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865 estudos, Goiânia, v. 35, n. 5, p. 865-886, set./out. 2008. Resumo: esta pesquisa tem com objetivo identificar, des- crever e analisar a Qualidade de Vida (QV) dos portadores de HIV/Aids, no centro-oeste brasileiro. Trata-se de um estudo transversal, quantitativo, qualitativo e exploratório, realiza- do na Casa de Apoio ao Doente de Aids (CADA). Foram apli- cados o WHOQOL-100 da Organização Mundial de Saúde, uma entrevista semi-estruturada e uma ficha sociodemográfica e clínica. O método de coping mais utilizado foi o de fuga ou evitamento. Percebeu-se a presença de sinais de depressão, de discriminação, de fantasias relacionadas a perdas e de comportamento social restrito. Essas perdas foram ameniza- das pelo apoio recebido pelo CADA. Sugere-se às casas de apoio o desenvolvimento de oficinas terapêuticas e de produ- ção, para ampliar a auto-estima, a capacidade para o traba- lho, o nível de autonomia e a QV dos portadores de HIV/Aids. Palavras-chave: qualidade de vida, HIV/Aids, suporte social ada vez mais se reconhece uma tendência em vários países, inclusive nos em desenvolvimento, de uma mudança no perfil de morbi-mortalidade, que indica o aumento da prevalência das doenças crônico-degenerativas. Os avanços no tratamento e as possibilidades efetivas de controle CYNTHIA MARQUES FERRAZ DA MAIA SEBASTIÃO BENÍCIO DA COSTA NETO QUALIDADE DE VIDA DE PORTADORES DE HIV/AIDS ASSISTIDOS POR UMA ORGANIZAÇÃO DE APOIO C

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Resumo: esta pesquisa tem com objetivo identificar, des-crever e analisar a Qualidade de Vida (QV) dos portadores deHIV/Aids, no centro-oeste brasileiro. Trata-se de um estudotransversal, quantitativo, qualitativo e exploratório, realiza-do na Casa de Apoio ao Doente de Aids (CADA). Foram apli-cados o WHOQOL-100 da Organização Mundial de Saúde,uma entrevista semi-estruturada e uma ficha sociodemográficae clínica. O método de coping mais utilizado foi o de fuga ouevitamento. Percebeu-se a presença de sinais de depressão,de discriminação, de fantasias relacionadas a perdas e decomportamento social restrito. Essas perdas foram ameniza-das pelo apoio recebido pelo CADA. Sugere-se às casas deapoio o desenvolvimento de oficinas terapêuticas e de produ-ção, para ampliar a auto-estima, a capacidade para o traba-lho, o nível de autonomia e a QV dos portadores de HIV/Aids.

Palavras-chave: qualidade de vida, HIV/Aids, suporte social

ada vez mais se reconhece uma tendência em váriospaíses, inclusive nos em desenvolvimento, de umamudança no perfil de morbi-mortalidade, que indica o

aumento da prevalência das doenças crônico-degenerativas. Osavanços no tratamento e as possibilidades efetivas de controle

CYNTHIA MARQUES FERRAZ DA MAIASEBASTIÃO BENÍCIO DA COSTA NETO

QUALIDADE DE VIDA

DE PORTADORES DE HIV/AIDS

ASSISTIDOS POR UMA

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dessas enfermidades têm acarretado o aumento da sobrevida daspessoas acometidas por esses agravos (SEIDL; ZANNON, 2004).

As doenças crônicas são a principal causa de incapacidade, amaior razão para a demanda de serviços de saúde e respondem porparte considerável dos gastos efetuados no setor da saúde. Porexemplo, analisando os gastos em saúde efetuados pelas organi-zações administradoras de saúde norte-americanas, os portadoresde doenças crônicas, embora correspondessem a cerca de 20% dosclientes, consumiam 80% dos recursos (ALMEIDA et al. 2002).

O acesso ao sistema de saúde e fatores psicossociais compõemuma equação que pode estar associada à percepção de risco e à buscade assistência em saúde. Assim, faz-se necessário o estudo das en-fermidades crônicas e, principalmente, das condições psicológicasdos portadores dessas enfermidades, sendo a Aids uma das maispresentes no mundo atual (BAYÉS, 1995; CANINI et al., 2004).

São tantas as adversidades que um portador de HIV/Aids podeencontrar ao longo da evolução de sua doença que fatalmente estarásujeito a alterações significativas na forma que utiliza o sistemade saúde pública ou entidades sociais de apoio e em sua qualidadede vida. Assim, torna-se importante o conhecimento dos aspectosrelacionados às diversas dimensões de vida do portador do HIV/Aids, de forma que isto possa, posteriormente, subsidiar as inter-venções da equipe de saúde e de profissionais que sustentam asatividades das Organizações Não-Governamentais (ONG’s).

Segundo periodização de Galvão (2000), entre 1985 e 1991,foram criadas as primeiras organizações dedicadas exclusivamenteà Aids. Esta fase consolidou um padrão de intervenção da socie-dade civil, que foi responsável, em boa medida, pela história dadoença no Brasil. Entre 1985 e 1989, foram criadas três organiza-ções paradigmáticas das ações que se multiplicam nos anos se-guintes: Gapa, Abia e Pela Vidda.

