caixa? Não podia ter me acordado antes? Só depois de ter falado tudo isso, notei que continuava subindo. Olhando pela janela, percebi que a praia estava muito abaixo do que estaria se o pajem estivesse me carregando. E as pernas do rapaz não se encontravam ali, pelo menos não as enxergava pelas três janelas existentes na caixa. Via apenas nuvens e céu... Fechei tudo rapidamente quando ouvi um som semelhante ao produzido por um bater de asas. Não havia dúvida: algum pássaro enorme levava a caixa pela alça. Talvez uma águia. As águias têm o costume de pegar tartarugas, por exemplo, atirá-las contra alguma rocha, para quebrar sua casca, e então comer sua carne. Mas... seria uma águia? E eu, seria para ela uma tartaruga? O barulho de asas batendo aumentou. A caixa balança para cima e para baixo. Depois senti que caía verticalmente, durante um interminável minuto. (SWIFT, 1998, p. 74.)

Notamos que a presença de um pássaro gigante não altera em nada o

conforto do leitor ao deparar-se na leitura com um animal de enormes proporções.

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Aliás, tais relatos na literatura não são novidades. Em As mil e uma noites6, é

contado que um pássaro gigante chamado Roca possuía tamanha altura que

somente suas patas eram do tamanho de uma árvore. Este tipo de exagero, Todorov

o nomeia de maravilhoso exótico, visto que, segundo ele:

Narram-se aqui acontecimentos sobrenaturais sem apresentá-los como tais; supõe-se que o receptor implícito desses contos não conheça as regiões onde se desenrolam os acontecimentos; por conseguinte, não tem motivos para colocá-los em dúvida. (TODOROV, 1975, p. 61.)

A sobrenaturalidade evidentemente se dá pelo dimensionamento exagerado

no tamanho dos seres encontrados. Se por um lado Gullliver, em sua primeira

viagem, é um gigante em Lilliput, na segunda viagem, ele é quem será o pequenino

em uma terra em que tudo será exageradamente enorme para ele. O mistério que

existe no fantástico inexiste no maravilhoso. Rompe-se também o limite entre o real

e o imaginário, porém o desconhecimento do espaço onde os acontecimentos são

produzidos sossegam o leitor. Caberá então ao narrador, utilizando-se da sua voz,

criar este efeito encantatório no leitor conduzindo-o e mantendo-o numa leitura

representativa e experimental ao mesmo tempo. Representativa, já que poderá estar

tratando de algo inerente ao seu tempo, algo contemporâneo. Experimental, uma

vez que novas práticas narrativas são utilizadas.

De maneira que o maravilhoso apresenta-se como uma nova opção de

descrever a realidade, bem como de reconhecê-la no processo de leitura. É a

maneira de combinar o natural e o sobrenatural sem que ambos se desagreguem.

O discurso realista maravilhoso, articulado sobre a negação do princípio da contradição, enuncia poeticamente esse impossível lógico e ontológico. Ao dizer-se “é possível que uma coisa seja e não seja” estamos diante de algo mais que um objeto verbal. Sendo uma distorção da lógica habitual, a ideologia do realismo

6 Foi usada a versão digitalizada de Las mil y una noches, editada pela Ediciones elaleph.com e baixado de sua página na internet: www.elaleph.com em 13/08/2008, com a tradução ao espanhol de Vicente Blasco Ibáñez, a partir da tradução ao francês de J. C. Mardrus, publicada em 1903.

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maravilhoso persegue a reviravolta da concepção racional-positivista da constituição do real (...) (CHIAMPI, 1980, p.155.)

Ou seja, o maravilhoso é concebido sob a égide da contradição harmoniosa.

A distorção não é negada, antes, é aceita. Portanto, não há logicidade nos

acontecimentos narrados no maravilhoso, no entanto, de acordo com Todorov, “os

fatos se encadeiam de uma maneira perfeitamente lógica” (TODOROV, 1975, p. 63).

Todorov contradiz D. Q Mclnerny, já que, para este, “lógica tem a ver com a

verdade” (MCLNERNY, 2006, p. 19). Ser lógico presume-se relacionar-se com as

verdades do mundo. No entanto, literatura é ficção. E nem por isso deixa de ser

verdade. E tampouco deixa de estabelecer uma relação de verdade com o mundo. É

por isso também que o leitor se identifica com essas “mentiras” literárias. Enfim, o

maravilhoso funde a realidade com a fantasia. Ou vice-versa.

2.5. A PRESENÇA DO INSÓLITO NO FANTÁSTICO, NO ESTRANHO E NO

MARAVILHOSO.

Neste trabalho, algumas vezes, referimo-nos a fatos insólitos, estranhos,

sobrenaturais. Segundo a definição do Houaiss 7, insólito significa: 1) que não é

habitual, infreqüente; 2) que se opõe aos usos e costumes; que é contrário às

regras. Do ponto de vista literário, é possível ao leitor penetrar nessas perspectivas

extraordinárias criadas pelo autor, contaminando-se pela imaginação deste,

adentrando num mundo ilusório, pois “a fantasia, da qual somos e estamos dotados,

é um dom demoníaco” (LLOSA, 2003, p. 24). Dom este dado a um artista que “está

continuamente abrindo um abismo entre o que somos e o que gostaríamos de ser,

entre o que temos e o que desejamos” (Idem, ibidem); algo que nos arranca da

realidade e nos faz imergir no ficcional, libertando-nos das injunções lógicas e

costumeiras de nosso próprio mundo. Esse arrancar parte de um pacto estabelecido

7 HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de língua portuguesa. Rio de

Janeiro: Editora Objetiva Ltda., 2001.

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entre o autor e o leitor. O autor compartilha com o leitor os seus medos, as suas

ânsias, angústias, cultura, entre outras coisas; isso permite que dráculas e

lobisomens passem a fazer parte do acervo mítico literário e do cinema também.

Logo, a arte é uma poderosa rompedora de fronteiras culturais. Por conseguinte, no

que se refere ao insólito, vejamos como, em muitos romances, nos é apresentado.

Em As intermitências da morte, de José Saramago, um acontecimento

extraordinário sem igual na história da humanidade modifica toda a estrutura

organizacional de uma determinada sociedade. No dia seguinte ao 31 de dezembro

de um determinado ano, simplesmente as pessoas deixam de morrer. Além desse

fato, outros se sucedem, tais como a personificação da morte que se apaixona por

um determinado artista e com isso não consegue matá-lo. Seja esta ou não uma

alegoria, a verdade é que, por meio desse manuseio do significado da morte, o

homem, ao menos, pode imaginar algo que se avizinha da imortalidade. Outro fato

incomum nesta obra é que a morte personificada começa, depois de certo tempo, a

enviar correspondências às pessoas anunciando o dia em que morrerão. Uma

espécie de grande exercício de inverossimilhança.

Uma importante obra da literatura hispano-americana que nos apresenta fatos

insólitos é A casa dos espíritos, de Isabel Allende. Considerada por muitos críticos

um texto pertencente ao fantástico, dentre os vários fatos incomuns contidos neste

romance, o da morte de Férula, irmã de Esteban Trueba, é sem dúvida uma forte

imagem construída pela autora. Havendo morrido isolada, Férula retorna à casa de

seu irmão de onde havia sido expulsa, a fim de despedir-se de Clara, cunhada e

amiga. Nesse relato, a riqueza de detalhes contada pelo narrador amplia no leitor

um sentimento de confusão psicológica. Um misto de medo, incredulidade e

perplexidade juntos é sentido por todos que se encontram naquela casa no

momento em que Férula surge de repente. Essas reações são repassadas ao leitor

pelos personagens e pelo narrador no instante mesmo dos acontecimentos. Sobre

isso diz Lovecraft:

La única prueba de lo verdaderamente preternatural es la siguiente: saber si despierta o no en el lector un profundo sentimiento de pavor, y de haber entrado en contacto con esferas y poderes

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desconocidos: una actitud de atención sobrecogida, como tal fuese a oír el batir de unas alas tenebrosas, o el arañar de unas formas y entidades exteriores en el borde del universo conocido. (LOVECRAFT, 1989, p. 11 e 12.)

Tradução:

A única prova do verdadeiro preternatural é a seguinte: saber se desperta ou não no leitor um profundo sentimento de pavor, e de haver entrado em contato com esferas e poderes desconhecidos: uma atitude de atenção surpreendente, tal como se fosse o ouvir a batida de umas asas tenebrosas, ou o aranhar de umas formas e entidades exteriores na fronteira do universo conhecido.

Sentimento este vivido na cena da aparição de Férula no romance de Isabel

Allende:

Todos que viveram aquele momento, dizem que era por volta das oito da noite, quando apareceu Férula. Todos puderam vê-la com a blusa engomada, o molho de chaves à cintura e o coque de solteirona, tal como a tinham visto sempre em casa. Entrou pela porta da sala de jantar no momento em que Esteban estava trinchando o assado e reconheceram-na imediatamente, apesar de não a verem fazia seis anos e estar muito pálida e muito mais velha. Era um sábado e os gêmeos, Jaime e Nicolas, tinham saído do internato para passar o fim de semana com a família, de modo que também estavam ali. O seu testemunho é muito importante porque eram os únicos membros da família que viv.iam afastados por completo da mesa de pé-de-galo, preservados da magia e do espiritismo pelo rígido colégio inglês. Primeiramente sentiram um frio súbito na sala de jantar e Clara mandou fechar as janelas, porque era uma corrente de ar. Logo a seguir ouviram o tilintar das chaves e quase em seguida abriu-se a porta e apareceu Férula, silenciosa e com uma expressão distante, ao mesmo tempo que a Ama entrava pela porta da cozinha, com a travessa da salada. Esteban Trueba ficou com a faca e o garfo de trinchar no ar, paralisado pela surpresa e os três meninos gritaram, tia Férula! Quase em uníssono. Blanca levantou-se para ir ao encontro, mas Clara, que sentava ao seu lado, estendeu a mão e segurou-a por um braço. Na realidade, Clara foi a única que percebeu, ao primeiro olhar, do que se estava passando devido à sua grande familiaridade com os assuntos sobrenaturais, apesar de que nada no aspecto da cunhada denunciasse o seu verdadeiro estado. (ALLENDE, 1995, p. 159 e 160.)

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E o acontecimento macabro se segue:

Férula deteve-se a um metro da mesa, olhou-os a todos com os olhos vazios e indiferentes e logo avançou para Clara, que se pôs de pé, sem nenhum movimento agitadamente, como se estivesse incubando um dos seus ataques de asma. Férula aproximou-se dela pôs-lhe uma mão em cada ombro e deu-lhe um breve beijo na testa. Na sala de jantar só se ouvia a respiração ofegante de Clara e o tilintar metálico das chaves na cintura de Férula. Depois de beijar a cunhada, Férula passou ao seu lado e saiu por onde tinha entrado, fechando a porta nas costas com suavidade. Na sala de jantar ficou a família imóvel, como se fosse um pesadelo, a ama começou logo a tremer tanto que lhe caíram as colheres da salada e o barulho da prata ao cair no parquet sobressaltou todos. Clara abriu os olhos. Continuava a respirar com dificuldade e caíam-lhe lágrimas pela face e pelo pescoço, manchando-lhe a blusa. - Férula morreu – anunciou. (Idem, ibidem, p. 160.)

Percebemos que o narrador utiliza-se bastante de detalhes que possam

verdadeiramente marcar o tom sobrenatural do acontecido. Houve inclusive a

necessidade de se assinalar a presença das crianças para que tal fato pudesse se

mesclar com a realidade tal como a conhecemos e, desse modo, permitir a

identificação com essa atmosfera sombria.

É evidente que nem todos os fatos insólitos contemplam a presença do medo

como algo necessário, imprescindível. Contudo, a presença de signos do medo

contribui positivamente no efeito psicológico da leitura do texto. Há que se ter um

grande cuidado, é claro, para o que Todorov chama a atenção, em especial para o

fantástico. Ele enfoca que tanto “a fé absoluta como a incredulidade total nos levam

para fora do fantástico” (TODOROV,1975, p. 36). Este, porém, parece que não foi

muito bem compreendido por Selma Calazans Rodrigues ao afirmar que, segundo

Todorov, o “fantástico dependeria do sangue frio do leitor” (RODRIGUES,1988, p.

29). Todorov deixa claro que a hesitação é uma das condições do fantástico. Além

disso, ele discorda de que tão somente o medo seja preponderante na construção

da narrativa sobrenatural. Além disso, caberá sempre ao leitor decidir ou não sobre

a obra fantástica, ou qualquer obra, ao ser contagiado pela narrativa do autor. Para

Llosa, “a irrealidade da literatura fantástica se transforma, para o leitor, em símbolo

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ou alegoria, quer dizer, na representação de realidades, de experiências que se

pode identificar na vida” (LLOSA,2007, p.14). O leitor é induzido a acreditar

momentaneamente em algo contado por um mentiroso que é o autor, “porque todo

bom romance diz a verdade e todo mau mente” (Idem, ibidem, p.16). Por outro lado,

“um tema recorrente na história da ficção é o risco que implica levar ao pé da letra o

que dizem os romances, em crer que a vida é como eles a descrevem” (idem,

ibidem, p.16 e 17).

Outro relato insólito, porém sem o pavor bem elaborado por Isabel Allende,

está presente em Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Remedios a

bela, que atraía a atenção dos homens, demonstra não estar em juízo perfeito e

começa a agir como uma pessoa que ficou louca. É então que algo acontece:

Remedios é arrebatada ao céu na presença de Amaranta e de Úrsula.

Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal havia começado, quando Amaranta advertiu que Remedios, a bela, chegava a estar transparente de tão intensamente pálida. - Você está se sentindo mal? – perguntou a ela. Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve um sorriso de piedade. - Pelo contrário – disse – nunca me senti tão bem. Acabava de dizer isso quando Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em toda sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não cair, no momento em que Remédios, a bela, começava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis à mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar. (MÁRQUEZ, 1994, p. 228 e 229.)

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Alguém dado à leitura e que porventura já tenha se debruçado sobre a Bíblia,

livro considerado sagrado pelos cristãos e que reúne relatos extraordinários,

incomuns, notará uma grande semelhança entre este ascender de Remedios e o

ascender do profeta Elias. No segundo livro de Reis, Capítulo 2, versículo 11, vemos

algo semelhante ao narrado em Cem anos de solidão:

Indo eles andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho. O que vendo Eliseu, clamou: Meu pai, meu pai, carros de Israel e seus cavaleiros! E nunca mais o viu e, tomando a suas vestes, rasgou-as em duas partes. Então, levantou o manto que Elias lhe deixara cair e, voltando-se, pôs-se à borda do Jordão. Tomou o manto que Elias lhe deixara cair, feriu as águas e disse: Onde está o Senhor, Deus de Elias? Quando feriu ele as águas, elas se dividiram para um e outro lado, e Eliseu passou. (BIBLIA. II Rs, 2: 11-14.)

Algo particularmente importante nesta analogia é o fato de ambos

apresentarem acontecimentos incomuns semelhantes, bem como a observância de

que um foi escrito há quase 4 mil anos e o outro, no século XX. O que significa que

os relatos extraordinários acompanham o homem desde muitos e muitos anos. Há

por parte do ser humano uma necessidade de criar e estar em contato com

narrativas que contenham tais exposições e que, com o tempo, vão, cada vez mais,

se aperfeiçoando. Para Lovecraft:

... el relato preternatural ha sobrevivido, se ha desarrollado, y ha alcanzado cotas notables de perfección, dado que se funda en un principio profundo y elemental cuyo atractivo, si no siempre universal, debe ser necesariamente intenso y permanente para las mentes dotadas de la necesaria sensibilidad. (LOVECRAFT, 1989, p. 7.)

Tradução:

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... O relato preternatural sobreviveu, se desenvolveu, e alcançou cotas notáveis perfeição, dado que se fundamenta em um princípio profundo e elementar cujo atrativo, se nem sempre universal, deve ser necessariamente intenso e permanente para as mentes dotadas da necessária sensibilidade.

Kafka, em seu livro A metamorfose, nos dá uma idéia do desenvolvimento da

mente criativa do escritor no que se refere a um relato insólito. Ele consegue não

somente relatar o incomum, como também é minucioso nos detalhes mais

repugnantes. Assim como outros escritores, ele observou a grande aptidão do

público para a leitura de textos que contivessem tais acontecimentos. De maneira

que, na tentativa de refletir sobre determinados problemas sociais, muitos autores

encontram nessas narrativas a forma de se comunicar com o leitor.

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. - O que aconteceu comigo? – pensou. (KAFKA, 1997, p. 7.)

Além de criar essa realidade no texto, Kafka se utiliza de outro instrumento

muito comum no fantástico que é o sonho, porém o sonho citado serve para

camuflar, para o leitor e no personagem, o que verdadeiramente havia acontecido a

Gregor. Kafka também usa o sonho para desviar o personagem do pensamento de

aceitação do que lhe acontecia. Logicamente, o leitor é induzido pelo narrador a

imaginar a mesma situação pela qual passa Gregor Samsa, visto que seria

impossível no mundo real alguém transformar-se em um inseto.

O olhar de Gregor dirigiu-se então para a janela e o tempo turvo – ouviram-se gotas de chuva batendo no zinco do parapeito – deixou-o inteiramente melancólico. Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esquecesse todas essas tolices? Pensou... (KAFKA, 1997, p. 8.)

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Em A metamorfose, o real é o mundo extraordinário e o sonho é a saída ou

fuga do mundo incomum no qual o personagem está inserido ao despertar. Para

Llosa, “somente a literatura dispõe de técnicas e de poderes para destilar esse

delicado elixir da vida: a verdade escondida no coração das mentiras humanas”

(LLOSA, 2004, p. 21). Notamos aqui uma enorme paixão de Llosa pela literatura ao

fazer tal afirmativa. Evidentemente outras artes também são capazes de fazer com

que loucuras sejam, em verdade, pensamento organizado, lógico, coerente, como é

o caso do cinema, por exemplo. Contudo, nas artes em geral e mais

especificamente na literatura não há enganos, porque nela,

(...) acomodamos nosso ânimo para assistir a uma representação na qual, sabemos muito bem, nossas lágrimas ou nossos bocejos dependerão exclusivamente da boa ou da má feitiçaria do narrador, para nos fazer viver como verdades, suas mentiras, e não da sua capacidade para reproduzir fidedignamente o vivido. (LLOSA, 2004, p. 21.)

