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100 100 100 100 100 100 Arquivos Catarinenses de Medicina Vol. 38, n o . 3, de 2009 ARTIGO ORIGINAL Pulmão do crack: manifestações clínicas e radiológicas após inalação César Lazzarotto 1 , Alisson Pittol Bristol 2 , Elisa Helena Piazza 3 , Daniel Yared Forte 4 0004-2773/09/38 - 03/100 Arquivos Catarinenses de Medicina Resumo O crack é considerado a forma mais potente e viciante da cocaína, sendo os pulmões os principais órgãos acometidos após a sua inalação. Relata-se o caso de um paciente masculino que evoluiu com insuficiência respiratória aguda após o uso do crack. Após três dias de internação, o paciente evoluiu com melhora clínica e radiológica evidente, sugerindo tratar-se de pulmão do crack: síndrome respiratória aguda após inalação da droga. Paciente foi mantido em oxigenioterapia e recebeu alta hospitalar assintomático sete dias após a internação. Descritores: 1. Pulmão do crack; 2. Insuficiência respiratória aguda; 3. Infiltrado alveolar difuso. Abstract Crack is considered the most powerfull and addictive form of cocaine, with the lungs being the main organ affected after the inhalation. We report the case of a male patient who developed acute respiratory failure after crack use. After three days of hospitalization, the patient improved clinically and radiologically, suggesting it was the crack lung: acute respiratory syndrome after inhalation of the drug. The patient was treated with oxygen and was discharged asymptomatic seven days after admission. Keywords: 1. Crack lung; 2. Acute respiratory failure; 3. Diffuse alveolar infiltrates. 1 - Médico residente de Clínica Médica do Hospital Governador Celso Ramos – HGCR/SC. 2 - Médico residente de neurologia do Hospital Governador Celso Ramos – HGCR/SC. 3 - Mestre em Ciências Médicas pela UFSC, especialista em Medicina Interna e Intensiva, HGCR/SC. 4 - Médico pneumologista do Hospital Governador Celso Ramos – HGCR/SC.

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Page 1: Pulmão do crack: manifestações clínicas e radiológicas ... · 100 100 Arquivos Ca tarinenses de Medicina Vol. 38, no. 3, de 2009 ARTIGO ORIGINAL Pulmão do crack: manifestações

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ARTIGO ORIGINAL

Pulmão do crack: manifestações clínicas e radiológicas após

inalação César Lazzarotto1, Alisson Pittol Bristol2, Elisa Helena Piazza3, Daniel Yared Forte4

0004-2773/09/38 - 03/100

Arquivos Catarinenses de Medicina

Resumo

O crack é considerado a forma mais potente eviciante da cocaína, sendo os pulmões os principais órgãosacometidos após a sua inalação. Relata-se o caso de umpaciente masculino que evoluiu com insuficiênciarespiratória aguda após o uso do crack. Após três diasde internação, o paciente evoluiu com melhora clínica eradiológica evidente, sugerindo tratar-se de pulmão docrack: síndrome respiratória aguda após inalação dadroga. Paciente foi mantido em oxigenioterapia e recebeualta hospitalar assintomático sete dias após a internação.

Descritores: 1. Pulmão do crack;

2. Insuficiência respiratória aguda;

3. Infiltrado alveolar difuso.

Abstract

Crack is considered the most powerfull and addictiveform of cocaine, with the lungs being the main organaffected after the inhalation. We report the case of amale patient who developed acute respiratory failureafter crack use. After three days of hospitalization, thepatient improved clinically and radiologically, suggestingit was the crack lung: acute respiratory syndrome afterinhalation of the drug. The patient was treated withoxygen and was discharged asymptomatic seven daysafter admission.

Keywords: 1. Crack lung;

2. Acute respiratory failure;

3. Diffuse alveolar infiltrates.

1 - Médico residente de Clínica Médica do Hospital Governador Celso

Ramos – HGCR/SC.

2 - Médico residente de neurologia do Hospital Governador Celso Ramos

– HGCR/SC.

3 - Mestre em Ciências Médicas pela UFSC, especialista em Medicina Interna

e Intensiva, HGCR/SC.

4 - Médico pneumologista do Hospital Governador Celso Ramos – HGCR/SC.

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Introdução

Os pulmões são os principais órgãos acometidos apósinalação do crack, induzindo inúmeras alterações comohemorragia alveolar, edema pulmonar agudo, barotraumae infiltrações pulmonares de diversas causas 1-5.

