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Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) | Mariana/MG | 10 e 11 de outubro 2019 QUADRINHOS NA INTERNET E A PRESENÇA1 O mercado independente de quadrinhos brasileiros e relação entre humanos no espaço virtual Duane Henrique Alves de Carvalho e Silva2 Fundação Mineira de Educação e Cultura Resumo A autopublicação de quadrinhos é um fenômeno do mercado brasileiro. Com a internet, esse processo é facilitado, pela suas várias ferramentas acessíveis de alta disseminação e alcance ao público. O espaço virtual, mesmo que altamente relacional, permanece com a falta da presença humana, pela sua atopia e acronia, que não use pessoas com pessoas, mas com rastros de pessoas. Por esse fator, quadrinistas que administram seus perfis digitais, por estarem representando a si mesmos, pessoas, têm uma maior impressão de presença na web e podem se beneficiar desse fato. Uma análise do perfil de Facebook da série de tiras Um Sábado Qualquer, de Carlos Ruas, evidencia que o uso de sua imagem pessoal pode fidelizar seus leitores, que se interessam pela comunicação mais direta com o autor da obra. Palavras-chave: Cultura Digital; Quadrinhos; Virtualidade; Presença Key-words: Digital Culture; Comics; Virtuality; Presence Introdução As ferramentas digitais e as redes trouxeram alternativas criativas para a produção de histórias em quadrinhos. A abertura para publicação de quadrinhos online suscitou uma discussão acerca de uma possível vitória do digital sobre o papel. Apesar de se questionar até que ponto a leitura online venceu o livro impresso, o foco deste trabalho é o impacto desses espaços na relação entre o autor e seu leitor, especialmente no cenário da autopublicação. Autopublicação é definida como o ato de se publicar uma obra sem o intermédio de uma editora, com o autor chefiando todo o processo. Nesse sistema, o autor é também editor, diagramador e vendedor de seu livro (BRUST, 2014). No mercado de quadrinhos, o cenário se concentra como o mesmo, de forma que os quadrinistas que se autopublicam passam a aglutinar em si várias funções que antes não lhe eram atribuídas, incluindo o marketing de seu trabalho (RAMOS, 2013). 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho em Comunicação e Culturas Digitais, do XII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais - Ecomig 2019, 11 e 12 de outubro de 2019. 2 Mestrando em Estudos Culturais Contemporâneos (FUMEC) e bolsista FAPEMIG. E-mail: [email protected]

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Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) | Mariana/MG | 10 e 11 de outubro 2019

QUADRINHOS NA INTERNET E A PRESENÇA1

O mercado independente de quadrinhos brasileiros e relação entre humanos no espaço

virtual

Duane Henrique Alves de Carvalho e Silva2

Fundação Mineira de Educação e Cultura

Resumo

A autopublicação de quadrinhos é um fenômeno do mercado brasileiro. Com a internet, esse

processo é facilitado, pela suas várias ferramentas acessíveis de alta disseminação e alcance

ao público. O espaço virtual, mesmo que altamente relacional, permanece com a falta da

presença humana, pela sua atopia e acronia, que não use pessoas com pessoas, mas com

rastros de pessoas. Por esse fator, quadrinistas que administram seus perfis digitais, por

estarem representando a si mesmos, pessoas, têm uma maior impressão de presença na web e

podem se beneficiar desse fato. Uma análise do perfil de Facebook da série de tiras Um

Sábado Qualquer, de Carlos Ruas, evidencia que o uso de sua imagem pessoal pode fidelizar

seus leitores, que se interessam pela comunicação mais direta com o autor da obra.

Palavras-chave: Cultura Digital; Quadrinhos; Virtualidade; Presença

Key-words: Digital Culture; Comics; Virtuality; Presence

Introdução

As ferramentas digitais e as redes trouxeram alternativas criativas para a produção de

histórias em quadrinhos. A abertura para publicação de quadrinhos online suscitou uma

discussão acerca de uma possível vitória do digital sobre o papel. Apesar de se questionar até

que ponto a leitura online venceu o livro impresso, o foco deste trabalho é o impacto desses

espaços na relação entre o autor e seu leitor, especialmente no cenário da autopublicação.

Autopublicação é definida como o ato de se publicar uma obra sem o intermédio de

uma editora, com o autor chefiando todo o processo. Nesse sistema, o autor é também editor,

diagramador e vendedor de seu livro (BRUST, 2014). No mercado de quadrinhos, o cenário

se concentra como o mesmo, de forma que os quadrinistas que se autopublicam passam a

aglutinar em si várias funções que antes não lhe eram atribuídas, incluindo o marketing de seu

trabalho (RAMOS, 2013).

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho em Comunicação e Culturas Digitais, do XII Encontro dos

Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais - Ecomig 2019, 11 e 12 de outubro de

2019.