Parece não haver dúvida de que, no caso da epidemia de Aids,as ONG’s desempenharam papel importante para o desenvolvi-mento de políticas de prevenção e assistência. Assim, a presençaacentuada da sociedade civil no contexto das respostas à epide-mia contribuiu decisivamente para a construção do que algunsanalistas chamam a especificidade da história da Aids brasileira(DANIEL, PARKER, 1990; GALVÃO, 2000). Também fica cla-ro que essa participação se deu, em grande medida, dentro do

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paradigma típico das organizações não-governamentais e das ca-racterísticas de especialização, competência técnica,profissionalização da militância, tendência à proliferação de ini-ciativas e de articulações internacionais.

Fica evidente a contribuição do surgimento das ONG’s paraa construção da história da Aids, pois elas intervêm para que ocor-ra a diminuição da contaminação e uma melhora significativa naqualidade de vida dos portadores dessa enfermidade.

O conceito de qualidade de vida é um termo utilizado, aomenos, em duas vertentes: na linguagem cotidiana, por pessoas dapopulação em geral, e no contexto da pesquisa científica. Na áreada saúde, o interesse pelo conceito de qualidade de vida vem dosanos 1970. Assim, informações sobre qualidade de vida têm sidoincluídas como indicadores da avaliação do impacto e da eficáciade tratamentos em portadores de várias enfermidades, até emportadores de HIV/Aids.Durante a última década, os instrumen-tos de medida de qualidade de vida evoluíram muito. A maioriadeles surgiu em decorrência da reformulação de instrumentosanteriores, reelaborados com base mais no ponto de vista dos in-vestigadores do que das características da população a ser avali-ada (COSTA NETO, 2002).

Os estudos da qualidade de vida em pacientes portadores deHIV/Aids têm utilizado instrumentos genéricos ou elaborados paraavaliar outras doenças crônicas, como, por exemplo, o câncer(GALVÃO et al., 2004). Para esses autores, os instrumentos queforam adaptados para HIV/Aids não observam questões impor-tantes específicas, relacionadas a essa enfermidade, como o dra-ma social, a sexualidade e o relacionamento interpessoal.

Nos estudos dos aspectos específicos das condições de vidade pessoas enfermas, a multidimensionalidade sugere que Quali-dade de Vida não se restringe somente ao que ocorre no estado docorpo ou nos bens materiais (STEPKE apud por COSTA NETO;ARAÚJO, 2003). Esse é, portanto, um conceito que incorporatambém as relações com outras pessoas, a intimidade da fantasia,a forma de vida da comunidade e as crenças religiosas.

Nas últimas décadas, o termo Qualidade de Vida (QV) temsido muito utilizado em vários contextos. Quase todos os autoresconcordam em afirmar que este termo apareceu na década de 1970e teve sua expansão através dos anos de 1980, envolvido por con-

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ceitos tais como os de bem-estar, saúde e felicidade. Contudo, paraSeild e Zannon (2004), o termo qualidade de vida surgiu pelaprimeira vez na literatura médica na década de 1930.

De acordo com Grau (1998), desde a década de 1980, o termoQV vem sendo cada vez mais utilizado, tornando-se objetivo daatenção médica, pois o avanço da medicina vem permitindo umaumento considerável na sobrevida de pacientes com enfermida-des crônicas.

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) (1998), a QVpode ser definida em função da maneira como o indivíduo perce-be o lugar que ocupa na sua cultura e no sistema de valores em quevive, assim como em relação a seus objetivos, expectativas, crité-rios e preocupações. A qualidade de vida deve basear-se em umaampla série de critérios e não somente em um aspecto.

Para Cianciarullo (2002), a QV é definida como um constructomultidimensional, caracterizando-se pela abstração, significadosdiferenciados por contextos e condições muito específicas. Den-tre as dimensões que dão significado a QV, é possível destacar bem-estar físico, capacidade funcional, estado emocional, interaçãosocial, realização e desenvolvimento pessoal.

Segundo Elliott et al. (2002), vários estudos têm demonstra-do os efeitos da infecção pelo HIV nos relatos de QV e a ocorrên-cia de uma significativa melhora nesses relatos com efetiva terapiaanti-retroviral. Um sintoma que é muito observado, conjuntamen-te com a infecção pelo HIV, é a depressão; então, segundo estesmesmos autores, o efetivo manejo da depressão é importante parauma maior aderência dos portadores à terapia anti-retroviral.