Assim, podemos perceber quão inimaginável é a capacidade de produção de

relatos insólitos pelos escritores nas diversas regiões do planeta, em diferentes

momentos da história literária da humanidade. Isso caracteriza a necessidade do

homem em, além de imergir em outra realidade por meio da ficção, encontrar nesta

mesma ficção um mundo totalmente distanciado daquilo que humanamente possa

ser compreendido como possível. A ficção é a não-realidade. Os relatos insólitos

inseridos na ficção atuam como uma não realidade dentro do ficcional. Ou seja,

presentes na ficção, o extraordinário diverge dos fatos reais tão comuns na vida de

quem se dá ao prazer de ler uma obra literária. E o fantasmagórico:

… permite así, al que se abandona a sus encantos, colmar el vacío que deja en el mundo la desaparición de las creencias tradicionales, no reemplazándolas por otras creencias – y aún menos por certidumbres científicas – sino abriendo un espacio … con el del sueño. (MILNER, 1990, p. 19.)

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Tradução:

… permite assim, ao que se abandona aos seus encantos, preencher o vazio que deixa no mundo o desaparecimento das crenças tradicionais, sem mudá-las por outras – e ainda menos por verdades científicas – mas sim abrindo um espaço... com o do sonho.

Pois, “es en el sueño que vivimos, es allí donde nuestra alma goza de toda su

autoridad sobre la naturaleza” (MERCIER apud MILNER, p. 20). E por ser um

terreno no qual a fantasia pode aflorar, o sonho é um recurso muito utilizado pelos

escritores que usam o relato insólito em suas narrativas. Por outro lado,

diferentemente do que é preconizado por Lovecraft, Kafka não faz uso do terror

fantasmagórico em A metamorfose e, no entanto, o sobrenatural encontra-se

presente na narrativa, sem que haja o sentimento de pavor, mas sim de repulsa.

Lovecraft também adverte que:

Como es natural, no podemos esperar que todos los relatos sobrenaturales se ajusten cabalmente a un modelo teórico. Las mentes creadoras son distintas, y los mejores tejidos tienen sus defectos. (LOVECRAFT, 1989, p. 11.)

Tradução:

Como é natural, não podemos esperar que todos os relatos sobrenaturais se ajustem cabalmente a um modelos teórico. As mentes criadoras são diferentes, e os melhores tecidos têm seus defeitos.

Além disso, ainda que certas narrativas insólitas não se insiram no modelo

teórico de alguns críticos como Lovecraft, estudos recentes como os de Todorov e

os de Chiampi poderão incluir uma obra no fantástico, no estranho ou no

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maravilhoso ainda que esta não venha a conter o medo como premissa, como é o

caso dos contos de fadas. Em Metamorfosis, conto de Ramón Gómez de La Serna,

é notável a presença do insólito sem que o pavor fique evidenciado.

No era brusco Gazel, pero decía cosas violentas e inesperadas en el idilio silencioso con Esperanza. Aquella tarde había trabajado mucho y estaba nervioso, deseoso de decir alguna gran frase que cubriese a su mujer asustándola un poco. Gazel, sin levantar la vista de su trabajo, le dijo de pronto: - ¡Te voy a clavar con un alfiler como a una mariposa! Esperanza no contestó nada, pero cuando Gazel volvió la cabeza vio cómo por la ventana abierta desaparecía una mariposa que se achicaba a lo lejos, mientras se agrandaba la sombra en el fondo de la habitación. (SERNA, 1945, p. 128.)

Tradução:

Gazel não era um grosseiro, mas dizia coisas violentas e inesperadas no idílio silencioso com Esperanza. Naquela tarde trabalhou muito e estava nervoso, desejoso de dizer alguma frase que envolvesse sua mulher e a assustasse um pouco. Gazel, sem levantar os olhos do que estava fazendo, disse: - Eu vou enfiar um alfinete em você igual como se faz com uma borboleta! Esperanza não disse nada, mas quando Gazel virou a cabeça viu que pela janela aberta uma borboleta que desaparecia ia diminuindo de tamanho com a distância, enquanto a sombra no fundo do quarto ia aumentando.

Neste pequeno conto, demonstra-se que é possível criar o efeito fantástico

sem que necessariamente precise haver o terror que o sobrenatural possa vir a

causar. No conto não fica claro se Esperanza transformou-se ou não em borboleta.

Porém fica com o leitor a responsabilidade de manter-se ou não no fantástico.

Poderá ele imaginar que realmente uma borboleta sai voando coincidentemente à

fala do personagem Gazel ou que Esperanza tenha se metamorfoseado e,

conseqüentemente, fugido na forma de borboleta. Este conto também nos mostra o

quanto a imaginação do artista busca explorar, usando da linguagem, o efeito

psicológico necessário para confundir o leitor.

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Vale lembrar que os estudos relacionados ao fantástico são ainda muito

recentes e necessitam de maior aprofundamento. O fato é que tais temas, o

fantástico, o estranho e o maravilhoso são muito próximos e somente um olhar

atento é que poderá qualificá-los, solicitando então do crítico literário um maior

cuidado ao defini-los.

Por outro lado, na perspectiva do leitor, há “narrativas que contêm elementos

sobrenaturais sem que o leitor jamais se interrogue sobre sua natureza”

(TODOROV, 1975, p. 38) e mais: este mesmo leitor entende “perfeitamente que não

deve tomá-los ao pé da letra” (Idem, ibidem,p.38).

Vejamos este exemplo no conto de Manuel Mújica Láinez,8 El hombrecito del

azulejo. Um pequeno azulejo fabricado na França é enviado a Buenos Aires por erro

da indústria que o fabricou e que deveria destiná-lo a outro lugar. Dentro de uma das

caixas e diferente dos demais azulejos, ele é posto num canto isolado da casa entre

o saguão e o quintal. No azulejo, há uma figura parecida com um duende que,

isolado, não é percebido por ninguém na casa. Um dia, um jovem garoto chamado

Daniel, deitado em seu leito e estando à beira da morte, nota a presença do azulejo

e estabelece uma relação de amizade com o homenzinho presente na cerâmica.

Daniel lhe dá um nome e passa a chamá-lo Martinito; este percebe que a senhora

Morte está na casa de Daniel contando as horas para levar o jovem enfermo.

Martinito, que havia se afeiçoado a Daniel, distrai a senhora Morte e ela não

consegue levar o jovem, visto que a hora da morte de Daniel já havia passado.

Daniel então se recupera e não morre mais. Revoltada, a senhora Morte ao perceber

que tinha sido enganada pelo homem do azulejo, retira a pedra da parede, quebra-a

em duas e as lança num poço que servia a casa. Já recuperado, Daniel sai ao

encontro de seu amigo Martinito e, não o encontrando, se entristece. É quando dois

homens contratados para limpar o poço acham as partes do azulejo e as entregam

ao garoto. A morte enfim não pôde matar o homenzinho do azulejo, pois este não

8 LÁINEZ, Manuel Mújica. El hombrecito del azulejo: Disponível em: <http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/esp/mujica/hombreci.htm>. Acesso em: 14/01/2008.

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morria jamais. Quanto a Daniel, recuperado, revive a felicidade na amizade de seu

amiguinho incrustado na parede, o seu Martinito, o homenzinho do azulejo.

No conto apresentado, notamos claramente a presença do insólito sem, no

entanto, detectarmos que venha o leitor a tomar como verdade tal acontecimento.

Nele não há a hesitação, nem a ambigüidade, o que poderia remetê-lo para o

fantástico, nem são explicadas as ações insólitas dos personagens, o que poderia

incliná-lo para o estranho. Vale salientar também que este não se trata de um conto

de fadas. Para Peter Penzoldt: “Com exceção do conto de fadas, todas as histórias

sobrenaturais são histórias de medo que nos obrigam a perguntar se o que se crê

ser pura imaginação não é, no final das contas, realidade” (PENZOLDT apud

TODOROV, p. 41). Ora, estamos assim diante de um caso que contradiz a fala de

Penzoldt. O conto de Manuel Mújica Láinez apresenta a sobrenaturalidade na figura

quase duende de Martinito, assim como na imagem funesta da morte à espera do

momento exato de levar o jovem Daniel consigo. Portanto, fica claro que é possível

a elaboração de um relato sobrenatural sem o medo, sem o pavor,

independentemente de pertencer ou não aos contos de fadas. Cabe à imaginação

do escritor ampliar as possibilidades da criação artística, fazendo com que temáticas

como estas estejam abertas a novas criações, novas descobertas.

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3. CAPÍTULO II

JOSÉ SARAMAGO E A MIRABILIA DA MORTE

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3.1. O NOVO REALISMO

Depois que o realismo como estilo literário, seja o de caráter científico da

segunda metade do século XIX, seja o de linha socialista, não conseguiu manter-se

como uma das principais formas de fingir a realidade, outras formas precisavam ser

encontradas para traduzir os anseios criados pelas novas relações que se

estabeleciam na sociedade ocidental. Era necessária uma nova maneira artística de

discutir o homem.

O realismo mágico (ou fantástico) surge enfim como uma nova possibilidade

de representação ficcional, sem que, para tanto, houvesse o rigor da influência

positivista de Augusto Comte e o culto à ciência nas obras elaboradas sob esta nova

tendência. Para Bella Josef, o romancista realista deixou de ser aquele que

“compreendia e aceitava o universo e as razões de suas harmonias ou desarmonias,

correspondendo a um mundo estável, de princípios imutáveis” (JOSEF,1993, p.25).

Coube ao realista da imaginação, da fantasia, sucedê-lo, pois este novo romancista

é o da “indagação em face de um mundo instável, massificado, em acelerada

metamorfose, cujas causas ele procura compreender” (Idem, ibidem,p.25).

Em face das atuais exigências do fazer artístico, a arte contemporânea tem procurado novos rumos, elaborando novos modelos de criatividade, alterando os esquemas básicos e implicando uma necessidade intrínseca de experimentação. Transforma-se, assim, em instrumento de investigação e conhecimento. Seu objetivo é o questionamento da realidade, que procura refletir e influenciar, ao mesmo tempo em que se examina para se transformar e aos seus próprios conceitos. (idem, ibidem, p. 20.)

A essa nova prática de escritura irão aderir diversos nomes da literatura

americana, em especial da América espanhola. Podemos citar Alejo Carpentier,

Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges,

Juan Rulfo e outros.

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A América espanhola então se destaca como um grande celeiro que irá reunir

renomados escritores que encontrarão nesta prática de retratar a realidade, quer

seja fantástico, estranho ou maravilhoso, uma nova maneira de fingi-la.

Para Davi Arrigucci Jr., fazendo referência a essa nova escritura romanesca

hispano-americana adotada:

As principais facetas da renovação técnica se manifestam na profunda mudança do ponto de vista, na desintegração do tempo cronológico (muitas vezes acompanhadas de uma nova organização espacial), na dissolução da categoria da causalidade como princípio lógico de construção do enredo e na ameaça, às vezes efetivada, de fragmentação da personagem. Todos os aspectos, centrais às poéticas contemporâneas da narrativa, representam uma quebra da “ilusão” realista, construída a partir da posição privilegiada da consciência individual, cuja ordenação do mundo, feita, desde o Renascimento, segundo as categorias do senso comum e da realidade empírica, assume a aparência de absoluto. Os novos procedimentos não só desmascaram essa visão aparente da realidade, mas também transformam o relativismo no próprio princípio de construção artística. (ARRIGUCCI, apud CALBUCCI, p. 22 e 23.)

Um bom exemplo desta desintegração do tempo cronológico é possível

observar em Cem anos de solidão. No quarto de Melquíades o tempo não passa. No

entanto, há uma coexistência de vários episódios na casa dos Buendía como que se

o tempo ali estivesse fragmentado. Isso fica evidente na epígrafe contida no

pergaminho: “o primeiro da estirpe está amarrado à árvore e o último está sendo

comido pelas formigas” (MÁRQUEZ,1994, p.300). Em Macondo, no entanto, o tempo

é passado como no tempo real ainda que os fatos aconteçam em um lugar mítico.

Há também em Cem anos de solidão uma repetição dos josés e dos aurelianos

buendías que altera a percepção do leitor, confundindo-o, já que eles mantêm as

mesmas características e vicissitudes.

Para Irlemar Chiampi, há uma clara razão para que se justifique o sucesso

deste novo realismo na América. Explicando a proposta de Carpentier sobre esta

nova prática de escritura, Chiampi esclarece que tal realismo:

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(...) estabelecia uma verdadeira profissão de fé como escritor e (que Carpentier)9 exortava os narradores latino-americanos a se voltarem para o mundo americano, cujo potencial de prodígios, garantia o autor, sobrepujava em muito a fantasia e a imaginação européias. (CHIAMPI, 1999, p. 32.)

Ou seja, Carpentier evoca a redescoberta do potencial artístico do latino-

americano e conclama a que os artistas acreditem na sua capacidade imaginativa

em criar algo novo. Carpentier sente uma profunda angústia por desejar falar mais

da América na Europa e fazer conhecida naquele continente a literatura americana.

Isso o levou a dedicar parte de sua vida aos estudos relacionados a tudo o que já

havia sido escrito no novo mundo. Era preciso que a Europa conhecesse a América

literária. Daí o seu esforço em conclamar os artistas americanos, em especial sul-

americanos, a que produzissem algo novo, inovador. Porém, não nos ateremos a

esta discussão. Centraremos nossos esforços na consolidação do realismo

maravilhoso, que o nosso foco investigativo.

Mas a Europa não fica totalmente de fora dessa nova possibilidade de

escritura no século XX. Surge um escritor que contribuirá de maneira significativa

para essa forma de reescrever o realismo: o português José Saramago. Possuidor

de um estilo diferente e inconfundível, o escritor inova os seus romances ao abolir

praticamente a pontuação, mantendo somente as vírgulas e os pontos finais.

Contudo, notamos que ao se deparar com os seus textos, o leitor encontrará algo

que vai muito além do real: encontrará a mirabilia.10 Em suas diversas obras, o

escritor se utiliza sobremaneira do incomum para fingir determinadas realidades.

Jangada de pedra é um bom exemplo:

Partindo do ditado anônimo, segundo o qual “a Península Ibérica tem a forma duma jangada” Saramago descreve uma série de atos insólitos (ocorridos com anônimos) que precedem o clímax do

9 Grifo inserido pelo autor do trabalho dissertativo. 10 Palavra do latim que deu origem à palavra maravilha no português.

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romance, estranhamente colocado no início da narrativa, a saber, o rachamento dos Pirineus, com a Espanha se separando da França e a Península Ibérica, como uma jangada feita de pedra, a navegar desgovernada pelo Oceano Atlântico. (CALBUCCI,1999, p. 50 e 51.)

Nesse texto, Saramago utiliza-se do insólito para, de forma dura, criticar a

participação de Portugal na União Européia. Assim, usando-se da palavra, da

literatura, ele arranca Portugal da Europa e o faz distanciar-se do continente

navegando-o pelo Atlântico.

Então, a Península Ibérica moveu-se um pouco mais, um metro, dois metros, a experimentar forças. As cordas que serviam de testemunhos, lançadas de bordo a bordo, tal qual os bombeiros fazem nas paredes que apresentam rachas e ameaçam desabar, rebentaram como simples cordéis, algumas mais sólidas arrancaram pela raiz as árvores e os postes a que estavam atadas. Houve depois uma pausa, sentiu-se passar nos ares um grande sopro, como a primeira respiração profunda de quem acorda, e a massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais, começou a mover-se, barca que se afasta do porto e aponta ao mar outra vez desconhecido. (SARAMAGO, 2006, p. 39.)

E, nesse novo realismo presente em Saramago, a língua portuguesa tão

valorizada por ele, passa a ter relevante papel na sua identidade como escritor. Para

Miriam Braga, Saramago:

(...) investe na própria Língua no sentido de que ela assuma um papel de instrumento da consciência que favoreça seu povo a refletir sobre um passado e um presente que carregam as transformações sociais, para que o conhecimento de suas diferenças possa gerar soluções favoráveis que balizem o progresso ético. (BRAGA, 1999, p. 24.)

Além disso, Saramago não incorpora o escritor que escreve tão somente para

encantar o seu leitor. O encanto, ao contrário, se dá pela reflexão do que está

escrito. Para ele, “o romancista não pode ser um mero contador de histórias, e

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deveria esforçar-se para ser uma espécie de voz” (BRAGA,1999, p.28). Ele não

recrudesce a sua narrativa no sentido lato, mas sim, satisfaz o leitor com a sua

mágica construção literária ao incorporar acontecimentos extraordinários em suas

obras. O leitor, ao adentrar nos romances deste autor, magistralmente se encontrará

envolvido pelos fatos narrados sem, no entanto, experimentar instantes de hesitação

tão presentes no fantástico.

Saramago não leva ambigüidades para o seu leitor, mas sim reflexão,

questionamentos. Talvez por isso ele não opte pelo fantástico, ou seja, ele prefere

um diálogo mais franco, mais aberto. Por outro lado, não significa que haverá uma

rápida compreensão do que está escrito em seus romances. Para ele:

Todo texto é um texto por decifrar e, por mais claro que esteja, com todas as pistas dadas, todas as indicações, por mais que eu diga como se deve entender o que ali está, ainda assim é preciso decifrá-lo. (ARIAS, 2004, p. 75.)

Ou seja, pode-se dizer que com a sua linguagem o autor instiga o leitor a

decifrar as idéias contidas na narrativa. E nessa nova maneira de fingir o real,

Saramago introduz o leitor na sua obra ao criar um ambiente que permite a este

examinar a própria consciência, a própria realidade.

3.2. O MARAVILHOSO EM SARAMAGO

3.2.1. A JANGADA DE PEDRA

Após Joana Carda riscar o chão com uma vara, cães começaram a latir

deixando os moradores daquele local em estado de pânico. Um fato curioso é que

os cães daquele local eram mudos e de repente, começaram a ladrar, o que poderia

significar o fim do mundo. Outro insólito acontecimento chama a atenção à medida

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que a leitura do texto avança. Joaquim Sassa passeando pela praia pega uma pedra

muito pesada e a lança no mar. Achava ele que a pedra cairia a poucos metros de

seus pés, no entanto, a pedra flutuou no mar e só foi afundar a uma longa distância.

Sem acreditar no feito, esperava ele que houvesse alguém próximo que confirmasse

o que ele havia acabado de fazer. Outro personagem, Pedro Orce, sente a terra

tremer a seus pés quando tudo parece estar em perfeita ordem e tranqüilidade. Já

José Anaiço por onde quer que caminhe é seguido por um monte de pássaros que

sempre estão a acompanhá-lo.