2 Mestrando em Estudos Culturais Contemporâneos (FUMEC) e bolsista FAPEMIG. E-mail:

[email protected]

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Com a popularização da web, argumentou-se que os quadrinhos poderiam se alterar

por completo, iniciando, então, um cenário ainda inexplorado da mídia (MCCLOUD, 2000).

A internet e as ferramentas digitais trouxeram alternativas criativas para a produção de

histórias em quadrinhos. Às HQs, até então estáticas e mudas, foi dada a possibilidade de

unir-se ao som, à animação e à interatividade da hipermídia, o que foi chamado por Franco

(2013) de “HQtrônicas”. Ademais, o fenômeno dos quadrinhos publicados online suscitaram

uma discussão acerca da supremacia do digital sobre o papel impresso.

Apesar dos amplos campos de estudos gerados por esses pensamentos, o que interessa

a este trabalho é o lado relacional da internet e como ele impacta nas trocas entre o autor e seu

leitor, sobretudo em função do cenário da autopublicação, que foi influenciado pelas

ferramentas digitais. Comfort e Wither (2015) afirmam que é impossível para o quadrinista

que se autopublica não ter uma presença marcante na internet, sendo necessário criar alguma

forma de contato virtual com seu público, como um site. Isso pode ser confirmado pela

cenário brasileiro, em que a internet se tornou um dos principais meios de divulgação, leitura

e venda dos quadrinhos independentes (RAMOS, 2012).

Redes Digitais

As redes digitais possuem, em si, algumas especificidades. O processo de globalização

foi intensificado pela tecnologia digital, transformando como um todo a percepção de tempo e

espaço. A imaterialidade dos espaços virtuais, ou seja, sua atopia, somada à alta velocidade de

transmissão de informação, geram a impressão de que tudo acontece a todo tempo, ao mesmo

tempo, ou seja, acrônico (CHAI, 2014). Sem passado ou futuro, o tempo presente se torna o

foco, evocando a ideia de que tudo pode ser usufruído a qualquer momento, já que, por essa

percepção, qualquer momento seria o “agora”.

Aprofundando na noção de tempo no espaço virtual, percebe-se que os encontros nos

espaços virtuais não necessitam de simultaneidade. Ao hospedar um site, postar uma imagem,

publicar uma história em quadrinhos ou fazer um comentário online, a informação passa a

estar disponível para a interação de outro usuário a qualquer momento, sendo possível para

ele interagir com o conteúdo quando lhe convier (VENTURELLI, 2004). Enquanto aquele

conteúdo estiver hospedado em um servidor, ele fará parte do catálogo quase infinito de

informações possíveis para consulta na internet.

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Apesar de se diferenciar do plano físico, não seria correto, porém, afirmar que a

virtualidade se trata de algo falso. O espaço virtual, mesmo que aparentemente imaterial, não

seria uma “não-realidade”. Trata-se de uma esfera da realidade, onde as condições espaço-

temporais se diferem do plano físico (SILVA, A. 2007).

Ao se considerar o espaço virtual como longe da realidade, estar-se-ia pondo de lado

os impactos deste no plano físico. Se o virtual fosse oposto ao “real”, seria “desrealizante”

(LÉVY, 1996), retirando da realidade seu próprio caráter de “real”. Em oposição a isso, o que

é feito e pensado dentro do espaço virtual tem impacto no plano físico, trazendo mudanças

significativas, inclusive, na própria forma de se usufruir das tecnologias digitais. A internet e

as ferramentas envolvidas em seu uso alteram a sociedade como um todo, ao mesmo tempo

que a própria sociedade também se altera e, com novas necessidades nascentes, transforma as

tecnologias para melhor se adequarem a elas.

Nos espaços possibilitados pela internet, com sua atopia e acronia, existem inúmeras

possibilidades e possíveis abordagens. Entre elas, está o grande potencial de conexão entre

pessoas, estas que possivelmente não criariam tais conexões sem o diferencial do espaço

virtual. As relações sociais na web ocorrem, apesar das claras distinções provenientes do local

onde ocorrem, a partir da troca de informações, diálogo e na troca de afetos, como quaisquer

relações entre seres humanos (SILVA, L. 2011).

“O espaço virtual” não deve ser pensado como apenas uma rede de telecomunicações

e os aparatos a ela conectados. Se esse espaço é utilizado, é por pessoas que o alimentam com

conteúdo e se relacionam com outras pessoas que também se utilizam dessas tecnologias

(SILVA, A. 2007). O lado humano por trás das redes é importante para este trabalho, à

medida que é justamente a relação entre pessoas através desses meios o foco do estudo.

Percebe-se uma certa diluição de alguns laços baseados na proximidade geográfica, o

que pode mostrar algum crescimento nas relações feitas a partir das redes (SILVA, L. 2011).