Em outro estudo, Cruz (2005) buscou caracterizar as estraté-gias de enfrentamento (coping), o apoio social e a QV das famí-lias que vivem com HIV/Aids, em Campo Grande – Mato Grossodo Sul. Participaram do estudo 50 famílias. Foram aplicados oquestionário de características sociodemográficas, a Escala deCoping de Billings e Moos, o questionário de avaliação do ApoioSocial e o Medical Outcomes Study 36-Item Short-Form HealthSurvey (SF-36), a fim de verificarem o perfil sociodemográficodas famílias participantes e de relacionar a capacidade deenfrentamento e o apoio social recebido com a QV percebida pelosentrevistados. Os resultados obtidos mostraram que o método decoping mais utilizado pelas famílias e/ou portadores foi o cognitivo

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(64%), com foco no problema (30%); porém, 62% não utilizavamnenhuma categoria de coping específica. Os participantes consi-deraram importante o apoio material (50%) e o emocional (44%),mas utilizaram muito o apoio material, proveniente do governo eda igreja, e o emocional, por meio das relações interpessoais. Osparticipantes da investigação perceberam uma QV melhor quan-do relacionada aos aspectos sociais, capacidade funcional, saúdemental, estado geral de saúde e vitalidade, e uma QV inferior comrelação à dor, aos aspectos emocionais e aspectos físicos. Nãohouve diferença significativa na QV percebida, considerando-seas estratégias de coping e o apoio social recebido.

Considerando-se a limitação de estudos sobre QV de porta-dores de HIV/Aids assistidos por ONG’s, na Região Centro-Oes-te, buscou-se desenvolver a presente investigação questionando-se:como têm os portadores de HIV/Aids avaliado sua QV relaciona-da à saúde? Que dimensões de QV mais têm sido alteradas? Queestratégias de enfrentamento psicológico mais têm sido utilizadas?

Desta forma, estabeleceu-se como objetivo geral do estudoanalisar a qualidade de vida dos portadores de HIV/Aids atendi-dos por uma organização não-governamental de apoio, no Cen-tro-Oeste brasileiro.

Os objetivos específicos são descrever e analisar: as dimen-sões da qualidade de vida do portador de HIV/Aids (física, psico-lógica, nível de independência, relações sociais e ambientais, easpectos espirituais/religião e crenças pessoais), considerando-seos aspectos sociodemográficos e clínicos; as categorias temáticasindicadoras da qualidade de vida dos portadores de HIV/Aids; eas estratégias de enfrentamento psicológico adotadas entre porta-dores de HIV/Aids.

MÉTODO

ASPECTOS ÉTICOS DA INVESTIGAÇÃO: comprometidocom a Resolução MS 196/96, o projeto foi aprovado no Comitê deÉtica em Pesquisa Médica, Humana e Animal do Hospital dasClínicas da Universidade Federal de Goiás (CEPMHA/HC/UFG),com autorização da coordenação da Casa de Apoio ao Doente deAids (CADA) para sua realização. O estudo foi realizado entrefevereiro e junho de 2005.

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CARACTERIZAÇAO DA PESQUISA: Transversal, quali-tativa, quantitativa e exploratória.

LOCAL DO ESTUDO: Casa de Apoio ao Doente de Aids(CADA), em Aparecida de Goiânia – Goiás. Trata-se de uma en-tidade não-governamental e sem fins lucrativos.

PARTICIPANTES: 18 portadores de HIV/Aids, de ambos ossexos, com idade entre 18 e 60 anos atendidos pelo CADA; 77,8%são do interior de Goiás e 22,2% naturais de outros estados. Ma-terial: foram utilizados 18 protocolos de fichas de identificaçãopessoal e clínica; 36 exemplares do Termo de Consentimento Livree Esclarecido; 18 exemplares do questionário de qualidade de vidada Organização Mundial de Saúde – WHOQOL 100; Roteiro deEntrevista Semi-Estruturada.

ESCOLHA DOS INSTRUMENTOS: O WHOQOL 100 foivalidado para o Brasil (Fleck et al., 1999; Fleck, 2000) e avalia asdimensões: física, psicológica, nível de independência, relaçõessociais e ambientais, aspectos espirituais e religião e crenças pes-soais; o Roteiro de Entrevista Semi-estruturada foi construído combase na revisão da literatura internacional sobre QV e HIV/Aidse na experiência clínica com enfermos crônicos.

PROCEDIMENTO: Concomitante com a aprovação do pro-jeto no CEPMHA/HC/UFG, foi realizado um contato pessoal coma direção do CADA que autorizou a coleta de dados. Os pacientesque chegavam ao CADA, para se alojar, recebiam informaçõessobre a pesquisa e eram convidados a participar da investigação.Uma vez que a pessoa concordava, era assinado o Termo de Con-sentimento Livre e Esclarecido e, de acordo com a disponibilida-de do(a) participante, iniciava-se a entrevista para a coleta de dados.Caso não houvesse disponibilidade, era marcado outro encontro.No início da entrevista, foram colhidos os dados sociodemográficose foi aplicado o WHOQOL 100 e, ainda no mesmo encontro, oRoteiro de Entrevista Semi-estruturada de Qualidade de Vida.Apesar de estar previsto, não se observou o suporte psicológicoao longo da coleta de dados.

RESULTADOS

Quanto aos dados sociodemográficos, na Tabela 1 observa-se o predomínio do sexo masculino (61%), idade entre 35 e 45 anos

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(45%), solteiros (56%), com ensino fundamental (72,3%), católi-cos (56%) e com renda familiar de 1 a 3 salários mínimos (50%).Cerca de 44% dos participantes tinham um segundo portador deHIV/Aids na família. A grande maioria (83%) era procedente domeio urbano.