Percebemos, portanto, o cuidado que tem o narrador em conduzir o leitor na

trama, sem que haja o questionamento sobre a veracidade dos fatos relatados. Por

fim, há ainda Maria Guavaira, que tendo encontrado um pé-de-meia velho, feito de lã

e não havendo mais utilidade para ela, começa a desfazer a malha e qual não foi a

sua surpresa, pois o fio da malha não acabava nunca de sair da meia. Ora, todos

estes fatos incomuns são característicos do maravilhoso, uma vez que neles a

sobrenaturalidade é posta no mundo das coisas normais. Contudo, isso não significa

que não haverá inquietação por parte de quem se depara com um romance que

contenha tal temática. Pierre Mabille, tratando do maravilhoso, dirá:

Ele é suficientemente actual para nos atrair, em qualquer circunstância, ao apelo do seu nome, mas também para que, à audição de certos poetas, sintamos uma perturbação inusitada e tenhamos a necessidade imperiosa de renunciar aos velhos hábitos que continuam a pesar sobre todos nós. O maravilhoso é o peixe das grandes profundidades (...) (MABILLE, 1977,p. 56,57)

Com efeito, quando tal peixe emerge e é encontrado, será sempre algo raro,

inusitado. É assim que se apresenta a obra de Saramago: inusitada e com um

conteúdo sempre renovado. Irlemar Chiampi afirma que “a capacidade do realismo

maravilhoso de dizer a nossa atualidade pode ser medida por esse projeto de

comunhão social e cultural, em que o racional e o irracional são recolocados

igualitariamente”. (CHIAMPI,1980, p.69.)

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No entanto, essa mescla não impossibilita a compreensão da realidade; ao

contrário, atua como um mecanismo de percepção desta mesma realidade.

Saramago, em A jangada de Pedra, cria a base para que o leitor compreenda o que

ideologicamente ele se propõe afirmar, a saber, que Portugal não cabe na Europa e

que Portugal é um país esquecido naquele continente.

De um habitante do norte não ouviríamos o que iremos ouvir, se pararmos para perguntar àquele homem que ali vai, escarranchado num burro, o que pensa do extraordinário caso de ter-se separado a Península Ibérica da Europa, puxará o bridão ao asno, Xó, e responderá sem papas na língua, Que todo es una bufonada. (SARAMAGO, 2006, p. 60.)

Alegoricamente, o discurso aqui empreendido demonstra claramente que para

os da Península quiçá não haja nenhuma dúvida de que sejam europeus e que toda

a Europa reconheça tal pertencimento e qualquer possibilidade de distanciamento

desta realidade seja uma bobagem.

A jangada, ou melhor, a península corta o Atlântico seguindo um rumo às

cegas. O perigo é que tal deslocamento possa vir a causar uma grande tragédia. As

autoridades seguem mobilizadas na esperança de que nada de grave aconteça e,

por isso, todo o serviço de emergência está em alerta. O caos é geral.

Tem-se falado dos perigos que Portugal corre se vier a chocar com os Açores, e também nos efeitos secundários, se directos não chegarem a ser, de que está ameaçada a Galiza, mas muito mais grave é, por certo, a situação da população das ilhas. Afinal, que é uma ilha. Uma ilha, neste caso um arquipélago inteiro, é o afloramento de cordilheiras submarinas, quantas vezes apenas os agudos picos de agulhas rochosas que por milagre se sustentam de pé em fundos de milhares de metros, uma ilha, em resumo, é o mais contingente dos acasos. E agora vem aí o que, também de ilha não passando, é tão grande e veloz que há grande perigo de assistirmos, oxalá que de longe, à decapitação sucessiva de São Miguel, ilha Terceira, o São Jorge e o Faial, e outras ilhas dos Açores, com perda geral de vidas, se o governo de salvação nacional, que amanhã tomará posse, não encontrar soluções para a deslocação, em tempo curto, de centenas de milhares e milhões de

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pessoas para regiões de suficiente segurança, se as há. (SARAMAGO, 2006, p. 184 e 185.)

Saramago assevera a sua crítica em relação ao descaso evidente da Europa

Central para com Portugal e Espanha. Para ele, esta parte da Europa sempre se

negou a ter os dois países da Península Ibérica como integrantes do bloco europeu.

Por causa desse distanciamento existente entre as partes envolvidas, Portugal e

Espanha sempre estiveram à deriva no desenvolvimento econômico da região. Certa

vez, comentando sobre uma viagem que fizera de trem pela Europa na qual

encontrou com alguns funcionários do, na época, Mercado Comum Europeu,

observou que ali todos falavam em francês. Alguns perguntaram de onde ele era e

Saramago lhes propôs uma adivinhação.

Saramago falou qual era o regime político português, a população, a extensão territorial, a religião predominante, a origem da língua, a topografia, tudo o que se podia falar sobre o seu país, e ninguém conseguiu adivinhar nada. (CALBUCCI, 1999,p. 50)

Segundo o autor português e em suas próprias palavras, ao falar sobre este

episódio ele afirma:

Durante meia hora, fui italiano, húngaro, romeno, albanês, tudo quanto é possível ser na Europa, menos português. Percebi que aqueles homens não viam Portugal no mapa da Europa. Hoje, por obra da nossa adesão a UE, a Europa já sabe onde está Portugal, mas mantenho a dúvida de que saiba o que Portugal é. (SARAMAGO apud CALBUCCI, 1999, p. 50)

É por isso que Saramago cria personagens que, guiados por um cão que tem

um fio de lã na boca, transitam entre os dois países sem saber onde irão parar, sem

nenhuma certeza do que lhes irá acontecer, viajando em uma jangada de pedra

totalmente desgovernada. E mais uma vez uma alegoria é posta na tentativa de

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expressar a realidade. Duas nações completamente órfãs como um cão-sem-dono

não têm um destino final. Com efeito, o acaso terá prevalência sobre a certeza.

José Anaiço travou o carro, o cão parou, a olhar, e Joana Carda resumiu finalmente, Quer que vamos com ele. Levaram tempo a perceber uma coisa que já era evidente desde que o animal atravessou a clareira, digamos que o momento logo aí avisou, mas as pessoas nem sempre estão atentas aos sinais. E mesmo quando já deixou de haver razão para dúvidas, ainda teimam em resistir à lição, é o que Joaquim Sassa, que pergunta, e porque é que nós havemos de segui-lo, que disparate é esse de irem quatro pessoas crescidas atrás dum cão vadio que nem sequer traz recado na coleira, salvem-me, ou a chapinha de identificação, chamo-me piloto, se alguém me achar levem-me ao meu dono, senhor fulano de tal, ou fulana, em tal parte assim assim, Não te canses, disse José Anaiço, tão absurda é esta história como outras que têm vindo a acontecer e que pareciam não ter sentido, Ainda duvido que o tenham completo, Não te dêem cuidado os sentidos completos, isto disse Pedro Orce, uma viagem não tem outro sentido que acabar-se, e nós ainda estamos a meio caminho, ou no princípio dele, quem é que o pode saber, diz-me que fim tiveste e eu te direi que sentido pudeste ter, Muito bem, e enquanto esse dia não chega, decidimos quê. Fez-se ali um silêncio. (SARAMAGO, 2006, p. 132 e 133.)

Podemos notar que na última parte deste fragmento há na fala de Pedro Orce

uma referência ao existir. Em síntese, ele está dizendo que o destino dos vivos é a

morte e para ela todos irão. Miriam R. Braga, ao tratar da obra de Saramago, afirma:

O dito saramaguiano evidencia que o romancista deve assumir a responsabilidade de ser a voz do povo de onde vem, e do qual faz parte. Isso significa que o romancista, participante do mundo real, não pode ignorar o que nele se passa, porque não pode ser um mero expectador que conta o que vê a distância. (BRAGA, 1999, p. 89.)

E é com esse realismo cheio de fatos totalmente incomuns que Saramago

exprime os seus pensamentos e sua ideologia sobre temas conflitantes que não

podem deixar de ser discutidos. Saramago não se ausenta na sua obra, ele a narra.

O escritor tão-somente buscou e encontrou uma maneira especial de dialogar com o

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seu leitor. O insólito é então uma parte muito importante desta forma de diálogo. A

outra é a sua escrita que, segundo Braga:

(...) apresenta um trabalho de escolhas temáticas em que surgem coordenadas históricas, ideológicas, filosóficas e míticas, tão estrategicamente imbricadas, que lhe permitem criar um dialogismo com elas, sem parecer inclinado a nenhuma. É por isso que sua escritura não lhe serve como representação de sua ideologia ou de ideais políticos, porém lhe serve na medida em que os refrata, depositando-os como pano de fundo que sutilmente sustenta certas argumentações dos narradores e das personagens (...) (BRAGA,1999, p. 89 e 90.)

Miriam Braga equivoca-se ao dizer que Saramago parece não inclinado aos

temas discutidos em seus romances ou que não corrobora com ideologias postas

neles. O próprio romancista em uma entrevista concedida a Juan Arias e que

resultou no livro José Saramago: o amor impossível, deixa muito clara a sua posição

de dialogar com o seu leitor. Saramago diz:

- Creio que deve haver poucos autores que se entregam tanto aos seus leitores como eu, não no sentido de falar de si, referindo-se à sua vida, não, é outro tipo de comunicação, que tem mais a ver com o modo de entender o mundo, a vida, as relações humanas, E é uma conseqüência do fato de o narrador confundir-se com o autor. (ARIAS, 2004, p. 29.)

E ele acrescenta:

- No meu caso, creio que existe muito coerência entre quem sou, a vida que levo, a vida que tive e aquilo que escrevo. Não sei se é uma coerência absoluta, mas acho que é uma conseqüência de eu não utilizar ninguém, refiro-me ao narrador, para contar coisas. Eu mesmo as conto. O espaço que existe entre o autor e a narração é ocupado às vezes pelo narrador, que age como intermediário, às vezes como filtro, que está para filtrar o que possa ser muito pessoal. O narrador muitas vezes se apresenta para tentar dizer certas coisas sem demasiado comprometimento, sem comprometer demais o autor. Eu diria que entre o narrador, que neste caso sou eu, e o narrado não há nenhum espaço que possa ser ocupado por essa espécie de filtro condicionante ou algo impessoal ou neutro

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que se limitasse a narrar sem implicações. Pode-se dizer que estou pessoalmente envolvido no que escrevo. (Idem, ibidem, p. 29 e 30.)

Notamos que as fantasias maravilhosas criadas pelo autor são, em verdade,

uma maneira de manter um diálogo constante que ele estabelece com seus leitores.

Há uma troca de informações capaz de elucidar verdades, criando um meio propício

para retirada do homem da ignorância.

Enquanto isso, a jangada que faz sua trajetória sem leme nem bússola

estaciona no oceano. Os jornais anunciam o acontecimento das mais diversas

maneiras e alguns chegam a dar pelo surgimento de uma nova Atlântida. Outros

anunciarão que será preciso um novo Tratado de Tordesilhas. Algumas pessoas

dizem sentir a terra mover-se, ainda que lentamente, em sentido circular até que, ao

completar uma volta, a verdade se estabelece e a península toma novo destino,

agora em direção ao sul. José Anaiço, Joana Carda, o cão, Pedro Orce e Joaquim

Sassa vagueiam sem destino juntamente com Maria Guavaira. Pedro Orce, doente,

espera a chegada da morte. A península pára em algum lugar. Pedro Orce morre e o

cão não se afasta da sua cova. A vara de negrilho com a qual Joana Carda riscou o

chão, agora está verde e é possível que ela floreça no ano seguinte. O leitor finaliza

A jangada de pedra e se manterá por alguns instantes, ou quem sabe dias, sob o

efeito contagiante que tais relatos lhe causarão aos sentidos e no desejo de que os

personagens encontrem finalmente a razão de tão longa caminhada.

3.2.2. O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

Em uma lacuna deixada por Fernando Pessoa, Saramago elabora o romance

O ano da morte de Ricardo Reis. Fernando Pessoa, ao criar os seus heterônimos,

preocupava-se em lhes dar data de nascimento, de falecimento, dava-lhes profissão,

formação acadêmica, tipo físico, além de um estilo próprio que os individualizava.

Uma das lacunas deixada foi justamente a data de falecimento de Ricardo Reis.

Neste espaço deixado por Pessoa, Saramago dá início a sua criação. Pessoa faz

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seu personagem nascer em Lisboa e ir morar no Rio de Janeiro e lá exercer a

medicina. Saramago o faz retornar no Highland Brigade dezesseis anos após haver

deixado Lisboa. Ricardo Reis hospeda-se no Hotel Bragança e ali se fixará por um

bom tempo até se estabelecer definitivamente na cidade. Acomodado, diante da

leitura dos jornais locais, ele tem o conhecimento de que o grande amigo Fernando

Pessoa havia morrido e tal notícia o deixa consternado. Ricardo Reis então toma a

iniciativa de ir visitar o cemitério em que seu amigo fora enterrado.

No hotel os clientes entram, saem, almoçam e se conhecem. Salvador, o

gerente, acompanha a vida de todos os que nele ali se hospedam. Porém, uma

presença em especial não é notada por todos, exceto por Ricardo Reis que a recebe

demonstrando haver uma união de longos anos. São amigos. Abraçam-se e

conversam amavelmente. É Fernando Pessoa. Ricardo Reis o vê e não tem dúvidas.

(...) reconheceu-o imediatamente apesar de não o ver há tantos anos, e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à sua espera Fernando Pessoa, disse Olá, embora duvidasse de que ele lhe responderia, nem sempre o absurdo respeita a lógica, mas o caso é que respondeu, disse Viva, e estendeu-lhe a mão, depois abraçaram-se (...) Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reencontrado depois de longa ausência, e é Fernando Pessoa quem primeiro fala, soube que foi me visitar, eu não estava, mas disseram-me quando cheguei(...) (SARAMAGO, 2000, p. 79.)

Por qual motivo um diálogo tão prosaico entre dois grandes amigos suscitaria

discussões? Pelo simples motivo de que se trata de uma conversa entre um vivo e

um morto. Nota-se também que Fernando Pessoa não é um morto solitário. Ele foi

avisado por outro(os) como ele, ou, quem sabe, por alguém vivo, da visita de

Ricardo Reis ao cemitério.

Eles seguem conversando:

(...) Pensei que estivesse, pensei que nunca de lá saísse, Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade,

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explicou Fernando Pessoa, Oito meses por quê, perguntou Ricardo Reis, e Fernando Pessoa esclareceu a informação, Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que andamos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem ver mas todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excepcionais nove meses é quanto basta para o total olvido (...) (Idem, ibidem, p. 79 e 80.)

Sobre tal diálogo, Eduardo Calbucci afirma:

O lado fantástico desse diálogo é evidente: um fantasma conversando com um sujeito que nunca existiu. Porém a naturalidade das falas dá um tom suave à fantasia, e o leitor consegue tranquilamente aceitar os encontros entre Reis e seu criador. (CALBUCCI, 1999, p. 40.)

Calbucci demonstra equivocar-se neste excerto. Ao falar de fantástico, ele se

esquiva. Ele se desvia ao não afirmar que este fragmento possui características que

o façam ser inserido no tema da literatura fantástica. Não, tão somente cita de forma

ambígua que o diálogo é fantástico. Porém, fantástico por ser um diálogo entre um

morto e um vivo? Fantástico por ser entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa? Ou é

fantástico por pertencer à narrativa fantástica? Isto nos parece não estar evidente.

Entretanto, Calbucci dá algumas pistas do que supostamente seja o que ele queira

dizer, ou seja, que é tema da narrativa fantástica. Vejamos: 1°) Um fantasma

conversando com um sujeito que nunca existiu. Quanto ao fantasma, muitas obras

literárias exploram a fantasmagoria, no entanto, ele afirma que o fantasma está

conversando com alguém que nunca existiu. Em se tratando de ficção, tanto Ricardo

Reis como Fernando Pessoa, em O ano da morte de Ricardo Reis, são personagens

criados por Saramago, além disso, não é um diálogo entre criador e criatura, mas

sim, um diálogo entre dois amigos que são personagens extraídos do universo

literário, personagens de Saramago. Um como um grande escritor que foi Fernando

Pessoa, o outro como um heterônimo criado por Pessoa. 2°) O diálogo se dá de

forma tranqüila devido ao que já fora dito anteriormente, a saber, que Saramago

evita a ambigüidade, ele se esforça para ser o mais direto possível e para manter

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uma troca de idéias sem muita interferência ou ruídos. Não há a presença da dúvida

neste diálogo. Não há a imprecisão e em nenhum momento ocorre a vacilação por

parte do leitor ou personagens. De modo que inseri-lo no fantástico não seria o

correto. A narrativa aqui deve ser inserida no maravilhoso por contemplar a

aceitação do leitor que não titubeia, que não se desconcerta diante da

sobrenaturalidade. Segundo Chiampi, “os personagens do realismo maravilhoso não

se desconcertam jamais diante do sobrenatural, nem modalizam a natureza do

acontecimento insólito” (CHIAMPI,1980, p. 61). É por esta razão que a conversa

entre Pessoa e Reis é apresentada muito naturalmente. Ambos conversam de

maneira natural, pois no maravilhoso a sobrenaturalidade é posta em situação de

igualdade com o real.

Continuado o diálogo:

(...) Ricardo Reis tirou a carteira do bolso interior do casaco, extraiu dela um papel dobrado, fez menção de o entregar a Fernando Pessoa, mas este recusou com gesto, disse, Já não sei ler, leia você, e Ricardo Reis leu, Fernando Pessoa faleceu Stop Parto para Glasgow Stop Álvaro de Campos quando recebi este telegrama decidi regressar”. (SARAMAGO, 2000, p. 80.)

É Álvaro de Campos, outro heterônimo de Fernando Pessoa, que dará a

notícia do falecimento de Pessoa para Reis e diz ainda que viajará a Glasgow.

Portanto, Saramago se utiliza de Fernando Pessoa bem como de seus heterônimos

para elaborar este grande romance.

Ao escutar a leitura da carta, pois fantasmas não lêem, Pessoa dá toda a

certeza de que ela foi escrita por Álvaro de Campos. Tanto tempo de amizade, ele

ainda conversa por bastante tempo com Ricardo Reis até o momento em que ambos

se despedem. Um fato curioso chama a atenção durante este diálogo: Pessoa não

consegue se ver no espelho ao deter-se diante de um, enquanto conversava com o

seu amigo Ricardo Reis. Ele não se incomoda com a situação e a naturaliza como

se fosse alguma coisa muito comum:

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Fernando Pessoa levantou-se do sofá, passeou um pouco pela saleta, no quarto parou diante do espelho, depois voltou, É uma impressão estranha, esta de me olhar num espelho e não me ver nele, Não se vê, Não, não me vejo, sei que estou a olhar-me, mas não me vejo, No entanto, tem sombra, é só o que tenho. Tornou a sentar-se, cruzou a perna (...) (idem, ibidem, p. 81.)

Pessoa não se aflige com a experiência de não poder se ver no espelho.

Ricardo Reis, ali com ele, também não esboça nenhuma reação que o leve a

imaginar que este acontecimento com Fernando Pessoa talvez não passe tão

somente de uma ilusão de ótica. No entanto, não há paradoxo. Nem o medo tão

defendido por H. P. Lovecraft para a literatura sobrenatural é percebido pelos

personagens, a tal ponto que o leitor também não se incomoda com a ausência da

imagem não refletida pelo espelho. Pessoa e Reis são indiferentes ao

acontecimento que, em uma literatura de H. P. Lovecraft, deveria o fato sobrenatural

despertar um profundo medo no leitor. Em Saramago isso não irá acontecer. Em

suas obras em que o terror é transformado em uma experiência natural e, ainda que

contradiga a realidade, estará em uma posição de equilíbrio ou harmonia com os

fatos reais.