Se o relacionamento via web é a causa desse cenário, ou se é justamente o enfraquecimento

dos relacionamentos supostamente forçados pela geografia que levou à força das interações

digitais, este é ainda outro questionamento. O importante a se pensar neste trabalho é o quão

significativos têm se tornado os relacionamentos interpessoais, tanto os que tiveram início nas

redes, quanto aqueles que apenas se aproveitaram delas para dar sequência ao que nasceu na

presença física.

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Da mesma forma que discutem-se e compartilham-se histórias quando se encontram

pessoalmente, assim o fazem quando interagem pelos espaços virtuais. Nesse aspecto, há certa

semelhança com territorialidades físicas (RODRIGUES, 2010). A diferença mais clara,

talvez, seja a atopia e acronia, que possibilita indivíduos distantes geograficamente se

relacionarem sem o deslocamento e sem horário marcado.

Levy (1999) explica como o espaço virtual pode ser um espaço de criação de

comunidades e, principalmente, em função de um mesmo interesse. Em torno de um mesmo

fim, indivíduos se unem para promovê-lo, discuti-lo ou simplesmente aproveitá-lo em

conjunto. Esses indivíduos, pela imaterialidade do espaço virtual, não se unem em função do

local onde residem ou frequentam. Desterritorializados, eles se unem em função de um fator

comum: o que gostam, pensam e acreditam.

A ideia de comunidade nesse espaço não diz respeito à proximidade geográfica, mas

sim à proximidade representacional que seus membros têm entre si (SILVA, L. 2011). São

agregações sociais que se relacionam pelas redes, criando teias de relações pessoais e

transformando, através de discussões e trocas de emoções, o “eu” daqueles que delas fazem

parte. Percebe-se nelas a copresença de discursos, que influenciam uns aos outros e geram

respostas, que podem, por si mesmas, gerar seus próprios desdobramentos conversacionais

(SILVA, A. 2007).

As comunidades presentes em espaços virtuais são repletas de sentimentos e ideias,

conflitos e amizades, mesmo sem a presença física. Elas existem sem uma referência fixa,

sem um local físico. A noção da virtualidade altera a concepção de “estar”, fazendo`, de certa

forma, a sociedade retornar à cultura nômade, em relação a quão simples é reconfigurar as

relações sociais e os vínculos criados, se alterando mesmo sem “sair do lugar” (LÉVY, 1996).

Essa flexibilidade perante os vínculos sociais e emocionais denota ainda outro fator da

sociedade atual, permeada pelas tecnologias digitais. O individualismo se torna uma

frequência, de forma que tudo se centraliza no indivíduo e em suas decisões, o que

possivelmente se desdobra na tranquilidade e rapidez em que relacionamentos são criados e

terminados. Essas condições são ideais para a grande popularização das tecnologias digitais,

pelas quais, ao menos em proposta, pode-se ter o que se quiser, quando quiser (MARTINO,

2014).

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Lévy (1999) defende que as redes são um espaço livre, em que hierarquias são

quebradas e todos são reconhecidos pelo seu saber, não seus diplomas ou outros títulos

vinculados aos espaços físicos. Na internet, os indivíduos têm sua identidade ocultada

seletivamente, em função do quanto de si desejam mostrar e, ademais, o que desejam ou não

ser verdadeiros a respeito. Nesse aspecto, esses espaços realmente parecem romper com

fronteiras tradicionais, à medida em que não é possível, ao menos imediatamente,

compreender com quem se está efetivamente dialogando através das telas. Ainda, nesse ponto,

a ideia do individualismo se mostra mais uma vez, visto que o que interessa na web é pouco o

que se pode legitimamente provar e mais o que se acredita e pode defender. O “eu” se tornou

mais relevante que a comprovação por meio de instituições.

A quebra de fronteiras nas redes atinge, ainda, outro fator do relacionamento entre

seus visitantes. Não se deparando com a totalidade do outro e possivelmente tranquilizados

pela falta da presença física, com frequência surgem comentários ofensivos baseados em

elementos fragmentários, como fotos de perfil, nome ou mesmo uma única palavra dita,

muitas vezes cessando a discussão nesse ponto, não permitindo uma resposta sensata que

daria continuidade à argumentação (MARTINO, 2016). A configuração dos espaços virtuais

dá ao indivíduo a possibilidade de mostrar de si o quanto lhe convier e, mesmo que deseje

apresentar o máximo que puder, não é também confirmação de que todos perceberão.

Mídia e Mercado

Apesar de seu forte lado relacional, a internet não é somente de uso pessoal. Empresas

se aproveitam da presença humana nas redes para promoção e venda de seus produtos. Tais

práticas têm se aliado ao entretenimento para alcançar seus fins, de forma que a multimídia é

utilizada para criar espetáculos que divertem, ao mesmo tempo que cumprem com seu

objetivo mercadológico. O entretenimento e o espetáculo se tornam, assim, fortes tendências

para a produção midiática e cultural. (KELLNER, 2006).