Tabela 1:Dados SocioDemográficos dos Portadores de HIV/Aids(N=18), Submetidos à Avaliação da Qualidade de Vida

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Na Tabela 2 encontram-se os dados clínicos, segundo os quais27,8% dos participantes têm HIV, e 72,2% têm Aids, sendo quedestes 69% têm doenças oportunistas. Os dados obtidos mais re-levantes foram os seguintes: 83,3% fazem tratamento anti-retroviral e 72,2% não têm acompanhamento multiprofissional.

Tabela 2:Dados Clínicos dos Portadores de HIV/Aids (N=18),Submetidos à Avaliação da Qualidade de Vida

Quanto aos dados qualitativos, as entrevistas, obtidas por meiode um roteiro semi-estruturado, que também abarcou dados decoping, foram transcritas literalmente e submetidas à análise deconteúdo, segundo a técnica de Bardin (1994). A análise das cate-gorias temáticas passou pela revisão de dois juízes pesquisadoresde qualidade de vida e treinados na técnica de Análise de Conteúdo.

Os dados qualitativos foram organizados em sete categoriastemáticas (Tabela 3). Dentre essas, pode ser destacada a categoriaPercepção do Estado da Saúde Geral, da Forma de Contaminaçãoe do Prognóstico, que teve como subcategoria mais significativaa Percepção Insatisfatória do Estado de Saúde Geral no momentoatual, com 9,2%. Outras categorias relevantes foram: EfeitosColaterais dos Medicamentos (8,0%) e Adesão ao TratamentoMédico (8%). Ressalte-se que nessa categoria foram somados oscomportamentos de adesão e os de não-adesão; o comportamentode adesão representou 4,9%, e a não-adesão, 3,1%.

Das subcategorias relacionadas aos Aspectos Psicológicos(Tabela 3), destaca-se a Percepção do Próprio Temperamento(8,0%). Em relação à categoria Estratégias Psicológicas deEnfrentamento, a subcategoria mais significativa foi a Fuga ouEsquiva (5,0%). Na categoria Vida Profissional, a subcategoriaque se destacou foi Perda do Status Profissional (5,5%).

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Tabela 3:Freqüência das Categorias e Sub-Categorias Temáticasde Qualidade de Vida de Portadores de HIV/Aids(N=18)

Os dados relativos ao WHOQOL-100 foram analisados por meiode estatística descritiva (média e desvio padrão) das dimensões deQualidade de Vida e da freqüência das variáveis sociodemográficas

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e clínicas (sexo, idade, escolaridade, estado civil, religião, renda fa-miliar, dependentes, existência de outro portador na família, proce-dência, estado clínico médico objetivo, tratamento clínico atual eacompanhamento multiprofissional atual).

Tabela 4: Média e Desvio Padrão das Facetas e Domínios doWHOQOL-100, Obtidos junto a Portadores de HIV/Aids (N=18)

Como pode ser observado na Tabela 4, são apresentadas asmédias e os desvios padrão de cada uma das facetas e dos domí-nios avaliados pelo WHOQOL-100. Observa-se que, para o cál-culo das médias, foram consideradas as questões invertidas.

Desta forma, conforme a Tabela 4, observa-se que entre asfacetas indicadoras de qualidade de vida, 63% apresentaram-se

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acima da média (estado de saúde, otimismo em relação à vida,concentração, outras), 29% abaixo da média (sono, satisfação coma rede de suporte social, lazer, outras) e 8% na média (capacidadepara o trabalho e ambiente físico), considerando-se a escala de 1a 5 pontos. Segundo Fleck et al. (1999), a cada pontocorresponderia a manutenção de cerca de 20% em qualidade devida, ou seja, o ponto 1 da escala corresponde a 0% de qualidadede vida, e o ponto 5, a 100% na qualidade de vida, considerando-se o item específico avaliado.

Quanto aos domínios (Tabela 4), todos se encontram acimada média, destacando-se o da Espiritualidade/Religiosidade eCrenças que chega à média de 4,2.

DISCUSSÃO

Não há como negar que portar o HIV/Aids tem um impactosobre a percepção da qualidade de vida (QV). Ainda que pese ofato da qualidade de sua avaliação estar relacionada às proprieda-des dos instrumentos – portanto, urgindo a necessidade de esco-lha de instrumentos de avaliação que sejam robustos em suaspropriedades psicométricas e/ou em conteúdos que possam abar-car as principais áreas já apontadas pela literatura internacionalsobre o assunto –, é preciso considerar, também, as característicaspróprias da enfermidade, que envolvem um conjunto de fatoresadversos que pressupõem alguma perda e convivência com adver-sidades. Outro fator relevante é a avaliação da QV sendo realiza-da pelo próprio indivíduo, pois é ele quem vivencia suaenfermidade e as adversidades dela decorrentes. Esse fato demons-tra, de acordo com Grau (1998), que a QV envolve aspectos sub-jetivos e objetivos pertencentes ao indivíduo e experienciados demaneiras diferentes por cada um.