Essa naturalização do sobrenatural está muito evidente no diálogo entre

Pessoa e Reis imediatamente à não-presença da imagem refletida no espelho:

Ricardo Reis perguntou, Diga-me, como soube que eu estava hospedado neste hotel, Quando se está morto, sabe-se tudo, é uma das vantagens, respondeu Fernando Pessoa, E entrar, como foi que entrou no meu quarto, Como qualquer outra pessoa entraria, Não veio pelos ares, não atravessou as paredes, Que absurda idéia, meu caro, isso só acontece nos livros de fantasmas, os mortos servem-se dos caminhos dos vivos, aliás nem há outros, vim por aí fora desde os Prazeres, como qualquer mortal, subi a escada, abri aquela porta, sentei-me neste sofá à sua espera, E ninguém deu pela entrada de um desconhecido, sim, que você aqui é um desconhecido, Essa é outra vantagem de estar morto, ninguém nos vê, querendo nós, Mas eu vejo-o a si, Porque eu quero que me veja (...) (idem, ibidem, p. 82.)

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Neste fragmento Saramago neutraliza o absurdo tornando-o mais humano e o

mais real possível, ao minimizar todo o terror fantasmagórico que a cena causaria

em outro tipo de literatura. Ele privilegia o diálogo ao não optar pelos efeitos

contrários que a presença de um fantasma causaria em uma cena como esta.

Na caminhada de análise de obras de Saramago observamos que o autor

esforça-se pela coerência ao não desviar-se do estilo que o caracteriza. José

Saramago é o autor do diálogo. As imagens presentes em sua narrativa criam um

ambiente profícuo para que narrador e personagens possam, com suas vozes,

ampliar a percepção do leitor ao fazê-lo interagir com o ambiente, sem que a palavra

deixe de ser o principal foco da narrativa. E aqui quando dizemos a palavra,

queremos referir ao que o autor está tentando comunicar ao leitor, pois é isso que

Saramago faz o tempo todo.

No final de O ano da morte de Ricardo Reis, Pessoa irá aparecer como fez

em outras oportunidades, porém desta vez com a finalidade de despedir-se de seu

amigo Reis, para sempre. Reis que não verá sentido manter-se distante do grande

amigo, o acompanhará nessa caminhada. Ao baterem à porta da casa de Reis, ele

vai ao encontro da porta, imaginando ser a sua mulher que em lágrimas ia ao seu

encontro. Era Fernando Pessoa. Ambos conversam rapidamente e o visitante

explica as razões da chegada inesperada.

Vim cá para lhe dizer que não nos tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa-de-cabeceira buscar “The god of the labyrinth”, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo, (...) E esse livro, para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse (...) Estavam no passeio do jardim, olhavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis (...) (idem, ibidem, p. 414 e 415.)

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Ricardo Reis opta por seguir Fernando Pessoa ainda que isso significasse

que ele não mais regressaria ao mundo dos mortais. Antes de sair, entretanto, Reis

até tenta levar um livro, porém para onde iriam não haveria mais a necessidade da

leitura. A literatura só tem importância e valor no mundo dos vivos. A morte deixa

para trás coisas muito significativas como o simples prazer de ler e leva consigo as

pessoas que simplesmente não mais morrem, mas sim, desaparecem.

Pudemos notar ao analisarmos A jangada de pedra e O ano da morte de

Ricardo Reis, que ambas se diferenciam quanto à discussão da temática da morte.

Neste rastreio que culmina na análise de As intermitências da morte, em A jangada

de pedra, o tema morte não é tão aprofundado como em O ano da morte de Ricardo

Reis, entretanto, ambas sinalizam a predileção do autor pelo assunto. Tal predileção

culminará em obra específica sobre esta temática, ou seja, As intermitências da

morte.

3.2.3. AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE

Em sua trajetória como escritor, José Saramago demonstra uma predileção

pela morte, como um importante tema a ser discutido. Em suas diversas obras, ele a

aborda de modo que o leitor sempre possa refletir sobre ela e confrontá-la com

outras maneiras de se tratar o tema.

Em As intermitências da morte, Saramago mais uma vez encontra no

realismo maravilhoso um meio de criar um ambiente de reflexão sobre esta temática

conflituosa e, no transcurso desta investigação, fizemos assim uma caminhada no

desejo de demonstrar como o autor se utiliza do maravilhoso para estabelecer com o

seu leitor outro diálogo, agora mais específico, com um tema que para todos é muito

árduo: a morte ou o morrer é sempre uma discussão difícil. Assim, o autor nessa

nova linha romanesca de escritura, encontra a forma ideal para tratar da morte sem

ser demasiado realista e manter a atenção do seu leitor.

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No primeiro dia do ano novo em uma localidade não revelada, as pessoas

passam a não morrer. Por horas e horas nenhuma notícia é dada sobre um único

falecimento, acontecimento que começa a criar grande perturbação. Nem colisões

entre veículos, nem doenças e quedas fatais são capazes de gerar óbitos. Doentes

terminais são interrompidos de morrer e assim seguem agonizantes pela hora da

morte. Muitas pessoas aguardam ansiosas pela confirmação de que seja verdade o

que está acontecendo, no entanto outros se mantêm preocupados imaginando as

conseqüências em virtude da ausência da morte. O não-morrer então começa a

modificar a rotina daquela sociedade e os mais diversos setores questionam a

procedência da veracidade das informações que a todos chegam desencontradas.

Ninguém mais está morrendo. Evidentemente, somente um fenômeno sobrenatural

poderia contribuir para que tal desarranjo social pudesse acontecer. Não caberia em

nenhuma sociedade onde vida existisse que a morte ali não se manifestasse. Tal

fenômeno sobrenatural, porém, se manifesta em toda a sua totalidade quando a

morte é enfim personificada, surgindo em toda a sua beleza feminina e frieza de

morte. A morte é, de fato, uma mulher:

O mal foi que, concluída a intervenção do especialista estrangeiro, só uma vista pouco treinada admitiria como iguais as três caveiras escolhidas, obrigando portanto a que investigadores, em lugar de uma fotografia, tivessem de trabalhar com três, o que, obviamente, iria dificultar a tarefa da caça-à-morte como, ambiciosamente, a operação havia sido denominada. Uma única cousa havia ficado demonstrada por cima de qualquer dúvida, a saber, que nem a iconografia mais rudimentar, nem a nomenclatura mais enredada, nem a simbólica mais abstrusa se haviam equivocado. A morte em todos os seus traços, atributos e características, era, inconfundivelmente, uma mulher. (SARAMAGO, 2005, p. 128.)

Porém não era uma mulher qualquer. Era uma mulher de grande beleza e

jovem. Portanto, uma investigação que conduzisse ao conhecimento e

reconhecimento, via de regra, tornava-se fundamental.

Não houve portanto outro remédio, aliás como já havia sido previsto em caso de necessidade, que regressar aos métodos da investigação clássica, ao artesanato policial de cortar e coser,

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espalhando por todo o país aqueles mil agentes de autoridade que de casa em casa, de loja em loja, de escritório em escritório, de fábrica em fábrica, de restaurante em restaurante, de bar em bar, e até mesmo em lugares reservados ao exercício oneroso do sexo, passariam revista a todas as mulheres com exclusão das adolescentes e das de idade madura ou provecta, pois as três fotografias que levavam no bolso não deixavam dúvidas de que a morte, se chegasse a ser encontrada, seria uma mulher ao redor dos trinta e seis anos de idade e formosa como poucas. (Idem, ibidem, p. 129 e 130.)

Para aumentar a angústia humana, após um período entre transtornos e

felicidade por não mais ter havido uma só morte, as pessoas começam a

desesperar-se, já que a morte voltou a matar e porque o recurso utilizado por ela

agora é muito mais doloroso. A morte passa a enviar cartas que informam ao

destinatário o dia em que ele ou ela irá morrer.

Percebemos nesta construção narrativa o caminho utilizado pelo autor para

chamar a atenção não somente para a necessidade que a sociedade humana tem

da existência da morte, como também para a luta que o homem empreende para

tentar encontrar uma maneira de não mais morrer. Na obra, no momento em que

investigadores tentam encontrar a morte na tentativa de conhecê-la para, quem

sabe, dominá-la, evidencia-se uma construção metafórica da corrida frenética

empreendida pela humanidade na busca do elixir da longa vida, no desejo de vencer

a morte.

Notamos, portanto, que o sobrenatural utilizado para discutir a temática da

morte, em nenhum momento causa estranheza ou pavor nos personagens ou no

leitor. O incômodo principal é o morrer ou a falta da morte. O morrer sempre foi um

incômodo para o homem, no entanto, a falta da morte configura-se um fato novo,

haja vista que o homem sempre soube que um dia iria morrer e o não-morrer passou

a gerar um desconforto social em função da desestrutura de ter que caberem tantas

pessoas vivas num só lugar. A desordem do não-morrer contrasta-se com a euforia

do viver infinitamente. Contudo, o retorno da morte trará esperanças para os que

tinham nesta a reestruturação social e, para outros, a angústia de terem que passar

por tudo de novo, a saber, a certeza de que um dia deixariam de viver.

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Saramago, utilizando-se do maravilhoso, encontra uma maneira distinta de

fazer reflexão de um tema que a ele não encanta muito, porém é um assunto tão

importante como falar da vida. A morte ou o morrer fazem parte das duas faces da

mesma moeda. Perguntado em uma entrevista do por quê falar da morte, ele

responde:

Porque é da morte que sempre temos de falar. As pessoas morrem, mas tratamos a morte como se fosse um episódio a mais na vida, nós a banalizamos, e não deveria ser assim. Em Todos os nomes se fala muitíssimo da morte, mas fala-se muitíssimo da morte para falar da vida. O que acontece é que pretender falar da vida evitando a morte, como se ela não existisse, é uma mentira. O que eu pretendo é afrontar-me com a morte, não com a minha morte, não com o final da minha vida, o desastre que vai ser, a dor que sentirão quando me forem ver: coitadinho, morreu. Não é isso. Trata-se do fato em si da morte, de que a gente tem que morrer e o quanto isso ilumina ou, pelo contrário, escurece a própria vida que se leva. Aí está tudo: a vida, o amor, tudo está contido nesse final, tudo o que se diga ou se tenha feito aponta nessa direção e aí tudo se cumprirá. Não há nada de mórbido no que estou a dizer, nada, não há nenhuma morbidez. Não gosto de falar da morte, mas ela está aí. O que eu quero é afrontar-me com ela, e que aquilo que eu escreva tenha essa referência, que não é a expressão definitiva do pessimismo, não. O pessimismo é anterior, e não é pelo simples fato de afrontar-se com a morte que se resolve tudo. O que pretendo, sim, é evitar que se esqueça que ela existe, que é o que se costuma fazer. Tentamos apagar a morte. As pessoas já não mais morrem, simplesmente desaparecem. (ARIAS, 2004, p.63 e 64.)

E a morte volta então a existir em As intermitências da morte para que as

pessoas não se esqueçam dela. Na forma de uma mulher ela segue matando e o

ser humano se dá conta de que o que houve foi uma pausa. Todos passariam a

morrer agora. Todos devem morrer. Todos irão morrer.

(...) porque o morrer é, afinal de contas, o que há de mais normal e corrente na vida, facto de pura rotina, episódio da interminável herança de pais a filhos, pelo menos desde adão e eva, e muito mal fariam os governos de todo o mundo à precária tranqüilidade pública se passassem a decretar três dias de luto nacional de cada vez que morre um mísero velho no asilo de indigentes. (SARAMAGO, 2005, p.130 e 131.)

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Portanto, as pessoas deveriam seguir morrendo a fim de que a ordem fosse

mantida. Em As intermitências da morte, a mulher pela qual a morte se passa, segue

a sua atividade enviando cartas para os escolhidos. As pessoas que as recebem

passam a reagir das mais diversas formas ao que estaria para acontecer. Alguns

deixam de pagar os impostos, outros se entregam às orgias, ao sexo, às drogas e

ao álcool. Outras, contudo, não esperam tanto, suicidam-se.

É com este relato em que a sobrenaturalidade se faz presente que o autor

nos ajuda a compreender a vida e o seu significado. A pensar no que podemos fazer

ou no que deixamos de fazer enquanto a vida passa e a presença da morte se

aproxima. No relato maravilhoso, não somos surpreendidos pela sobrenaturalidade,

mas com ela conseguimos enxergar-nos e ao semelhante. Saramago não deseja

esconder a morte da realidade que o homem vive, ele espera contribuir para que o

seu leitor desperte e não se esqueça de que o morrer e o morto constituem o nosso

contexto.

Segundo Saramago: 11

A morte se banaliza para ocultar a sua realidade. Até os mortos reais que aparecem na televisão, pelo fato de aparecerem na televisão, tornam-se de certo modo irreais. Se você nunca se afrontar diretamente com a morte, neste caso com a morte do outro, nunca saberá o que é. (ARIAS, 2004, p. 64.)

A morte segue a sua atividade como sempre fez e sabe fazer. Aterrorizando,

angustiando, deprimindo, matando. A pressa para ela é irrelevante e surpreende-se

quando alguém, por sua conta e atitude, dá fim à própria vida. Com efeito, a exceção

também surge quando por uma razão inesperada uma das cartas retorna ao

remetente.

11 Entrevista que Saramago concedeu a Juan Arias em sua casa em Lanzarote, nas ilhas Canárias. A entrevista foi publicada originalmente em 1998 pela editora Planeta na Espanha, pouco antes de José Saramago ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura. Em 2004 o livro é lançado no Brasil sem retoque e no original. Segundo Arias, Saramago na época chegou a considerar que ali estava a sua biografia uma vez que ele não pensava em escrevê-la.

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Diz-se, di-lo a sabedoria das nações, que não há regra sem excepção, e realmente assim deverá ser, porquanto até mesmo no caso de regras que todos consideraríamos maximamente inexpugnáveis como são, por exemplo, as da morte soberana, em que, por simples definição do conceito, seria inadmissível que se pudesse apresentar qualquer absurda excepção, aconteceu que uma carta de cor violeta foi devolvida à procedência. (SARAMAGO, 2005, p. 135.)

A morte não compreende o motivo do retorno da carta violeta e a observa

friamente na busca por respostas de um acontecimento até o momento sem

explicações. Usando de seus poderes, a morte reenvia a carta ao destinatário que

se recusa, ainda que sem saber, a recebê-la.

A morte olhou fixamente o sobrescrito de cor violeta, fez um gesto com a mão direita, e a carta desaparece. Ficámos assim a saber que, contrariamente ao que tantos criam, a morte não leva as cartas ao correio. (SARAMAGO, 2005, p. 137.)

Um leitor das obras de Saramago não irá se surpreender com o uso de cartas

utilizadas pela morte em As intermitências da morte para anunciar o dia final de

alguém. O autor já antecipa em O ano da morte de Ricardo Reis esse recurso

quando o narrador discute sobre a possibilidade de as pessoas passarem a tomar

conhecimento da própria morte por meio de jornais que anunciassem o dia, a hora e

o lugar em que se iriam morrer. Portanto, o autor somente modifica a maneira de

como as pessoas passariam a saber da própria morte. Não seria mais pela leitura de

um jornal, mas sim, por meio de uma correspondência cor violeta, endereçada ao

futuro falecido. Saramago relê a sua própria obra e a intertextualiza. Ou, quem sabe,

extrai de seus pensamentos uma idéia que já havia sido usada antes e a transforma,

transportando-a para outra de suas obras. Recursos sobrenaturais antes citados,

como possibilidades em O ano da morte de Ricardo Reis, tornam-se realidade em

As intermitências da morte.

(...) e melhor seria ainda que aparecesse publicada a lista dos que iriam morrer, milhões de homens e mulheres lendo o jornal da manhã, no café com leite, a notícia de sua própria morte, um destino

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marcado e por cumprir, dia, hora e lugar, o nome inteiro, que fariam quando soubessem que os matariam, que faria Fernando Pessoa se pudesse ler, dois meses antes, O autor de Mensagem morrerá no dia trinta de novembro próximo (...) (idem, 2000, p. 50 e 51.)

Em As intermitências da morte, o uso sobrenatural das cartas é utilizado para

anunciar o dia tão indesejado pelo ser humano. O dia da sua morte.

O sobrescrito encontrava-se sobre a mesa do director-geral da televisão quando a secretária entrou no gabinete. Era de cor violeta, portanto fora do comum, e o papel, de tipo gofrado, imitava a textura do linho. Parecia antigo e dava a impressão de que já havia sido usado antes. Não tinha qualquer endereço, tanto de remetente, o que às vezes sucede, como de destinatário, o que não sucede nunca, e estava num gabinete cuja porta, fechada à chave, acabara de ser aberta nesse momento, e onde ninguém poderia ter entrado durante a noite. (idem, 2005, p. 87.)

Não há da parte do diretor-geral, ao abrir a carta, nenhuma incerteza sobre a

veracidade do que ele está vivenciando. Não existe dúvida, tampouco hesitação. O

diretor-geral acredita no que acabara de ler e o conteúdo da carta foi capaz de

desestruturá-lo, ele não podia compreender como que tal correspondência pôde ali

chegar, sem destinatário, sem remetente e com uma mensagem aterradora. O

diretor então percebe que necessita conversar com alguém sobre o que lhe sucede

e ao mesmo tempo chega a pensar que provavelmente seja uma piada ou uma

brincadeira. É então que, com as mãos trêmulas, ele telefona ao primeiro-ministro,

pois algo desta magnitude deveria ser considerado como de segurança nacional. O

primeiro-ministro ao tomar conhecimento do conteúdo da carta se defronta com dois

pensamentos distintos, já que o retorno da morte resolveria uma infinidade de

problemas, afinal, sete meses sem uma morte sequer, pois este foi o tempo em que

as pessoas ficaram sem morrer, resultaram em graves prejuízos. Na carta, a morte

afirmava não ser a verdadeira Morte. Para ela, nenhum ser humano poderia ter idéia

da dimensão do que seria tal contato com a Morte. Segundo a morte, o que os

homens conhecem é a morte cotidiana. Ela é esta morte. A morte se diz limitada em

sua atividade de matar, visto que, até em desastres de dimensões catastróficas, ela

era incapaz de impossibilitar que alguém dali saísse vivo. Algo que jamais

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aconteceria se fosse a Morte que estivesse à frente do acontecimento calamitoso,

ou seja, não sobraria ninguém vivo. Na carta a morte dizia ao senhor diretor:

(...)preocupe-se com explicar bem aos seus leitores os comos e os porquês da vida e da morte, e, já agora, regressando ao objectivo desta carta, escrita, tal como a que foi lida na televisão, de meu punho e letra, convido-o instantaneamente a cumprir aquelas honradas disposições da lei de imprensa que mandam rectificar no mesmo lugar e com a mesma valorização gráfica o erro, a omissão ou o lapso cometidos, arriscando-se neste caso o senhor director, se esta carta não for publicada na íntegra, a que lhe despache, amanhã mesmo, com efeitos imediatos, o aviso prévio que tenho reservado para si daqui por alguns anos, não lhe direi quantos para não lhe amargar o resto da vida, sem outro assunto, subscrevo-me com a atenção devida, morte. (idem, ibidem, p. 112.)