A mídia apresenta vários modelos de sujeito para que o indivíduo se identifique e

passe a se comportar dentro deles. Alguns modelos são apresentados como positivos e outros

como negativos. A identidade pós-moderna, dita como a atual, é centrada no lazer, no

entretenimento e, ainda mais, na produção de uma imagem para si (KELLNER, 2001). Essa

construção de uma imagem a partir de figuras do entretenimento se relaciona com as questões

postas sobre a individualidade na internet, visto que as redes são permeadas de formas de

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lazer e, como o “eu” é apresentado por fragmentos selecionados de si, a imagem que se tem

de alguém pode ser moldada e remoldada com certa facilidade.

A influência da mídia alcança não apenas o público consumidor, mas também os

produtores de conteúdo. Vários artistas passaram a incorporar a estética desses meios e tender

para o ofício do desenhista gráfico, com o intuito de atingir o público massivo (CANCLINI,

2008). Possivelmente, pelo alto consumo de produtos midiáticos e de entretenimento que

seguem essa lógica, o público passou a preferir produções que também a seguissem, por

costume ou por uma simples preferência lapidada ao longo de anos de consumo desses

produtos. Nesse aspecto, as histórias em quadrinhos ganham destaque, por já fazerem parte da

lógica de produção industrial desde sua origem, apesar de suas exceções.

Os quadrinhos, antes considerados inferiores e associados ao público infantil, já

ganharam um posto diferenciado na sociedade. A diversidade de publicações das editoras

Marvel e DC, direcionadas a públicos distintos, além da alta popularidade de seriados de TV e

filmes inspirados em seus personagens, ajudaram a levar as histórias em quadrinhos e os

assuntos nerd/geek, anteriormente vistos como interesse de um público seleto, parte da

chamada cultura mainstream, ou o “normativo”. Essas conquistas das duas grandes editoras

norte-americanas efetivamente contribuíram para uma maior aprovação das histórias em

quadrinhos como um todo, mas as histórias de super-herói já não são o maior foco do

mercado. Os assuntos e estilos abordados nas produções de diversos autores e editoras variam

entre público infantil e adulto, autobiografias e histórias policiais, enfim, uma multiplicidade

de temáticas (TUCKER, 2018).

A globalização, em especial com as tecnologias digitais, permite interações com

culturas distantes. O que se tem dessas interações é, na maioria das vezes, uma hibridização

das das culturas envolvidas. A multiplicidade desses discursos, advindos de localidades e

culturas distintas, leva a um incentivo da criatividade e ao aumento da diversidade cultural

(LULL, 2000). A popularização das histórias em quadrinhos estrangeiras no Brasil foi

possivelmente uma grande influência para os autores brasileiros, visto que elas se tornam uma

referência, tanto positiva quanto negativa, e incentivam leitores apaixonados pelas obras a se

aventurar na produção de suas próprias, desta vez com as características específicas do

cenário brasileiro mescladas ao trabalho.

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Um fator notável das redes é que, paralelamente ao uso de suas ferramentas para

venda de produtos e entretenimento da grande mídia, também se habilita o acesso a conteúdos

dos mais diversos, que muitas vezes seriam difíceis de se encontrar de outra forma. A ideia de

“cultura de massa” se altera, à medida em que deixa-se de se pensar em um público vasto,

homogêneo, e passa-se a trabalhar com a ideia de “microculturas”, aos montes e muito

variadas (ANDERSON, 2006). Essa concepção entra de acordo com a ideia de Kellner (2001)

de que um elemento importante da pós-modernidade é justamente a falta de uma figura

dominante na cultura, com várias propostas estéticas e estilísticas diferentes. Muitas

empresas, inclusive, têm se aproveitado desse universo dos nichos de mercado, cada um com

seus próprios ideais e interesses, para direcionar seus produtos com as mensagens adequadas

(YÚDICE, 2013).

As redes sociais digitais, antes mais usadas por empresas de tecnologias, se tornaram

um importante meio de divulgação e venda de seus produtos. Em especial, a capacidade de se

aproximar dos clientes é um ponto positivo para essas corporações. Já é perceptível também a

alteração no modo de uso dessas redes pelas pessoas, visto que elas passaram a ser um

confiável meio de busca de informações a respeito de produtos e promoções (CIRIBELI e

PAIVA, 2011).

A notoriedade de algo nos espaços virtuais vem de uma lógica de autorreferência, em

que quanto mais se fala de um assunto, mais ele é replicado por outros e assim

sucessivamente (MARTINO, 2014). Dessa forma, é possível traçar um paralelo entre o

processo de ganho de popularidade na internet e as estratégias de comunicação de empresas

na web. Para algo ser conhecido é necessário que seja atrativo o suficiente para que as

próprias pessoas compartilhem com sua rede pessoal, como promoções interessantes,

revisitando o exemplo citado.

