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1 Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria Ano 5 • n°2 • Mar/Abr 2015 ISSN 2236-918X

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1Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria 1Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

Ano 5 • n°2 • Mar/Abr 2015ISSN 2236-918X

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NO PORTAL DA PSIQUIATRIA WWW.ABP.ORG.BR

21H AO VIVO

Assistir é muito fácil e prático, basta acessar o Portal da Psiquiatria

www.abp.org.br

MAIS UMA OPÇÃO DE ATUALIZAÇÃO EM PSIQUIATRIA PARA OS ASSOCIADOS DA ABP.

TODAS ÀS SEGUNDAS - FEIRAS

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3Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

Prezados leitores da RDP,

Em nosso segundo número de 2015, Marlos Fernando Vasconcelos Rocha et al. iniciam revisando o tema da neuroimagem no transtorno bipolar. Os autores sintetizam os principais achados em neuroimagem estrutural e funcional, descrevendo as estruturas corticais e subcorticais do encéfalo mais relevantes e que embasam a provável fisiopatologia desse transtorno. São revisadas anormalidades nos circuitos neuronais supostamente envolvidos no processamento e regulação da emoção, bem como no processamento de recompensas. Os autores destacam o papel chave, embora ainda controverso, desse tipo de pesquisa na identificação de biomarcadores associados ao transtorno.

Na sequência, Marina Dyskant Mochcovitch oferece uma atualização sobre o tratamento farmacológico do transtorno de ansiedade generalizada – um dos menos estudados entre os transtornos de ansiedade, apesar de sua alta cronicidade e prevalência. São descritos resultados obtidos com os medicamentos de primeira linha no tratamento do transtorno (inibidores seletivos da recaptação da serotonina e inibidores da recaptação da serotonina e noradrenalina), bem como diversas opções de segunda escolha, com destaque para a pregabalina e a quetiapina. Os autores salientam a necessidade de mais estudos e o papel importante da abordagem psicoterápica no manejo do transtorno.

Sara Mota Borges Bottino et al. são os autores do segundo artigo de atualização deste número. Eles abordam um tema extremamente relevante no cenário atual, a saber, o cyberbullying. Numa era em que a comunicação online se tornou peça central na vida social dos adolescentes, evidências indicam que 20-40% deles terão pelo menos uma experiência com cyberbullying. Os autores destacam as repercussões do cyberbullying na saúde mental dos adolescentes, como problemas sociais e de comportamento, sintomatologia depressiva, abuso de substâncias psicoativas, tentativas de suicídio e suicídio. Algumas estratégias de prevenção são sugeridas, e o papel importantíssimo dos pais, educadores e profissionais de saúde é enfatizado.

A espiritualidade como mecanismo de coping em transtornos mentais é tema da comunicação breve publicada a seguir, de autoria de Rogério R. Zimpel et al. Os autores discutem os achados de estudos empíricos sobre o papel protetor da espiritualidade na prevenção de depressão, transtornos de ansiedade, uso de substâncias, diminuição do risco de suicídio, promoção de bem-estar e qualidade de vida, além de resiliência em situações de adversidade, traumas e estresse agudo ou crônico. Por outro lado, o papel às vezes negativo da espiritualidade, aumentando as dificuldades no enfrentamento das adversidades, também é lembrado.

Finalmente, fechando o número, Mirian Pezzini dos Santos et al. relatam um caso de transtorno dissociativo de identidade diagnosticado e tratado após permanecer sintomático por 10 anos. Os autores abrem o artigo fazendo uma apresentação detalhada do transtorno para, em seguida, descrever e discutir o caso relatado. O artigo é de grande utilidade para a prática clínica, já que psiquiatras se deparam com um grande número de pacientes vítimas de violência, sobretudo durante fases precoces do desenvolvimento, uma das causas centrais na etiologia dos transtornos dissociativos (ou transtorno de estresse pós-traumático complexo).

Esperamos que nossos leitores apreciem a seleção!

Os Editores

/////////// APRESENTAÇÃO

ANTÔNIO GERALDO DA SILVAEDITOR

JOÃO ROMILDO BUENOEDITOR

APRESENTAÇÃO

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4 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

DIRETORIA EXECUTIVA

Presidente: Antônio Geraldo da Silva - DF

Vice-Presidente: Itiro Shirakawa - SP

1º Secretário: Claudio Meneghello Martins - RS

2º Secretário: Mauricio Leão - MG

1º Tesoureiro: João Romildo Bueno - RJ

2º Tesoureiro: Alfredo Minervino - PB

DIRETORES REGIONAIS

Diretor Regional Norte: Aparício Carvalho de Moraes - RO

Diretor Regional Adjunto Norte: Maria da Graça Guimarães

Souto - MA

Diretor Regional Nordeste: Fábio Gomes de Matos e Souza - CE

Diretor Regional Adjunto Nordeste: Miriam Elza Gorender - BA

Diretor Regional Centro-Oeste: Juberty Antônio de Souza - MS

Diretor Regional Adjunto Centro-Oeste: Renée Elizabeth de

Figueiredo Freire - MT

Diretor Regional Sudeste: Marcos Alexandre Gebara Muraro -

RJ

Diretor Regional Sul: Ronaldo Ramos Laranjeira - SP

CONSELHO FISCAL

Titulares:

Francisco Baptista Assumpção Júnior – SP

Florence Kerr-Corrêa – SP

Sérgio Tamai – SP

Suplentes:

José Toufic Thomé – SP

Fernando Grilo Gomes – SP

ABP - Rio de JaneiroAv. Rio Branco, 257 – 13º andar

salas 1310/15 –CentroCEP: 20040-009 – Rio de Janeiro - RJ

Telefax: (21) 2199.7500Rio de Janeiro - RJ

E-mail: [email protected]: [email protected]

//////////// EXPEDIENTEEDITORESAntônio Geraldo da SilvaJoão Romildo Bueno

Editores AssociadosItiro ShirakawaAlfredo MinervinoLuiz Carlos Illafont CoronelMaurício LeãoFernando Portela Camara

Conselho EditorialAlmir Ribeiro Tavares Júnior - MG Ana Gabriela Hounie - SPAnalice de Paula Gigliotti - RJCarlos Alberto Sampaio Martins de Barros - RS Carmita Helena Najjar Abdo - SPCássio Machado de Campos Bottino - SPCésar de Moraes - SPElias Abdalla Filho - DFÉrico de Castro e Costa - MGEugenio Horácio Grevet - RSFausto Amarante - ESFlávio Roithmann - RSFrancisco Baptista Assumpção Junior - SPHelena Maria Calil - SPHumberto Corrêa da Silva Filho - MGIrismar Reis de Oliveira - BAJair Segal - RSJoão Luciano de Quevedo - SCJosé Cássio do Nascimento Pitta - SPJosé Geraldo Vernet Taborda - RSMarco Antonio Marcolin - SPMarco Aurélio Romano Silva - MGMarcos Alexandre Gebara Muraro - RJMaria Alice de Vilhena Toledo - DFMaria Dilma Alves Teodoro - DFMaria Tavares Cavalcanti - RJMário Francisco Pereira Juruena - SPPaulo Belmonte de Abreu - RSPaulo Cesar Geraldes - RJSergio Tamai - SPValentim Gentil Filho - SPValéria Barreto Novais e Souza - CEWilliam Azevedo Dunningham - BA

Conselho Editorial InternacionalAntonio Pacheco Palha (Portugal), Marcos Teixeira (Portugal), José Manuel Jara (Portugal), Pedro Varandas (Portugal), Pio de Abreu (Portugal), Maria Luiza Figueira (Portugal), Julio Bobes Garcia (Espanha), Jerónimo Sáiz Ruiz (Espanha), Celso Arango López (Espanha), Manuel Martins (Espanha), Giorgio Racagni (Italia), Dinesh Bhugra (Londres), Edgard Belfort (Venezuela)

Jornalista Responsável: Brenda Ali LealProjeto Gráfico, Editoração Eletrônica e Ilustração: Daniel Adler e Renato OliveiraProdução Editorial: Associação Brasileira de Psiquiatria - ABPGerente Geral: Simone PaesImpressão: Gráfica Editora Pallotti

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5Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

//////////////// ÍNDICEMAR/ABR 2015

6/revisãoNeuroimagem no transtorno bipolar

MARLOS FERNANDO VASCONCELOS ROCHA, AMANDA GALVÃO-DE ALMEIDA, FABIANA NERY-FERNANDES,

ÂNGELA MIRANDA-SCIPPA

14/atualizaçãoAtualizações do tratamento farmacológico do

transtorno de ansiedade generalizadaMARINA DYSKANT MOCHCOVITCH

20/atualizaçãoRepercussões do cyberbullying na saúde

mental dos adolescentes SARA MOTA BORGES BOTTINO, ROMAYNE MIRELLE

SANTOS, BEATRIZ DE CASTILHO MARTINS, CAROLINE GOMEZ REGINA

28/comunicação breveEspiritualidade como mecanismo de

coping em transtornos mentaisROGÉRIO R. ZIMPEL, BRUNO PAZ MOSQUEIRO,

NEUSA SICA DA ROCHA

32/relato de casoTranstorno dissociativo de identidade (múltiplas

personalidades): relato e estudo de casoMIRIAN PEZZINI DOS SANTOS, LIDIANE DOTTA

GUARIENTI, PEDRO PAIM SANTOS, EDUARDO FERREIRA DAURA, ADRIANA DENISE DAL’PIZOL

* As opiniões dos autores são de exclusiva responsabilidade dos mesmos.

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6 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

ARTIGO DE REVISÃO

NEUROIMAGEM NO TRANSTORNO BIPOLAR

ResumoNas últimas décadas, pesquisas de neuroimagem no trans-

torno bipolar (TB) têm demonstrado anormalidades nos cir-cuitos neuronais supostamente envolvidos no processamento e na regulação da emoção, bem como no processamento de recompensas. Entretanto, os resultados relativos a diversas estruturas do sistema nervoso central são escassos e difíceis de serem comparados, devido à grande heterogeneidade do TB e às diferentes metodologias empregadas para a coleta das imagens. Esta revisão teve como objetivo sintetizar os principais achados em neuroimagem estrutural e funcional no TB, descrevendo as estruturas corticais e subcorticais do encéfalo mais relevantes e que embasam a provável fisiopa-tologia desse transtorno.

Palavras-chave: Neuroimagem, transtorno bipolar, circui-tos neuronais.

Abstract In the past few decades, neuroimaging research in bipolar

disorder (BD) has demonstrated abnormalities in neural cir-cuits thought to be involved in emotion processing and regu-lation, and reward processing as well. However, results rela-ted to a number of structures of the central nervous system are scarce and difficult to compare, due to both the clinical heterogeneity of BD and the different methodologies used to collect images. The objective of this review was to synthetize the main findings available in structural and functional neuroi-maging in BD and to describe major cortical and subcortical brain structures that underpin the likely pathophysiology of this disorder.

Keywords: Neuroimaging, bipolar disorder, neural circuits.

Introdução

Nos últimos 30 anos, assistiu-se ao desenvolvimento das técnicas de neuroimagem, o que tornou possível o estudo estrutural e funcional do cérebro in vivo, através de medidas

da estrutura, do metabolismo e da neuroquímica cerebral. Em pesquisas, esse fato tem resultado em uma maior compreensão dos transtornos psiquiátricos, do ponto de vista não apenas fenomenológico ou comportamental, mas também biológico1,2. A neuroimagem pode ser definida como um conjunto de técnicas que permite a obtenção de imagens do encéfalo de forma não invasiva1.

Em termos de avaliação estrutural do tecido, existem, na atualidade, a tomografia axial computadorizada (TAC) e a ressonância nuclear magnética (RNM). A TAC explora o fato de que tecidos com diferentes densidades absorvem os raios X de modo diferente, gerando uma imagem da densidade tecidual. Na TAC, um feixe de raios X é utilizado ao longo de cortes seriados do cérebro, sendo o grau de atenuação medido quando o feixe emerge do outro lado da cabeça. No entanto, os maiores avanços ocorreram com a utilização da RNM a partir de 1983, uma vez que ela permite maior detalhamento e melhor resolução e contraste do que a TAC2. Não só a resolução da RNM é superior; ela permite uma melhor discriminação entre as substâncias branca e cinzenta. A RNM possibilita também a reconstituição e visualização da imagem cerebral em todos os planos, ou seja, para além dos planos transversal e sagital obtidos com a TAC. Os cortes coronais são particularmente valiosos para a visualização de estruturas subcorticais, como a amígdala e o hipocampo, importantes na expressão do comportamento e da emoção1.

As técnicas imagiológicas ou de neuroimagem funcional são aquelas que permitem a quantificação da função cerebral, ou seja, medem o metabolismo cerebral e a densidade dos neurorreceptores. Os princípios básicos dessas técnicas comuns e envolvem a visualização de isótopos radiativos localizados em áreas de elevada atividade funcional. No caso da espectroscopia por emissão de fóton único (SPECT), os isótopos são emissores de fótons isolados, enquanto que na tomografia por emissão de pósitrons (PET), os isótopos são emissores de pósitrons1.

NEUROIMAGING IN BIPOLAR DISORDER

MARLOS FERNANDO VASCONCELOS ROCHA

AMANDA GALVÃO-DE ALMEIDA

FABIANA NERY-FERNANDES

ÂNGELA MIRANDA-SCIPPA

REVISÃO

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7Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

Uma modifi cação da RNM permitiu o desenvolvimento da ressonância nuclear magnética funcional (RNMf), que é uma técnica mista, estrutural e funcional. Diferentemente da RNM, a RNMf permite medir variáveis fi siológicas, como volume sanguíneo regional, consumo de oxigênio e consumo de glicose nos tecidos. Além disso, ela avalia os efeitos de paradigmas de ativação sobre essas variáveis (estado de repouso versus estado de ativação)1,3. A ressonância magnética por espectroscopia de prótons de hidrogênio (H+MRS) é uma técnica também não invasiva que permite medir os constituintes bioquímicos in vivo. Em particular, a H+MRS permite medir as concentrações de glutamato, glutamina, N-acetil-aspartato (NAA), creatina, lactato, mioinositol, glicose e colina. Finalmente, a P31MRS determina o pH e a concentração de fósforo contido em metabólitos energéticos no cérebro1.