Bella Josef afirma que “todo o romance discorrerá entre a nostalgia da fala

reconstruída e a necessidade de transgredir a realidade imediata através dela”

(JOSEF, 1993, p. 167). Portanto, Saramago ao escrever utilizando-se da vírgula e

do ponto, tenta acercar-se da fala aproximando-se mais do seu leitor. Porém ao usar

o maravilhoso, ele rompe a todo instante com a realidade fazendo uso dessa fala ou

palavra, sem que tal recurso impeça ou impossibilite uma reflexão profunda dos

temas abordados por ele. Ao contrário, ele instiga ainda mais o refletir por meio de

um realismo em que o sobrenatural prevalece. No entanto, os seus textos são

diretos, ele não deseja fazer-se ou tornar-se obscuro. Daí, talvez a não-opção pelo

fantástico, mas sim pelo maravilhoso. Vincent Jouve, ao escrever sobre leitura,

afirma:

Se o leitor está ao mesmo tempo “orientado” e “livre” no decorrer da leitura, é porque a recepção de um texto se organiza em torno de dois pólos que podemos chamar, como M. Otten (1982), de “espaços de certeza” e “espaços de incerteza”. Os “espaços de certeza” são os pontos de ancoragem da leitura, as passagens mais explícitas de um texto, aquelas a partir das quais se entrevê o sentido global. Os “espaços de incerteza” remetem para todas as passagens obscuras ou ambíguas cujo deciframento solicita a participação do leitor. (JOUVE, 2002, p. 66.)

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Portanto, Saramago evita os “espaços de incerteza” ainda que se utilizando

do insólito para comunicar-se. A sua opção pelos “espaços de certeza” definidos por

Jouve dá ao seu leitor o direcionamento na medida exata do que ele, o autor, deseja

dividir com aquele que o lê. Ao personificar a morte, ao ausentá-la ainda que

temporariamente da vida humana e ao trazê-la de volta, José Saramago nos faz ver

o quanto o não morrer seria desastroso para a humanidade, como se pode observar

no excerto abaixo:

Porque se os seres humanos não morressem tudo passaria a ser permitido, E isso seria mau, perguntou o filósofo velho, Tanto como não permitir nada. Houve um grande silêncio. Aos oito homens sentados ao redor da mesa tinha sido encomendado que reflectissem sobre as conseqüências de um futuro sem morte e que construíssem a partir dos dados do presente uma previsão plausível das novas questões com que a sociedade iria ter de enfrentar-se, além, escusado seria dizer, do inevitável agravamento das questões velhas. (SARAMAGO, 2005, p. 37.)

Percebemos assim que o autor é direto. Ele insere o leitor no âmago da

reflexão, sem que possa haver muitos espaços vazios para a indeterminação. Para

ele, o não-morrer contribuiria para o total caos da humanidade e de toda a

estruturação da sociedade. Ou seja, ainda que indesejada, a morte é tão necessária

quanto a vida. E ele vai mais além. Em outro fragmento, a voz do narrador nos faz

saber que a morte nos acompanha a cada instante de nossa vida e que vivemos

como se, por ela, fossemos vigiados esperando pacientemente a chegada da nossa

hora. A morte nos ronda e ainda que não a vejamos, está à espera do momento em

que nos levará para o destino final a que todos um dia se dirigirão.

A morte viajou sentada ao lado dele no táxi que o levou a casa, entrou quando ele entrou, contemplou com benevolência as loucas efusões do cão à chegada do amo, e depois, tal como faria uma pessoa convidada a passar ali uma temporada, instalou-se. Para quem não precisa de se mover, é fácil, tanto lhe dá estar sentado no chão como empoleirado na cimeira de um armário. (idem, ibidem, p. 169.)

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No entanto, a dona morte encontra-se agora às voltas de um grande

problema por não estar conseguindo fazer com que um simples violoncelista receba

a carta de cor violeta. À primeira devolução, percebia ela que alguma coisa

estranha sucedia. Logo, divagava sobre a possibilidade de o carteiro a tê-la posto

em outra caixa de correio e por esta razão a carta retornou. No entanto, não há

carteiro. A carta retorna uma segunda vez e a morte então se queixa bastante, pois

nunca semelhante fato aconteceu. Era uma situação inusitada e que fazia com que o

mais poderoso dos seres sobrenaturais, pela primeira vez, questionasse a própria

majestade. Observando a sua lista de mortuários, nota que o violoncelista não

constava na relação. Ele que deveria morrer aos quarenta e nove anos, acabava de

chegar aos cinqüenta sem que a sua hora final chegasse. A morte se irrita, se

impacienta. A carta retorna uma terceira vez. A morte tem a idéia de alterar a data

de nascimento do violoncelista e nem isso tem o efeito esperado. Um violoncelista

como tantos outros, sem fama, sem dinheiro e solitário, que vive na companhia de

um cachorro e que a morte não consegue levá-lo. Ela o acompanha, o observa e por

três dias não saiu do seu rastro. Aparenta ser uma jovem mulher, equipa-se de

óculos escuros, veste-se de tal maneira que, pode parecer irônico, sua beleza

contagia. Pela primeira vez, ela irá assistir a um concerto. Com o seu vestido novo

ela está mais uma vez diante do violoncelista, agora, por um motivo especial. Ela

espera o fim do concerto para felicitá-lo. Ambos conversam e se despedem.

Intrigado com aquela imagem, o violoncelista não consegue retirar dos pensamentos

a mulher com a qual pôde trocar poucas palavras. Um dia, passeando com o seu

cachorro, em um dos bancos do jardim, ele a encontrou e confessou o quanto por

ela se apaixonou. Ela se vai. Melhor dizendo, desaparece. Certo dia, ela o visita e os

dois conversam. Ela pede para que ele toque algo e, ao fazê-lo, as mãos da dona

morte perdem a sua frieza e começam a arder de tamanha emoção que aquelas

cordas vibrantes liberando um som tão imperceptível por ela antes, passam a dar-

lhe um certo sentido, uma certa alegria. A morte e o violoncelista se amam ali

mesmo e ela, que nunca havia dormido, cai em um profundo sono para no dia

seguinte ninguém morrer.

Saramago alegoricamente nos chama a atenção para uma constatação: a

morte não mata a arte. Vão-se os artistas, vão-se as pessoas. A arte para sempre

permanece e o artista é imortalizado pelo seu trabalho. É a sua arte que o consagra,

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que o torna imortal. Em As intermitências da morte o sobrenatural serve como um

meio de fazer-nos ver a importância da vida e da arte e como a arte cheia de vida é

passada de geração em geração, sendo capaz de vencer a morte.

Nessa trajetória, acompanhamos como a escritura de Saramago tem um

objetivo claro, a saber, criar um leitor consciente e reflexivo. Nesse realismo

chamado por muitos de mágico, a magia no realismo maravilhoso está em fazer uso

do sobrenatural, naturalizando-o. O objetivo traçado até aqui foi o de inserir o autor

neste tipo de narrativa tão fortemente adotada no continente americano, mas que

tem na Europa um expoente que magistralmente a enriquece e a dignifica.

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4. CAPÍTULO III

A MORTE, A RELIGIÃO, A FILOSOFIA E A ARTE

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4.1 A EXPERIÊNCIA DA PRÓPRIA MORTE NA MORTE DO OUTRO

Que vamos morrer todos sabemos. Por milhares de anos, nós os seres

humanos, acompanhamos dia a dia o viver e o morrer dos nossos amigos, dos

nossos parentes, bem como dos demais seres vivos. Sabedores que este momento

chegará, vivemos intensamente como formigas que durante o verão precisam juntar

o máximo possível de alimento. No nosso verão, nos esforçamos para acumular

riquezas, conhecimento e tecnologia a fim de garantir com isso a sobrevivência da

espécie. Precisamos ser rápidos uma vez que, diferentemente das formigas, nosso

inverno será eterno. Não em vão, tentamos camuflar o medo da chegada do dia da

morte com recursos inteligentes e, porque não dizer, eficazes. A religião, a filosofia,

as artes e a ciência são instrumentos importantes na amenização da dor que a

morte causa ao homem. Com efeito, cada uma destas áreas do conhecimento busca

cumprir o seu papel que é o de minimizar o impacto que o medo da morte produz.

No campo das artes, por exemplo, a literatura desempenha um relevante trabalho no

que tange ao enfrentamento do homem com esta realidade que o espera. Escritores

em diversas épocas ao expor a temática têm contribuído para que o morrer e mais

especificamente a morte, não seja pelo homem ignorada, esquecida. No conto Nhô

Guimarães, Aleílton Fonseca12 nos faz entender que não somos eternos, que somos

finitos: “O tempo foi indo, Manu ficando velhinho, com pouco lá se foi dessa pra

melhor. Eu fiquei sozinha, neste pé de serra. É verdade: ninguém fica para semente,

pois não é?” (FONSECA, 2001, p.11). Logo, há sempre um escritor pronto a nos

relembrar sobre esta limitação que nos impõe a natureza. Evidentemente, cada um à

sua maneira ou ao seu estilo, nos alerta a respeito desta nossa agonia. De forma

distinta, José Saramago em As intermitências da morte inicia a sua narrativa dizendo

que “No dia seguinte ninguém morreu” (SARAMAGO, 2005, p.11). É possível

perceber, de imediato, que as obras acima citadas se diferenciam pelo tipo de

realismo utilizado. A primeira opta por um realismo mais próximo aos fatos do

cotidiano, às nossas vivências. A segunda opta pela sobrenaturalidade. Entretanto,

notamos que em ambas as obras o tema principal é a morte. Contudo, é instigador

12 Seleção de 12 contos que compõe o livro O desterro dos mortos. Sua primeira edição foi publicada em 2001 pela Relume Dumará.

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sermos convidados a pensar a morte sob o prisma da imortalidade proposto por

José Saramago.

E como pensar a vida humana sem a existência da morte? Em As

intermitências da morte passamos a refletir a vida sob a perspectiva da imortalidade

humana. Em geral, ao falarmos de morte o que temos por referência é sempre a

morte do outro. Neste romance de Saramago a morte do outro deixa de existir e esta

referência então desaparece. Passamos a não contemplar no outro o fim da nossa

existência. Começamos, assim, a pensar numa sociedade forjada sob o maior

anseio do homem: viver eternamente. Como tal realidade só se concretiza na

imaginação, nesta obra, a literatura, enquanto ficção, aborda esta temática sem que

a certeza efetiva do morrer esteja presente inicialmente. Mikhail Bakthin, nos dá

uma importante afirmação quando diz:

Em minha vida, vivida por dentro, não posso vivenciar os acontecimentos do meu nascimento e da minha morte; o nascimento e a morte, enquanto o meu nascimento e minha morte, não podem tornar-se eventos da minha vida. (...) Ter medo de morrer e ter vontade de viver-ser neste mundo são sentimentos que diferem substancialmente do medo que sinto ante a morte do outro, de quem me é próximo, e dos cuidados em que me desdobrei para salvaguardar-lhe a vida. (BAKTHIN, 2000, p.119)

Esta asserção de Bakthin pode ser observada em vários excertos do romance

de José Saramago. Nela, todos passam a observar que ninguém mais está

morrendo. Desde o primeiro dia do ano seguinte os rumores são gerais, visto que

não havia registro de mortes por doença, por acidentes, suicídios, nem mesmo em

colisões nas quais jamais se imaginaria alguém sair vivo. O pensamento reinante

era: houve vítimas fatais. Retomando Bakthin, toda esta observação, notamos, é

feita pelo olhar do outro que, neste caso, é o narrador. É sempre o outro que vê a

morte do seu semelhante. Enquanto experiência a ser passada, não coube ao

homem externar o seu nascimento, tampouco a sua morte. O nosso nascer e o

nosso morrer são eventos que não podemos compartilhar; não temos como externar

os detalhes deste momento único em nossa vida.

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Segundo Françoise Dastur, (...) não há experiência da morte como tal, mas

somente experiência da morte do outro e instituição, nesta experiência primeira de

luto, da própria referência a si como mortal (DASTUR, 2002, p.14). É quando a

finitude se realiza no outro, no semelhante. A experiência humana materializada no

outro o abala fazendo-o sentir-se inseguro e abandonado. Em muitos casos é

evidenciada a falta de preparo para tal enfrentamento dada a inevitabilidade que é o

morrer e, por conseguinte, a forte angústia que a morte provoca. O morto, então, se

configura num reflexo do espelho visto pelo vivo. Olhá-lo é ver-se. Logo, tentar

desviar-se de tal visão suaviza o homem do seu confronto final, do seu maior

inimigo. No entanto, em As intermitências da morte este confronto desaparece. O

morrer em determinado período deixa de acontecer. Logo, as pessoas passam a

não se ver mortas na morte do outro, de modo que o medo de morrer desaparece.

Vejamos o fragmento:

Com o passar dos dias, e vendo que realmente ninguém morria, os pessimistas e os cépticos, aos poucos e poucos no princípio, depois em massa, foram-se juntando ao maré magnum de cidadãos que aproveitavam todas as ocasiões para sair à rua e proclamar, e gritar, que agora sim, a vida é bela. (SARAMAGO, 2005, p.24)

Com efeito, com a não-morte, a perda definitiva deixa de existir e aquilo que é

intelectual, físico e afetivo, permanece. Ou seja, o conhecimento se eterniza e o

homem, fisicamente e afetivamente, pode desfrutar da imortalidade. Além disso, a

dor da perda não necessitará ser substituída por uma nova informação, a saber: um

ideal, um trabalho, um novo amigo, uma viagem, etc. Isso significa que o homem

não necessitará mais buscar novos pensamentos que venham a preencher a

saudade deixada pelo seu ente querido. Ainda segundo Dastur, (...) a morte é objeto

de espanto e não parece poder ser enfrentada, a não ser na medida em que se vê

relativizada e aparenta ter domínio apenas de uma parte do nosso ser (DASTUR,

2002, p. 6). Criamos, então, mecanismos que nos distanciam do pensamento atroz

que nos naturaliza e nos coloca em situação de igualdade perante os demais seres

vivos. O saber que vai morrer impõe ao homem uma luta interior gigantesca que só

é amenizada por instrumentos quase perfeitos de reação a morte. Porém, sentir o

gosto da imortalidade em As intermitências da morte, também nos faz repensar o

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quanto de imprescindível é a morte do homem. Por outro lado, a festa e a alegria por

tal possibilidade demonstrada no fragmento da obra citado anteriormente, não deixa

de evidenciar o nosso desejo interno de festejar algo que desejaríamos que fosse

real. Tal alegria demonstrada no romance é justificada visto que não há relatos na

história da humanidade de alguém que tenha vivido eternamente.

É importante observar que, como um homem que discute o seu tempo,

Saramago inicia o seu leitor na discussão sobre a longevidade e as conseqüências

do longo viver. Todos os esforços científicos têm sido feitos no intuito de permitir ao

homem viver mais e mais. De modo que a sua obra “da directrizes e ensinamentos

para a vivência do presente” (SEIXO, 1999, p.54-55), ao mesmo tempo em que

lança o olhar para o futuro.

4.2. MORRER É ALGO NATURAL

Acostumados a ver as pessoas morrendo, todos se mantêm sob grande

expectativa referente ao que está ocorrendo naquele país. Em verdade, desde o

momento em que somos gerados, desafiamos a morte ainda que ela esteja sempre

pronta a nos levar. A cada dia vivemos e morremos, morremos para viver. O dormir

é uma morte temporária. Quando nos despertamos temos mais uma oportunidade

de sentir a vida, de viver. Porém, sempre há a certeza da chegada do dia em que

não mais haverá o prazer de vermos a luz do sol uma vez que a escuridão será

eterna. A imortalidade em As intermitências da morte se apresenta como um sonho

da humanidade, um desejo que ardorosamente se tenta conseguir. Contudo, as

informações passadas ao público são difusas e não contribuem para uma exata

idéia do que está acontecendo. Como o morrer sempre se configurou como uma

regra por mais que o homem lute para reverter tal verdade sempre tal confronto

resultará ser ineficaz. Em conversa com o ministro da saúde, um jornalista expressa

a sua incompreensão para os fatos que se verificam naquele lugar:

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(...) Senhor ministro, permita-me que lhe recorde que ainda ontem havia pessoas que morriam e a ninguém lhe passaria pela cabeça que isso fosse alarmante, É natural, o costume é morrer, e morrer só se torna alarmante quando as mortes se multiplicam, uma guerra, uma epidemia, por exemplo, Isto é, quando sai da rotina, Poder-se-á dizer assim, Mas, agora, que não se encontra quem esteja disposto a morrer, é quando o senhor ministro nos vem pedir que não nos alarmemos, convirá comigo que, pelo menos, é bastante paradoxal (...) (SARAMAGO, 2005, p.16)

No diálogo apresentado acima, fica claro o quanto que o morrer é comum,

aceitável e natural. É possível perceber o grande desconforto da parte do governo

pelo motivo deste encontrar-se diante de uma situação completamente atípica. As

respostas do governo aos questionamentos devem ser comedidas e o cuidado com

o emprego correto das palavras deverá demonstrar a cautela governamental na

condução do problema ora enfrentado. A preocupação tem toda uma lógica de

existir. É sabido por todos que a longevidade das populações tem contribuído para a

reformulação de diversas políticas econômicas na área da saúde e previdência

social em diversos países, devido ao aumento da expectativa de vida das pessoas.

Imaginar que a longevidade passará a ser substituída pela imortalidade, gera nas

mentes administrativas um enorme mal-estar. Primeiramente, acredita o governo

poder conduzir com desvelo tal fenômeno.

(...) o primeiro ministro terminava afirmando que o governo se encontrava preparado para todas as eventualidades humanamente imagináveis, decidido a enfrentar com coragem e com indispensável apoio da população os complexos problemas sociais, econômicos, políticos e morais que a extinção definitiva da morte inevitavelmente suscitaria, no caso, que tudo parece indicar como previsível, de se vir a confirmar. (idem, ibidem, p.17)

Notamos que Saramago é, verdadeiramente, um escritor contemporâneo.

Neste romance ele faz uma ampla discussão política, econômica, social, religiosa e

filosófica, com uma boa pitada de humor, sem perder o foco principal que é o de

permitir que o seu leitor participe das suas inquietudes. Observando o grande

avanço científico e tecnológico em diversas áreas e mais especificamente, na saúde,

ele sabe que o homem tem feito com quem vários especialistas em finanças revejam

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constantemente os gastos do governo na saúde e, de modo mais específico, na área

da aposentadoria. Viver mais é, para a sociedade contemporânea, administrar

diversos problemas financeiros. No romance, a imortalidade gerará um caos nas

contas governamentais.