Autopublicação e a Internet

Pensando nos conteúdos disponíveis nas redes digitais, evoca-se a ideia de uma

possível supremacia da virtualidade sobre a materialidade, no caso do livro, por exemplo. A

internet, com sua imaterialidade e aparente infinidade de conteúdos para serem desfrutados,

teria, então, vencido uma guerra contra com os objetos físicos, limitados. Entretanto, as

representações de uma biblioteca são frequentemente ligadas à ideia do colecionador, que

ama, compra objetos e os organiza (FRAISSE, 2011), ou seja, ligadas à materialidade.

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Percebe-se, então, que os conteúdos virtuais não subjugaram os físicos, em certo ponto, até

mesmo os intensificaram, visto que leitores ainda tendem a, mesmo após a leitura de um livro

online, ainda se interessarem em levar a versão impressa para organizarem em suas próprias

bibliotecas (DOWBOR, 2009).

O livro, assim como outros produtos voltados para o entretenimento, passa a se

diversificar na internet, com a ascensão de vários nichos facilitada por ela. É possível fugir do

dito “imposto” pela grande mídia e procurar autores e conteúdos alternativos, antes

invisibilizados pelas barreiras editoriais. A própria questão relacional das redes digitais, antes

mencionada, é de suma importância para o desenvolvimento e dispersão desses produtos

culturais, já que são os leitores destes que com frequência os divulgam entre seus contatos

(FRAISSE, 2011).

O encontro facilitado de trabalhos de autores independentes pode também estar

relacionado à produção desses trabalhos em si. Com o barateamento das ferramentas, como

computadores pessoais e softwares gráficos, além da acessibilidade ao mundo digital

permitida por inúmeras ferramentas e tutoriais disponibilizados gratuitamente na internet,

fenômeno chamado por Anderson (2006) de “democratização das ferramentas de produção”,

tornou-se muito mais simples para um autor publicar-se por conta própria. Com isso, não só a

publicação em si é mais barata e simples, mas também a parte de vendas, distribuição e

marketing se tornaram acessíveis.

A produção artística passa, pois, a ser mais acessível, o que traz o retorno a uma

estrutura passada, em que a arte era produzida por pessoas, sem o necessário intermédio de

instituições. Todos são um possível agente de cultura, passível de produzir e publicar seu

trabalho, sem necessariamente a passividade do público massificado da grande mídia

(DOWBOR, 2009). Relaciona-se com a figura do “amador”, no sentido de que, pelo amor

por aquela arte, passou a se interessar por produzi-la. O que a princípio seria uma simples

paixão, ao se aprofundar ainda mais nas questões técnicas e teóricas do ofício, passaria a se

especializar (SZYNKIER, 2015). A mídia e o entretenimento são repetidamente apresentados

e nos entregam modelos de representação, o que se relaciona com a ideia de “amadorismo”,

ao pensar-se que pelo tamanho incentivo por parte das grandes produtoras em fazer o

indivíduo se apaixonar por suas produções, muitos acabam por se interessar em produzir suas

próprias ideias, dentro dos moldes e formatos usados.

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A escolha individual é um elemento central desse cenário, de forma que o desejo do

indivíduo será sua busca nos meios digitais. A ideia de uma “massa”, uniforme e homogênea,

não cabe para explicar o funcionamento das pessoas e seus interesses. Nesse aspecto, na

internet, todos são possíveis produtores de cultura (MARTINO, 2014). Nos espaços virtuais,

todos são emissores e receptores, sendo o que se quer dizer e ouvir, sendo assim, o que se

sabe e pelo que se interessa, o foco das relações interpessoais (LÉVY, 1996)

O espaço virtual é, portanto, um espaço propício para relações sociais. A partir desse

fator, o autor independente pode usufruir das ferramentas online para publicar e divulgar seu

trabalho por conta própria, a chamada autopublicação. Ele passa, assim, a se relacionar com

os distribuidores e, principalmente seu público leitor diretamente, sem necessariamente o

intermédio de um editor. A prática da autopublicação, muitas vezes, não chega a ser uma

decisão do artista, mas, sim, uma imposição do mercado editorial, que não costuma se arriscar

com autores pouco conhecidos, que dão pouca certeza de retorno às editoras (BRUST, 2014).