A imagem por tensor de difusão (DTI) é um exame baseado em uma modifi cação da RNM convencional que permite a quantifi cação não invasiva das características de difusão das moléculas de água in vivo. As moléculas de água se difundem livremente ao longo dos tratos das fi bras nervosas, mas a difusão é restrita em outras direções. Essa dependência direcional, chamada de difusão anisotrópica, é descrita matematicamente por um tensor, que é muitas vezes representado como um elipsoide. A análise do tensor de difusão permite a reconstrução dos tratos de fi bras nervosas e a quantifi cação da anisotropia da substância branca do cérebro. Dessa forma, a tratografi a por tensor de difusão (DTT) permite a avaliação dos tratos de fi bras com base no DTI e fornece ferramentas importantes para a visualização dos tratos de substância branca, como o mapeamento por cor e o acompanhamento contínuo das fi bras.

Imagens de fi bras nervosas obtidas por DTT mostram boa correspondência com sintomas clínicos ou mudanças histológicas; além disso, áreas de substância branca relacionadas a transtornos psiquiátricos, tais como o cíngulo, o fascículo uncinado, o fórnix cerebral e o corpo caloso (CC), podem ser identifi cadas com relativa facilidade através da DTT4.

O transtorno bipolar (TB) é uma doença multifatorial grave, decorrente de infl uências genéticas e ambientais. Caracteriza-se por anormalidades de pensamento, comportamento, cognição e humor. Os portadores de TB se apresentam com quadro clínico, curso e prognóstico muito variáveis, sendo este considerado um transtorno

bastante heterogêneo. Nesse contexto, o grande impulso da pesquisa em neuroimagem documentado nas últimas décadas não só tem permitido a melhor compreensão da fi siopatologia do TB, por meio do estabelecimento de prováveis associações entre áreas e circuitos neuronais de um lado e os diversos fenótipos clínicos de outro, assim como também tem sinalizado a utilidade das diversas modalidades de neuroimagem enquanto métodos para a defi nição de potenciais marcadores neurobiológicos da doença. Mais ainda, alguns autores propõem conceitos de biomarcadores em neuroimagem para transtornos de humor, tais como: biomarcadores prognósticos, que caracterizariam o risco para o surgimento da doença; biomarcadores preditores, associados à probabilidade de resposta terapêutica; e biomarcadores farmacodinâmicos, implicados na evidência dos efeitos relacionados ao tratamento farmacológico5.

O objetivo deste trabalho foi reunir dados recentes e discutir os estudos mais relevantes relacionados à neuroimagem estrutural e funcional no TB, descrevendo a neuroanatomia provavelmente envolvida na expressão do comportamento e da emoção, com ênfase no TB.

mÉtodo

Foi realizada uma revisão clássica da literatura na base de dados PubMed para encontrar artigos científi cos em português, espanhol ou inglês, publicados nos últimos 20 anos, que abordassem o uso da neuroimagem na compreensão de aspectos fi siopatológicos ou clínicos do TB. As seguintes palavras-chave foram utilizadas na busca: “bipolar disorder” OR “mood disorder” OR “affective disorder” AND “neuroimaging”. Foram selecionados os artigos originais e as revisões mais pertinentes ao tema. As referências dos artigos encontrados também foram consultadas, a fi m de identifi car artigos adicionais importantes.

resultados

Substância brancaO hipersinal de substância branca é uma alteração

frequentemente descrita em pacientes bipolares, tanto na população adulta6 quanto em crianças e adolescentes7. Entre os feixes de associação de substância branca, o CC representa uma das estruturas de grande interesse na pesquisa do TB. Nessa área, pesquisas que utilizam a técnica do tensor de difusão frequentemente mostram perda da integridade estrutural do CC em seus diversos segmentos (joelho, corpo ou esplênio)8,9. Mais ainda, um estudo recente conduzido pelo nosso grupo e

1 Neurologista. Colaborador, Centro de Estudos de Transtornos do Humor e de Ansiedade (CETHA), Universi-dade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA. Doutorando, Programa de Pós-Graduação em Medicina e Saúde, UFBA, Salvador, BA. 2 Psiquiatra. Colaboradora, CETHA, UFBA, Salvador, BA. Professora adjunta, Departa-mento de Neurociências e Saúde Mental, Faculdade de Medicina, UFBA, Salvador, BA. 3 Psiquiatra. Colabora-dora, CETHA, UFBA, Salvador, BA. Professora, Departamento de Neurociências e Saúde Mental, Faculdade de Medicina, UFBA, Salvador, BA. 4 Psiquiatra. Coordenadora, CETHA, UFBA, Salvador, BA. Professora associada, Departamento de Neurociências e Saúde Mental, Faculdade de Medicina, UFBA, Salvador, BA.

MARLOS FERNANDO VASCONCELOS ROCHA1, AMANDA GALVÃO-DE ALMEIDA2, FABIANA NERY-FERNANDES3, ÂNGELA MIRANDA-SCIPPA4

REVISÃO

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8 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

que avaliou pacientes bipolares tipo I eutímicos mostrou redução do CC nas áreas do joelho e istmo quando comparados a controles sadios10, confirmando dados de outras pesquisas11,12. Recentemente, ratificando dados anteriores, uma metanálise documentou a redução volumétrica dessa estrutura em pacientes bipolares13. Importante ressaltar que as alterações do CC foram também descritas em crianças e adolescentes com TB14 e em grupos de risco para o TB, como familiares de primeiro grau15.

Além disso, a perda da integridade funcional foi verificada em outros feixes associativos de substância branca, tais como o fascículo uncinado, os fascículos longitudinais superior e inferior, o fascículo fronto-occipital e do cíngulo anterior em pacientes com TB16. Em conjunto, esses achados sugerem que as anormalidades da substância branca podem preceder o início da doença bipolar e predispor a alterações de desenvolvimento do encéfalo durante o processo de neurodesenvolvimento do sistema nervoso central (SNC) na infância e adolescência.

Lobo frontalO cíngulo anterior, o córtex pré-frontal dorsolateral e o córtex

orbitofrontal (COF) representam as áreas mais extensamente estudadas do lobo frontal na pesquisa do TB. Os estudos que avaliaram o giro do cíngulo por meio de RNM demonstraram de forma recorrente a redução volumétrica do cíngulo subgenual (áreas 24 e 25 de Brodmann), achado confirmado em uma me-tanálise recente17. Adicionalmente, no cíngulo anterior, têm sido observadas alterações funcionais tanto em pacientes em estado de repouso quanto naqueles submetidos a tarefas de ativação. A maioria deles mostra hiperatividade do cíngulo anterior, notada-mente da região subgenual, em pacientes nas fases depressiva18 e de mania19. Observa-se, ainda, em pacientes com TB, redução do NAA e aumento da colina no cíngulo anterior como os resultados mais consistentes da H+MRS20. O hipometabolismo do córtex pré-frontal dorsolateral tem sido descrito em estudos que avalia-ram pacientes em estado de depressão21 e de mania22. Da mesma forma, níveis menores de NAA têm sido encontrados em pacien-tes adultos eutímicos20. Em relação ao COF, os estudos também sugerem disfunção, com presença de hipometabolismo23,24 e re-dução volumétrica da substância cinzenta, em particular do giro frontal inferior, conforme documentado em uma metanálise25.

Lobo temporalA alteração volumétrica da amígdala representa o achado de

neuroimagem estrutural mais reportado entre pacientes com TB, com a descrição frequente de redução do seu volume em

amostras de pacientes adolescentes, enquanto que, em adultos, os resultados ainda são conflitantes. Essa variação nos resultados obtidos em adultos pode ser justificada pelos efeitos neurotrófi-cos de fármacos utilizados na estabilização do humor, pelas varia-ções genéticas de cada indivíduo ou pelos aspectos relacionados ao neurodesenvolvimento. De fato, alguns estudos que utiliza-ram PET ou SPECT demonstraram anormalidades funcionais da amígdala – hipermetabolismo na fase depressiva em alguns estudos, versus hipometabolismo em outros, nas fases tanto de depressão quanto de mania26. Por outro lado, vários estudos que utilizaram RNMf e mediram resposta a estímulos emocionais po-sitivos utilizando tarefas cognitivas sem valência emocional des-creveram hiperatividade da amígdala apenas na fase de mania27.

Os estudos de RNM que mediram o hipocampo encontraram resultados muito variáveis, o que pode ser explicado em parte por variações genéticas (carreamento do alelo Met, associado a menores volumes hipocampais), efeitos de tratamento (uso de lítio, associado a aumento do volume hipocampal) ou hormô-nios sexuais26. Entretanto, uma menor concentração de NAA no hipocampo de pacientes adultos eutímicos foi documentada em uma metanálise20. Por fim, a hiperatividade do giro para-hipo-campal foi relatada em duas metanálises que utilizaram a RNMf27.

Cerebelo Estudos em geral demonstraram redução do volume do vér-

mis cerebelar28; porém, em relação ao volume dos hemisférios cerebelares, os resultados são controversos28,29. Nesse sentido, pesquisa realizada pelo nosso grupo que mediu o tamanho das diversas áreas do cerebelo em pacientes bipolares tipo I eutí-micos mostrou perda volumétrica tanto do vérmis quanto dos hemisférios cerebelares30.

CIrCuItos e modelos neuronaIs de regulação emoCIonal

Circuito pré-frontal ventrolateralEste circuito é constituído pelo córtex pré-frontal ventrolateral

(CPFVL) (áreas 10 e 47 de Brodmann), o qual envia fibras para o striatum ventromedial (núcleo caudado ventromedial, putâmen ventral, núcleo accumbens e tubérculo olfatório), que, por sua vez, projeta-se ao globo pálido. Fibras palidais seguem para os núcleos ventroanterior e dorsomedial do tálamo, que se conecta novamente ao CPFVL. O córtex temporal anterior, que compre-ende as áreas 20 e 38 de Brodmann, mantém conexões recípro-cas com o CPFVL e a amígdala31.

REVISÃOMARLOS FERNANDO VASCONCELOS ROCHA

AMANDA GALVÃO-DE ALMEIDA

FABIANA NERY-FERNANDES

ÂNGELA MIRANDA-SCIPPA

ARTIGO DE REVISÃO

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9Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

Circuito pré-frontal ventromedialEste circuito é formado pela região pré-frontal ventromedial,

defi nida pelas áreas corticais 11 e 12 de Brodmann, da qual par-tem fi bras que seguem para o núcleo caudado ventromedial e striatum ventral. Dessas topografi as partem projeções para os núcleos talâmicos ventroanterior, dorsomedial e ventrolateral, os quais fecham o circuito com vias talâmicas para o córtex ventro-medial. Devem-se mencionar as projeções dessas áreas corticais também para o córtex entorrinal e amígdala. Vale lembrar que o córtex pré-frontal ventral está associado à modulação de com-portamentos adaptativos e da autorregulação afetiva mediante contingências ambientais sociais e emocionais, e também participa da integração entre informações sensoriais do ambiente e estí-mulos internos (por exemplo, pensamentos e respostas fi siológi-cas), o que infl uencia a atividade de outras estruturas, tais como a amígdala e o hipotálamo, e, subsequentemente, as funções neu-rovegetativas e respostas emocionais.

Circuito pré-frontal dorsolateralEste circuito é composto pelas áreas corticais 9, 10 e 46 de

Brodmann, as quais abrangem parte da superfície lateral dos lo-bos frontais. Dessas regiões partem fi bras para o núcleo caudado dorsolateral, que, por sua vez, envia fi bras para o globo pálido dorsal, o qual se projeta para os núcleos ventroanterior, ven-trolateral e dorsomedial do tálamo; vias talâmicas provenientes desses núcleos retornam ao circuito pré-frontal dorsolateral. Esse circuito está associado às funções executivas, que envolvem um sistema de diversas habilidades cognitivas que capacitam o indiví-duo para a formulação de metas e planejamento de processos e estratégias e para a realização de ações ou comportamentos vo-luntários, autônomos (independentes), auto-organizados, efi cazes e orientados a objetivos, especialmente no contexto de situações novas ou em circunstâncias que exigem ajustamento, adaptação ou fl exibilidade do comportamento para as demandas ambien-tais. Apreende-se, então, que funções executivas designam um construto multidimensional, no qual os processos cognitivos ca-racterizam operações distintas, ainda que relacionadas.

Circuito do cíngulo anteriorO cíngulo anterior corresponde à maior parte das áreas 24, 25

e 32 de Brodmann. Essa área cortical mantém conexões com o striatum ventromedial, do qual seguem fi bras para o globo pálido ventral e rostrolateral, que, por sua vez, envia projeções para o núcleo dorsomedial do tálamo; vias dessa topografi a retornam ao cíngulo anterior e fecham o circuito. Funcionalmente, o córtex

do cíngulo anterior é subdividido em cíngulo anterior ventral e dorsal: o primeiro inclui as porções rostrais das áreas 24 e 25 de Brodmann e está envolvido no processamento afetivo em termos de regulação das funções endócrinas e autonômicas e geração de comportamentos sociais apropriados, e também contribui para a resposta emocional global pela ativação de estados somáticos e viscerais relevantes para a experiência emocional; o segundo abrange as porções posteriores das áreas 24 e 32 de Brodmann e está envolvido na seleção de respostas a estímulos nociceptivos, no aprendizado associado à predição e prevenção à exposição ao estímulo nociceptivo, e também na atenção e orientação motora a estímulos externos.

Compondo esses circuitos, o cerebelo recebe projeções corti-cais por meio de núcleos situados na base da ponte. As fi bras dos núcleos pontinos decussam e seguem pelo pedúnculo cerebelar médio para alvos cerebelares específi cos: enquanto o córtex mo-tor se projeta para o cerebelo (região paravermiana) via núcleos pontinos laterais, áreas corticais associativas da região pré-frontal, parietal e temporal, bem como o cíngulo anterior, alcançam o cerebelo via núcleos pontinos mediais. Essas vias córtico-ponto--cerebelares apresentam organização topográfi ca: as fi bras pro-venientes do córtex pré-frontal descem na porção mais anterior da cápsula interna e na porção mais medial do pedúnculo cere-bral; as outras áreas corticais associativas enviam fi bras que des-cem na porção mais posterior da cápsula interna e na porção mais lateral do pedúnculo cerebral; fi bras do córtex motor primário apresentam um trajeto intermediário.