Características sociodemográficas, que se destacam pela di-ferença de gênero, pauperização, pouca instrução educacional epouca compreensão de questões afins ao binômio saúde-doença,entre outras, podem compor um cenário desprivilegiado que seagrava na presença do diagnóstico de HIV e/ou Aids. Especifica-mente, nesta investigação, observou-se uma realidadesociodemográfica e de condições de saúde que causou impactonegativo na percepção da qualidade de vida dos participantes.

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Em relação ao sexo dos participantes da amostra, 61,1% erammasculinos e 38,9%, femininos. Esses dados estão em acordo coma epidemiologia do HIV/Aids brasileira (BRASIL, 2005). Consi-derando que quase 40% da amostra é do sexo feminino e que essasmulheres são é carentes de recursos financeiros, além de possuirempouca escolaridade, esse dado pode demonstrar falta de informa-ção delas em relação à prevenção do HIV/Aids e em relação às co-morbidades. Observou-se que a maioria dos relatos nas entrevistasdemonstrou dificuldade das mulheres para discutir com o parcei-ro o uso do preservativo.

Com relação à idade, a maioria dos participantes encontra-va–se na faixa etária de 35 a 45 anos, fato que corrobora os dadosnacionais (BRASIL, 2003) em que os casos de Aids, no sexomasculino, diagnosticados entre 1980 e 2003, totalizam 220.783,em todas as faixas etárias; a idade mais acometida é a de 25 a 49anos e nessa faixa predominam os homens com 79% dos casos.

Essa constatação demonstra que o HIV/Aids está acometen-do uma parcela muito jovem da população, dado que se converteem preocupação, diante da disponibilidade de informações, porser essa faixa etária, entre 35 a 45 anos, a sexualmente mais ativa.Considerando-se uma média de dez anos para a manifestação dosprimeiros sintomas do HIV/Aids, em razão do período de latênciada doença, é de supor que a maioria dos participantes tenha sidocontaminada pelo HIV na fase de adolescência e/ou no início dafase adulta. Essa situação alerta para a necessidade de prevençãoprimária, ou seja, para uma maior divulgação de informações e deelaboração de programas de prevenção voltados para os adoles-centes que estão iniciando a vida sexual.

Em relação ao estado civil, percebe-se que a maioria dosparticipantes relata viver sozinha (55,6%). Esse dado sugere umafragilidade do suporte social, fato que pode estar relacionado como estudo de Dias (1993). A autora relata que o diagnóstico de HIV+provoca a eclosão de conflitos internos muito profundos e anteri-ores e que agora, além de toda a carga de angústia que mobilizampor si só, são expostos e carregados de julgamentos, de valoriza-ções públicas, sociais e morais. O paciente se depara com umasituação de discriminação, com tendência a se isolar.

O estudo feito por Cruz (2005) mostrou que a família deixoude ser aquele núcleo constituído unicamente por casamento for-

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mal; as unidades familiares são diversificadas quanto a sua for-mação. No que se refere aos dados dos portadores entrevistadosnesta investigação, percebe-se que, na maioria das vezes, os sujei-tos constituem-se como família, ainda que nem sempre com situ-ação formalizada (registrada). Nesse aspecto, observa-se, também,que um portador é o suporte social do outro (44,4%), fato que podeacarretar uma aproximação do suporte social, pela identificação,por viverem a mesma condição clínica e, em outros casos, peladificuldade econômica.

Com relação à escolaridade, a incidência de Aids vem aumen-tando tanto em homens quanto em mulheres com até oito anos deestudo (BRASIL, 2003; FONSECA et al., 2000). A investigaçãomostra que os participantes, na porcentagem de 55,6%, tiveramescola até a oitava série. O estudo realizado por Cruz (2005)mostrou também que a epidemia segue em direção de segmentosmenos favorecidos desfavorecidos da população. O baixo níveleducacional dos participantes, ligado à carência econômica, podegerar um cenário de dificuldades por eles percebido. Suas adver-sidades no meio social são inúmeras: não conseguem trabalho e,quando o têm, muitas vezes se sentem discriminados, por seremportadores do HIV/Aids.

Todos os participantes desta investigação ainda, confessaramalguma crença religiosa que pode ter existido independente dadoença. Assim, sugere-se que a religião é uma variável importan-te para a definição de qualidade de vida das pessoas em geral. Aindaque haja uma nítida definição do campo de ação dos psicólogos dasaúde em relação ao trabalho com a população portadora de doen-ças crônico-degenerativas, cada vez mais se espera que haja, porparte daqueles profissionais, uma maior reflexão sobre o papel daespiritualidade de cada um (nas suas diversas expressões), relaci-onada à percepção de uma vida mais ou menos saudável e mais oumenos com sentido.

Em muitos relatos, a religião se mostrou como uma forma deenfrentamento da realidade que auxilia de maneira satisfatória naredução de ansiedade. Muitos participantes relatam que, após acontaminação, ficaram mais religiosos, demonstrando a utiliza-ção do coping religioso.