As redes sociais digitais são uma ferramenta essencial para a autopublicação. Com o

orçamento para divulgação da obra geralmente proveniente dos próprios bolsos dos autores,

redes como o Facebook e o Twitter, que permitem o gerenciamento de contas sem custos, são

de alta utilidade. Se assim for necessário, algumas dessas ferramentas permitem ainda se

investir alguma quantia para impulsionar os produtos divulgados (NICOLAU, 2014). Publicar

o livro em si não seria tão difícil quanto levá-lo aos seus potenciais leitores (THOMPSON

apud SANTOS, 2014)

Apesar das facilidades, essa configuração traz também outras dificuldades.Tratando-se

de música, a acessibilidade aos instrumentos de produção e divulgação trouxeram uma maior

liberdade para o musicista, que pode gravar por conta própria e ainda trocar com outros

artistas, influenciando uns aos outros e incentivando a cena. Com essa liberdade, porém, veio

a necessidade do artista, que até então estaria focado apenas na produção musical, de

administrar seu próprio selo de discos, ser seu próprio agente e muitas vezes seu próprio

artista visual (SZYNKIER, 2015). Mesmo com suas diferenças, é possível se comparar o

mercado independente de música ao de quadrinhos, de forma que ambos passam por custos

mais baixos de produção, mas, atreladas a ela, vem um acumulado de tarefas que, em um

cenário editorial, seriam separadas entre vários profissionais qualificados.

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Em se tratando da autopublicação, o quadrinista não só estará ocupado com a

escrita e ilustração da obra, mas com praticamente todas as tarefas envolvidas no processo

editorial. A menos que terceirize algumas funções, aumentando os custos de produção, ele

terá que trabalhar em posições em que não necessariamente tem domínio, considerando,

ainda, que, se o financiamento coletivo não for uma opção, ele provavelmente pagará por toda

a produção do próprio bolso. Não obstante, o marketing e todas as estratégias envolvidas em

vender o livro, na autopublicação, são passadas para o autor. A internet, nesse aspecto, torna o

trabalho muito mais simples (BRUST, 2014).

A Presença Física do Autor

A dinâmica da internet cria, no cenário das publicações, uma discussão a respeito da

imaterialidade das redes e a presença do autor. A aceitação do livro por parte do público, no

que se refere ao sucesso de vendas, se baseia em dois pontos principais. Primeiramente, a

qualidade do conteúdo em si, que atrai o leitor pela possível experiência de leitura, e, no caso

das histórias em quadrinhos, diz respeito não só ao roteiro, mas ao desenho e a apresentação

em geral do produto gráfico. O segundo ponto é a popularidade do autor, tanto por outras

obras já publicadas, quanto por exposição midiática por outros feitos (BRUST, 2014). O

fascínio de leitores por objetos pessoais e afins de autores denota o desejo por parte do fã de

ter a presença física do autor, o que mostra a força da “pessoa” por trás da obra. A

participação de autores em lançamentos de livros, sessões de autógrafo, feiras e palestras é

mais um exemplo desse cenário. Muitas vezes, é menos a obra em si e mais a própria presença

midiática do autor que desperta o interesse do leitor, de forma que o produtor tem um papel

muito mais ativo na venda de seu trabalho (OLIVEIRA, B. 2013)

O ato de se autografar um exemplar da obra, produzido industrialmente em milhares,

é, de certa forma, uma tentativa de aproximação ao autor. O livro, idêntico às suas outras

várias unidades impressas, se transforma em uma ligação “pessoal” entre leitor e autor ao ter

uma dedicatória única e aparentemente irreproduzível (CANCLINI, 2008). Na acronia e

atopia dos espaços virtuais, o corpo e a presença perdem seu sentido inicial, sendo esses o

núcleo da experiência humana (CHAI, 2014). Relacionando-se esses pensamentos, pode-se

inferir que é justamente a falta de presença humana nesses espaços que traz ao autor

independente um de seus maiores diferenciais: longe de um conglomerado empresarial. ele

representa a si mesmo, uma pessoa.

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Possivelmente, seja exatamente o desejo de se aliar a outros humanos pelas redes

digitais que tenha dado força a uma prática comum à autopublicação, o financiamento

coletivo (ou crowdfunding). Vendo um projeto que lhe interesse, o consumidor final pode

investir financeiramente, ao lado de outros que fazem o mesmo, para dar vida ao projeto.

Dessa forma, o consumidor sai da passividade e participa do processo de produção, podendo

escolher o que gostaria de apoiar, antes mesmo do produto chegar ao seu estágio final. O

baixo custo para iniciar um projeto de financiamento coletivo e, em seguida, para divulgá-lo,

fizeram dessa modalidade uma opção recorrente entre autores independentes (VALIATI,

2013). As relações sociais são importantes para esse processo, não apenas pela clara

necessidade de disseminação do conteúdo entre várias pessoas, mas principalmente pela

constatação de que muitos apoiadores de projetos de financiamento coletivo fazem por

recomendação de amigos e pela ideia de união e colaboração evocada pela proposta

(PINTADO, 2011).