(...) com que dinheiro o país, dentro de uns vinte anos, mais ponto, menos vírgula, pensava poder pagar as pensões aos milhões de pessoas que se encontrariam em situação de reformados por invalidez permanente e que assim iriam continuar por todos os séculos dos séculos e às quais outros milhões se viriam a reunir implacavelmente, tanto fazendo que a progressão seja aritmética ou geométrica, de qualquer maneira sempre teremos garantida a catástrofe, será a confusão, a balbúrdia, a bancarrota do estado, o salve-se quem puder, e ninguém se salvará. (SARAMAGO,2005, p.77-78)

A prédica contida no fragmento acima nos remete aos conflitos atuais entre

governo e sociedade. Ao governo cabe zelar pelas finanças públicas porém, a

sociedade luta para que os privilégios das aposentadorias sejam mantidos sem que

haja uma reflexão de onde entrarão os recursos. A sociedade atual vive mais e,

portanto, utiliza por mais tempo o dinheiro das aposentadorias. Ao contrário, a

massa trabalhadora em idade de contribuição previdenciária diminui

consideravelmente. Além disso, as populações em diversas regiões têm diminuído

em função do não aumento da taxa de natalidade. As intermitências da morte se

configura, então, como uma ficção que discute a sociedade, presente e futura. É um

alerta que sinaliza os problemas que poderão advir caso medidas não sejam

tomadas. Medidas essas que possibilitem uma adequação entre população

economicamente ativa e contributiva de um lado, e a população de aposentados do

outro. E essa reflexão é aprofundada:

Efectivamente, voltando às inquietantes razões do economista, os cálculos eram muito fáceis de fazer, senão vejamos, se temos um tanto de população activa que desconta para a segurança social, se temos um tanto de população não activa que se encontra em situação de reforma, seja por velhice. Seja por invalidez, e portanto cobra da outra as suas pensões, estando a activa em constante diminuição em relação a inactiva e esta em crescimento contínuo

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absoluto, não se compreende que ninguém se tenha logo apercebido de que o desaparecimento da morte, parecendo o auge, o acme, a suprema felicidade, não era, afinal, uma boa cousa. (ibidem, ibidem, p. 78)

O romancista, por este fragmento, dá uma clara demonstração do seu

envolvimento pelas questões que afligem a sociedade. Entretanto, podemos notar o

que culminou nesta discussão foi toda uma reflexão sobre a morte. Morte e vida em

Saramago são, em verdade, faces de uma mesma moeda e se complementam.

Quando pensamos na morte dificilmente analisamos as conseqüências de uma vida

sem sua existência. De modo que, essa inversão proposta pelo autor, ou seja,

observar a vida sem a presença da morte faz-nos perceber o quanto o morrer

harmoniza toda a cadeia dos seres viventes. No caso específico do ser humano,

Schopenhauer argumenta que o que deve prevalecer é a humanidade e não o

indivíduo. Segundo ele:

Exigir a imortalidade do indivíduo é querer perpetuar um erro até o infinito. No fundo, toda a individualidade é um erro especial, um equívoco, alguma cousa que não deveria existir. O verdadeiro objetivo dele é libertarmo-nos dele. (SHOPENHAUER, 1943,60)

Para Schopenhauer, “a duração dever ser assegurada à humanidade e não

ao indivíduo” (SHOPENHAUER, 1943,60). Notamos, portanto, que esse jogo de

idéias de proporcionar ao homem a imortalidade em As intermitências da morte é de

fundamental importância, pois permite que o leitor tenha a exata noção de nossa

não perenidade e o quanto a cessação da vida contribui para a manutenção da

própria vida. No romance, os diálogos presentes entre alguns setores da sociedade

como os filósofos, o governo, e a igreja católica, apontam para a preocupação de

uma crise impensável. As pessoas não estão a refletir sobre o presente, tampouco o

futuro que se desenha. O mais agravante é que o desaparecimento da morte se dá

tão somente em um país que não tem o seu nome citado, enquanto os demais

mantêm as suas taxas de natalidade e de mortalidade equânimes.

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Façamos aqui uma observação para a estratégia utilizada pelo romancista em

não nomear o país afetado pela ausência da morte. Ao não nomear o país,

Saramago permite que cada um que lê As intermitências da morte possa incluir-se

numa temática que é universal já que a morte afeta a todos, nos atinge por igual, em

qualquer lugar. Mas, retomando Schopenhauer, se a imortalidade deve ser

assegurada à humanidade, logo este mundo não será do indivíduo, mas sim de

todos. Dos que se foram, dos que estão e dos que virão. O eu é tão somente parte

dos que comporão a história da vida. O eu é aquele constituído na vida e na morte

pelo olhar do outro. O eu pertence a este universo que compõe os outros e este eu

terá que deixar de existir para que outros ocupem o seu lugar. Portanto, a morte ou

o morrer como fenômenos naturais, reduzem o nosso individualismo ao nos mostrar

que somos parte de um corpo e que o que é, deixará de ser para dar lugar aos que

um dia serão.

(...) porque morrer é, afinal de contas, o que há de mais normal e corrente na vida, facto de pura rotina, episódio da interminável herança de pais a filhos, pelo menos desde adão e eva, e muito mal fariam os governos de todo o mundo à precária tranqüilidade pública se passassem a decretar três dias de luto nacional de cada vez que morre um mísero velho(...) (SARAMAGO, 2005,130-131)

Logo, é isso que o romance também tenta deixar claro. A morte é um

fenômeno natural e como tal, devemos aceitá-la.

4.3. DOMINADOS PELO MEDO

Se o medo da morte é um obstáculo com o qual nos defrontamos

constantemente e que nos fragiliza, é evidente que este temor nos torna vulneráveis

de nós mesmos. O medo nos paralisa ao limitar as nossas reações ante o que nos

aflige. Atemorizados, externamos a nossa fragilidade o que permite que sejamos

conduzidos e manipulados. Um setor da sociedade que se utiliza do medo da morte

para conduzir as pessoas ordeiramente citado no romance, é o religioso. Em As

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intermitências da morte, Saramago não poupa críticas ao cristianismo nem a religião

católica. A prova disso são os diálogos contidos no romance que anunciam a

derrocada não somente da religião cristã, bem como de toda e qualquer religião. Ele

é muito duro nesse embate o que o faz uma pessoa não bem aceita pela Igreja

Católica, bem como no seu país, lugar em que o catolicismo predomina e, por conta

disso, o escritor não foi premiado com o maior laurel da literatura européia. Ele

transparece os seus sentimentos sobre o que pensa da igreja católica e não deixa

pedra sobre pedra quando impelido a tratar do tema.

De fato, quando ele escreve, não tem papas na língua e sua crítica ao poder da Igreja é implacável, sobretudo em “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, obra que mais aborrecimentos lhe causou em sua própria terra e que, em um primeiro momento, teve sua indicação ao Prêmio de Literatura Europeu vetada pelo governo português, sob a alegação de que não representava os portugueses. (ARIAS, 2003, p.12)

Em As intermitências da morte, a ausência da morte destituirá do trono

sagrado o deus dos cristãos uma vez que, pelo fato deste habitar no mundo dos

mortos, o não morrer significará uma ruptura na caminhada do homem mortal em

direção ao mundo da vida perpétua e harmônica nos céus. Como afirma Leach,

A religião está voltada, em toda a parte, para a preocupação com o primordial, a antinomia entre vida e morte, procurando negar o vínculo binário entre as duas palavras. Isso é feito por meio da criação da idéia mística de “outro” mundo, um mundo dos mortos onde a vida é perpétua. Os atributos desse mundo são necessariamente aqueles que não são deste mundo; a imperfeição daqui é compensada com a perfeição lá. Mas essa ordenação lógica das idéias traz uma conseqüência desconcertante: Deus passa a pertencer ao outro mundo. O “problema” central da religião consiste, portanto, em restaurar alguma espécie de ponte entre o Homem e Deus. (LEACH, 1983, p. 59)

E como esta ponte é estabelecida pelo morrer, o seu rompimento deflagra

toda uma desestruturação da ordem religiosa no mundo dos vivos, uma vez que

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todo o discurso que perfaz a construção ideológica em torno da religião cristã cai por

terra com a não existência da morte. Sendo assim, a religião que atua como um

caminho que conduz o vivo ao mundo dos mortos, que leva o impuro ao puro, o

mundano ao espiritual, o imperfeito ao mundo perfeito, deixa de servir de farol para

aqueles que nela crêem e nela depositam a sua confiança. Ora, notamos então que

o discurso de Saramago recria o real pela ficção e pela palavra, remodela a

realidade na tentativa de construir significados no leitor. É provável que Saramago

não proponha aos seus leitores que abandonem suas crenças religiosas, por outro

lado, refletir sobre essa temática que nos domina e nos faz acreditar em um discurso

religioso que nos conduz a morada eterna é, por assim dizer, imprescindível.

...os delegados das religiões apresentaram-se formando uma frente unida comum com a qual aspiravam a estabelecer o debate no único terreno dialéctico que lhes interessava, isto é, a aceitação explícita de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto, qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfema como absurda, portanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido. (SARAMAGO, 2005, p. 35)

A não presença da morte, como podemos observar, representa o

esfacelamento, a ruína de toda uma idealização de vida após a morte, de uma vida

eterna no paraíso celestial. Cai então o mito do paraíso. A certeza de vida em um

lugar antagônico a terra, um lugar em que tudo o que é bom, belo e maravilhoso ali

será encontrado e desfrutado. Em entrevista a Juan Arias, Saramago afirma:

O escritor também diz que, se, como afirmam os crentes, existe um paraíso para os homens, seria injusto que não houvesse outro para aquelas criaturas incapazes de odiar, coisa que sabem fazer, e às vezes com infinita crueldade, alguns dos orgulhosos humanos. (ARIAS, 2003, p. 20)

Ou seja, como uma forma de vencer a morte, o homem criou um paraíso

somente para si. Por esta razão é que vivemos, em grande maioria, na esperança

de que, ou iremos a um lugar eterno e ali viveremos para sempre ou então, seremos

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em nossas almas reciclados até estarmos em condições de partirmos em paz para a

morada eterna. Então, extraindo-se os céticos que duvidam da existência de outra

vida após a morte, que é o mesmo que afirmar a não existência de vida eterna

quando deixamos de existir, o certo é que somos conduzidos religiosamente a

acreditar na possibilidade de um dia desfrutarmos das benesses celestiais. Com

efeito, temerosos do porvir, nos deixamos comodamente ser conduzidos a uma

certeza, pouco provável, de que um dia nos dirigiremos ao paraíso. Logo, este

desejo latente em seguir vivendo, ainda que no plano espiritual, exige certos

comportamentos que deverão ser seguidos para enfim, haver a recompensa

almejada. A igreja cristã, como a condutora divina nesta jornada, se vê autorizada a

ditar as normas com as quais os seus membros deverão se nortear para que haja

uma ligação entre o terreno e o celeste. Com efeito, a partir do instante em que não

há mais a morte, o paraíso deixa de existir.

As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca. ... Tem razão senhor filósofo, é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada sua hora, acolham a morte como uma libertação, O paraíso, Paraíso ou inferno, ou cousa nenhuma, o que se passe depois da morte importa-nos muito menos que o que geralmente se crê, a religião senhor filósofo, é um assunto da terra, não tem nada que ver com o céu. ... Algo teríamos que dizer para tornar atrativa a mercadoria, Isso quer dizer que em realidade não acreditam na vida eterna, Fazemos de conta. (SARAMAGO, 2005, p. 36)

Como podemos notar é impossível não refletir sobre este diálogo que investe

contra a pedra angular do catolicismo. Os diálogos que ocorrem no romance

contribuem para ampliar a análise, constituindo assim um forte instrumento

convincente de que o céu e o inferno são em verdade, frutos da imaginação humana

e que se fazem presentes na bíblia e por ela foram disseminados através dos

tempos. Percebemos que Saramago abunda seus textos com ironias que

dessacralizam toda e qualquer ordem religiosa baseada na bíblia.

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Por nossa parte, igreja católica, apostólica romana, organizaremos uma campanha nacional de orações para rogar a deus que providencie o regresso da morte o mais rapidamente possível a fim de poupar a pobre humanidade aos piores horrores, Deus tem autoridade sobre a morte, perguntou um dos optimistas, São as duas caras da mesma moeda, de um lado o rei, do outro a coroa. (SARAMAGO, 2005, p. 37)

Ele faz ver que Deus e a morte são uma coisa só. “Sendo assim, talvez tenha

sido por ordem de deus que a morte se retirou” (SARAMAGO, 2005, p. 37). No livro

de Lucas 20:38 é possível ler que “Deus não é um Deus de mortos, e sim de vivos;

porque para ele todos vivem”, entretanto, o encontro com Deus só se dá mediante o

morrer visto que nos céus Ele reinará com os que lhe foram fiéis. Portanto, a não

presença da morte, destrona o rei já que o reino passou a não mais existir:

Assim sendo, somos seduzidos pela palavra e por ela conduzidos a acreditar

numa realidade que existe somente no mundo místico. Logo, essa mesma palavra

que nos distingue dos demais seres vivos, esse fantástico instrumento que nos

possibilita adquirir e transferir conhecimentos para os de nossa espécie, também

nos torna presas fáceis dos discursos aos quais estamos sujeitos. E organizados

como somos, por meio dos mitos, a vivermos cordialmente em sociedade, a

preocupação ante o caos existente se fundamenta: “Porque se os seres humanos

não morressem tudo passaria a ser permitido, E isso seria mau, perguntou o filósofo

velho, Tanto como não permitir nada. Houve um novo silêncio” (SARAMAGO, 2005,

p. 36). Houve um silêncio pela grande preocupação resultante das impossibilidades

em se resolver um problema de tamanha grandeza. E segundo Orlandi, “o silêncio

do sentido torna presente não só a iminência do não-dito que se pode dizer, mas o

indizível da presença: do sujeito e do sentido” (ORLANDI, 1997,72). Retomando ao

mito, Para Leach,

Todas as estórias que ocorrem na Bíblia são mitos para o cristão devoto, quer correspondam aos fatos históricos ou não. Todas as sociedades humanas têm mitos nesse sentido e, normalmente, os mitos aos quais se dá maior importância são aqueles que têm menos possibilidades de realização. A não racionalidade do mito é a sua verdadeira essência, pois a religião exige uma demonstração de fé que se faz suspendendo-se a dúvida crítica. (LEACH, 1983, p. 57)

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Com isso, a construção do mito e a sua perpetuação se dá na medida em que

ele vem a se constituir em uma narrativa pouco ou nada racionalizada. Questioná-lo

é romper com a organização a qual estamos submetidos. Ele nos mantém de forma

ordeira, submetidos a um rigor disciplinar que, ainda que legalmente livres,

psicologicamente nos encontramos atados. Foucault afirma que, “a disciplina é um

princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de

uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”

(FOUCAULT, 1996, p. 36). Portanto, a pregação da vida eterna nos céus é, sem

dúvida, um discurso de manutenção e reatualização das regras que resultam

disciplinar a todos os que comungam da ordem religiosa a qual pertencem. Vemos

assim, como nos é difícil abster de uma construção social que nos direciona a ver o

mundo sob uma ótica que não necessariamente precisaríamos. Saramago enfim,

passeia com as suas idéias em suas obras deixando que cada leitor construa as

próprias num diálogo constante entre autor, narrador, personagens e leitor. Não

necessariamente nesta ordem.

4.4. CONFRONTANDO OS NOSSOS MEDOS

Duas facetas nos chamam a atenção ao analisarmos a obra de Saramago: se

por um lado a morte causa no homem uma forte angústia, por outro a morte ressalta

a capacidade que este mesmo homem tem em confrontá-la. Observamos que, ao

fazer uso da religião, a humanidade encontrou um caminho que viesse a amenizar o

terrível medo proporcionado pelo conhecimento de que irá morrer. Apegando-se a

uma crença que o imortaliza, o ser humano suaviza então a chegada do não

esperado fatídico dia. O dia da própria morte. Ao depositar as suas forças neste

instrumento de confronto, a religião, ele consegue viver acreditando que parte de

seus medos está superada. No México, por exemplo, a festa católica do dia dos

mortos, demonstra como as pessoas daquele país realizam o seu confronto com a

morte. Ao levarem comidas aos cemitérios, ao participarem com todos os seus

familiares dos festejos do dia de finados, ao se lembrarem do morto de modo que a

sua comida preferida seja levada e depositada no dia da festa, cria a sensação da

imortalidade tão desejada pela humanidade. No entanto, as manifestações do povo

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mexicano não param por aí, ao reverenciarem a santa morte como uma santa

protetora, uma santa que dá sorte, eles conseguem ter uma relação com a morte de

maneira diferenciada. Isso não significa que haja o desejo de morrer ou que o medo

da morte não se faça presente. A questão é que a relação com a morte se dá de

maneira mais proximal. A santa morte passou a ser uma amiga, uma protetora e não

uma assustadora e terrífica presença. Tal adoração no México é, em verdade, a

manifestação do pavor que carregamos ao saber que iremos morrer. Vale salientar

que tal fenômeno de adoração a santa morte se expande principalmente num grupo

social que está sempre mantido no limiar entre a vida e a morte, que são os

narcotraficantes. Logo, tal adoração se constitui num grande amuleto, numa grande

barreira edificada com o objetivo de manter distante o mal que aflige a humanidade

e, em forte contradição, mantê-lo próximo na forma de santa que representa este

mesmo mal, como uma maneira de amenizar tamanho sofrimento interior.