O cerebelo, além de contribuir no componente motor, é res-ponsável também pela modulação da duração, da intensidade e do perfi l da resposta emocional e, dentro do contexto ambiental adequado, recepciona a informação proveniente de estruturas telencefálicas envolvidas no processamento cognitivo emocional e envia informação para sítios efetores (córtex motor, hipotálamo, substância cinzenta periaquedutal e núcleos de nervos cranianos) e sítios indutores (rede paralímbica ventral).

dIsCussão

Entre os modelos de circuitos neuronais em pacientes com TB relacionados aos processos de percepção e regulação emocionais propostos na literatura, destaca-se o do grupo de Mary Phillips32. Esse modelo preconiza a existência de dois sistemas neuronais: 1) um sistema ventral, composto por estruturas subcorticais (amíg-dala, striatum ventral) e corticais (ínsula, cíngulo anterior ventral e córtex pré-frontal ventral), e que estaria vinculado à identifi cação do signifi cado emocional de um estímulo associado à geração de

REVISÃO1 Neurologista. Colaborador, Centro de Estudos de Transtornos do Humor e de Ansiedade (CETHA), Universi-dade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA. Doutorando, Programa de Pós-Graduação em Medicina e Saúde, UFBA, Salvador, BA. 2 Psiquiatra. Colaboradora, CETHA, UFBA, Salvador, BA. Professora adjunta, Departa-mento de Neurociências e Saúde Mental, Faculdade de Medicina, UFBA, Salvador, BA. 3 Psiquiatra. Colabora-dora, CETHA, UFBA, Salvador, BA. Professora, Departamento de Neurociências e Saúde Mental, Faculdade de Medicina, UFBA, Salvador, BA. 4 Psiquiatra. Coordenadora, CETHA, UFBA, Salvador, BA. Professora associada, Departamento de Neurociências e Saúde Mental, Faculdade de Medicina, UFBA, Salvador, BA.

MARLOS FERNANDO VASCONCELOS ROCHA1, AMANDA GALVÃO-DE ALMEIDA2, FABIANA NERY-FERNANDES3, ÂNGELA MIRANDA-SCIPPA4

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10 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

estados afetivos e regulação autonômica; e 2) um sistema dorsal, representado pelas regiões dorsais do cíngulo anterior e córtex pré-frontal, bem como pelo hipocampo, e que suportaria proces-sos cognitivos como atenção seletiva, planejamento, monitorização do desempenho e regulação voluntária dos estados emocionais.

A apreciação dos achados de neuroimagem permite corroborar a pertinência desse modelo, a partir de: identificação de disfunções em distintas áreas corticais e subcorticais (como já exposto, estru-turas envolvidas no processamento e na regulação da emoção); aumento anormal da atividade da amígdala durante o desempe-nho de tarefas emocionais e não emocionais; diminuição anormal da atividade do CPFVL, do COF e da conectividade funcional en-tre a amígdala e córtex pré-frontal durante tarefas de regulação emocional. Ademais, nos estudos que envolvem paradigmas de recompensa (antecipação de recompensa), observa-se aumento anormal da atividade do striatum ventral, do CPFVL e do COF.

Em relação aos circuitos e modelos neuronais da regulação emocional, Thompson, citado no trabalho de Phillips et al.32, defi-niu a regulação emocional da seguinte forma: “Emotion regulation consists of extrinsic and intrinsic processes responsible for monito-ring, evaluating, and modifying emotional reactions, especially their intensive and temporal features, to accomplish one’s goals”32. Nes-se contexto, o processamento normal de estímulos de valência emocional pode ser compreendido em etapas, de acordo com alguns autores31:

-avaliação e identificação do estímulo emocional;-produção de estado afetivo específico em resposta ao es-

tímulo, composto por respostas comportamentais, autonômicas e neuroendócrinas;

-regulação do estado afetivo e do comportamento emo-cional – envolve modulação dos processos de avaliação/identifica-ção bem como de produção de estados afetivos –, a qual resulta em adequação comportamental para o contexto.

Essa modulação envolve processos tanto automáticos como controlados, os quais podem exercer efeitos em qualquer etapa do processamento emocional32. Assim, na atualidade, o grande desafio é desvendar quais estruturas e sistemas neuronais seriam responsáveis pela neuropatologia da doença bipolar, considerando suas diversas fases e manifestações clínicas. Agrega-se, ainda, como problema, a existência de subtipos de TB (tipo I, II), cujos limites e definições continuam sendo estudados e reavaliados. Outra ques-tão relevante é a diversidade da metodologia empregada, com técnicas diversas e potencias diferentes de detecção de alterações neuronais teciduais, sejam elas estruturais ou funcionais.

ConClusão

A aplicação dos diversos métodos de neuroimagem representa um aspecto chave na pesquisa do TB, sobretudo na identifica-ção de biomarcadores que podem não somente proporcionar maior precisão diagnóstica (por exemplo, depressão bipolar ver-sus depressão unipolar), como também quantificar o risco de de-senvolvimento da doença e predizer estratégias de tratamento mais eficazes. Entretanto, os resultados das pesquisas ainda são escassos e controversos. Dessa forma, na atualidade, os estudos de imagem destinam-se apenas às pesquisas e ao processo de avaliação diagnóstica, a fim de afastar os transtornos relaciona-dos a doenças clínicas, tais como tumores do SNC, doença de Alzheimer, neuroinfecções, doenças hereditárias como a doença de Wilson, entre outras. Assim, as técnicas de neuroimagem atu-ais são capazes de identificar mudanças estruturais e funcionais nos diversos transtornos mentais (comparação entre grupos), detectar circuitos neuronais e lesões localizadas. Mais ainda, as alterações funcionais parecem ter algum poder preditivo quanto à resposta ao tratamento farmacológico.

Os autores informam não haver conflitos de interesse as-sociados à publicação deste artigo.

Fontes de financiamento inexistentes.Correspondência: Marlos Fernando Vasconcelos Ro-

cha, Hospital Universitário Professor Edgard Santos, 3º an-dar, Serviço de Psiquiatria, Rua Augusto Vianna, s/ nº, Canela, CEP 40110-909, Salvador, BA. E-mail: [email protected]

REVISÃOMARLOS FERNANDO VASCONCELOS ROCHA

AMANDA GALVÃO-DE ALMEIDA

FABIANA NERY-FERNANDES

ÂNGELA MIRANDA-SCIPPA

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ARTIGO DE REVISÃO

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11Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

REVISÃO1 Neurologista. Colaborador, Centro de Estudos de Transtornos do Humor e de Ansiedade (CETHA), Universi-dade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA. Doutorando, Programa de Pós-Graduação em Medicina e Saúde, UFBA, Salvador, BA. 2 Psiquiatra. Colaboradora, CETHA, UFBA, Salvador, BA. Professora adjunta, Departa-mento de Neurociências e Saúde Mental, Faculdade de Medicina, UFBA, Salvador, BA. 3 Psiquiatra. Colabora-dora, CETHA, UFBA, Salvador, BA. Professora, Departamento de Neurociências e Saúde Mental, Faculdade de Medicina, UFBA, Salvador, BA. 4 Psiquiatra. Coordenadora, CETHA, UFBA, Salvador, BA. Professora associada, Departamento de Neurociências e Saúde Mental, Faculdade de Medicina, UFBA, Salvador, BA.

MARLOS FERNANDO VASCONCELOS ROCHA1, AMANDA GALVÃO-DE ALMEIDA2, FABIANA NERY-FERNANDES3, ÂNGELA MIRANDA-SCIPPA4

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MARLOS FERNANDO VASCONCELOS ROCHA

AMANDA GALVÃO-DE ALMEIDA

FABIANA NERY-FERNANDES

ÂNGELA MIRANDA-SCIPPA

REVISÃO29. Brambilla P, Harenski K, Nicoletti M, Mallinger

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ARTIGO DE REVISÃO

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13Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

REVISÃO

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14 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

ARTIGO DE ATUALIZAÇÃOMARINA DYSKANT MOCHCOVITCH

ARTIGOATUALIZAÇÕES DO TRATAMENTOFARMACOLÓGICO DO TRANSTORNO DE ANSIEDADE GENERALIZADA

AN UPDATE ON THE PHARMACOLOGICAL TREATMENT OF GENERALIZED ANXIETY DISORDER

ResumoO transtorno de ansiedade generalizada (TAG) é um

transtorno crônico e prevalente, mas também um dos me-nos estudados entre os transtornos de ansiedade. Os anti-depressivos inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) e inibidores da recaptação da serotonina e noradre-nalina (IRSN) são considerados medicamentos de primeira linha no tratamento de TAG, porém não são incomuns casos de refratariedade, intolerância ou a presença de contraindi-cações ao uso dessas subtâncias. Diversas substâncias, como a pregabalina e a quetiapina, surgem, então, como alterna-tivas para o tratamento do TAG nesses casos, assim como para a substituição dos benzodiazepínicos como medicações adjuvantes aos antidepressivos.

Palavras-chave: Transtorno de ansiedade generalizada, tratamento, ensaios clínicos.

Abstract Generalized anxiety disorder (GAD) is a chronic and pre-

valent disorder, but also one of the least studied among anxiety disorders. Selective serotonin reuptake inhibitors (SSRI) and selective norepinephrine reuptake inhibitors (SNRI) are considered first-line drugs in the treatment of GAD, but refractory cases and the occurrence of intolerance and contraindications to these drugs are not uncommon. In this scenario, various substances, e.g., pregabalin and quetia-pine, have emerged as alternatives for the treatment of TAG in these patients, as well as for replacing the use of benzodia-zepines as adjunctive therapy to antidepressants.

Keywords: Generalized anxiety disorder, treatment, clinical trials.

Introdução

O transtorno de ansiedade generalizada (TAG) é uma condição clínica de curso crônico e flutuante, caracterizada por preocupação excessiva persistente associada a sintomas físicos e psíquicos de ansiedade, como cefaleia, dores musculares, palpitações, fadiga, irritabilidade, insônia e dificuldade de concentração1. Sua etiopatogenia é complexa e pouco estudada, sendo atribuída a fatores genéticos, ambientais e epigenéticos que promovem disfunções no circuito amígdala-córtex cingulado-córtex pré-frontal2,3.

Os principais sistemas de neurotransmissores que desempenham papel etiopatogênico ou de modulação nas manifestações do TAG são os sistemas monoaminérgicos, através dos quais atuam os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), os inibidores seletivos da recaptação da noradrenalina (IRSN), os antidepressivos tricíclicos e a buspirona, e o sistema gabaérgico, através do qual atuam os benzodiazepínicos1. Recentemente, a importância do sistema glutamatérgico no TAG também tem sido estudada4.

tratamento farmaCológICo do tag: o que há de novo?

Medicações para monoterapiaAté o momento, o tratamento farmacológico considerado

de primeira linha para o TAG são os antidepressivos ISRS e IRSN1,5,6. Tal escolha se deve ao fato de que essas classes de antidepressivos têm demonstrado eficácia em diversos ensaios clínicos de curto e longo prazo e apresentam perfil favorável de efeitos colaterais6. A paroxetina, a sertralina e o escitalopram são os ISRS com maior número de estudos favoráveis para o tratamento do TAG1,6. Dos IRSN, a venla-

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15Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

ARTIGOMestre em Psiquiatria, Programa de Pós-Graduação, Instituto de Psiquiatria (IPUB), Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ. Doutoranda, Programa de Pós-Graduação, IPUB, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ. Pesquisadora, Laboratório de Pânico e Respiração (LabPR), IPUB, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ.

MARINA DYSKANT MOCHCOVITCH

faxina foi mais amplamente estudada, mas a duloxetina tam-bém já apresenta efi cácia comprovada1,6.

No entanto, os ensaios clínicos com ISRS e ISRN mostram médias em torno de 60 a 70% de resposta terapêutica, ha-vendo, portanto, uma parcela signifi cativa de pacientes não responsivos a essas medicações de primeira linha. Além disso, em pacientes que fazem uso prolongado de ISRS ou IRSN, a disfunção sexual e o embotamento afetivo se apre-sentam como limitações importantes6. Por fi m, casos de co-morbidade com transtorno bipolar do humor são comuns (a prevalência da comorbidade é de 29,6% segundo o National Comorbidity Replication Study)7. Nesses casos, o uso de anti-depressivos pode ser temerário. Portanto, apesar de os ISRS e IRSN se manterem como primeira linha para o tratamento do TAG, faz-se necessária a utilização de medicações alterna-tivas, seja para os casos não responsivos ou intolerantes aos antidepressivos, seja para aqueles em que essa classe está contraindicada.

A pregabalina é uma medicação anticonvulsivante que pode ser indicada para cumprir esse papel. Muito utilizada para o tratamento de quadros de dor crônica e fi bromialgia, a pregabalina já está aprovada para o tratamento do TAG em países europeus7. Atua como ligante da unidade �2� dos canais de cálcio em neurônios pré-sinápticos hiperexcitados, reduzindo, assim, a liberação de neurotransmissores excita-tórios, como o glutamato.

Oito ensaios clínicos placebo-controlados de fase aguda demonstraram a efi cácia da pregabalina em pacientes com TAG. Destes, dois estudos compararam essa medicação com lorazepam e placebo, e dois com venlafaxina e e placebo, sendo os demais apenas versus placebo, sem outra droga ativa. Em conjunto, esses estudos demonstram efi cácia se-melhante entre a pregabalina e a droga ativa, e superiori-dade em relação ao placebo7. De acordo com estudos de segurança e tolerabilidade, a pregabalina é uma droga bem tolerada na faixa de dose considerada terapêutica, de 150 a 600 mg/dia. Tontura e sonolência foram os efeitos colaterais mais comumente citados, mas a proporção de abandono de tratamento por intolerância em pacientes em uso de prega-balina foi equivalente à do grupo placebo8. Ganho de peso foi reportado em 4% dos casos7, e houve uso abusivo em um paciente com transtorno por uso de substâncias − mas este efeito pode ser considerado bastante inferior ao observado com benzodiazepínicos9,10.