O autor de histórias em quadrinhos independentes, foco deste trabalho, tem utilizado

as ferramentas digitais, tanto para a produção quanto a publicação. Enquanto alguns artistas

preferem o desenho no papel, muitos já desenham diretamente no computador. De qualquer

forma, ao término da produção, a obra tem sido frequentemente publicada na internet, muitas

vezes em blogs e sites próprios. Essas obras por vezes se aproveitam da liberdade do meio

digital e perduram por extensões de tempo maiores que o padrão de obras impressas. A

publicação nos espaços virtuais dessas obras gera maior visibilidade ao autor e a seus

trabalhos, o que aumenta a força da autopublicação, sendo muito comum autores que

inicialmente tiveram seus quadrinhos na internet acabarem por vender obras impressas

também. A notoriedade de artistas de histórias em quadrinhos na web já levou também a

vários deles serem convidados posteriormente a publicarem seus trabalhos por editoras

(OLIVEIRA, L. 2013). Essa constatação vai ao encontro da ideia anteriormente mencionada

de que a presença midiática do autor é um fator relevante na escolha das instituições

editoriais.

O meio digital, por sua velocidade e imaterialidade inerentes, permitiu ao autor um

contato direto com seu leitor. Ao produzir seu produto, os quadrinistas podem, através da

internet, encontrar seu público e distribuir seus quadrinhos a ele, pelos espaços digitais

(ANDERSON, 2006). Através desses meios, é possível até que o quadrinista pergunte

diretamente ao seu público se o trabalho está de interesse ou não, ainda podendo pedir

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sugestões, para que o quadrinho fique ao agrado do leitor (MANCINI; ALT, 2013). O

produtor de histórias em quadrinhos passa a ter, com essas ferramentas, uma forma de se

encontrar com um potencial público e interagir com ele com mais facilidade.

O público leitor também é influenciado pelas várias possíveis referências midiáticas

disponíveis e são o foco da produção independente. Pensando-se em grandes empresas de

entretenimento, a cultura do fandom, ou “reino de fãs”, denominando os fãs de determinado

produto cultural que se unem para discutir aquele assunto, se tornou um elemento essencial.

Não só os fãs podem, através de seus próprios perfis em redes sociais digitais, divulgar o

produto de entretenimento em questão, eles também frequentemente produzem seu próprio

conteúdo tematizando o produto original, o que, assim como a primeira opção, gera

divulgação para o trabalho. Além disso, ao comentarem o que lhes parece positivo ou

negativo no dito produto, eles ajudam os autores a descobrirem a real aceitação do público

sem precisar de gastos onerosos em pesquisa, podendo, ainda, alterar o andamento da história,

se assim lhes convierem (MARTINO, 2014). Como já foi mencionado, essa já é uma prática

dos autores independentes, visto que estar em contato direto com seu público é uma

necessidade de venda, no caso da autopublicação.

Visto que a notoriedade do trabalho e do quadrinista é essencial para o sucesso da

obra, alcançá-la se torna um dos objetivos dos autores. Na internet, passa à posição de

celebridade, não necessariamente aquele que fez algo célebre, mas, sim, aquele que se tornou

conhecido por exposição midiática. Sendo assim, o meme, que é replicado inúmeras vezes e

altamente difundido, é uma possível estratégia. Os memes evocam uma sensação de união

entre aqueles que o compreendem e muitas vezes o interesse no conteúdo leva a uma busca da

sua origem (MARTINO, 2014). Alguns autores têm seus quadrinhos alterados e republicados

repetidamente como um meme, o que aumenta sua notoriedade.

A Imagem do Quadrinista Carlos Ruas como Presença na Web

A questão da presença do autor é relevante para sucesso de seu trabalho, como foi

visto. Sua interação com seu leitor é também um ponto crucial para seu êxito profissional. Na

internet, meio em que a presença humana se esvai, de forma que se interage com registros de

pessoas e não pessoas, de fato, o autor independente tem a ganhar por estar representando a si

mesmo, não um conglomerado empresarial. O uso de sua própria imagem pode ser uma

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ferramenta positiva para atrair o público leitor, que, como foi comentado, parece interessado

em se comunicar com o autor da obra.

Carlos Ruas, quadrinista criador da série de tiras Um Sábado Qualquer, é um exemplo

desse fenômeno. Seu sucesso recordista na campanha do Catarse (ferramenta de

financiamento coletivo) de 2017, sendo a maior arrecadação da história da plataforma no

segmento quadrinhos, conseguindo próximo a 300 mil reais, mostra que suas produções são

notórias. Seu grande público leitor e alto envolvimento por parte deles estão associados com a

qualidade de seu trabalho, mas o seu frequente uso de sua imagem pessoal como parte de

divulgação de novos quadrinhos aponta, também, para o lado relacional da internet e como

sua falta da presença pode beneficiar os autores independentes.