Mas essa meditação sobre a morte, pelo próprio fato de pretender, como Montaigne o disse tão bem, dela se “avizinhar”, manifesta uma vontade de “domá-la”, de assegurar sobre ela um certo domínio, tirando-lhe, desse modo, seu caráter de pura possibilidade. (DASTUR, 2002, p. 82-83)

Algo assim tão excepcional só poderia se constituir na mente humana. Por

anos e anos esta luta infinita se veste e reveste de características cada vez mais

diversas e fascinantes. Com efeito, percebemos o quanto que a religião depende da

morte para que assim se mantenha viva. Sem morte não há igreja. Em As

intermitências da morte, essa necessidade da igreja cristã de que haja a morte para

com isso manter-se viva, fica clara no fragmento abaixo, quando o cardeal mantém

um diálogo com o primeiro-ministro:

(...) o próprio cardeal já havia apontado o dedo ao busílis que significaria esta versão teológica da quadratura do círculo quando, na conversação telefónica com o primeiro-ministro, admitiu, ainda que por palavras muito menos claras, que se se acabasse a morte, não poderia haver ressurreição, e que se não houvesse ressurreição, então não teria sentido haver igreja. (SARAMAGO, 2005,36)

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Portanto, essa idéia de vencer a morte entre os cristãos não é fato recente. A

própria convicção do Cristo ressuscitado é uma forte marca criada pela humanidade

e que dá um amplo poder religioso, ao criar certezas sobre fatos improváveis de

acontecer. Contudo, tais acontecimentos presentes no mundo místico acabam por

acalentar as esperanças das pessoas e fortalecem as suas convicções na vida

eterna. Menos crente que muitas pessoas, Saramago afirma a Juan Arias:

O que é evidente para mim é que quando a humanidade acabar, não haverá mais Deus, porque não haverá ninguém para dizer a palavra de Deus ou para nele pensar. (...) Do meu ponto de vista de ignorante de todas as coisas do mundo, e principalmente de todas as coisas do céu, há somente um lugar onde existe Deus e o diabo e o bem e o mal, que é a minha cabeça. Fora da cabeça do homem, não há nada. (ARIAS, 2003, p. 100)

Por esta fala de Saramago, notamos que o escritor dá uma chinelada em tudo

o que constitui o pensamento construtivo da existência de Deus e, por conseguinte,

da igreja católica, tão amplamente criticada por ele. Ao ampliarmos o seu

pensamento, chegaremos à conclusão de que Deus é criação da mente humana e

que o homem necessita menos de Deus do que ele pensa. Deus, neste caso, é

quem mais precisa do homem para que se mantenha existindo. Por outro lado, se

Deus é uma criação da mente humana não podemos deixar de considerar esta

grande invenção da humanidade. Deus saiu da mente tomou forma e passou a ditar

a conduta das pessoas. A santa morte no México também deixou esta mesma

mente e passou a ter uma forma corpórea com a qual os seus adoradores se

identificam e a adoram. Saramago ainda diz mais em sua entrevista:

A capacidade que tem o ser humano de construir sobre o nada é incrível. Sim, como você dizia, acho que foi a humanidade que inventou os deuses de que foi necessitando a cada momento, por isso todos os deuses são históricos. Amanhã, daqui a mil anos, o Deus de hoje acabará, e não saberemos o que se inventará então. (ARIAS, 2003, p. 101)

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Assim sendo, a cada momento estamos criando e recriando os nossos

deuses segundo as nossas necessidades, segundo os nossos medos. A cada

momento histórico o ser humano cria as suas divindades no intuito de estabelecer

com ela uma relação de segurança. Ou seja, à mercê de sua finitude o homem se

ampara em suas criações religiosas para nelas se agarrarem. É claro que não

podemos deixar de considerar como uma estratégia de sucesso. A vitória desta

invenção está no fato dela se auto-sustentar. O seu alicerce é edificado de modo

que sua estrutura sempre se mantenha firme. E a firmeza que mantém a estrutura

religiosa está na sua base que é a morte. E no caso específico do cristianismo a

ressurreição de Cristo é sem dúvida o seu indestrutível fundamento. De Cristo

nasceu tudo o que se derivou chamar de cristianismo.

É a todos os respeitos deplorável que, ao redigir a declaração que acabei de escutar, o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado daquilo que constitui o alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a chave de abóboda da nossa santa religião, Eminência, perdoe-me, temo não compreender aonde quer chegar, Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja, Ó diabo, não percebi o que acaba de dizer, repita, por favor, (...) Dizia o que qualquer católico, e o senhor não é uma excepção, tem obrigação de saber, que sem ressurreição não há igreja.(SARAMAGO, 2005,18)

Portanto, não tendo como matar a Deus o escritor, no seu realismo

maravilhoso, retira a morte de cena e então tudo se desmorona como numa fileira de

dominós, quando derrubada a primeira peça. Como toda a construção necessita de

uma base e colunas de sustentação, as religiões são edificadas sob a morte. É a

morte que as sustenta, é com a morte que são erigidas. Entretanto, é importante

observar que toda essa ideologia religiosa se constrói desde criança. São as

crianças que darão continuidade à crença que lhes será incutida. Para Bacon, “o

costume é mais perfeito quando tem origem nos primeiros anos de vida: é o que

chamamos educação, que, com efeito, não passa de um costume cedo adquirido”

(BACON apud THOMPSON, p. 14). Cedo, as crianças são educadas a temer a

morte e a encontrar na religião a segurança necessária. Na bíblia, várias são as

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passagens que fundamentam esta afirmação. Jesus Cristo, por exemplo, disse13 que

as crianças deveriam ir até ele por ser delas o reino dos céus. Porém, como

sabemos o reino dos céus não está localizado no mundo dos vivos, mas sim no

mundo dos mortos. As crianças são, então, a continuidade ideológica desta

dicotomia chamada mundo dos vivos e mundo dos mortos. Entre céu e terra. Entre o

mundo dos homens e a casa de Deus. Esta blindagem que nos é posta desde

crianças atua como uma proteção contra o nosso maior conflito. Contra o nosso

maior adversário. Necessitamos de algo que nos possa confortar da certeza de que

iremos morrer. A religião é um desses instrumentos. Porém, é um dos mais eficazes,

senão o mais eficaz que temos conhecimento.

Outra maneira encontrada para coibir a presença constante deste pavor é o

manter ausente o que nos faz sentir a morte, a saber, o próprio morto. Nós, os

homens, sentimos a morte na morte do outro. Assim, a sociedade tem buscado e

encontrado maneiras de fazer com que a presença do morto não mais seja

necessária nos ritos funerários. O desfile fúnebre, a despedida social do agora ex-

morador local deixou de ser um evento das cidades. Cidades estas que não tem

mais tempo para tão lenta despedida. O ritmo frenético dos automóveis impossibilita

a lentidão que a passagem do defunto provoca. Além disso, os mortos deixam cada

vez mais de ser velados em suas casas e passam a ser homenageados em lugares

em que o capital condicionou ser apropriados para tal acontecimento. A morte

definitivamente não pode e nem deve fazer parte desta nova sociedade em que a

beleza prevalece e tudo aquilo que não é agradável ou belo, deve ser descartado.

Exceção tão somente para pessoas que detêm um grande apresso público e para

tanto, necessitam de uma despedida em grande estilo a exemplo de políticos,

artistas, líderes religiosos, entre outros. Ariès discute isto em sua obra.

Uma forma absolutamente nova de morrer surgiu durante o século XX, em algumas das zonas mais industrializadas, urbanizadas e tecnicamente adiantadas do mundo ocidental – e, sem dúvida, estamos presenciando apenas seus primórdios. (...) A sociedade já

13 A passagem encontra-se no livro de Mateus 19:14. BÍBLIA. Português. A Bíblia da Mulher.

Tradução de Neyd V. Siqueira et al. São Paulo: Mundo Cristão e Sociedade Bíblica do Brasil, 2003.

1728 p.

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não faz uma pausa: o desaparecimento de um indivíduo não mais lhe afeta a continuidade. Tudo se passa na cidade como se ninguém morresse mais. (ARIÈS, 1990, p. 613)

E ele acrescenta:

(...) a sociedade expulsou a morte, salvo a dos homens de Estado. Nada mais anuncia ter acontecido alguma coisa na cidade: o antigo carro mortuário negro e prateado transformou-se numa limusine banal cinza, que passa despercebida no fluxo da circulação. (idem, ibidem, p. 613)

De maneira alegórica, Saramago também adverte para tal fato. Como as

pessoas não mais morriam, muitos viviam agonizando, viviam em constante

sofrimento e não conseguiam ter as suas dores aliviadas com a própria morte. Numa

família citada Em intermitências da morte, o patriarca e o seu neto seguem no limite

entre a vida e a morte. A morte não os alcança o que gera um conflito familiar

intenso visto que os familiares sabiam que do outro lado da fronteira a morte seguia

matando. O quê fazer então? A idéia então é levar a ambos para o outro lado da

fronteira para ali morrerem e ali fossem enterrados. Por outro lado, era preciso que

as pessoas do lugar não notassem aquilo que iria ocorrer. A população local

suspeitava que algo estivesse para acontecer. Portanto, era preciso ter certeza que

nada sairia errado. Então, todos resolvem sair quando a cidade dorme em silêncio, à

meia-noite. Ao chegarem próximo à fronteira, se despedem. O avô e o seu pequeno

neto são postos lado a lado em uma cova, que foi muito bem apilada para que

ninguém a encontrasse. Esta tem sido uma das maneiras que a sociedade

encontrou de não expor o morto à cidade. Se não há morto, a morte não se faz

presente. Atualmente, vemos as lojas funerárias cada vez mais oferecendo os seus

serviços com discrição. Tais empreendimentos empresariais estão se

metamorfoseando como se fossem espaços de eventos ou em requintados

ambientes, no intuito de não expor o seu real serviço que é tão antigo quanto à

própria existência do homem. Ou seja, o de enterrar pessoas.

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Outra forma engendrada em confrontar a morte é a de não dar a ela a sua

devida notoriedade. As pessoas não querem mais falar sobre a morte. Não querem

mais vê-la. Tampouco, anunciá-la. Contudo, esse fenômeno não é recente. Um

conto de Liev Tolstói reflete muito bem esta forma social de esconder a morte. No

conto, um marido se vê em uma situação de aflição por não querer informar à sua

esposa que ela irá morrer. Para ela não há mais saída. A tuberculose já afeta os

seus dois pulmões. Contudo, o marido tenta poupar-lhe de tão horrenda informação

que poderá acarretar prematuramente a morte da esposa. Sem coragem o marido,

encontra na prima da mulher uma aliada para dar-lhe a triste notícia. É assim que

tem agido a sociedade. Ela vem omitindo aos seus a notícia derradeira. De outra

maneira, quando há guerras, desastres naturais ou acidentes fatais, os mortos vêm

sendo transformados em números. Não é mais João, filho de Maria, primo de José.

João é tão somente um número. Um dado estatístico. João não foi criança, não teve

uma infância feliz, não brincou, não viveu, não tem referências. Para Saramago:

Agora a morte não se vê, os mortos são levados ao necrotério e desaparecem. Quanto menos forem vistos, mais à vontade sentir-se-á a sociedade que conseguiu ocultá-la para que não incomodasse. Mas ela continua ali, com sua força inescapável. (ARIAS, 2003,64-65)

Portanto, significa dizer que estamos tentando camuflar a maior certeza da

vida. A nossa existência está diretamente relacionada com o nosso

desaparecimento. A nossa finitude é o que realmente temos de concreto. Todos

iremos morrer. Logo, podemos afirmar que estamos diante de uma luta inútil. Iremos

perecer, um dia. Todos.

A filosofia, ciência que tem como pedra de toque a morte, constitui-se também

como uma grande forma de conhecimento que auxilia o ser humano a confrontar-se

com a morte. Schopenhauer dirá que “A morte é o gênio inspirador, a pedra de

toque da filosofia... sem ela dificilmente se teria filosofado. Nascimento e morte

pertencem igualmente à vida e contrapesam-se” (SCHOPENHAUER, 1943, 59). Em

As intermitências da morte, os filósofos começam a entoar suas preocupações ante

o desaparecimento daquilo que faz da filosofia a mãe de todas as ciências, a saber,

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questionar a morte e o morrer. Perguntar de onde viemos e para onde vamos,

deixaria em parte, de estar no rol dos questionamentos infindáveis da vida. Em parte

porque o perguntar de onde viemos continuaria a estar presente na consciência

humana.

E nós, perguntou um dos filósofos optimistas em um tom que parecia anunciar o seu próximo ingresso nas fileiras contrárias, que vamos fazer a partir de agora, quando parece que todas as portas se fecharam, Para começar, levantar a sessão, respondeu o mais velho, E depois, Continuar a filosofar, já que nascemos para isso, e ainda que seja sobre o vazio, Para quê, Para quê, não sei, Então porquê, Porque a filosofia precisa saber que morreremos, monsieur de Montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer. (SARAMAGO 2005,38)

Portanto, diferentemente dos religiosos que passaram a contemplar o fim de

suas crenças, os filósofos reagem com preocupação, contudo entendem que seria

necessário manter os questionamentos uma vez que tais interrogações são a

essência deles, fazem parte deles e é o que eles acreditam. Nota-se que ao

contrário dos religiosos que “em realidade não acreditam na vida eterna”

(SARAMAGO, 2005,36), os filósofos se vêm compelidos a seguir pensando naquilo

que crêem. Roberto DaMatta assevera:

A morte, parece-me, é um problema filosófico e existencial moderno. Mas não é assim nas sociedades tribais e tradicionais, em que o indivíduo não existe como entidade moral dominante e o todo predomina sobre as partes. Aqui o problema não é bem a morte, mas os mortos. (DaMatta, 1991, 143-144)

DaMatta equivoca-se nessa sua afirmativa em alguns pontos. Primeiramente,

a morte não é um problema filosófico existencial moderno. Desde a Grécia antiga

vemos a filosofia questionando a morte, o morrer, a vida após a morte. Além disso, a

morte é uma experiência individual. Ela deixa de ser social na medida em que um

indivíduo não a passa a outro. Logo, esta só pode ser experimentada de forma

individualizada tão somente. O que nos resta aos vivos é perceber a morte na morte

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do outro. Agora, questões como a banalização da morte, a perda da crença na vida

pós-morte esta sim, se configura um problema da modernidade e da pós-

modernidade. Faraós já buscavam na mumificação vencer a morte. Jesus Cristo

para o cristão representa a vitória sobre a morte. E várias sociedades sempre

encontraram e ainda encontram um meio de superar esta angústia. Assim sendo, é

necessário chamar a atenção das pessoas para os temas que o dia-a-dia tende a

esquecê-los. Conseqüentemente, sempre surgem aqueles que, preocupados com

estes temas, os reavivam para que nossas memórias sempre se mantenham vivas e

nossas reflexões, constantes.

Sendo assim, os textos de Saramago são suas inquietações compartilhadas

com o seu leitor. Além disso, ele confirma e reafirma em As intermitências da morte

o que a filosofia compreende como a maior das angústias do ser humano visto que,

em pleno Séc. XXI, o homem ainda não se vê livre desse incômodo eterno. E nisso

resulta aquilo que será sempre eterno, ou seja, a certeza de que um dia o ser

humano irá morrer. Pois,

Estar morto, eis em que consiste precisamente a tarefa do filósofo e, como é dito explicitamente por Platão em uma fórmula que já anuncia Montaigne: “Aqueles que filosofam, no sentido exato da palavra, se exercitam para morrer e não há no mundo homem que tenha menos que eles, medo de estar morto” (Fédon,67,e); Trata-se para estes de se aplicar ao longo de sua vida em separar sua alma de seu corpo, isto é, de se exercitar propriamente para morrer (81ª). Essa preparação para a morte em si já é o acesso à imortalidade. (DASTUR, 2002,33-34)

Ou seja, assim como a religião, a filosofia exerce o seu papel social ao

auxiliar o indivíduo no seu exercício mental para o morrer. Há nesta consciência

humana de que um dia morrerá um desprendimento muito grande de energia que

somente através de um exercício proporcionado seja pela filosofia, seja pela religião,

contribuirá para atenuar o desgaste provocado por tal consciência. Schopenhauer

adverte para o fato de que “exigir a imortalidade do indivíduo é querer perpetuar um

erro até o infinito” (SCHOPENHAUER, 1943,60) e ele ainda diz: “No fundo, toda a

individualidade é um erro especial, um equívoco, alguma coisa que não deveria

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existir” (SCHOPENHAUER, 1943,60). Mas não somente isso. Em As intermitências

da morte, outras conseqüências advêm como resultado dos frutos produzidos pela

eternidade:

(...) multidões de pais, avós, bisavós, trisavós, tetravós, pentavós, hexavós, e por ahí a fora, ad infinitum, se juntarão, uma atrás de outra, como folhas que das árvores se desprendem e vão tombar sobre as folhas dos outonos pretéritos... do formigueiro interminável dos que, pouco a pouco, levaram a vida a perder dentes e o cabelo, das legiões dos de má vista e mau ouvido, dos herniados, dos catarrosos, dos que fracturaram o colo do fémur, dos paraplégicos, dos caquécticos agora imortais que não são capazes de segurar nem a baba que lhes escorre do queixo, vossas excelências, senhores que nos governam, talvez não nos queiram crer, mas o que aí nos vem em cima é o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pôde haver sonhado. ...é certo que então tudo era em ponto pequeno, mas para alguma coisa a imaginação nos haveria de servir... antes a morte, ... antes a morte que tal sorte. (SARAMAGO, 2005, 32)

Portanto, não nascemos para agüentar a dor e o sofrimento por muito tempo.

Nascemos para completar um ciclo de vida que deverá ser constante. O nosso

entendimento de vida não pode estar restrito tão somente à nossa vida, mas sim à

vida dos que se foram e à vida dos que virão. A essência da vida está justamente no

fato de que esta não deve e não pode restringir-se tão somente ao indivíduo. Ela

deve ser uma essência para a humanidade. O indivíduo, tão inexplicavelmente

escolhido para existir, precisa estar ciente de que um dia ele deverá ceder espaço

para que outros, assim como ele, possam ter o prazer de ser um ser em sociedade.

Então, o morrer se configura num forte aliado que extirpa desta mesma sociedade

um mal inerente ao homem a saber, o seu individualismo. É vedada ao homem a

manutenção desta individualidade que é uma de suas fortes características

negativas. Por outro lado, essa consciência de morte acaba por libertar este mesmo

homem afim de que este seja criativo para a vida. Ele precisa neste seu curto tempo

de vida, certo de que irá morrer, construir um mundo organizado e melhor para o seu

eu que estará no outro; no seu descendente.

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4.5. FILOSOFAR COM ARTE

Dois bons filmes nos chamam a atenção pela forma como ambos abordam a

temática da morte e da imortalidade humana. São eles À espera de um milagre e O

homem bicentenário. À espera de um milagre é um filme que foi dirigido por Frank

Darabont e é uma adaptação do romance de Stephen King. Os fatos narrados neste

filme estão ambientados nos Estados Unidos dos anos trinta do século XX. Nele, um

enorme negro chamado John Coffey é condenado à pena de morte por ter sido

acusado de haver matado a duas crianças gêmeas e brancas de forma brutal.

Coffey, durante o período em que se encontra preso, não demonstra nenhum

comportamento agressivo e, além disso, carrega consigo um dom muito especial. O

filme, que tem como ator principal Tom Hanks que interpreta o personagem Paul

Edgecomb, que é chefe da carceragem do presídio, entre as suas várias discussões

retrata também o quanto a longevidade é para o homem um enorme desconforto.

Paul Edgecomb conta a uma amiga algo que lhe aconteceu quando ele trabalhava

como chefe da carceragem e responsável pelo corredor da morte. O seu objetivo era

o de conduzir os condenados pela grande milha verde, um corredor que tinha o piso

pintado de verde e que era o caminho para a cadeira elétrica: lugar em que os

presos seriam executados. É nessa carceragem que se encontra o negro Coffey.