Quanto à renda familiar, a maioria dos participantes (cerca de80%) vive com menos de três salários mínimos. Considerando que

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mais da metade dos portadores mantém um ou mais dependentesque vivem da mesma renda e considerando que 44,4% dos parti-cipantes têm um segundo portador de HIV/Aids na família, su-põe-se supor que estas pessoas necessitem de um fortalecimentona sua rede de suporte social, que pode ser realizado pelas casasde apoio, que atuam na prevenção e no controle da infecção peloHIV/Aids. Mas o que se percebe, atualmente, é que muitas casasde apoio têm dificuldades de atuar na prevenção do HIV/Aids, poisas pessoas que as procuram, na maioria dos casos, já se encontraminfectadas. Essas casas acabam atuando, sobretudo, para contro-lar a infecção, com a divulgação de informações aos portadoresdo HIV, dando-lhes apoio material, social e emocional.

Neste estudo, percebeu-se a importante função desempenha-da por essas casas na melhoria da qualidade de vida dos portado-res. Para muitos, as ONG’s representam o único suporte social,material e emocional. Servem como elemento de apoio mais ade-quado. Esse fator pode, ao longo do tempo, minimizar as circuns-tâncias indesejáveis para viver mais e melhor e pode levar a umamelhoria na qualidade de vida.

Finalmente, no que se refere aos dados sociodemográficos,observa-se que 83,3% dos participantes vieram do meio urbano,e 16,7%, do meio rural. A porcentagem representativa do meiourbano é de portadores procedentes de cidades do interior do es-tado e até mesmo de outros estados, o que corrobora o fenômenoda interiorização e da “ruralização” da epidemia, já descrita naliteratura.

É relevante ressaltar que os participantes, por serem prove-nientes do interior do estado e da zona rural, têm dificuldades derealizar um acompanhamento multiprofissional adequado. Mui-tos deles não fazem uso de uma dieta adequada, pela carênciaeconômica, e, ainda, não fazem uso de preservativos nas rela-ções sexuais, aumentando, assim, a vulnerabilidade orgânica etransmitindo o HIV para outros. Assim, para compensar em par-te, a falta de um acompanhamento multiprofissional no local deorigem, eles podem ter nas casas de apoio um suporte para su-prir tal necessidade.

Em relação à estratégia de enfrentamento, os resultados dapesquisa demonstraram que a mais utilizada pelos participantesfoi a da fuga ou esquiva (5,0%), seguida do coping comportamental

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(2,5%), omissão de informações a terceiros (2,5%), otimismoirrealista (1,2%), resolução de problemas (1,2%), coping religio-so (0,6%), focalização no positivo (1,2%) e controle de emoções(0,6%). De acordo com esses dados, pode-se afirmar que os par-ticipantes utilizam mais de uma estratégia de enfrentamento, o queimpossibilita classificá-los em uma só categoria. Tal fato tambémsugere uma plasticidade no uso das estratégias diante de cadamomento de estresse ao longo do desenvolvimento da doença e/ou da assistência de saúde.

Segundo Billings e Moos (1981), o coping de evitamentorefere-se às tentativas de evitar um confronto ativo com o proble-ma ou, ainda, de reduzir indiretamente a tensão emocional comatitudes comportamentais benéficas. Então, percebe-se que osparticipantes da pesquisa preferem não pensar que estão doentes,como forma de reduzir o estresse.

As formas de estresse se devem à percepção do portador deHIV/Aids de possíveis discriminações. Por meio dos relatos apre-sentados em relação a (alo)discriminação (5,5%), percebe-se queos participantes, para evitar esse tipo de preconceito, preferem nãocomentar sua condição atual de saúde com terceiros. Eles contro-lam informações relativas à sua condição, estabelecendo critériospara que elas não sejam socializadas.

Os portadores que utilizam o coping de evitamento podemtransmitir o HIV para outras pessoas, pois eles preferem não pen-sar que estão infectados. Eles preferem substituir esse pensamen-to ou se esquivar de situações que lembrem as adversidades daenfermidade. Com isso, não realizam a prevenção terciária, ou seja,podem difundir a epidemia, transmitir o HIV para outros, e au-mentar até a vulnerabilidade do próprio organismo, quando temrelações sexuais com outros portadores.

A maioria dos participantes percebeu o estado de saúde geral,a forma de contaminação e o prognóstico atual como insatisfa-tórios. Apesar das apreciações negativas dos efeitos colateraisdos medicamentos sobre o domínio físico, percebe-se tambémque os portadores relatam que, depois da terapia anti-retroviral,houve uma melhora significativa neste mesmo domínio, atingin-do, com isso, a outros. Supõe-se, assim, que a QV estava condi-cionada por outros domínios o que, possivelmente, amenizou apercepção geral de perdas.

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A adesão ao tratamento médico não é influenciada necessari-amente, pelo estado de saúde geral e pelos efeitos colaterais. Pelaanálise realizada, observou-se que os participantes nem sempreobservam e alteram, por conta própria, as prescrições relativas tantoao uso de medicações e/ou dietas, quanto aos hábitos de vida, numaatitude de sujeito mais intra-ativo do que passivo.