Outro anticonvulsivante que já foi testado para tratamento

do TAG foi o valproato de sódio. Apenas um ensaio clíni-co controlado foi realizado, mostrando efi cácia superior ao placebo em 6 semanas de tratamento11. Ainda não há apro-vação para o uso dessa medicação em pacientes com TAG sem comorbidades, mas o valproato de sódio já é uma opção medicamentosa para os pacientes que apresentam comorbi-dade com transtorno bipolar do humor, com mais sintomas como irritabilidade, impulsividade e inquietação psicomotora e, portanto, menor tolerância aos antidepressivos12.

A quetiapina de liberação prolongada, um antipsicótico atípico, também ainda não foi aprovada para uso no TAG, porém oito ensaios clínicos de fase aguda já demonstraram sua efi cácia em comparação ao placebo em monoterapia13-16. Essa substância pode, assim, ser considerada em casos refra-tários ou intolerantes às medicações de primeira linha. As dosagens utilizadas para o TAG são inferiores àquelas utiliza-das para efeito antipsicótico (100-200 mg/dia)13-16. A principal limitação ao uso da quetiapina é o risco elevado de ganho de peso e desenvolvimento de síndrome metabólica1,13. Tontura e sedação são outros efeitos colaterais, por vezes limitantes6.

Novos antidepressivos também vêm sendo testados para utilização no TAG, como a agomelatina e a vortioxetina. A agomelatina é um antidepressivo agonista melatoninérgico e antagonista do receptor serotoninérgico 5HT2c ainda pouco estudado para o tratamento do TAG. Inicialmente, o efei-to ansiolítico da agomelatina foi observado como desfecho secundário nos estudos para o tratamento da depressão maior17. Esses achados motivaram a realização de estudos com agomelatina em pacientes com transtornos de ansieda-de. No caso do TAG, um ensaio clínico controlado mostrou efi cácia dessa medicação no curto prazo (8 semanas)18, e um estudo de longo prazo mostrou redução de 42% no risco de recaída dos sintomas19. O efeito ansiolítico da agomelatina pode se dever tanto ao antagonismo 5HT2c quanto à melho-ra do padrão de sono e regularização do ciclo sono-vigília20.

A vortioxetina, por sua vez, é um antidepressivo multimo-dal, com ação inibidora da recaptação da serotonina, agonista do receptor 5HT1a, antagonistas 5HT3 e 5HT7 e agonista parcial 5HT1b, aprovado em países europeus e nos Estados Unidos para uso na depressão maior. Apresentou efi cácia ansiolítica em estudos pré-clínicos e tem sido avaliada para o tratamento de pacientes com TAG. Até o momento, dois ensaios clínicos foram realizados. No estudo de Bidzan et al., a vortioxetina apresentou efi cácia superior ao placebo na dose de 5 mg/dia21. Já no estudo de Mahableshwarkar et al.,

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16 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

ela não se diferenciou do placebo nas doses de 2,5 mg/dia e 10 mg/dia22. Essa medicação ainda não está disponível para uso no Brasil.

O sistema glutamatérgico ainda não representa um alvo te-rapêutico importante no arsenal atual das medicações ansio-líticas. No entanto, o glutamato é um mediador da aquisição e extinção de medo, e os antagonistas dos receptores gluta-matérgicos NMDA e AMPA e moduladores alostéricos dos receptores mGlu se mostraram eficazes para o tratamento da ansiedade em estudos com animais4. Estudos com huma-nos ainda estão em desenvolvimento e precisam ser conclu-ídos para que essas substâncias possam ser empregadas no tratamento de transtornos de ansiedade como o TAG.

Medicações adjuvantesEm muitos casos, uma única medicação não é suficiente

para a remissão dos sintomas do TAG ou para abarcar todas as diferentes manifestações sintomáticas de um determinado paciente. Nesses casos, faz-se necessária a associação de uma segunda droga ao esquema terapêutico1.

As medicações mais utilizadas em associação aos antide-pressivos são os benzodiazepínicos, como o clonazepam, o diazepam, o alprazolam e o lorazepam. Esses medicamen-tos são interessantes porque são eficazes no tratamento dos sintomas físicos de ansiedade e também da insônia, muito comum nesses pacientes. Além disso, apresentarem ação imediata1.

Há, no entanto, limitações importantes ao uso dos ben-zodiazepínicos, como a possibilidade de desenvolvimento de tolerância e o risco de abuso e dependência, este último principalmente em pacientes com história de dependência química ou transtorno de personalidade1. Além disso, pa-cientes idosos ou com doenças pulmonares, como doença pulmonar obstrutiva crônica, apresentam contraindicação relativa ao uso de benzodiazepínicos.

Como alternativa aos benzodiazepínicos no tratamento adjuvante do TAG, as medicações mais estudadas são a bus-pirona e a quetiapina de liberação prolongada1,13. A buspi-rona, apesar de ter sido avaliada para o TAG em diversos estudos e ter perfil favorável de efeitos colaterais, apresenta, de forma geral, baixo tamanho de efeito1,6. A quetiapina de liberação prolongada, por sua vez, mostrou eficácia em dois ensaios clínicos controlados em associação a ISRS ou IRSN, porém também com baixo tamanho de efeito e efeitos cola-

terais mais significativos, como o desenvolvimento de síndro-me metabólica1,13.

A risperidona e a olanzapina também já demonstraram efi-cácia no tratamento adjuvante do TAG, porém o perfil de efeitos colaterais tende a ser ainda mais desfavorável do que o da quetiapina de liberação prolongada1,13.

Um ensaio clínico avaliou a eficácia da pregabalina associa-da a ISRS ou IRSN em pacientes com TAG, com resultado positivo23.

Estudos de longo prazo e prevenção de recaídasO TAG é um transtorno de curso crônico e flutuante, de

modo que o momento ideal para a interrupção da farmaco-terapia se torna uma questão de extrema importância.

Seis estudos de longo prazo já foram realizados com ven-lafaxina, duloxetina, escitalopram, paroxetina, agomelatina e pregabalina para avaliar se a manutenção da medicação é su-perior ao placebo na prevenção de recaídas. Os resultados mostram que há benefício na manutenção do tratamento por, no mínimo, 6 meses, sendo, entretanto, recomendada por muitos autores a manutenção por 12 meses1,5,6.

ConClusões

Concluímos, então, que a pregabalina e é a principal opção ao tratamento com antidepressivos para o TAG nos casos não responsivos, intolerantes ou que apresentam alguma contraindicação ao uso dessas medicações. A quetiapina de liberação prolongada também surge como alternativa para esses casos, em uso off label. Quando a indicação for de associação aos antidepressivos, os benzodiazepínicos ainda são os mais utilizados, podendo-se optar pela buspirona, pregabalina ou quetiapina quando se deseja evitar o uso de benzodiazepínicos por contraindicação clínica ou risco au-mentado de abuso e dependência. A duração recomendada do tratamento é de, ao menos, 6 meses.

Mais estudos com novas medicações, como a agome-latina e a vortioxetina, são necessários, assim como com substâncias glutamatérgicas, estas ainda não utilizadas para o tratamento do TAG, porém com significativo potencial ansiolítico.

Por fim, é importante acrescentar que o tratamento do TAG não deve se restringir ao tratamento farmacológico, sendo a abordagem psicoterápica também fundamental para o manejo desse transtorno crônico1.

ARTIGO DE ATUALIZAÇÃOMARINA DYSKANT MOCHCOVITCH

ARTIGO

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17Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

ARTIGOMestre em Psiquiatria, Programa de Pós-Graduação, Instituto de Psiquiatria (IPUB), Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ. Doutoranda, Programa de Pós-Graduação, IPUB, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ. Pesquisadora, Laboratório de Pânico e Respiração (LabPR), IPUB, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ.

MARINA DYSKANT MOCHCOVITCH

A autora informa não haver confl itos de interesse associa-dos à publicação deste artigo.

Fontes de fi nanciamento inexistentes.Correspondência: Marina Dyskant Mochcovitch, Av. Ataul-

fo de Paiva, 1079/608, Leblon, CEP 22440-034, Rio de Janeiro, RJ. Tel: (21) 2540.8820. E-mail: [email protected]

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18 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

2010;71:109-20.18. Stein DJ, Ahokas AA, de Bodinat C. Efficacy of

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃOMARINA DYSKANT MOCHCOVITCH

ARTIGO

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19Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

ARTIGO

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20 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

ARTIGO DE ATUALIZAÇÃOSARA MOTA BORGES BOTTINOROMAYNE MIRELLE SANTOSBEATRIZ DE CASTILHO MARTINSCAROLINE GOMEZ REGINA

ARTIGOREPERCUSSÕES DO CYBERBULLYING NA SAÚDE MENTAL DOS ADOLESCENTES

EFFECTS OF CYBERBULLYING ONADOLESCENTS’ MENTAL HEALTH

ResumoConsidera-se cyberbullying quando um ou mais indivíduos

utilizam os meios eletrônicos com a intenção de agredir, infli-gir injúria ou desconforto, humilhar, causar medo ou sensação de desespero no indivíduo que é alvo das agressões. Essas ações podem ser feitas via e-mail, salas de bate-papo, tele-fones celulares, mensagens instantâneas, cabines de votação online. As evidências indicam que 20-40% dos adolescentes terão pelo menos uma experiência com cyberbullying e que o número de cybervítimas está aumentando. O principal dano causado pelo cyberbullying é o de prejudicar a reputação da vítima, com repercussões que podem ser ainda maiores do que aquelas observadas no bullying tradicional. A vitimização relacionada ao cyberbullying está associada a problemas so-ciais e de comportamento, incluindo sintomatologia depres-siva, abuso de substâncias psicoativas, tentativas de suicídio e suicídio, constituindo-se assim em problemas significativos para a saúde mental dos adolescentes.

Palavras-chave: Internet, adolescente, violência, saúde mental.

Abstract Cyberbullying has been described as one or more indivi-

duals using electronic means with the intent to harm, inflict injury or discomfort, cause fear or a feeling of despair in the individual who is the target of aggression. These actions may be done by e-mail, chat rooms, cell phones, instant messa-ging, online polling booths. Evidence indicates that 20-40% of adolescents will have at least one cyberbullying experience and the number of cybervictims is increasing. The main pro-blem caused by cyberbullying is damage to the victim’s re-

putation, with repercussions that may be even greater than those observed in traditional bullying. Victimization related to cyberbullying is associated with social and behavioral proble-ms, including depressive symptoms, psychoactive substance abuse, suicide attempts, and suicide, and can be considered a significant mental health problem among adolescents.

Keywords: Internet, adolescent, violence, mental health.

Introdução

O acesso aos meios de comunicação eletrônica, como a Internet e o uso de mensagens de texto, inf luenciou a interação social entre os adolescentes na última década. Um em cada três adolescentes prefere a comunicação eletrônica à comunicação face a face para falar sobre tópicos como amor, sexo e outros assuntos sobre os quais eles sentem vergonha de falar1.

Porque a comunicação online é tão atraente para os adolescentes? Uma explicação plausível, apoiada em vários estudos, considera que a comunicação online aumenta a sensação de controle sobre a maneira como os adolescentes querem se apresentar e fazer revelações a respeito de si mesmos. O maior controle dessa situação cria, por sua vez, um senso de segurança nos adolescentes, permitindo que eles se sintam mais livres em suas interações interpessoais online em comparação com situações face a face2,3. As características desse tipo de comunicação facilitariam, assim, a superação de ansiedades sociais e, consequentemente, uma maior liberdade de expressão e a formação de novas amizades (Figura 1).

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21Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

ARTIGO1 Médica assistente, Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP. 2 Acadêmica de Enfermagem (2º ano), Escola Paulista de Enfermagem, UNIFESP, São Paulo, SP. 3 Acadêmica de Medicina (3º ano), Escola Paulista de Medicina e Escola Paulista de Enfermagem, UNIFESP, São Paulo, SP.

SARA MOTA BORGES BOTTINO1, ROMAYNE MIRELLE SANTOS2, BEATRIZ DE CASTILHO MARTINS2, CAROLINE GOMEZ REGINA3

Figura 1 - Características da comunicação online.

A alta proporção de adolescentes no Brasil que usa o Facebook (61%) e o Orkut (39%) confi rma a relevância dessa mídia no contexto social4. Entretanto, o cyberbullying, uma nova forma de violência expressa pelos meios de comunicação eletrônica, tem preocupado pais, educadores e pesquisadores em virtude dos seus efeitos na saúde mental dos adolescentes. O cyberbullying ocorre quando um ou mais indivíduos utilizam os meios eletrônicos com a intenção de agredir, infl igir injúria ou desconforto em outro indivíduo. Essas ações podem ser feitas via e-mail, salas de bate-papo, telefones celulares, mensagens instantâneas, cabines de votação online, etc., com a intenção de humilhar, causar medo ou sensação de desespero no indivíduo que é alvo das agressões5,6.

O cyberbullying pode alcançar uma grande audiência, considerando que essas agressões ocorrem no espaço virtual, com direito a livre expressão, e fi cam registradas; são grandes as difi culdades para a vítima de “se ver livre do agressor” e bloquear os sites com as publicações. Adicionalmente, cyberbullies são difíceis de identifi car e rastrear e, por essa razão, não têm medo das consequências de seus atos, já que podem não responder por essas agressões, o que aumenta a sensação de impunidade. As evidências indicam que 20-40% dos adolescentes terão pelo menos uma experiência com cyberbullying ao longo da vida e que o número das cybervítimas está aumentando7.

O principal dano causado pelo cyberbullying é o de prejudicar a reputação da vítima, com repercussões que podem ser ainda maiores do que aquelas observadas no bullying tradicional. A vitimização relacionada ao cyberbullying associa-se a problemas sociais e de comportamento, incluindo

sintomatologia depressiva, abuso de substâncias, tentativas de suicídio e suicídio, constituindo-se assim em problemas signifi cativos para a saúde dos adolescentes6,8.