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Figura 1 - Visão geral da página de Facebook de Um Sábado Qualquer

Fonte: Facebook (Outubro, 2019)

Um dos primeiros aspectos visíveis da página de Facebook do série Um Sábado

Qualquer é sua foto de capa. Nela, o autor apresenta uma montagem de um fotografia de si

mesmo em interação com seus personagens. Sua assinatura, com seu nome perfeitamente

legível, está posicionada ao lado, de forma a associar não só as criações do quadrinho ao

autor, mas também a imagem de si mesmo ao seu nome. Cria-se, assim, uma identificação de

que esse homem que se diverte com os personagens da série é seu criador, Carlos Ruas,

reforçando sua imagem e definindo que a página virtual em questão é, na realidade, uma

extensão de si.

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Figura 2 - Foto de capa da página de Facebook de Um Sábado Qualquer

Fonte: Facebook (Outubro, 2019)

Nos comentários da foto de capa, percebe-se a resposta positiva dos leitores. Não só

eles demonstram deter informações do universo narrativo criado pelo autor, seus fãs também

relacionam o trabalho produzido a ele. Trata-se de uma lógica simples a associação de que a

obra foi produzida por seu autor. O fato, entretanto, de que o público de um autor

independente, sem acesso à grande mídia, ter conhecimento da figura do quadrinista é um

ponto relevante. Um dos leitores chega a referenciá-lo pelo nome pessoal, mostrando que,

além de conhecer o nome do autor, de certa forma, sente-se próximo o suficiente dele para

dizer apenas “o Ruas”, como que o apelidando.

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Figura 3 - Interação em postagem de tira 1

Fonte: Facebook (Outubro, 2019)

Analisando as interações dentro das postagens das tiras, percebe-se mais uma vez esse

fator. Na tira acima, uma leitora cria um questionamento a respeito do conteúdo narrativo do

quadrinho. Em resposta, há uma grande discussão, envolvendo inúmeros outros leitores e

também o próprio autor.

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Figura 4 - Interação em postagem de tira 2

Fonte: Facebook (Outubro, 2019)

Nesse caso, o autor responde à pergunta da leitora, que dá a sua tréplica, suscitando

ainda outro fã a participar. É notável que o quadrinista faz seu comentário utilizando o perfil

vinculado à página de Um Sábado Qualquer. Sendo assim, ele usa seu perfil profissional, sem

nenhuma vinculação aparente à sua pessoa física. O leitor a dar o último comentário,

entretanto, responde à mensagem com o vocativo “Carlos Ruas”, ignorando que ele estaria,

tecnicamente, se comunicando com “Um Sábado Qualquer”. Já há, na relação entre esse fã e o

autor, um conhecimento da figura pessoal deste e uma sensação de proximidade, como se a

“pessoa” do autor estivesse presente.

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Figura 5 - Fotos de perfil da página de Facebook de Um Sábado Qualquer

Fonte: Facebook (Outubro, 2019)

As fotos de perfil utilizadas na sua página da rede social evidenciam o uso da imagem

pessoal do autor. Das sete fotos disponíveis para visualização, duas apresentam o quadrinista

como parte da imagem. Uma fotografia de si contribui para a associação de Carlos Ruas,

como uma pessoa, à criação dos trabalhos.

Figura 6 - Interação em foto de perfil da página de Facebook de Um Sábado Qualquer

Fonte: Facebook (Outubro, 2019)

Em uma das fotos em que sua imagem foi usada, observa outra interação interessante

nos comentários. O primeiro comentário tido como mais relevante explicita uma leitora

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declarando seu interesse em beijar o autor, provavelmente em função do apreço pelo trabalho

que ele produz. Se ela conhece a aparência do quadrinista o suficiente para conseguir

encontrá-lo no evento a que faz referência, é porque o trabalho de divulgação de sua imagem

foi eficaz. Mais uma vez, a mensagem direcionada ao autor e não ao trabalho, mostra que há

uma maior proximidade pessoal entre Carlos Ruas e seu público. Ao menos, seus leitores

parecem se sentir em intimidade com o quadrinista, tido os comentários feitos por eles.

Analisando o conteúdo publicado na página de Facebook de Um Sábado Qualquer,

série de tirinhas de Carlos Ruas, autor que bateu recordes de arrecadação em financiamento

coletivo no Catarse, foi possível averiguar que esse é um possível fator de sua comunicação

com os leitores. O uso não apenas de seus personagens, mas também de fotos pessoais que

denotam quem é o autor por trás da obra, é frequente em publicações da página. O conteúdo

das histórias em quadrinhos do artista tem seu próprio apelo ao público, mas a exposição de

sua imagem ao público é possivelmente um importante facilitador da criação de laços entre o

quadrinista independente e seus leitores, visto que, em uma rede em que a presença humana é

suprimida pela acronia e atopia, a certeza de relacionamento com outro ser humano pode ser

um atrativo para o consumo do produto.

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