Percebeu-se, ainda, que os participantes que avaliavam a as-sistência médica e social como positiva apresentavam uma maioradesão ao tratamento indicado. Pode-se dizer, também, que a ade-são ao tratamento médico é influenciada pelas suas conseqüênci-as, ou seja, se a terapia anti-retroviral apresenta resultadossatisfatórios, melhorando assim a QV, a adesão acontece de umaforma satisfatória. Quando a terapia anti-retroviral provoca efei-tos adversos, a tendência é não aderir ao tratamento ou não aderira ele de maneira satisfatória.

Sentimentos de depressão podem ser associados à quantida-de de dependentes que o portador de HIV/Aids possui. Esse fatodeve-se à carência financeira apresentada pela amostra. Os parti-cipantes têm dificuldades para sustentar seus filhos, além de apre-sentarem preocupações constantes com o estado de saúde e como prognóstico da doença. A incerteza do prognóstico pode levar aintensas preocupações com o cuidado dos dependentes. Por outrolado, quando esse portador sente que recebe serviços de saúde dequalidade, demonstra maior tranqüilidade e confiança quanto aobem-estar geral de um familiar, que, muitas vezes, é também por-tador do HIV/Aids, ocorrendo uma avaliação positiva da QV.

Os participantes que apresentam relatos de otimismo em re-lação a sua enfermidade avaliam a QV de forma positiva. Perce-bem o estado de saúde de forma satisfatória, apresentam estratégiasde enfrentamento adaptativas e um nível de independência maiorem relação aos outros. De acordo com Moreno-Jiménez et al.(2005), as pessoas otimistas desenvolvem mais habilidades deenfrentamento do que as pessimistas, influenciando, assim, amelhora no estado de saúde. O estado de saúde é percebido demaneira satisfatória quando o otimismo faz parte da condiçãopsicológica do indivíduo.

Outro conteúdo expresso ao longo da entrevista foi a discri-minação, que pode estar relacionada à categoria de perda do statusprofissional. A relação entre a discriminação e a perda do status

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profissional pode ser analisada pela ocupação profissional; per-cebe-se que os participantes, antes da contaminação, possuíamocupação profissional e, após a contaminação, a natureza do tra-balho se modificou, passando para atividades que exigem me-nos esforços e pouca exposição social. Essa constatação vemconfirmar a posição de Dias (1993), segundo a qual a sociedadesempre lidou com as doenças contagiosas num modelo de exclu-são e isolamento.

De uma forma geral, os dados qualitativos mostram que a QVdeste grupo de portadores de HIV/Aids é mediada por aspectosfísicos, na maioria tratada como insatisfatórios, e aspectos psico-lógicos. Nestes, em geral, percebe-se a presença de indicadoresde sentimentos de depressão, de fantasias relacionadas a perdas ede comportamento social restrito.

Percebe-se, também, um comprometimento significativo naQV da amostra, em razão das dificuldades econômicas e sociaisque influenciaram outros domínios da QV. Os aspectos físicos e onível de independência foram influenciados pela falta de recursosdisponíveis para suprir necessidades básicas (alimentação, meiosde transporte, lazer e outros), enquanto, os aspectos psicológicossofreram influência das adversidades encontradas no manejo coma enfermidade, de se sentirem impotentes, sem condições adequa-das para ter uma vida com conforto. Um domínio que amenizou oimpacto negativo das carências enfrentadas pela amostra foi o dareligiosidade, que se mostrou muito presente na maioria dos rela-tos. Os dados do WHOQOL-100 também revelam a perda expres-siva de QV nos domínios estudados.

Com base nos escores do WHOQOL 100, conforme sugeremos dados da Tabela 4, sobretudo quando se atém aos Domínios deQV, houve, pelo menos, 20% de perda mínima em importantes di-mensões da vida, e em geral, os domínios Físico, Psicológico, Nívelde Independência/dependência, Relações Sociais e Meio Ambienteapresentaram perdas similares, mas eles não sugeriram necessaria-mente o comprometimento ou a inviabilidade da vida dos avalia-dos. Por outro lado, o menor impacto pôde ser constatado no Domínioda Espiritualidade, da Religiosidade e das Crenças.

A literatura (GRAU, 1998; COSTA NETO, 2002; COSTANETO, ARAÚJO, 2003), desde os anos de 1970, tem destacadoa presença dos denominados “mediadores de qualidade de vida”,

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ou seja, fatores, circunstâncias ou processos que, quando pre-sentes e dependendo de sua característica, podem amenizar oimpacto de uma adversidade, na percepção de cada um, sobre aprópria qualidade de vida. Assim, por exemplo, no grupo estu-dado (N=18), mesmo que a satisfação com a Rede de SuporteSocial quase tenha atingido a média (M=2,7; DP=1,09), supõe-se que o Otimismo em Relação à Vida (M=3,3; DP=0,98) e a Auto-Estima (M=3,8; DP=0,81) ou outros fatores podem indicar aexistência de estratégias de enfrentamento psicológicoadaptativas. Tal presença, possivelmente, minimiza o impactode uma insatisfação com o suporte social, e este domínio é apon-tado pela literatura como importante.