Relato de caso

Paciente do sexo masculino, 31 anos, deu entrada noserviço de emergência de um hospital público queixando-se, há 24 horas, de dispnéia, tosse com escarro hemáticoe febre. Negava dor pleurítica. Referia uso de crack há8 anos. Ao exame físico, o paciente estava em regularestado geral, emagrecido, confuso, desorientado no tempoe espaço, agressivo. Apresentava queimaduras naspontas dos dedos das mãos. As pupilas estavamisocóricas e fotorreagentes. Pressão arterial de 130X80mmHg, freqüência cardíaca de 96 batimentos por minutoe freqüência respiratória de 50 movimentos respiratóriospor minuto, com presença de tiragens intercostais.Saturação de oxigênio medida pelo oxímetro de pulsoera de 77% em ar ambiente. Instalou-se oxigenioterapiapor máscara facial simples com melhora da saturação(91% após oxigênio). O exame do precórdioapresentava-se normal, pulsos regulares com boaamplitude. A ausculta cardíaca era normal. À auscultapulmonar, o murmúrio vesicular estava presentedifusamente sem ruídos adventícios.

Os exames laboratoriais à admissão evidenciaram:hemoglobina de 11,6 mg/dl, hematócrito de 33,5%,leucócitos de 14870 mm3 com 81,1% de segmentados,sem desvios e plaquetas normais. Creatinina 1,47 mg/dl,uréia 47 mg/dl, LDH 205 U/l, TGO 46 U/l, TGP 71 U/l.Hemocultura, pesquisa de anticorpos anticitoplasma deneutrófilos, pesquisa de anticorpos HIV I e IIapresentaram resultados negativos, assim como apesquisa no escarro de fungos, de pneumocistis jirovecii

e de bacilos álcool-ácido resistentes. A radiografia detórax (Figura 1) mostrou infiltrados intersticiais ealveolares difusos sem sinais de derrame pleural.Tomografia computadorizada de alta resolução (TCAR)do tórax (Figura 2) revelou acentuado infiltrado em vidrofosco difuso em ambos os pulmões com pequenos focosde consolidação parenquimatosa subpleurais na porçãoposterior dos lobos inferiores.

No início da internação, o paciente foi tratado comoxigenioterapia por máscara facial simples,sulfametoxazol + trimetoprima e corticóide endovenoso

enquanto aguardava-se o resultado da pesquisa deanticorpos HIV I e II. Após o resultado negativo dasorologia e das bacterioscopias de escarro no segundodia de internação, o antibiótico e o corticóide foramsuspensos. O paciente evoluiu bem, tornando-se eupneicoe sem sinais de agitação psicomotora no 3º dia deinternação. Sete dias após o primeiro exame repetiu-seo Rx de tórax (Figura 3) evidenciando melhoraradiológica, com persistência de mínimo infiltradointersticial difuso. Logo após, o paciente recebeu altahospitalar assintomático, sendo orientado quanto aosriscos do uso do crack.

Discussão

Cocaína é a droga ilícita mais utilizada pelos pacientesque dão entrada ao serviço de emergência hospitalar6.O crack é considerado a forma mais potente e vicianteda cocaína, além de ser o método preferível por muitosusuários pelo fato de proporcionar efeitos eufóricossegundos após a sua inalação2. As complicaçõesrelacionadas ao uso da cocaína incluem arritmiascardíacas, infarto do miocárdio, hemorragiasubaracnóidea, complicações obstétricas, convulsões edistúrbios psiquiátricos. Barotrauma, exacerbação daasma, edema agudo pulmonar, hemorragia alveolar,doença pulmonar intersticial, bronquiolite obliterante compneumonia organizada (BOOP) são alguns distúrbiospulmonares mais freqüentes após o uso do crack 1,2,6.

Sintomas respiratórios agudos são observados dentrode algumas horas da inalação, porém em alguns casospodem ser vistos dentro de alguns minutos após o uso dadroga2. As principais queixas respiratórias incluem tosseseca ou com eliminação de sangue ou material escuro,dispnéia, febre, dor torácica e sibilância1.

O termo crack lung (pulmão do crack) é utilizadopara definir uma síndrome pulmonar aguda que ocorreapós inalação desta droga. O mecanismo pelo qual causaagressão pulmonar não está bem estabelecido1,7. Supõe-se que o crack induz vasoconstricção dos vasossanguíneos pulmonares causando dano celularisquêmico7. Efeito tóxico direto do crack sob o endotélioalvéolo-capilar e uma reação de hipersensibilidade aoscomponentes da droga inalada são outros mecanismosfisiopatológicos propostos 8. Os sinais e sintomaspresentes nesta síndrome são febre, hipoxemia,hemoptise, falência respiratória e infiltrado alveolar difusoque clareia rapidamente após a interrupção da droga6.Fragmentos pulmonares obtidos de pacientes afetados

Pulmão do crack

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pelo pulmão do crack revelam dano alveolar difuso ehemorragia alveolar com infiltrado celular intersticial ealveolar rico em eosinófilos com deposição de IgE.Imagens radiológicas dos pacientes acometidos por estasíndrome evidenciam opacidades pulmonares intersticiaise alveolares difusas. Pequeno derrame pleural pode estarpresente1,6.