John Coffey é um brutamonte calmo que demonstra ser incapaz de causar mal a

ninguém e que ainda tem medo do escuro. Com o tempo, esse negro cativa aos

responsáveis pela carceragem, inclusive a Edgecomb. À sua amiga, Edgecomb

afirma ter 110 anos e não sabe por quanto tempo mais irá viver. Ele e o seu ratinho,

amigos inseparáveis, receberam de Coffey o dom da longevidade antes que o negro

fosse executado na cadeira elétrica. Por possuir tal dom, Edgecomb pôde ver a

vários amigos morrerem bem como à sua grande amiga e o amor de sua vida: a sua

esposa. Tal longevidade começa a incomodá-lo visto que ele não sabe por quanto

tempo mais viverá. Por quanto tempo terá que ficar vendo a morte do outro

enquanto ele se mantém vivo e envelhecendo.

O outro filme, O homem bi-centenário, está também baseado em uma obra

literária. Trata-se de um livro de contos escrito por Isaac Asimov que em seu original

se chama The positronics man. O filme, estrelado por Robin Wiliams e dirigido por

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Chris Columbus, conta a história de um robô que desejou ser humano. Por 200 anos

o robô, um NDR-114 comprado pela família Martin para executar tarefas domésticas,

busca realizar o seu desejo, a saber, de igualar-se ao homem, de tornar-se humano.

Por meio de seus esforços Andrew, o robô, aprende o que pode sobre a

complexidade humana relacionada à vida e ao amor. Ele aprende a chorar, a sorrir,

a amar. Andrew desenvolve um talento artístico ao fazer esculturas em madeira e a

criar relógios diversos. Tudo isso se passa por dois séculos, tempo suficiente para

que o robô perceba que não pode ter as características humanas relativas ao

envelhecimento e à morte. Ainda estando atrelado à família, é por meio de Portia,

neta de Little miss, que Andrew compreende que a real diferença existente entre ele

e o homem está no fato de haver na humanidade a consciência de que um dia irá

morrer. Todos com os quais o robô tem contato morrem, exceto ele. A mortalidade é

algo que já nasce com o homem. E a consciência de que irá morrer se desenvolverá

no ser humano e o acompanhará até o dia da sua morte. É quando no final do filme,

o robô tem a sua jornada chegada ao fim ao desaparecer como todo ser mortal e

assim Andrew possui o que de fato, nos torna humanos. Andrew morre.

Ainda que os dois filmes possam abarcar outros questionamentos, outras

discussões, um tema central pode ser extraído deles: a consciência e necessidade

da finitude humana. Assim como as Intermitências da morte, podemos notar nas

duas obras anteriores o profundo questionamento sobre o homem e a sua

percepção da morte. Logo, vemos a arte em suas diversas linguagens contribuindo

para auxiliar o homem neste que é o seu maior embate. Ao saírem dos textos

literários e invadirem as telas dos cinemas, tanto À espera de um milagre como O

homem bicentenário, conseguem alcançar um maior universo de pessoas,

expandindo assim um número maior dos que irão refletir sobre o assunto. Portanto,

notamos o quanto as diversas linguagens podem comungar em um tema e ajudar ao

homem a lutar contra os seus temores. É assim também em As intermitências da

morte. A arte faz-nos ver também o quanto ela é representativa ao imortalizar o

criador. Inúmeras obras conhecidas na atualidade, muitas delas feitas a mais de dois

mil anos atrás, foram importantíssimas para eternizar os seus criadores. Odisséia,

As mil e uma noites, Os lusíadas, Don Quixote de La Mancha, Monalisa, A nona

sinfonia de Beethoven, Dom Casmurro, são alguns exemplos de obras que

eternizaram os seus autores ou por eles foram eternizadas. Em As intermitências da

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morte, podemos observar muito bem essa relação entre a morte e a arte de modo

que na segunda parte do romance há por parte da morte uma forte preocupação por

não conseguir matar o violoncelista. O ilustre desconhecido, que tem como

companheiro um simples cão, não é atingido pelo envelope de cor violeta que a

muitas outras pessoas têm causado uma grande perturbação por informar o dia em

que estas irão morrer. Logo, se não bastasse o saber que um dia deixaremos esta

vida, todos passam a ter conhecimento do derradeiro dia. Mas, o violoncelista

parece não estar atento ao que acontece ao seu redor. Pessoas deixaram de morrer

e agora são avisadas que irão morrer. No entanto, o violoncelista vive normalmente

a tocar o seu instrumento musical. Vive na solidão do artista que ensaia a perfeição

da sua arte. Ele não percebe a morte. A morte o visita, vai a sua casa, o observa

com atenção e ele não se dá conta da sua presença. Talvez, os sete meses de

ausência da morte tenha feito com que o artista não visse mais a morte na morte do

semelhante. Ou então, tão absorto em sua atividade artística, não tivesse tempo

para nela pensar. A morte não alcançava o violoncelista.

Se a morte havia sonhado com a esperança de alguma surpresa que a viesse distrair dos aborrecimentos da rotina, estava servida. Aqui a tinha, e das melhores. A primeira devolução poderia ter sido resultado de um simples acidente de percurso, um rodízio fora do eixo, um problema de lubrificação, uma carta azul-celeste que tinha pressa de chegar e se havia metido adiante, enfim, uma dessas cousas inesperadas que se passam no interior das máquinas que, tal como sucede com o corpo humano, deitam a perder os cálculos mais exactos. (...) Entre ir e vir, a carta não havia demorado mais que meia hora, provavelmente muito menos, dado que já se encontrava em cima da mesa quando a morte levantou a cabeça do duro amparo dos antebraços, isto é, do cúbito e do rádio, que para isso mesmo é que são entrelaçados. (SARAMAGO, 2005, p. 140)

A morte não pode entender o que se passa. Até o presente momento jamais

teve uma só ordem sua desfeita. A ela nunca ser humano nenhum ousou

desrespeitar até aquele presente momento. Ela olha as listas mortuárias no afã de

encontrar o nome do violoncelista... Era tudo em vão. Não poderia ser possível que

alguém que deveria estar morto a dias, ainda continuasse vivo. Desde quando a vida

passou a existir a morte nunca havia falhado em sua atividade. A morte foi, é e

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sempre será suprema. No entanto, algo seguia errado. Era importante ver

“pessoalmente” o que estava acontecendo. A morte resolve visitá-lo.

A porta está aberta, a penumbra, não obstante ser mais profunda que a da sala de música, deixa ver uma cama e o vulto de alguém deitado. A morte avança, cruza o umbral, mas detém-se, indecisa, ao sentir a presença de dois seres vivos no quarto. Conhecedora de certos factos da vida, embora, como é natural, não por experiência própria, a morte pensou que o homem tivesse companhia, que ao seu lado estaria dormindo outra pessoa, alguém a quem ela ainda não havia enviado a carta de cor violeta, mas que nesta casa partilhava o conchego dos mesmos lençóis e o calor da mesma manta. Aproximou-se mais, quase a roçar, se tal cousa se pode dizer, a mesa-de-cabeceira, e viu que o homem estava só. (SARAMAGO, 2005, p. 150)

A morte fica ali a observá-lo. Ele respira e ela ao vê-lo detidamente pensa que

aquele homem já deveria estar morto. Contudo, a morte não se sente mais

apreensiva. Ela só observa. Atentamente olhando o interior do quarto vê uma

partitura em que estava escrita a nona sinfonia de Beethoven.

Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas que nenhuma delas que seja sua.(SARAMAGO, 2005, p. 153)

A rainha dos sofrimentos da humanidade deixou-se envolver pela beleza da

arte e cada vez mais se deixava também envolver pela natureza humana. Assim, ela

o analisa e quanto mais o observa, mais por ele se encanta. Percebemos então

como a arte pode unir algo tão antagônico como a morte e o homem. O ser humano

vive a rechaçar de si o pensamento de proximidade da morte. Ele não a suporta e

por isso a repugna. Portanto, a sua personificação em mulher que se apaixona e é

correspondida pode, alegoricamente, levantar a hipótese de que o homem deve, em

lugar de odiar, amá-la. Segundo Dastur,

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Não há vida humana durável a não ser na medida em que esta mantém o respeito pela morte, o que exige sua “banalização”, e eis aí, sem dúvida, o que distingue fundamentalmente, no final das contas, o homem do animal, pois este não tem necessidade do domar a morte nem de ajustar-se a ela, precisamente porque vive uma vida absolutamente vivente, pela qual o ser humano pode experimentar nostalgia, mas que nela não saberia tomar parte. (DASTUR, 2002, p. 77)

Logo, como humanos, vivemos a alegria de a cada dia poder estar vivos,

porém, concomitantemente, cada dia a mais é um dia a menos no calendário da

vida. Em As intermitências da morte, podemos observar, somente o homem é

assolado duplamente: pela ausência da morte e posteriormente pelo seu retorno. Só

ao homem esta certeza é devassadora. Contudo, só este mesmo homem com a sua

inteligência é capaz do domá-la. Enquanto isso, no romance, a morte segue o

violoncelista sem antes por em ordem toda a demanda das cartas violetas que

deverá enviar. Na casa do artista ela o observa.

A morte olha o violoncelista. Por princípio, não distingue entre gente feia e gente bonita, se calhar porque, não conhecendo de si mesma senão a caveira que é, tem a irresistível tendência de fazer aparecer a nossa desenhada por baixo da cara que nos serve de mostruário. No fundo, no fundo, manda a verdade que se diga, aos olhos da morte todos somos da mesma maneira feios, inclusive no tempo em que havíamos sido rainhas de beleza ou reis do que masculinamente lhe equivalha. (SARAMAGO, 2005, p. 170)

Significa dizer que a morte não faz acepção de pessoas. Ela nos nivela por

igual. Seja rico ou pobre, negro ou branco, gordo ou magro, reis ou súditos, todos

estamos fadados a morrer. E assim ela, a morte, segue observando atentamente o

artista que em sua casa, tendo como companheiro o seu amigo o cachorro, resolve

tocar uma de suas melodias preferidas. A morte toma uma decisão: irá acompanhar

mais proximamente o violoncelista. Ela autoriza a sua gadanha a enviar as cartas de

cor violeta e vai, vestida de mulher e de óculos escuros, encontrar-se com o

violoncelista pessoalmente. Ela toma um táxi e se dirige ao teatro em que ele atua

sem deixar de ter em mãos uma correspondência a ser entregue pessoalmente. A

sensação que se tem ao fazermos esta leitura é a de que somos constantemente

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seguidos pela morte ou de que ela esteja a nos espreitar diariamente. Dastur ao citar

Heidegger dirá que nós somos um ser para morte. Estamos vivos, porém com uma

existência em direção à morte. A filosofia, as artes ou a religião, por exemplo,

constituem-se num anteparo muito bem desenvolvido para amortecer o homem

desta verdade absoluta. Pois, se há uma verdade dita absoluta é a de que todos

caminhamos para a morte. Segundo Dastur:

(...) o morrer é uma definição do que é a vida humana, em outras palavras, um “existir a morte” ou uma mortalidade. No sentido mais exato, só os homens são “mortais”, pois só eles são “capazes” de se referir à sua própria morte e de fazer “existir”, assim, a morte. (DASTUR, 2002, p. 77)

Existimos, portanto, para a morte e para ela seguimos porque também a ela

fizemos existir. Saramago, neste seu romance cria uma alegoria no intuito de fazer

com que não nos esqueçamos disto. Ele adverte também em As intermitências da

morte, logo no início do romance, para uma prática que tem sido muito comum nos

meios de comunicação, ou seja, a banalização da morte. Os mortos expostos por

acidentes, por enfermidades, por causa da violência em geral. Em conseqüência,

nos acostumamos a ver e a não nos incomodar com o que realmente nos faz pensar

e repensar o nosso existir. O escritor se preocupa em mostrar ao seu leitor a

importância de se lidar com a morte e a necessidade de que haja um constante

refletir sobre o assunto. É preciso que nos afrontemos permanentemente com o fato

de que estamos para a morte. É com ela que devemos nos confrontar sempre.

A morte se banaliza para ocultar a sua realidade. Até os mortos reais que aparecem na televisão, pelo fato de aparecerem na televisão, tornam-se de certo modo irreais. Se você nunca se afrontar diretamente com a morte, neste caso a morte do outro, nunca saberá o que é. (SARAMAGO, 2005, p. 64)

O violoncelista parece não perceber com quem ele está prestes a lidar. A

morte o vê desde o alto no teatro e o admira. Ao tomar a forma humana, ela também

passa a sentir sentimentos que são tipicamente humanos e que são, ao ser humano,

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o seu instante de viver sem que por um momento lhe venha ao pensamento a idéia

de morte. A paixão e o amor constituem mecanismos que nos fazem sentir a vida em

toda sua intensidade. Estando a morte em sua forma humana, desfrutará ela o que

também nos faz humanos. Vemos então que Saramago cria uma importante

interseção entre a literatura, o realismo maravilhoso e a filosofia. Com o seu ofício

de escritor, por meio da palavra, se utiliza do realismo maravilhoso para filosofar

com o seu leitor. Ele dialoga sobre a morte que é um tema extremamente denso e

difícil de ser discutido. Em geral, queremos empurrar este assunto para um lugar de

onde ele não possa sair. E não é isso o que José Saramago faz. Ele nos expõe

frente a frente com a morte, da mesma forma que ele, ao escrever, se defronta. Com

efeito, vê-se o leitor compelido a refletir sobre toda essa problematização presente

no romance, compartilhada pelo escritor, que contribui assim na constituição de

milhares de leitores-filósofos que passam a ver a morte como algo inerente à vida,

algo imprescindível à vida até porque é a humanidade que deve ser eterna, não o

indivíduo.

A morte torna-se cada vez mais humana, se deixa envolver pelo prazer que

por milhares de anos a humanidade experimenta e desfalece num sono profundo,

mas antes, ela destrói a carta de cor violeta que por muito tempo a acompanhou e

que tinha por destinatário o artista, o violoncelista. “No dia seguinte ninguém morreu”

(SARAMAGO, 2005, p. 207). A arte não morre! O artista nela se eterniza ou ela o

eterniza. Há uma cumplicidade entre autor e obra. A literatura enquanto linguagem é

que funciona como uma ponte entre a nossa ignorância e o conhecimento da nossa

finitude.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Transitamos um pouco nestas práticas romanescas, como o fantástico, o

estranho e o maravilhoso, observando que a arte, mais especificamente a literatura,

desenvolve formas de interpretação do maior de todos os medos. Nos primeiros dois

capítulos, aprofundamo-nos na explicação destas três práticas no intuito de poder

torná-las mais compreensíveis ao leitor, uma vez que a linha que as separa é,

segundo vários autores, muito tênue.

Percebemos que o romancista encontrou uma maneira de discutir a realidade

usando para isso a sobre-realidade para falar dos problemas e das angústias que,

através dos séculos, vêm atormentando o homem. A literatura ajuda a tornar o medo

da morte mais suportável. Por meio das mentiras literárias, tão bem explicadas por

Mario Vargas Llosa, nos defrontamos com as verdades da vida e, assim, o ficcional

passa a ser uma maneira de fazer-nos enxergar a realidade com uma maior clareza.

As intermitências da morte discute a vida sem que a morte esteja presente. O

que antes se configurava em apenas breves passagens nos romances de

Saramago, converteu-se em tema central com alto teor de reflexão. Para tal, valeu-

se o autor do realismo maravilhoso criando um ambiente em que o sobrenatural e o

real se harmonizam, mantendo um equilíbrio estável em que personagens, narrador

e leitor não estranham ou hesitam diante dos fatos narrados. Por meio desta prática

literária e de uma forma narrativa única, Saramago torna a morte mais suportável,

menos desconhecida, atenuando o medo que ela provoca e assim ele a enche de

vida ao personificá-la, ao torná-la viva. Verificamos, contudo, que Saramago foi

construindo toda esta discussão entorno da morte em diversas de suas obras. Ele,

aliás, já afirmou que é sobre a morte que devemos falar a fim de que a vida possa

ser sentida em toda a sua plenitude. Neste texto dissertativo, percebemos o quanto

o cinema e a literatura, enquanto linguagens, constituem uma importante ferramenta

na construção do conhecimento e o quanto podem dialogar com a filosofia. A análise

de outras obras do autor nos pareceu de grande importância uma vez que nos deu a

dimensão que José Saramago dá ao tema morte, um caminho entre várias

narrativas que veio a culminar num romance que retrata a sua preocupação em

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fazer com que o seu leitor não se esqueça da sua finitude, bem como do seu papel

enquanto indivíduo para com a humanidade. Em As intermitências da morte,

Saramago nos apresentou a morte em forma de mulher, personificando-a, dando a

ela características humanas, diminuindo assim a nossa distância psicológica entre a

certeza da morte e o medo que tal consciência nos provoca. Ao mesmo tempo,

Saramago nos dá a vida em seu texto ao nos mostrar que sentimentos tão humanos

como o amor e a paixão precisam ser vividos tão intensamente como o próprio

sentimento da finitude, do caminhar para um fim. Por meio deste romance, foi

possível estabelecer um profícuo diálogo com a filosofia, a religião, bem como com

outras linguagens, outras obras literárias e, sobretudo, com o pensamento de José

Saramago que faz questão de se declarar avesso à aceitação de um Deus condutor

da vida humana e detentor de uma morada celestial, lugar de destino dos não-vivos.

Ao fazer a morte se apaixonar, ou seja, ser capaz de atributos que indicam

vida, Saramago mostra o quanto o homem ainda pode fazer frente ao maior de seus

medos, o quanto o homem ainda pode conhecer sobre a morte além do que já foi

legado pela religião, pela filosofia e pela ciência.

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REFERÊNCIAS

À ESPERA de um milagre. Direção: Frank Darabont . Produção: DAVID VALDES &

FRANK DARABONT. Intérpretes: Tom Hanks, David Morse, Bonnie Hunt, Michael

C.Duncan, James Cromwell, Michael Jeter, Graham Greene, Doug Hutchison, Sam

Rockwell, Barry Pepper, Jeffrey DeMunn, Patricia Clarkson, Harry D.Stanton, Dabbs

Greer e Eve Brent. Los Angeles: Warner Brothers, 1999. 1 DVD (188 min).

Widescreen, color. Produzido por Warner Home Vídeo. Baseado no romance The

Green Mile de Stephen King.

ALLENDE, Isabel. A casa dos espíritos. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil

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ANÔNIMO. Las mil y una noches: Libro III. Tradução ao espanhol de Vicente

Blasco Ibáñez, a partir da tradução ao francês de J. C. Mardrus, publicada em 1903.

Ediciones elaleph.com S.R.L, 2004. Disponível em: http://www.elaleph.com. Acesso

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ARIAS, Juan. José Saramago: o amor possível. Rio de Janeiro: Manati, 2004.

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