Quanto ao papel das ONG’s, reconhece-se que é polêmica aquestão do paternalismo institucional e que, talvez, só com o de-correr dos anos, se poderá ter uma apreciação correta desse im-pacto. Por outro lado, em diversas realidades, muitas vezes, osuporte social familiar de um portador de HIV/Aids estará enfra-quecido, conforme também foi demonstrado nos estudos de Cruz(2005). Sendo assim, supõe-se que, ainda que se busque aumentarníveis de consciência entre a população atingida pelo HIV/Aids,a realidade impõe necessidades que justificam a presença e a aju-da das ONG’s e de outros movimentos sociais e/ou religiososorganizados.

CONCLUSÃO

É preciso evidenciar que os resultados encontrados não per-mitem generalizar sobre a qualidade de vida de todos os porta-dores de HIV/Aids atendidos por instituições não-governamentais de ajuda. Ainda que a metodologia escolhidatenha sido a da triangulação metodológica, ou seja, a combina-ção de instrumentos qualitativo e quantitativo, o número limita-do de participantes requer parcimônia em qualquer exercício degeneralização.

Este estudo pode ser classificado como transversal. Nestesentido, é necessário observar que a qualidade de vida dos parti-cipantes pode estar relacionada a tantos fatores e os dados colhi-dos não representam necessariamente,aquilo que é mais constantee regular na vida dos portadores de HIV/Aids estudados. Em ou-

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tros termos, é possível que, numa segunda avaliação, haja mudan-ça do perfil do grupo investigado. Contudo, há de se recordar oque Grau (1998) apreciou sobre a instabilidade natural doconstructo da qualidade de vida: ao longo da evolução de umapatologia, seu portador poderá experienciar distintas percepçõesde sua própria qualidade de vida, o que comprova sua condição,mais processual e menos de produto.

Em relação aos instrumentos utilizados nesta investigação,destaca-se que eles conseguiram atender aos objetivos propostoscom algumas ressalvas. O WHOQOL-100 proporcionou resulta-dos significativos, referentes aos domínios da QV dos participan-tes, mas a extensão sua dificultou sua aplicação, em função,também, da debilidade orgânica de alguns participantes que nãoconseguiram completar todo instrumento no mesmo encontro. Poroutro lado, a entrevista semi-estruturada conseguiu fornecer da-dos qualitativos suficientes para a formatação de um quadroindicativo da percepção de cada sujeito, de sua própria qualidadede vida.

Com base neste estudo, sugere-se às equipes de assistênciaao portador de HIV/Aids a criação de um espaço para oficinasterapêuticas, nas quais os portadores e familiares possam discutire refletir sobre suas dificuldades e experiências com o preconcei-to, a sexualidade e suas limitações, a morte e a própria qualidadede suas vidas. Supõe-se que isto seja importante para promovera auto-estima, o otimismo em relação à capacidade laboral e o nívelde autonomia do sujeito.

Com a adoção de estratégias sistematizadas e planejadas,podem ocorrer modificações no suposto paternalismo das casasde apoio, que podem ser transformadas em casas de apoio social,emocional e político.

Sugere-se, também, que novos estudos de desenhos longitu-dinais sejam realizados, para que se possa avaliar a QV dos par-ticipantes por um espaço maior de tempo, descrevendo eentendendo as mudanças da avaliação pessoal que cada um fazacerca das dimensões que qualificam sua própria vida. Colocar osujeito-enfermo no centro dessa discussão e valorizar o conheci-mento que produz ao apreciar sua própria qualidade de vida é, decerta forma, redimensionar a sua condição de sujeito pensante,autodeterminado e intra-ativo.

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Abstract: the objectives of this research were to identify, to describeand to analyze the Quality of Life (QoL) of persons living with HIV/AIDS, at the Brazilian center-west. It is an exploratory qualitativeand quantitative cross-sectional study, which was carried at theCasa de Apoio ao Doente de AIDS (CADA). Participants answered

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the Whoqol-100 questionnaire from the World HealthOrganization, a semi-structured interview and a social-demographic and clinical information sheet. The sample consistedof 18 persons, with predominance of males, age 35 to 45 year old,family income of one to three minimum wages, and schooling untilthe second year of junior high. The method of coping most usedwas escape or avoidance. It was perceived the presence of storiesindicating depression; discrimination; fantasies related to lossesand restricted social behavior. These losses had been minimizedby the support received from CADA. The data from the Whoqol-100 showed that there was a 20% minimum loss of importantdomains in the quality of life, however the domain of the spiritualitysuffered the lesser impact. It is suggested that the support housesshould develop therapeutical and production workshops, todevelop self-esteem, the capacity for professional work, the levelof autonomy and the QoL of the persons living with HIV/AIDS.

Key words: quality of life, HIV/AIDS, social support

SEBASTIÃO BENÍCIO DA COSTA NETOPós-doutor em Psicologia pela UFRGS. Professor nos Programas de Graduaçãoe Pós-Graduação da Universidade Católica de Goiás (UCG). Psicólogo Clínico-Hospitalar do HC/UFG. E-mail: [email protected]

CYNTHIA MARQUES FERRAZ DA MAIAMestre em Psicologia pela (UCG). Psicóloga Clínico-Hospitalar. E-mail:[email protected]