ComunICação onlIne e desenvolvImento PsICossoCIal dos adolesCentes

A comunicação eletrônica, para a maioria dos adolescentes, faz parte do comportamento pró-social que visa desenvolver e manter redes de amizade e relacionamentos afetivos. Nes-sas interações, eles aprendem a se apresentar aos outros e ajustam sua autoapresentação de acordo com as reações dos outros2. O senso de intimidade desenvolvido nos relaciona-mentos permite a autoapresentação e os “ajustes”. A partir do feedback que recebem, os adolescentes podem ensaiar e validar suas identidades sociais e, eventualmente, integrá--las ao self (eu). Apresentar características de si mesmo para os outros e revelar aspectos íntimos faz parte da interação e do desenvolvimento psicossocial dos adolescentes. A au-torrevelação não só os ajuda a validar a adequação de suas cognições, emoções e comportamentos, mas também des-perta amizades de apoio e a formação de relacionamentos românticos baseados na reciprocidade9. Autoapresentação e autorrevelação são habilidades inter-relacionadas que preci-sam ser aprendidas, praticadas e ensaiadas na adolescência, e ambas são vitais para o desenvolvimento da identidade, intimidade e sexualidade. Tradicionalmente, os adolescentes aprendem a ensaiar a autoapresentação e a autorrevelação durante a comunicação face a face, muitas vezes com os co-legas e amigos íntimos. No entanto, vários estudos sugerem que a autoapresentação e a autorrevelação acontecem, cada vez mais, por intermédio da Internet10,11.

PerfIl e uso da Internet Por CrIanças e adolesCen-tes brasIleIros: natIvos dIgItaIs ou geração Z

Geração Z é a denominação sociológica dada às pessoas nascidas na década de 1990 até os anos de 2010, também chamadas de nativos digitais. Essa geração se caracteriza pela multiplicidade de tarefas: são capazes de estudar enquanto ouvem música ou assistem à televisão, acessam redes sociais, falam ao celular, buscam informações na Internet, mandam mensagens instantâneas, entre outras atividades, de forma simultânea12.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2011, a posse de celular entre brasileiros com 10 anos de idade ou mais cresceu de 36,6%

CaracterísticasdefinidorasCOMUNICAÇÃO ONLINE ASSINCRONICIDADE

ANONIMATO

ACESSIBILIDADEPode facilitar

a interação comdesconhecidose o surgimento

potencial deriscos associados.

Pode levar àperda do senso deindividualidade e responsabilidade

pessoal.

Pode facilitara autopreservaçãoe autorrevelação

dos adolescentes.

Resultado:oportunidades

para aprovaçãoe aceitação social.

Permite queadaptem informaçõesde forma a torná-las

ofensivas e/oudolorosas para um

alvo ou vítima online.

Permite que adolescentes façam mudanças e reflitam

sobre o que escreveram antes de enviar suas

mensagens.

Pode facilitara comunicação

e o compartilhamentode ideias entre pessoas

que pensam de forma similar.

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22 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

ARTIGO DE ATUALIZAÇÃOSARA MOTA BORGES BOTTINOROMAYNE MIRELLE SANTOSBEATRIZ DE CASTILHO MARTINSCAROLINE GOMEZ REGINA

ARTIGOem 2005 para 69,1% em 2011, e o número de usuários da Internet cresceu de 32 milhões em 2005 para 78 milhões, traduzindo um aumento de 20,9 para 46,5% da população13

(Figura 2).Figura 2 - Crescimento do número de internautas

brasileiros com 10 anos ou mais. Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 201113.

O Brasil também é recordista em número de usuários residenciais de Internet: o número de horas gastas mensalmente em conexões residenciais é de 23 horas e 28 minutos, aproximando o Brasil de países como o Japão (21 horas e 34 minutos), França (20 horas e 23 minutos) e EUA (19 horas e 46 minutos)14. Em 2013, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) conduziu um inquérito domiciliar em cinco regiões geográficas brasileiras (zonas urbanas e rurais) com amostras representativas de adolescentes com idades entre 12 e 17 anos (n = 2.002)15. Observou-se que 64% dos adolescentes que utilizavam a Internet acessavam-na todos os dias, 26% uma vez por semana, e 9% acessavam a Internet uma vez ou menos por semana (Figura 3).

Figura 3 - Frequência de uso da Internet por adolescentes

nos últimos 3 meses. Fonte: Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), 201315.

Em relação ao monitoramento do uso da Internet pelos

adolescentes, 54% relataram ter algum acompanhamento dos pais, enquanto 46% não apresentavam nenhuma forma de controle14. A porcentagem de pais que fica por perto quando os adolescentes usam a Internet é de 43%, sendo que 28% deles conferem o histórico das páginas visitadas pelos adolescentes. Esse controle dos pais diminui com o avanço da idade dos adolescentes e é menor nas classes D/E: 58% dos adolescentes da classe A/B recebem algum tipo de controle sobre o que fazem na Internet, comparados a 53% dos entrevistados da classe C e a 43% dos adolescentes da classe D/E14.

Metade dos adolescentes nega a utilização de ferramentas para o bloqueio de informações, permitindo, assim, que suas postagens possam ser visualizadas por qualquer pessoa. Quanto ao bloqueio de pessoas nas redes sociais, 51% dos adolescentes afirmam já ter recorrido a essa ferramenta pelos seguintes motivos: não gostava da pessoa (40%), para evitar o acesso à informação (30%), não gostou do que foi postado (29%), não conhecia a pessoa (24%) e sentiu-se ameaçado (4%). A porcentagem de adolescentes que conhecem pessoas na Internet é de 39%. Entre os adolescentes entrevistados que utilizam as redes sociais, 21% adicionam pessoas desconhecidas16.

abusos da ComunICação onlIne: cyberbullying Os primeiros estudos sobre cyberbullying verificaram se

os três critérios propostos por Olweus17 para o bullying tradicional (intencionalidade, repetição e desequilíbrio de força ou poder) também se aplicavam ao cyberbullying18. A seguir apresentaremos os resultados de pesquisas recentes.

IntencionalidadePesquisas qualitativas realizadas com adolescentes e jovens

consideram que é necessário que o perpetrador tenha a intenção de prejudicar, causar mal ou algum tipo de dano à outra pessoa para que o ato seja considerado como cyberbullying18. Por essa razão, a maioria das definições de cyberbullying considera que o comportamento é hostil e intencional.

RepetiçãoEsse critério é bastante discutido na literatura, considerando

que, no contexto virtual, um único ato agressivo pode levar a um imenso número de repetições da vitimização sem a contribuição do perpetrador. Alguns autores consideram

32 milhões

56 milhões

68 milhões78 milhões

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23Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

ARTIGOque esse critério pode ser menos confi ável, enquanto outros consideram que tanto a repetição como a intenção são elementos cruciais para a classifi cação e caracterização do cyberbullying, e que, caso fossem excluídos, poderiam comprometer a forma como o conceito é interpretado6,19.

Outros autores apontam ainda para uma diferença importante entre o bullying e o cyberbullying, relacionada às difi culdades para supervisionar o espaço virtual e as mensagens enviadas, além das competências dos pais para usar as ferramentas eletrônicas da mesma forma que os adolescentes. Somado a isso, é importante mencionar que boa parte dessas comunicações é feita nos próprios quartos dos fi lhos, onde os adultos nem sempre supervisionam suas atividades20.

Desequilíbrio de força ou poderEsse critério descreve que uma pessoa com mais força

atinge, de alguma forma, outra pessoa com menos força. Entretanto, esse desbalanço de forças não se refere necessariamente a força física ou poder entre o agressor e a vítima, mas de um relacionamento violento entre uma pessoa que tem mais poder e outra que não consegue se defender. Os perpetradores desse tipo de violência virtual não são necessariamente mais fortes, podendo inclusive ser anônimos, e as vítimas podem ou não conhecer o agressor.

Em estudo recente, apenas metade das vítimas de cyberbullying conhecia os agressores19. Os agressores podem desconhecer o sofrimento que estão causando, porque não veem as reações emocionais das vítimas, como, por exemplo, as crises de choro. As cybervítimas, por sua vez, podem não revelar as agressões que estão sofrendo porque têm receio de que seus pais retirem seu acesso à Internet, computadores ou telefones celulares e, consequentemente, fi quem socialmente isolados do contato virtual com os seus amigos. Para Menesini et al.18, o que melhor caracteriza o desequilíbrio de forças é a sensação de impotência para a vítima e suas difi culdades em se defender. A defi nição de desequilíbrio de forças para esses autores é apoiada principalmente nas consequências para as vítimas.

Dois critérios adicionais específi cos foram propostos para o cyberbullying: o anonimato e o público versus privado21.

Anonimato

O anonimato do agressor é uma característica única do cyberbullying e que, segundo alguns autores, aumenta os sentimentos negativos na vítima, como impotência, insegurança e medo. Entretanto, as repercussões na vítima podem ser ainda maiores quando o cyberbullying é realizado por algum amigo ou alguém que ele conhece5,6.

Público versus privadoOs adolescentes consideram o ataque mais grave quando

uma imagem constrangedora é enviada para uma página na Internet e se torna pública, em função do grande potencial de audiência quando comparada ao envio de outras formas de agressão online (mensagens, ameaças, boatos, etc.)5.

Os estudos identifi cam diferentes tipos de cyberbullying, de acordo com a natureza secreta ou aberta dos atos, com os dispositivos eletrônicos utilizados (ou seja, os meios utilizados para intimidar os outros) e, ainda, de acordo com comportamentos específi cos. Nocentini et al.21, utilizando uma lista de comportamentos, propôs uma classifi cação do cyberbullying de acordo com a natureza dos ataques (Figura 4).

Figura 4 - Tipos de cyberbullying de acordo com a natureza dos ataques. Adaptado de Nocentini et al.21.

CYBERBULLYING

Ameaças

Rumores

Piadas

Ofensas

Ligações telefônicas

E-mail

Mensagens de texto

Mensagens instantâneas

Redes sociais

Invadir perfil ouconta online de

outra pessoa paraprejudicá-la

Usar/roubaridentidade para

eexpor informaçõespessoais

Enviar fotosou vídeos dealguém em

situaçãocomprometedora

Realizar montagemcconstrangedorade fotos e vídeossobre alguém emostrar/enviar

para outraspessoas

Excluir alguémde um grupo ouconversa online

sem motivo aparente

Deixar de responderpropositalmente a

alguém em umaalguém em umaconversa online

Escrito-verbal Representação Visual Exclusão

1 Médica assistente, Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP. 2 Acadêmica de Enfermagem (2º ano), Escola Paulista de Enfermagem, UNIFESP, São Paulo, SP. 3 Acadêmica de Medicina (3º ano), Escola Paulista de Medicina e Escola Paulista de Enfermagem, UNIFESP, São Paulo, SP.

SARA MOTA BORGES BOTTINO1, ROMAYNE MIRELLE SANTOS2, BEATRIZ DE CASTILHO MARTINS2, CAROLINE GOMEZ REGINA3

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24 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

PrevalênCIa e fatores assoCIados ao cyberbullying

Na revisão sistemática realizada pelos autores para avaliar a associação entre o cyberbullying e problemas de saúde mental entre adolescentes com idades entre 10 e 17 anos, a prevalência do cyberbullying variou entre 6,5 e 35,4%. Histórico de experiências prévias ou atuais de bullying tradicional associou-se ao cyberbullying tanto entre vítimas (cybervítimas) quanto entre agressores (cyberbullies). Os fatores de risco para cybervitimização foram os seguintes: idade entre 10 e 12 anos, uso diário de 3 ou mais horas de Internet, uso de mensagens instantâneas, postagem de informações pessoais, utilização de webcam e prática de assédio online8. Os seguintes fatores associaram-se aos cyberbullies: dores de cabeça, níveis elevados de dificuldades percebidas, não se sentirem seguros na escola e não se sentirem cuidados pelos professores, problemas de conduta, hiperatividade, tabagismo, embriaguez frequente e comportamento pró-social reduzido. Finalmente, todos esses fatores de risco mencionados estavam presentes naqueles que relataram experiências como cyberbullies e cybervítimas.

rePerCussões do cyberbullying na saúde mental dos adolesCentes

As respostas emocionais dos adolescentes a um incidente de cyberbullying variam na intensidade e na qualidade da emoção. Entretanto, o impacto emocional é prejudicial para a maioria das vítimas, que experimentam várias emoções negativas ao mesmo tempo. A raiva foi a emoção mais relatada por adolescentes da Inglaterra, Itália e Espanha no estudo multicêntrico que avaliou o impacto emocional de diferentes formas de cyberbullying22. Situações como “postaram coisas a meu respeito que eu não queria que ninguém soubesse” prejudicam a reputação da vítima, humilham-na publicamente ou danificam suas amizades e status social em uma fase da vida em que o grupo social desempenha um papel importante na formação da identidade.

A raiva é considerada uma reação à violação da autonomia e ao desrespeito aos direitos e liberdades do indivíduo, e serve para facilitar uma resposta vigorosa quando uma ação tem impacto negativo sobre o self – é, portanto, uma reação considerada saudável. Nesse mesmo estudo, 20-30% dos adolescentes não se importaram com os incidentes, e 5,9% foram considerados vítimas fortemente afetadas porque apresentaram várias emoções negativas ao mesmo tempo, como raiva, estresse, preocupação, medo e, principalmente, “se sentiam deprimidos”22.

ARTIGO DE ATUALIZAÇÃOSARA MOTA BORGES BOTTINOROMAYNE MIRELLE SANTOSBEATRIZ DE CASTILHO MARTINSCAROLINE GOMEZ REGINA

ARTIGOAdolescentes que relataram experiências com

cyberbullying, quando comparadas com outras formas de bullying, apresentaram sintomatologia depressiva mais grave, principalmente aqueles que sofreram ataques frequentes (duas ou mais vezes no mês)23. Em vários estudos, o risco de cybervitimização é maior entre aqueles que sofreram bullying tradicional, sugerindo uma continuidade e sobreposição entre o cyberbullying e o bullying escolar. O espaço virtual poderia ser considerado uma extensão do ambiente escolar para as agressões ocorrerem. Tanto os cyberbullies como as cybervítimas relataram mais experiências com bullying escolar, tanto como bullies como também como vítimas de bullying escolar.