O manejo destes pacientes é suportivo, com avaliaçãobroncoscópica, oxigênio suplementar e suporteventilatório caso necessário2. O tratamento comcorticosteróides é controverso. Não há evidências queseu uso altere a evolução da doença2. No entanto, coma sua utilização são relatados benefícios aos pacientes3,5,6.Segundo Kon et al.5, os corticosteróides têm sidoutilizados nos casos onde a síndrome pulmonar aguda épersistente e quando há evidências de eosinofilia pulmonarconfirmada por biópsia pulmonar ou lavadobroncoalveolar.

Neste relato de caso, não foi possível definir comcerteza que o crack foi o responsável pela síndromepulmonar aguda. No entanto, a história pregressa dopaciente e os resultados negativos nos exameslaboratoriais das três amostras de hemocultura, pesquisade anticorpos anti-HIV I e II, anticorpos anticitoplasmade neutrófilos – ANCA, pesquisa de bacilo álcool-ácidoresistente, Pneumocystis jirovecii e outros fungos noescarro fez com que a relação entre o quadro pulmonare o uso do crack fosse suspeitada. Além disso, asmanifestações radiológicas evidenciadas na radiografiae tomografia computadorizada de tórax clarearamrapidamente após a interrupção do uso da droga,auxiliando no diagnóstico de lesão pulmonar devido aouso de crack.

Com base no exposto, é importante que o médicoassistente elabore esta hipótese diagnóstica no momentodo atendimento de pacientes com história de drogadiçãoque dão entrada nos serviços de emergência com quadrode insuficiência respiratória aguda e compreenda asmanifestações clínicas e radiológicas da síndrome dopulmão do crack.

Referências Bibliográficas:

1. Mançano A, Marchiori E, Zanetti G, Escuissato DL,Duarte BC, Apolinário LA. Complicaçõespulmonares após o uso de crack: achados natomografia computadorizada de alta resolução dotórax. J Bras Pneumol, 2008;34(5):323-327.

2. Haim DY, Lippmann ML, Goldberg SK, Walkenstein

MD. The pulmonary complications of crack cocaine.A comprehensive review. Chest. 1995; 107:233-40.

3. Gatof D, Albert RK. Bilateral thumb burns leadingto the diagnosis of crack lung. Chest.2002;121(1):289-91.

4. Alvarez GG, van der Jagt RHC. “Crack lung andheart” presenting after chemotherapy in a 65-year-old man with non-Hodgkin lymphoma. CurrentOncol. 2008;15(1): 63-65.

5. Kon M, Redhead JBG, Gillen D, Fothergill J, HenryJA, Mitchell DM. “Crack lung” caused by an impurepreparation. Thorax. 1996;51:959-960.

6. Restrepo CS, Carrilho JA, Matínez S, Ojeda P,Rivera AL, Hatta A. Pulmonary Complications fromcocaine and cocaine-based substances: imagingmanifestations. Radiographics. 2007;27:941-956

7. Baldwin GC, Choi R, Roth MD, et al. Evidence ofchronic damage to the pulmonary microcirculationin habitual users of alkaloidal (“crack) cocaine.Chest. 2002; 121:1231-1238.

8. Tashkin DP. Pulmonary complications of smokedsubstance abuse. West J Med. 1990;152(5):525-30.

Figura 1 - Radiografia de tórax em posição póstero-anterior mostrando infiltrado intersticial-alveolarcom predomínio em campos pulmonares médio einferior

Pulmão do crack

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Endereço para correspondência:

César LazzarottoAv: Lauro Linhares,1730 Apto 206Bairro: TrindadeFlorianópolis - SCCEP: 88036-002E-mail: [email protected]

Figura 2 - Tomografia computadorizada de altaresolução, solicitado no momento da internação,com cortes para visualização de parênquimapulmonar evidenciando acentuado infiltrado emvidro fosco em ambos os pulmões, com predomínioem lobos inferiores e pequenos focos deconsolidação parenquimatosa subpleurais naporção posterior dos lobos inferiores.

Figura 3 - Radiografia do tórax em posição póstero-anterior evidenciando resolução parcial doinfiltrado intersticial-alveolar após 7 diasda interrupção do uso do crack.

Pulmão do crack