As cybervítimas podem sofrer ataques anônimos e ter suas fotos com montagens visualizadas de forma instantânea nas redes sociais. Os estudos ressaltam que algumas características das agressões online, como agressões realizadas de forma anônima por adulto do mesmo sexo ou do sexo oposto e agressões realizadas por uma pessoa desconhecida ou por um grupo de pessoas desconhecidas, associam-se ao aumento da sensação de medo e insegurança entre as vítimas. Situações de agressão online ocorrem ou são passíveis de ocorrer durante todo o dia, na própria casa das vítimas, um ambiente considerado seguro. A maioria dos adolescentes não conta o incidente para os adultos, e a principal razão relatada por eles para essa atitude é: “porque precisam aprender a lidar com seus problemas por si mesmos” (50%), além de terem receio de que os pais restrinjam seu acesso à Internet (31%) e de que fiquem socialmente isolados5.

Os sentimentos de desamparo e impotência para se defender do ataque podem aumentar a sensação de medo e sofrimento emocional, assim como o surgimento da sintomatologia depressiva. Os resultados dos estudos sobre a associação entre bullying, cyberbullying e sintomatologia depressiva sugerem que esses fenômenos ocorrem de forma bidirecional. Adolescentes que apresentavam sintomatologia depressiva mais grave tinham três vezes mais chances de relatar cyberbullying do que aqueles com sintomatologia leve ou ausente8. As alterações cognitivas e o humor depressivo podem alterar a percepção, o que, somado à ausência de pistas sociais, como volume e tom de voz nas comunicações online, resultam em interpretações negativas por parte dos adolescentes deprimidos, que podem ser mais propensos a perceber uma situação como ameaçadora.

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25Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

ARTIGOAlém dos sintomas depressivos, o cyberbullying pode

apresentar desfechos ainda mais devastadores para a saúde mental dos adolescentes, como o abuso de substâncias e o aumento da ideação suicida e das tentativas de suicídio24. O estudo de Hinduja & Patching demonstrou que tanto vítimas como ofensores apresentam até duas vezes mais chances de realizar tentativas de suicídio quando comparados com adolescentes que não estiveram envolvidos com cyberbullying25. A experiência com cyberbullying em si mesma não induz ao suicídio, porém os adolescentes que sofrem cyberbullying podem experimentar estados psicológicos negativos decorrentes das ações do cyberbullying e usar o álcool ou outras drogas como um meio de lidar com afetos negativos – uma explicação que está de acordo com pesquisas sobre a etiologia do consumo de substâncias na adolescência. O abuso de substâncias pode ainda contribuir para a habituação à dor física e à ansiedade psicológica associadas com a automutilação. Especifi camente, o abuso de substâncias pode encorajar adolescentes com ideação suicida, incentivando comportamentos de automutilação, diminuindo a inibição e exacerbando humores negativos preexistentes26. O modelo apresentado na Figura 5 ilustra como o uso de drogas e o comportamento violento medeiam a relação entre o cyberbullying, o bullying físico e os comportamentos suicidas em adolescentes24.

Figura 5 - Relação entre uso de drogas, comportamento violento, cyberbullying, bullying físico e comportamentos suicidas em adolescentes. Adaptado de Litwiller & Brausch24.

modelos de Prevenção do cyberbullying e a eXPerIênCIa dos alunos da unIfesP em esColas PúblICas de são Paulo

Desde o ano passado, estudantes de Medicina e Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) que participam da Liga Acadêmica de Prevenção e Intervenção à Violência (LAPIV), do Departamento de

Cyberbullying

Cyberbullying

Conduta violenta

Conduta suicida

Conduta suicida

Uso de substâncias

Psiquiatria, com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão, desenvolvem um programa intitulado Prevenção da Violência nos Meios de Comunicação Eletrônica entre Adolescentes da Rede Pública de São Paulo. Esse projeto de prevenção do cyberbullying promove grupos de discussão com os adolescentes, enfatizando a importância do uso das mídias eletrônicas para o conhecimento e também para a interação social, assegurando as vantagens e a importância do uso crítico e consciente dessas mídias, prevenindo o “abuso” que caracteriza a violência. Para isso, são discutidas as proporções que as agressões online alcançam e suas repercussões negativas, mesmo quando não houve intenção do autor. Os riscos da exposição pessoal indiscriminada também são discutidos com os adolescentes, bem como o potencial de audiência que tais mídias detêm, considerando que o espaço virtual é de livre expressão e que as publicações fi cam registradas e são passíveis de serem acessadas por um grande contingente de pessoas, além das difi culdades para retirar essas publicações dos sites. Essas estratégias de prevenção pretendem que os adolescentes possam reavaliar a forma como utilizam essas mídias, suas atitudes e comportamentos relacionados à publicação online (fotos, vídeos e textos)26-28.

ConClusões

A comunicação online se tornou uma peça central na vida social dos adolescentes, oferecendo muitas oportunidades para o desenvolvimento psicossocial e a construção de re-lacionamentos íntimos. Entretanto, podem ocorrer situações de violência nessas interações, como o cyberbullying. Estra-tégias de prevenção devem ser promovidas para melhorar as habilidades interpessoais dos jovens que escolhem se comunicar por meio de ferramentas online, de forma que evitem comportamentos de risco na Internet, como postar informações pessoais, enviar fotos pessoais e utilizar webcam com estranhos, práticas que podem aumentar o potencial de incidentes do tipo cyberbullying. Os pais, os educadores e os profi ssionais de saúde necessitam conhecer os riscos da comunicação online e promover discussões sobre o tema, auxiliando os adolescentes a encontrar formas efetivas de li-dar com esses incidentes.

AgradecimentosAo Departamento de Psiquiatria e à Pró-Reitoria de Ex-

tensão da UNIFESP, pelo apoio e incentivo à realização do trabalho, e aos alunos da LAPIV, pela participação no modelo

1 Médica assistente, Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP. 2 Acadêmica de Enfermagem (2º ano), Escola Paulista de Enfermagem, UNIFESP, São Paulo, SP. 3 Acadêmica de Medicina (3º ano), Escola Paulista de Medicina e Escola Paulista de Enfermagem, UNIFESP, São Paulo, SP.

SARA MOTA BORGES BOTTINO1, ROMAYNE MIRELLE SANTOS2, BEATRIZ DE CASTILHO MARTINS2, CAROLINE GOMEZ REGINA3

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26 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

ARTIGO DE ATUALIZAÇÃOSARA MOTA BORGES BOTTINOROMAYNE MIRELLE SANTOSBEATRIZ DE CASTILHO MARTINSCAROLINE GOMEZ REGINA

ARTIGOde prevenção do cyberbullying entre adolescentes da rede pública de São Paulo.

Os autores informam não haver conflitos de interesse as-sociados à publicação deste artigo.

Fontes de financiamento inexistentes.Correspondência: Sara Mota Borges Bottino, Rua Ca-

pote Valente, 432, cj 62, CEP 05409-001, São Paulo, SP. Tel.: (11) 3898.0580. E-mail: [email protected]

Referências

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27Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

ARTIGOavaproject.org.uk/media/28482/mobile_bullying_report.pdf

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1 Médica assistente, Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP. 2 Acadêmica de Enfermagem (2º ano), Escola Paulista de Enfermagem, UNIFESP, São Paulo, SP. 3 Acadêmica de Medicina (3º ano), Escola Paulista de Medicina e Escola Paulista de Enfermagem, UNIFESP, São Paulo, SP.

SARA MOTA BORGES BOTTINO1, ROMAYNE MIRELLE SANTOS2, BEATRIZ DE CASTILHO MARTINS2, CAROLINE GOMEZ REGINA3

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28 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

COMUNICAÇÃO BREVEROGÉRIO R. ZIMPELBRUNO PAZ MOSQUEIRONEUSA SICA DA ROCHA

ARTIGOESPIRITUALIDADE COMO MECANISMO DE COPING EM TRANSTORNOS MENTAIS

SPIRITUALITY AS A COPING MECHANISM IN MENTAL DISORDERS

ResumoHá um crescente interesse no estudo das relações entre

espiritualidade e saúde. Estudos empíricos destacam o pa-pel protetor da espiritualidade na prevenção de depressão, transtornos de ansiedade, uso de substâncias, diminuição do risco de suicídio, promoção de bem-estar e qualidade de vida, além de resiliência em situações de adversidade, trau-mas e estresse agudo ou crônico. No entanto, mais estudos são necessários para que se possa entender como ocorre a associação entre espiritualidade e saúde em diferentes con-textos clínicos e, assim, contribuir para o avanço do entendi-mento desse tema complexo.

Palavras-chave: Espiritualidade, enfrentamento, saúde, transtornos mentais.

Abstract There has been a growing interest in the study of the re-

lationships between spirituality and health. Empirical studies have highlighted the protective role of spirituality in preven-ting depression, anxiety disorders, substance use, decreasing suicide risk, promoting well-being and quality of life, in addi-tion to resilience in cases of adverse events, trauma, and acu-te or chronic stress. However, more studies are needed to better understand the relationship between spirituality and health in different clinical settings, and thus contribute to ad-vance the understanding of this complex topic.

Keywords: Spirituality, coping, health, mental disorders.

Introdução

A partir das últimas décadas do século XX, aumentou o interesse em compreender as relações entre espiritualida-de/religiosidade e saúde1. Desde então, houve um aumento

considerável de publicações científicas indicando associação entre essas variáveis. O número de publicações sobre o tema nesse início do século XXI já superou o total de ma-teriais publicados em todo o século XX2.

Espiritualidade e religiosidade são conceitos afins, mas que não se sobrepõem completamente. Koenig salienta a relação dos termos com a busca do sagrado, definindo como religiosidade quando essa busca ocorre em um sis-tema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos delineados para facilitar a proximidade com o sagrado e o transcendente (Deus ou Ser Superior). Já o termo espi-ritualidade, segundo o mesmo autor, caracteriza-se como uma busca pessoal para questões existenciais, significado da vida e relação com o sagrado ou transcendente – busca esta que pode (ou não) levar ao desenvolvimento de rituais religiosos e à formação de uma comunidade2. No entanto, muitos artigos usam a palavra espiritualidade englobando os dois conceitos, para facilitar ao leitor – critério que também será adotado doravante neste texto.

Diferentes variáveis têm sido utilizadas para estudar a espiritualidade, como afiliação religiosa, prática de ritos, oração, entre outras. Essas variáveis indicam o peso que a dimensão espiritual ocupa na vida da pessoa e possibilitam que o rigor metodológico indique se há ou não associação com saúde. Há um número já considerável de estudos que apontam para associação entre espiritualidade e saúde. Ko-enig, referência no assunto, afirma que “as pesquisas que estão sendo publicadas em revistas médicas com revisão de pares, de saúde pública, sociologia, psicologia, enferma-gem, assistência social e ciência da reabilitação, apontam que existem relações entre envolvimento religioso e saúde física e mental”2.

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29Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

ARTIGO1 Doutorando, Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas: Psiquiatria, Universidade Federal

do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS. Associado, Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cris-

tãos (CPPC). 2 Mestrando, Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas: Psiquiatria, UFRGS,

Porto Alegre, RS. Associado, Núcleo de Psiquiatria e Espiritualidade da Associação de Psiquiatria do

Rio Grande do Sul (NUPE-APRS), Porto Alegre, RS. Associado, Associação Médico-Espírita do Rio

Grande do Sul (AMERGS). 3 Professora, Faculdade de Medicina, UFRGS, Porto Alegre, RS.

ROGÉRIO R. ZIMPEL1, BRUNO PAZ MOSQUEIRO2, NEUSA SICA DA ROCHA3

A compreensão das relações entre espiritualidade e saúde mental representa um desafi o para a psiquiatria3. Descrições teóricas na primeira metade do século XX abordam predomi-nantemente as relações da religiosidade com a psicopatologia3. Nas últimas décadas, no entanto, estudos empíricos destacam o papel protetor da religiosidade e espiritualidade na preven-ção de depressão, transtornos de ansiedade, uso de substân-cias, diminuição do risco de suicídio, promoção de bem-estar e qualidade de vida4,5.

esPIrItualIdade e resIlIênCIa

Uma das formas recentes de abordagem da religiosidade/espiritualidade em saúde mental é quanto à sua capacidade de promover resiliência em situações de adversidade, traumas e estresse agudo ou crônico. Conforme Cyrulnik, “momentos de sofrimento e tormenta podem levar à contemplação de um futuro ou sentido espiritual para existência”6. Crianças so-breviventes e resilientes após adversidades demonstram uma capacidade de encontrar sentido, discurso e signifi cado para o sofrimento6.

Após os atentados terroristas de 11 de setembro nos Es-tados Unidos, por exemplo, a religiosidade representou a segunda estratégia de coping mais utilizada para lidar com o estresse, estando presente em 90% dos indivíduos entrevis-tados7. Além disso, estudos identifi cam a espiritualidade como fator independente na promoção de resiliência em pacientes com depressão e ansiedade7. Em um seguimento de 10 anos de indivíduos com alto risco para depressão, aqueles que atri-buíam maior importância pessoal à religiosidade/espiritualida-de apresentavam risco de depressão 10 vezes menor quando comparados a indivíduos que atribuíam menor importância à religiosidade/espiritualidade.

Ao mesmo tempo, ambientes sociais com normas rígidas, infl exíveis, condenatórias também representam a possibilidade de criar novos traumas e sofrimentos6. Estratégias de coping religioso/espiritual negativo podem aumentar o sofrimento psíquico e difi cultar os processos de resiliência diante de ad-versidades, reforçando a importância do estudo do tema e a abordagem compreensiva junto ao paciente na prática clínica8.

a esPIrItualIdade Como meCanIsmo de cOPing nos transtornos mentaIs: o eXemPlo do transtorno do PÂnICo

O papel da espiritualidade como estratégia de enfrentamen-to do transtorno do pânico ainda é pouco estudado. O trans-

torno do pânico é uma enfermidade mental grave, associada a grande morbidade e prejuízo da qualidade de vida. O trans-torno do pânico tem um curso crônico e recorrente, sendo que a remissão pode ser apenas parcial, e recaídas podem acontecer mesmo após anos de tratamento. Pelas característi-cas clínicas do transtorno do pânico, o paciente apresenta um intenso medo da morte durante a crise, a qual é vivenciada como uma situação extrema do ponto de vista de estresse psí-quico, confi gurando uma condição interessante para avaliar se a dimensão da espiritualidade pode auxiliar no enfrentamento (coping, em inglês) dessa enfermidade.

Em uma busca no site PubMed com os termos “spiritual coping” AND “panic disorder”, não se obteve nenhum arti-go. Com as palavras “religious coping” AND “panic disorder”, apenas dois artigos foram encontrados. No primeiro deles9, os autores acompanharam sobreviventes nos 3 meses poste-riores ao terremoto e tsunami de 2004 nas Ilhas Andamão e Nicobar, na Índia. A morbidade psiquiátrica foi de 5,2% entre os sobreviventes desabrigados, com predomínio dos diagnós-ticos de transtorno do pânico e transtorno de ansiedade não especifi cado, além de queixas somáticas. Entre os sobreviven-tes não desabrigados, a morbidade psiquiátrica atingiu preva-lência de 2,8%, sendo que o diagnóstico mais frequente foi o de transtorno de ajustamento. Os dois grupos apresentaram distribuição equivalente de depressão e transtorno de estres-se pós-traumático. Os autores concluíram que, além das estru-turas familiar e comunitária, o suporte religioso/espiritual teve papel importante para o coping na primeira fase após o desas-tre. No segundo artigo10, os autores estudaram os correlatos clínicos do pensamento suicida em 700 pacientes com câncer avançado. Dentre eles, 62 (8,9%) reportaram pensamento suicida. Análises ajustadas revelaram as características que aumentavam a probabilidade de pensar em suicídio, a saber: preencher critérios para transtorno do pânico [odds ratio ajus-tada de 3.24 (intervalo de confi ança de 95%: 1,01-10,4)], pre-encher critérios para transtorno de estresse pós-traumático [3.97 (1,13-14,1)], e apresentar baixos escores de religiosidade/espiritualidade, medida pela Escala de Experiências Espirituais Diárias, composta por 13 itens.

ConClusão

As estratégias de coping religioso-espiritual podem ser tan-to positivas como negativas. Dependendo de sua natureza, elas podem estar a serviço de um reforço da resiliência ou de uma difi culdade maior no enfrentamento das adversidades.

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30 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

COMUNICAÇÃO BREVEROGÉRIO R. ZIMPELBRUNO PAZ MOSQUEIRONEUSA SICA DA ROCHA

ARTIGOHá algumas décadas pensava-se que a espiritualidade estaria sempre associada à psicopatologia. As evidências atuais – em que pese as muitas dúvidas – parecem sinalizar que não ne-cessariamente esse é o caso. Esse novo entendimento pode ser útil na prática clínica.

Koenig entende que a base das evidências sobre associação entre espiritualidade e saúde já é consistente e que o atual desafio nesse campo é entender melhor como essa associa-ção ocorre. O autor sugere que “um número muito maior de pesquisas é necessário para entender como essas relações operam e se são causais, ou seja, se o envolvimento religioso realmente melhora a saúde”2. Estudar a relação da espiritua-lidade com o coping, resiliência e outros aspectos envolvidos na adesão e resposta aos tratamentos pode trazer luz à essa reflexão.

Nessa direção, são necessários mais estudos que visem en-tender melhor o papel da espiritualidade em diferentes con-textos clínicos. Com esse propósito, os autores do presente artigo desenvolvem pesquisas em pacientes ambulatoriais diagnosticados com transtorno do pânico e em pacientes hospitalizados com doença mental grave. Desta forma, espe-ra-se contribuir para o avanço do complexo entendimento sobre os temas espiritualidade e saúde.

Os autores informam não haver conflitos de interesse as-sociados à publicação deste artigo.

Fontes de financiamento inexistentes.Correspondência: Rogério R. Zimpel, Av. Protásio Alves,

1281/204, CEP 90410-001, Porto Alegre, RS. Tel.: (51) 3332.3542, Fax: (51) 3308.5628. E-mail: [email protected]

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31Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

ARTIGO

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32 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

RELATORELATORELATO DE CASOMIRIAN PEZZINI DOS SANTOSLIDIANE DOTTA GUARIENTIPEDRO PAIM SANTOSEDUARDO FERREIRA DAURA ADRIANA DENISE DAL’PIZOL

TRANSTORNO DISSOCIATIVO DE IDENTIDADE (MÚLTIPLAS PERSONALIDADES): RELATO E ESTUDO DE CASO

DISSOCIATIVE IDENTITY DISORDER (MULTIPLE PERSONALITIES): CASE REPORT AND STUDY

ResumoNa prática clínica, deparamo-nos com um grande número

de pacientes vítimas de violência, sobretudo durante fases precoces do desenvolvimento, uma das causas centrais na etiologia dos transtornos dissociativos (ou transtorno de estresse pós-traumático complexo). Este artigo descreve o caso de um paciente diagnosticado com transtorno disso-ciativo de identidade após permanecer sintomático por 10 anos e comenta sobre o manejo e os desafios no tratamento desses pacientes.

Palavras-chave: Transtorno dissociativo, múltiplas per-sonalidades, transtorno dissociativo de identidade.

Abstract In clinical practice we are often faced with patients who are

victims of violence, especially in early developmental stages, which is a major cause of dissociative disorders (or complex posttraumatic stress disorder). This article describes the case of a patient diagnosed with dissociative identity disorder after being symptomatic for 10 years, and comments on the clini-cal management and challenges involved in the treatment of these patients.

Keywords: Dissociative disorder, multiple personalities, dissociative identity disorder.

Introdução

O indivíduo humano não é unitário nem internamente con-sistente, mas complexo, contraditório e dividido. Em alguns casos, essas atitudes contraditórias e os comportamentos podem se tornar incompatíveis, ameaçando a estabilidade e a integridade da personalidade. Em raras ocasiões, a estabili-dade somente pode ser preservada por uma dissociação ou

por uma separação da personalidade em subunidades mais estáveis1. Na prática clínica, deparamo-nos com pacientes que desafiam tanto a nossa experiência e conhecimento téc-nico quanto as convenções de enquadramento diagnóstico.

Após décadas de relativa negligência, devido principalmen-te à desconsideração dos efeitos das experiências traumáti-cas da vida real na psicopatologia e na psicoterapia, há um au-mento de interesse no estudo dos transtornos dissociativos2. O transtorno protótipo da categoria (transtorno dissociativo de identidade, TDI) é tema de controvérsia particular. Esse diagnóstico é feito na América do Norte com certa frequ-ência, enquanto que na Europa sua avaliação é discutível, e muitos casos clínicos publicados são considerados como pro-dutos artificiais2.

Os transtornos dissociativos podem ser encarados como tipos muito complexos do transtorno de estresse pós-trau-mático, começando na infância e se tornando crônicos du-rante toda a adolescência e vida adulta. Muitas dimensões diferentes da experiência do self são afetadas, já que o trau-ma é impingido durante os anos fundamentais do desenvol-vimento.

O trauma produz uma dissociação, que é uma desconti-nuidade da experiência (consciência) e da memória. Tais pro-cessos psíquicos inicialmente podem funcionar como defesas adaptativas, preservando o ego do aniquilamento. Com o tempo, segundo Gabbard et al.2, a dissociação distorce o desenvolvimento da personalidade e a integração contínua de vivências, autopercepções e percepção das emoções das outras pessoas, obliterando o desenvolvimento da capacida-de de mentalização (desenvolvimento de habilidades meta-cognitivas que permitem a reflexão crítica sobre o próprio estado da mente ou das outras pessoas).

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33Mar/Abr 2015 - revista debates em psiquiatria

RELATORELATOMIRIAN PEZZINI DOS SANTOS1, LIDIANE DOTTA GUARIENTI2, PEDRO PAIM SANTOS3,

EDUARDO FERREIRA DAURA4, ADRIANA DENISE DAL’PIZOL2

1 Consultório particular, Passo Fundo, RS. 2 Consultório particular, Porto Alegre, RS. 3 Consultório particular, São Paulo, SP. 4 Hospital Psiquiátrico São Pedro, Porto Alegre, RS.

Por vezes, a dissociação também facilita a perpetuação de uma hiperexcitação autonômica via hipófi se-hipotálamo-su-prarrenal, através da evocação da memória traumática em resposta a estímulos remanescentes ao trauma, criando, as-sim, sucessivos microtraumas3.

Os alters (estados dissociativos) passam a assumir partes do confl ito interno, resultando em estados do ego com di-ferentes identidades e desempenhando funções executivas distintas de acordo com as demandas internas e os estímulos externos.

Segundo a 4ª edição revisada do Manual Diagnóstico e Es-tatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), o TDI é carac-terizado pela presença de duas ou mais identidades distintas ou estados de personalidade que recorrentemente assumem o controle do comportamento do indivíduo, acompanhado de uma incapacidade de recordar informações pessoais im-portantes, cuja extensão é demasiadamente abrangente para ser explicada pelo esquecimento normal4.

O interesse norte-americano pelos transtornos dissociati-vos surge no início dos anos 1980, pois tanto o TDI quanto os transtornos dissociativos em geral não são patologias inco-muns. Nos estudos de população geral, a taxa de prevalência de TDI é de 1 a 3% da população descrita5. Outros estudos relatam uma prevalência ao longo da vida de aproximada-mente 10%, sendo o TDI responsável por aproximadamente 1% deles.

O diagnóstico de TDI está associado quase universalmen-te com uma história prévia de trauma mais signifi cativo, que ocorre frequentemente na infância. Estudos sistemáticos que examinaram a história de trauma de pacientes com TDI en-contraram uma taxa mais elevada de traumatismo na infância nesses pacientes quando comparados com qualquer outro grupo clínico. Logo, o processo diagnóstico deve incluir uma possível história de trauma, sendo muito comum história de abuso sexual ou outros tipos de abuso5.

A grande maioria dos casos tem histórias psiquiátricas complexas e longas. O intervalo médio entre as primeiras apresentações e o diagnóstico psiquiátrico de TDI é de 7 anos. Sete estudos incluindo o total de 719 pacientes com TDI mostraram que estes permaneceram por 5 a 11 anos no sistema de saúde mental antes de terem o diagnóstico corre-to de TDI5. Durante esse tempo, os pacientes apresentaram uma grande variedade de sintomas psiquiátricos e físicos, in-cluindo depressão, ansiedade, alucinações auditivas e visuais, transtornos alimentares e queixas somáticas1.

Diferentemente de outros transtornos do trauma, como, por exemplo, o transtorno de estresse pós-traumático, o transtorno de ansiedade generalizada e a fobia social, que apresentam uma diminuição volumétrica da amígdala e do hipocampo, com comprometimento cognitivo, os pacientes com TDI não apresentam tais alterações, sugerindo uma hi-pótese neurobiológica diferenciada6. Outro estudo avaliou a perfusão vascular nos pacientes com TDI em comparação com um grupo controle. O resultado foi que os pacientes com essa patologia apresentavam uma hipoperfusão orbito-frontal bilateral, e também uma hiperperfusão nas regiões frontal superior e mediana e na região occipital bilateral, o que leva a crer que a fi siopatologia da doença estaria na inte-ração anômala dessas regiões7.

Em termos de prevalência, em média 92% dos casos são mulheres, com idade média no diagnóstico de 31 anos e um número médio de 13 personalidades. Em 85% dos casos, uma das personalidades é de criança. Muitas personalidades são autodestrutivas, violentas, criminosas ou desinibidas se-xualmente1.

De acordo com um estudo holandês que avaliou a frequên-cia de transtornos dissociativos em internações psiquiátricas, 8% dos pacientes apresentavam essas patologias, e 2% do total apresentavam TDI, correspondendo à média relatada em estudos europeus, porém menor do que as taxas norte--americanas8. Outro estudo americano procurou avaliar as taxas de TDI em pacientes psiquiátricos ambulatoriais, e a porcentagem foi de 6% do total, sendo que 29% apresenta-vam algum tipo de transtorno dissociativo9.

O diagnóstico diferencial em adultos inclui comorbidades como transtorno de somatização, transtorno de estresse pós-traumático, convulsões e amnésia. Pseudoconvulsões e os fenômenos de conversão são processos psicológicos simi-lares aos transtornos dissociativos. Esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtornos de humor bipolar e unipolar de-vem ser igualmente excluídos. De fato, os sintomas disso-ciativos, os transtornos dissociativos não especifi cados e o TDI podem todos ocorrer na presença desses diagnósticos10. Finalmente, as populações abusadoras de substância são co-nhecidas por terem altos níveis de experiências dissociativas, e o abuso de substância é elevado entre pacientes com TDI10.

No contexto psiquiátrico brasileiro, não estão disponíveis instrumentos específi cos para a detecção e quantifi cação dos sintomas dissociativos. No entanto, diretrizes internacionais estabelecem como condição sine qua non para o diagnóstico

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34 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

RELATORELATORELATO DE CASO

de TDI o uso de entrevistas diagnósticas que inquiram sobre dissociação, suplementadas, quando necessário, por instru-mentos selecionados e por entrevistas estruturadas que ava-liem a presença ou ausência de sintomas dissociativos5.

Fiszman et al. apresentam as etapas de tradução e adap-tação para a língua portuguesa do instrumento Dissociative Experiences Scale (DES), o questionário mais utilizado para o rastreamento e a quantificação dos sintomas dissociativos. Apesar de a escala não ser utilizada como instrumento diag-nóstico, o escore de 30 é considerado o ponto de corte acima do qual se pode identificar os pacientes com transtornos dis-sociativos. Numa investigação dos autores da DES, 74% dos pacientes com TDI e 80% daqueles com outro transtorno dis-sociativo foram corretamente identificados por esse ponto de corte11.

Em sua recente publicação, a saber, o DSM-5, a Associação Americana de Psiquiatria manteve o TDI como uma patologia diagnóstica. E manteve, também, os mesmos critérios diagnós-ticos12:

- Ruptura da identidade, caracterizada pela presença de dois ou mais estados de personalidade distintos, descrita em algumas culturas como uma experiência de possessão. A ruptura da identidade envolve descontinuidade acentuada no senso de si mesmo e no domínio das próprias ações, acompa-nhada por alterações relacionadas no afeto, no comportamen-to, na consciência, na memória, na percepção, na cognição e/ou no funcionamento sensório-motor. Esses sinais e sintomas podem ser observados por outros ou relatados pelo indivíduo.

- Lacunas recorrentes na recordação de eventos coti-dianos, informações pessoais importantes e/ou eventos trau-máticos que são incompatíveis com o esquecimento comum.

-Os sintomas causam um sofrimento clinicamente signi-ficativo e prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

- A perturbação não é parte normal de uma prática religiosa ou cultural amplamente aceita. Em crianças, os sinto-mas não são bem explicados por amigos imaginários ou outros jogos de fantasia.

- Os sintomas não são atribuíveis aos efeitos fisiológicos de uma substância (por exemplo, apagões ou comportamento caótico durante intoxicação alcóolica) ou a outra condição mé-dica (por exemplo, convulsões parciais complexas).

O presente artigo visa descrever e discutir o caso de um paciente com diagnóstico de TDI.

relato de Caso

Paciente do sexo masculino, 24 anos, natural e proceden-te do interior do estado do Rio Grande do Sul, solteiro, sem religião, com 1º ano do Ensino Médio completo, atual-mente recebe benefício devido a doença psiquiátrica. Teve quatro internações prévias neste hospital e outras interna-ções na região de sua cidade natal.

O paciente foi internado no último mês devido ao abu-so de substâncias e risco de exposição, pois se encontrava na rua, prostituindo-se para comprar drogas. Encaminhado pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de sua cidade, o paciente foi internado no Hospital Psiquiátrico São Pedro, na unidade Mario Martins Masculina.

Na primeira entrevista, o paciente relata que pediu para ser internado, pois seus “13 amigos” estavam lhe atormen-tando muito. Devido a isso, voltou a fazer uso de maconha e cocaína para tentar esquecê-los, não ouvi-los nem vê-los. Esses 13 “personagens” o acompanham há 10 anos. Usa o pronome “nós” para referir-se a si próprio e frequente-mente refere-se aos 13, ora de forma contraditória, como amigos, ora como demônios.

Diz que, desde 1999, seus 13 personagens fazem uso de seu corpo, eventualmente assumindo seus atos. O paciente diz não recordar muitos fatos ocorridos em sua vida, situ-ações que pensa terem sido vivenciadas por “eles”. Apre-senta muito sofrimento em relação a isso, pois as pessoas à sua volta lhe chamam de mentiroso e dissimulado. Relata episódios de esquecimento, como perceber estar em algum lugar e não recordar como chegou lá e, ainda, episódios em que se descobriu usando roupas estranhas ou estando com pessoas que não lembrava conhecer.

O paciente também apresenta dificuldades de lembrar episódios de sua vida, principalmente os relacionados à sua infância e adolescência. Indica períodos em que ficou absti-nente de drogas; nesses intervalos, mantinha presentes suas 13 personalidades. Justifica o uso de drogas para esquecê--los. O paciente também possuía história prévia de tentati-vas de suicídio e apresentava características de personalida-de borderline e traços de personalidade histriônica, ambos evidenciados na atual internação e também diagnosticados previamente.

O paciente já esteve internado muitas vezes, sendo que nenhuma internação foi efetiva. Além disso, nenhuma me-dicação que tenha usado fez com que seus 13 personagens

MIRIAN PEZZINI DOS SANTOSLIDIANE DOTTA GUARIENTIPEDRO PAIM SANTOSEDUARDO FERREIRA DAURA ADRIANA DENISE DAL’PIZOL

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EDUARDO FERREIRA DAURA4, ADRIANA DENISE DAL’PIZOL2

1 Consultório particular, Passo Fundo, RS. 2 Consultório particular, Porto Alegre, RS. 3 Consultório particular, São Paulo, SP. 4 Hospital Psiquiátrico São Pedro, Porto Alegre, RS.

fossem embora. Fez, inclusive, sessões de eletroconvulso-terapia. Diz já ter passado pela avaliação de 17 psiquiatras, também sem resultado.

O paciente já teve vários empregos, como, por exemplo, vendedor de roupas, padeiro, pedreiro, músico, vendedor de joias, até que acabou se envolvendo com tráfi co de drogas e prostituição. Nunca conseguiu se manter fi xo em algum ser-viço, pois “eles” o atrapalhavam. O paciente também estava tentando frequentar a escola e o CAPS de sua cidade, porém com difi culdades de adesão. Após uma decepção amorosa, piorou, voltou a usar drogas e então foi internado.

Atualmente mora com a mãe, a irmã e seu padrasto, po-rém já fi cou em situação de rua e já morou com o pai. Quan-do criança, presenciou muitas brigas em casa, com história de maus-tratos pelo pai, o qual é dependente de múltiplas drogas. Sua mãe já trabalhou como prostituta, fazendo pro-gramas inclusive em casa. Aos 8 anos, o paciente foi abusado sexualmente por um tio materno e também sofreu abuso sexual na escola. Aos 14 anos, foi morar com o pai, período de muito estresse e brigas entre os dois, com ameaças de morte por parte do pai. Nesse período, o paciente começou a se prostituir e a abusar de substâncias. Após desentendi-mentos com o pai, fi cou alguns meses em situação de rua, já que a mãe havia mudado de endereço e perdido contato com o paciente.

Durante a internação, principalmente em situações de ansiedade, ao falar de seu passado, ou em consultas mais demoradas, o paciente apresentava episódios característicos de dissociação, em que mudava bruscamente o tom de voz, a fi sionomia do rosto, o modo de falar e respondia como sendo outra pessoa, sempre um dos 13 personagens. Nessas mudanças de personalidade, as quais, às vezes, eram acom-panhadas por piscadas rápidas dos olhos, foram identifi cadas 13 personalidades de diferentes idades e características. Três delas eram mulheres, sendo uma adolescente de 13 anos (Luci), que era triste e só chorava; uma criança de 7 anos (a personalidade que aparecia com maior frequência, Lalinha), a qual era fi lha de dois dos seus personagens (Lalinha dizia-se uma criança carente, que não recebia apoio ou carinho por parte dos pais); e a terceira personalidade do sexo feminino, Gata Negra, uma mulher adulta, sedutora e hipersexualizada (nesses momentos, o paciente dizia-se homossexual e adqui-ria trejeitos claramente afeminados).

As outras 10 personalidades eram masculinas, sendo em

geral irritadas, amarguradas e “do mal”, com nomes como Ratos, Carnéver e Abutre – todos nomes sugestivos de coi-sas assustadoras e que, por vezes, lembravam personagens de fi lmes. Uma dessas personalidades era a mais agressiva (Ratos), com muita raiva e ódio, a qual, segundo o paciente e um familiar, já havia agredido fi sicamente outras pessoas. Ou-tra personalidade era inteligente, sensata, “controlava” as ou-tras – esta o paciente relacionava com seu pai. Também havia uma personalidade com traços antissociais que era sedutora, manipuladora e não apresentava remorso por prejudicar ou-tras pessoas. Durante a internação, foi possível identifi car e reconhecer claramente 10 das 13 personalidades.

Foram aplicadas duas escalas: a Dissociative Disorders In-terview Schedule (DDIS), com critérios diagnósticos para transtorno depressivo maior passado, abuso de substâncias, abuso sexual na infância, distúrbio borderline de personali-dade, TDI e esquizofrenia; e o DES, em versão traduzida para língua portuguesa. O DES é o questionário mais utili-zado para o rastreamento de sintomas dissociativos. Possui um ponto de corte de 30, acima do qual se pode identifi -car transtorno dissociativo; nosso paciente pontuou 168. Foi também realizado eletroencefalograma (EEG), o qual não demonstrou alterações.

O paciente permaneceu 35 dias internado, período du-rante o qual passou a ser atendido diariamente em consul-tas médicas e por equipe multiprofi ssional. Houve melhora dos sintomas de impulsividade e depressivos, com melhor compreensão da doença pelo paciente, por sua família e pela equipe que permaneceu acompanhando o paciente no CAPS. Recebeu alta hospitalar melhorada em uso de carba-mazepina 1.200mg/dia, olanzapina 10 mg/dia, lítio 900 mg/dia e sertralina 50 mg/dia. Foram mantidas sessões de psico-terapia bissemanais, com indicação de acompanhamento por longo prazo.

dIsCussão

Após 10 anos sintomático, tendo passado por múltiplas internações e avaliações psiquiátricas, o paciente recebeu diagnóstico de TDI segundo critérios do DSM-5, sendo que possuía mais de duas personalidades distintas que assumiam recorrentemente o comportamento, com episódios carac-terísticos de amnésia sem estar sob a infl uência de substân-cias12. Pacientes como este tendem a ser subdiagnosticados, já que se trata de um diagnóstico raro e difícil e que pode

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36 revista debates em psiquiatria - Mar/Abr 2015

RELATORELATORELATO DE CASO

levar anos para ser corretamente estabelecido, existindo ain-da muita incompreensão a respeito entre os profissionais de saúde mental13.

No caso do nosso paciente, as personalidades possuíam no-mes próprios, com funções definidas e distintas entre si e tran-sição de uma personalidade para outra de forma súbita e drás-tica. Às vezes, o sujeito tem repleta consciência da existência, das qualidades e das atividades das outras personalidades14. Os pacientes geralmente referem-se a si mesmos como tendo “partes”, “vozes”, “múltiplos eus”, “pessoas” ou “demônios”15, entre outras formas, fato observado com frequência em nosso paciente.

Compatível com dados da literatura, o paciente apresenta-va-se dentro da média, indicando um número de 13 perso-nalidades, sendo que uma delas era criança, o que também é relatado com relativa frequência1. Uma das personalidades era deprimida, outra era controladora, muito irritada, e foram verificados também traços antissociais. O paciente desenvol-veu amnésia parcial a eventos passados, relacionados principal-mente ao período de sua infância e em relação aos abusos de que foi vítima10.

A causa do transtorno não é definida, porém sabe-se que pacientes com transtornos dissociativos, em sua grande maio-ria, possuem história de trauma, em geral na infância15. Os transtornos dissociativos podem ser encarados como tipos muito complexos e de longo prazo do transtorno do estres-se pós-traumático, começando agudamente durante a infância e se tornando crônicos durante toda a adolescência e idade adulta. A dissociação pode servir inicialmente como uma fun-ção adaptativa, tornando mais tolerável o medo e a dor psico-lógica que acompanham o trauma. Com o tempo, no entanto, a dissociação distorce o desenvolvimento da personalidade, a integração contínua de lembranças e a percepção das emo-ções em outras pessoas2. Os estados de self separados e disso-ciados (alters) são, primeiro, desdobrados de forma adaptativa, numa tentativa, por parte da criança abusada, de se distanciar da experiência traumática. Os alters logo ganham formas se-cundárias de autonomia, e a personalidade do paciente con-siste, na realidade, na soma total de todas as personalidades16.

O TDI também está associado com um alto grau de co-morbidades psiquiátricas. Entre os diagnósticos mais frequen-tes encontrados em pacientes com TDI, salientamos o abuso de substâncias e a dependência química17 – diagnóstico este também presente em nosso paciente. O TDI também pode coexistir com outros transtornos mentais, principalmente dis-

túrbio de personalidade borderline, e diferenciá-los pode ser difícil18. Tentativas de suicídio são comuns19.

Em nosso caso, foram aplicadas duas escalas, a DDIS19 e a DES11, que auxiliaram no estabelecimento do diagnóstico de TDI. Também foi realizado EEG, com resultado normal. Esse exame se faz necessário porque existe na literatura a hipótese de que a epilepsia parcial complexa esteja envolvida em sua etiologia20. Vale ressaltar que, na aplicação da escala DDIS, o paciente pontuou para esquizofrenia, um diagnósti-co de notável confusão com TDI; no entanto, não foram ve-rificados sintomas negativos característicos da esquizofrenia, nem a presença de deterioração social14.

A psicoterapia individual ambulatorial de longo prazo é o tratamento de escolha para os transtornos dissociativos2. Para casos de TDI, a psicoterapia envolve basicamente três enfoques: primeiramente, a construção de um vínculo segu-ro, a estabilização dos sintomas; em seguida, trabalhar direta-mente com as memórias traumáticas e o processamento do trauma, desfazendo a hiperexcitação a estímulos remanes-centes; por último, a busca pela integração das identidades e pela reabilitação. Pacientes traumatizados com frequência vivenciam as interpretações como um desafio a seu sentido de realidade. No contexto da terapia, a dissociação geral-mente é um escape defensivo de algo que produz sofrimento e ansiedade, e os diferentes alters presentes no setting clínico devem sem tratados como aspectos da mesma pessoa16. Far-macoterapia e intervenções familiares são de grande valor, porém secundários à terapia individual5.

ConClusões

Na prática clínica e psicoterápica, deparamo-nos com um grande número de pacientes vítimas de violência, sobretudo durante fases precoces do desenvolvimento. Nesse contex-to, evidencia-se a necessidade de identificar corretamente a sintomatologia específica voltada aos transtornos dissociati-vos, bem como todas as formas de transtorno de estresse pós-traumático, com o intuito de selecionar e disponibilizar as estratégias terapêuticas mais adequadas. Há um consenso de o tratamento mais eficaz consiste na integração dialética entre farmacoterapia, psicoterapia psicodinâmica eclética in-corporada a técnicas de terapia cognitivo-comportamental, intervenções de grupo e de família.

Salientamos que a exposição persistente a condições trau-máticas (transtorno de estresse pós-traumático complexo), bem como a evocação de memória do trauma através de

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RELATORELATOMIRIAN PEZZINI DOS SANTOS1, LIDIANE DOTTA GUARIENTI2, PEDRO PAIM SANTOS3,

EDUARDO FERREIRA DAURA4, ADRIANA DENISE DAL’PIZOL2

1 Consultório particular, Passo Fundo, RS. 2 Consultório particular, Porto Alegre, RS. 3 Consultório particular, São Paulo, SP. 4 Hospital Psiquiátrico São Pedro, Porto Alegre, RS.

estímulos remanescentes, tendem tanto a agravar as altera-ções neuroquímicas dessa patologia quanto favorecer a es-truturação de quadros psiquiátricos crônicos graves, como o transtorno de personalidade borderline e o transtorno de estresse pós-traumático complexo, que cursam com sinto-mas dissociativos, violência e autodestrutividade.

Os autores informam não haver confl itos de interesse as-sociados à publicação deste artigo.

Fontes de fi nanciamento inexistentes.Correspondência: Mirian Pezzini dos Santos, Av. Sete

de Setembro, 594/402, CEP 99010-121, Passo Fundo, RS. Tel.: (54) 3311-5345. E-mail: [email protected]

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